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Copyright © 2021 por Arthur Ruhtra

Todos os direitos reservados ao autor

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com a realidade (nomes,


lugares ou situações descritas) é mera coincidência.

Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio
sem permissão por escrito, exceto no caso de breves trechos em críticas. A
violação dos direitos autorais é crime definido pela lei 9.610/98 e punida nos
termos do artigo 184 do Código Penal.

CAPA: Fábio Adami Toledo (Instagram: ftoledo_art)


REVISÃO DE TEXTO: Arthur Ruhtra
DIAGRAMAÇÃO: Arthur Ruhtra
LEITURA SENSÍVEL: Luiz Ghael Cutrim
SUMÁRIO

NOTA DO AUTOR
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Epílogo
POV Caio
POV Thales
POV Caio
A todos aqueles que me
conhecem de verdade
NOTA DO AUTOR

Olá, pessoas lindas,

Gostaria de esclarecer que este livro é a segunda versão da mesma obra


que eu havia lançado em 2017 sob o mesmo título.
Após conversas esclarecedoras com um amigo, também escritor, Luiz
Ghael Cutrim, acabei percebendo que a primeira versão de MEU OUTRO
EU continha muitas problemáticas não resolvidas e mal abordadas, que me
fizeram acatar a ideia de revisar e, principalmente, reescrever a história.
Agradeço imensamente ao Luiz, pois sem ele eu não teria feito tudo que fiz e
chegado nesse resultado.
Espero que quem já leu algum dia possa sentir o desejo de ler novamente,
e quem não leu ainda, que curta a história e se emocione com a jornada do
Caio e do Thales (antes Chon e Tawan).
Nessa nova versão foi incluso um epílogo e também o conto natalino que
eu havia lançado de forma separada, mas dessa vez como três capítulos
extras.

Beijos de luz e gratidão!


Capítulo 1

Não tinha nada de interessante para assistir na Netflix. Havia lido mil
sinopses de filmes de todos os gêneros procurando por uma novidade, e já
estava em um loop infinito. Não me espantaria se depois eu tivesse câimbras
no polegar. Isso nem devia ser possível.
Na verdade, não queria assistir nada. Eu estava sentado no sofá da sala da
minha casa porque o tédio me pegou de jeito.
De quebra, minha mãe deve ter pensado que a melhor forma de me tirar
dessa quietude era enchendo a minha paciência.
— Mãe, faz meia hora que a senhora está repetindo a mesma coisa — e eu
não estava exagerando quando disse isso. Sinceramente, nem estava
prestando muita atenção ao que ela estava falando, só escutava algum
barulho incomodando no meu ouvido. Preferia que fosse um mosquito.
Virei a cabeça para vê-la e ela estava olhando para mim, de braços
cruzados, como se estivesse prestes a me fuzilar, mas não me deixei sentir
intimidado.
Minha mãe odiava quando eu demonstrava não dar importância para as
coisas que ela falava, e eu fazia isso para ver se ela parava de me irritar, mas
não era uma estratégia que dava muito resultado.
— Se eu passar um dia inteiro falando, você ainda vai continuar sendo
malcriado — ela continuou a me repreender, como se eu tivesse dez anos de
idade. — Parece que você está fazendo isso de propósito. Não estou mais te
reconhecendo, Caio. Você quer chamar a atenção de quem?
Tirei a minha bunda do sofá e dei as costas para ela, correndo escadas
acima para meu quarto. Ela deve ter ficado mais furiosa, mas mesmo assim
não ouvi os passos dela ecoando atrás de mim.
Ao chegar no quarto, pulei na cama, e com o travesseiro em meu rosto
gritei o mais alto que podia. Não queria que a minha mãe ouvisse, só queria
me livrar da raiva que estava sentindo naquela hora.
Não sei se era exatamente raiva, mas fiquei estressado por nada.
Sentei na cama fitando o travesseiro molhado e passei a mão em meu
rosto para enxugar as lágrimas que ainda escorriam.
Por alguns segundos, encarei a parede cinza do meu quarto e decidi que
devia dar uma volta fora de casa. Calcei um tênis surrado da Nike que deixei
jogado embaixo da cama e desci pelos degraus de madeira, fazendo barulho
para que a minha mãe soubesse que eu estava de saída.
Sabia que ela tentaria me impedir, mas decidi ser malcriado, como ela
havia me chamado.
Por sorte, assim que pisei fora do portão, o Uber que eu tinha chamado
havia acabado de parar na frente de casa. Entrei e sentei no banco de trás do
carro sem nem olhar para o motorista com atenção.
— Posso seguir?
— Pode — respondi.
Ainda pude ver, pela janela do carro, minha mãe parada na porta
entreaberta da casa. Ela lançava seu olhar de desaprovação para mim.

***

O sol estava quase se pondo quando cheguei em uma praça do centro. No


caminho, pedi para meu melhor amigo, Gabriel, vir me encontrar. Ele
sempre atendia aos meus chamados.
Mesmo sendo em um dia no meio da semana, havia bastante gente no
local, principalmente garotos em bando acompanhados por garotas. Entre
eles, alguns eram skatistas que estavam utilizando barras de ferro e
corrimões dispersos pelo espaço.
Skate era algo que muito me chamava a atenção, mas meu medo de
quebrar qualquer osso do corpo falava mais alto. Ainda mais que eu era
desajeitado, então era alta a probabilidade de eu me quebrar todo.
Estar num lugar como esse, observando pessoas desconhecidas em suas
dinâmicas, fazia com que eu esquecesse um pouco dos meus próprios
problemas, mesmo que por alguns instantes. A brisa constante e o
chacoalhar das folhas nas poucas árvores proporcionavam uma atmosfera
boa para sentar e relaxar.
Por ser perto do colégio onde eu estudava, já tinha vindo algumas vezes
aqui. Não era difícil encontrar algum conhecido que, assim como eu, não
tem nada melhor para fazer, a não ser gastar seu tempo nesta praça.
Neste período, início do ano, estava todo mundo de férias do colégio, e só
alguns dias nos separavam do início das aulas. Nossa alegria estava prestes a
acabar. Adeus vida, adeus tempo livre para dormir doze horas por dia.
Sem que eu esperasse, alguém com skate nos pés freou bem na minha
frente e acabei me contorcendo todo com um susto. Eu estava muito
concentrado na tela do celular e por isso não percebi que alguém se
aproximava.
— Se assustou? — perguntou, rindo da minha cara, o cretino do Henrique.
Ele ainda tinha a audácia de falar isso, principalmente que eu não estava com
humor para aguentar ironias.
— Não, eu tenho espasmos normalmente, cacete! — respondi, mirando o
seu rosto.
A franja longa de seu cabelo preto me deixava em dúvida se ele ainda
estava me olhando, mesmo continuando parado na minha frente. Acho que
ele deveria cortar um pouco disso.
Ele pareceu não entender a minha ironia, ou não deu a mínima.
— Tá fazendo o que aqui sozinho, Caio? — perguntou.
— Tô esperando o Gabriel. Marquei com ele aqui — respondi, olhando
para os lados para ver se ele estava vindo, mas nenhum sinal dele.
— Ah sim, então... tudo bem.
Henrique subiu em cima do seu skate e deu as costas para mim, acenando
enquanto se distanciava, ao mesmo tempo em que tentava arrumar a franja
que cobria seus olhos. Por isso, e por outras coisas, que eu o chamava de
tonto.
Não demorou muito para que o Gabriel chegasse. Ele se sentou
repentinamente ao meu lado e pôs um braço ao redor do meu pescoço,
apertando-me.
Ele era um pouco menor e menos atlético do que eu, mas isso nunca o
impedia de ser agressivo e sempre tentar quebrar meus ossos.
— E aí, Caião! Por que o chamado? — ele poderia ter me soltado se
quisesse realmente que eu respondesse, uma vez que meu rosto estava
afogado no seu peito.
Consegui, com certo esforço, me desprender do seu aperto e o afastei de
mim.
Ele até passou a mão em meu cabelo para arrumar a bagunça que ele
mesmo fez.
— Por que demorou tanto? — indaguei, como se eu tivesse algum poder
sobre ele.
Claro que eu não era dono dele, mas ele era meu melhor amigo e eu me
sentia no direito de fazer esse tipo de cobrança.
— Quê? — perguntou, erguendo as sobrancelhas. Acho que ele pensava
que eu não tinha o direito de fazer esse tipo de exigência. — A gente nem
tinha marcado nada pra hoje. Você me chama em cima da hora e ainda
reclama? Ah, vá... mas enfim, o quê que tá pegando? — perguntou,
estreitando seus olhos pretos e me analisando um pouco, como se tentasse
me ler.
— Hm, nada — falei, desviando o olhar para outro lugar. Eu realmente
não queria falar mais nada.
— Eu conheço você há bastante tempo, você não me engana. Esses seus
olhos vermelhos, das duas uma: ou você chorou ou fumou uma... — ele
socou meu ombro e começou a rir.
Eu não ri nem um pouco.
Eu conhecia ele há bastante tempo mesmo. Desde o sexto ano
estudávamos juntos nos mesmos colégios, e nossos pais até se conheciam e
eram amigos.
Eu tinha outros amigos, mas ele com certeza era aquele no qual eu podia
contar em todas as horas. E ele também me via assim. Eu acho.
— É a minha mãe, poxa — decidi ceder, olhando por entre as minhas
pernas —, ela vive me perturbando, dizendo que estou sendo malcriado, que
estou querendo chamar atenção e blá blá blá... fica jogando na minha cara
meu desempenho baixo na escola. Só falta ela dizer que é o meu namoro que
está me atrapalhando.
Tenho certeza que ela pensa isto.
A verdade é que eu não queria passar as minhas férias estudando. E quem
queria, né? Como se o resto do ano já não fosse o suficiente. E olha que eu
ainda nem estava prestes a fazer vestibular para ela ficar com essa pressão
toda.
Minhas notas ano passado realmente foram abaixo das minhas médias
anteriores, principalmente naquela droga de matemática, mas eu não tinha
culpa se os números não eram a minha praia.
Como punição, minha mãe havia me inscrito em aulas de tutoria por toda
as férias para que eu me recuperasse nos estudos. Minhas férias se tornaram
algo que não eram, de fato, férias, mas um verdadeiro pé no saco.
— E isso é motivo para chorar, cara?
Às vezes o Gabriel era tão insensível que era melhor quando ficava
calado.
Sempre fui aquela criança que abria o berreiro quando caía e só ralava o
joelho, ou quando meus pais não compravam o que eu queria no
supermercado. Apanhei muito por ser assim, e de nada adiantou.
— Não sei, só estou de saco cheio de tudo isso, sabe? — desabafei.
— E você tem ido para o reforço? — perguntou, parecendo me cobrar ou
dizer que se importa. Bastava a minha mãe.
— Você sabe que não — devolvi o soco em seu braço —, a gente até se
encontrou algumas vezes nos horários dessa bendita tutoria.
Fugir dos problemas e obrigações era a minha especialidade, devia ser por
isso que quando tudo vinha à tona parecia que eu não conseguiria suportar.
No começo do reforço eu estava indo todos os dias, mesmo sob
reclamação, mas ultimamente eu desviava do caminho e fugia das aulas, que
eram de segunda a sexta pela tarde. Às vezes eu saía com meus amigos ou ia
encontrar a minha namorada.
— É por isso que sua mãe tá brigando contigo, cara. Você sabe que eu não
apoio que fique cabulando as aulas.
Olhei para a cara de pau dele, enquanto ele imitava a voz de alguém
adulto, fazendo uns gestos esquisitos.
— Você... você que me chamou algumas vezes para sair mesmo sabendo
que eu iria para a tutoria, seu infeliz! — eu tive que bater na cabeça dele.
No fim do dia a gente sempre terminava cheios de hematomas e nos
sentindo espancados de tanto que batíamos um no outro. Era sempre assim.
— E o seu pai... ele fala o quê? — continuou ele.
— Eu acho que meu pai não sabe que não tenho ido para as aulas, senão
ele já teria me batido — respondi, coçando meu queixo onde já deveria ter
barba, mas nem resquícios —, pelo menos minha mãe me poupa disso — ou
poupa ele —, só que ela acaba descontando depois com muita reclamação.
De verdade, não sei se meu pai bateria em mim, ele nunca me bateu, isso
era trabalho para a minha mãe. Com certeza ele ficaria furioso por estar
jogando dinheiro fora e cortaria de vez a minha mesada, que por sinal já
estava muito limitada depois que eles viram meu boletim final.
Às vezes eu até pensava que meu pai não se importava tanto comigo e
com minha mãe depois que ele abriu seu escritório há alguns anos. Ele era
advogado, e passava praticamente o dia todo trabalhando, só chegava em
casa à noite, e sempre exausto.
Talvez ele pensasse que suprir os gastos da casa e da família fosse
suficiente. Mas tudo bem quanto a isso, sem problemas, eu estava
começando a não me importar, como ele fazia, assim eu sentia menos a falta
dele.
— Olha, já tá de noite, e eu não poderei voltar muito tarde pra casa,
mainha vai ficar uma fera. Então, quer fazer alguma coisa agora? — Gabriel
perguntou. Ele sabia que, se deixasse, eu passaria uma eternidade me
lamentando, então preferia ir fazer alguma outra coisa para passar o tempo, e
acabou ele mesmo sugerindo algo: — Vamos tomar um sorvete.
Sempre que queria me abrir eu achava melhor fazer isso com ele ao invés
da minha namorada, mesmo que ele fosse sempre insensível. Alice não
gostava de ouvir meus problemas.
No entanto, adorava despejar os dela em mim.
Havia uma sorveteria bem tradicional perto dessa praça. Um lugar bem
minúsculo, porém, sempre movimentado. Eu e Gabriel gostávamos de lá
porque os sorvetes eram realmente bons.
Assim que chegamos, escolhi uma mesa que estava disposta em cima da
calçada, enquanto ele, entrou para pedir os nossos sorvetes.
Ele voltou pouco tempo depois com duas tigelas enormes na mão,
passando a língua nos lábios e se sentando. Gabriel, como sempre, sendo
exagerado. Eu tinha certeza que não iria aguentar tomar esse sorvete todo.
— Depois eu pago — falei, pegando a minha tigela.
— Se eu for juntar tudo que você tá me devendo, o que vale a sua casa
não vai ser suficiente pra me pagar — brincou ele.
Ele sabia que eu nunca o pagaria de volta. Mesmo que quisesse, eu estava
sem grana. Gastei todo meu dinheiro na semana passada com um presente de
aniversário para a minha namorada antes de ela ter ido viajar com a família.
Era para isso que os amigos serviam, não? Para nos pagar sorvete. E ele
nunca me deixava na mão quanto a isso.
Smack!
Eu não sei como aconteceu, nem de onde veio, só sei que meu sorvete já
não estava mais em minha tigela, mas sim todo jogado em meu colo.
De algum modo, uma bola de basquete pulou em cima da nossa mesa e
fez uma grande bagunça.
Levantei rapidamente, surpreso e furioso ao mesmo tempo, enquanto
Gabriel continuou sentado, com uma cara de quem estava prestes a explodir
em uma gargalhada.
— Desculpa, desculpa!
Quando me virei, vi um garoto de camisa regata com as mãos juntas,
como quem implora por perdão, e uma garota ao seu lado, de olhos
arregalados e amedrontados.
— Que merda! — meu punho estava fechado e levantado, direcionado ao
garoto.
Ele se acanhou e cobriu o rosto com as mãos esperando ser atingido. Na
mesma hora, senti a mão do Gabriel vinda por trás segurando o meu punho.
A garota que estava com o menino prontamente se posicionou na frente
dele, fazendo-se de escudo.
— Para aí, amigão! — Gabriel me impediu.
— Desculpa, desculpa, não era nossa intenção — defendeu a menina.
Nesse momento eu percebi que o pessoal da sorveteria estava atento à
cena que estávamos causando. Eu já havia baixado meu braço, e, de
qualquer forma, eu não iria bater nele, foi algo meio instintivo.
Eu só tinha colocado uma colher de sorvete na boca. Aaaah, que ódio!
— Cara, por que você fez isso? Que mancada — eu ainda estava um
pouco exaltado, e o menino, aparentemente, assustado, mas já tinha saído de
trás da amiga dele.
— Não foi porque eu quis, eu estava jogando a bola pra ela e acabei
errando — justificou ele.
— Pelo jeito você deve ser péssimo para fazer uma cesta, hein — tirei
sarro.
Gabriel não se conteve e riu, mas o rapaz não achou a menor graça e
mostrou uma cara emburrada. Ele aproveitou para pegar a bola no chão e
colocá-la debaixo do braço.
— Eu posso pagar seu sorvete — ele se ofereceu.
— Não precisa — Gabriel tomou a frente da conversa —, não vamos
prolongar mais isso. Podem ir tranquilos.
Antes que ele terminasse a frase, a menina pegou o amigo dela pelo braço
e saiu o arrastando, enquanto ele fixava o olhar em mim. Acho que ele ainda
estava processando a situação.
Eu e Gabriel não continuamos mais na sorveteria e voltamos para casa. Eu
estava todo sujo, com o sorvete ainda escorrendo pela minha roupa e
pingando no chão. Como se minha mãe já não tivesse motivos suficientes
para me dar broncas quando eu retornasse para casa.
Capítulo 2

Eu estava um tanto impaciente com a demora da minha namorada, Alice.


Havíamos marcado de nos encontrar às 3h00 horas da tarde e ela já estava
uma hora atrasada. Acabei entrando em uma livraria com o Gabriel para me
distrair. Felizmente, havia pouca gente por lá.
Aos sábados o shopping se enchia e isso me dava dor de cabeça. Se fosse
nos meus tempos de criança, eu não me importaria e nem iria querer mais ir
embora; sairia correndo pelos corredores, batendo nas coisas e nas pessoas,
causando dor de cabeça para os meus pais, mas agora, eu sempre chegava já
pensando em voltar para casa.
Alice foi quem marcou de nos encontrarmos nesse lugar. Ela tinha
chegado ontem de viagem, e já não nos víamos há uma semana,
praticamente.
Considerando toda a nuvem negra que pairava na minha casa por causa
dos meus problemas com a minha mãe, estar aqui era um pouco melhor.
Parei na frente da seção de literatura juvenil para olhar alguns títulos,
mesmo que eu não fosse o tipo de jovem que costumava ler. Eu estava ali só
para me entreter mesmo.
Quem entrava no meu quarto até pensava que eu era um rapaz culto, que
lia bastante, por causa de uma estante com dezenas de livros que tinha nele;
só li um ou outro, a maioria cheguei só a folhear as primeiras páginas e
depois os abandonei. Os livros tinham virado basicamente uma parte da
decoração do quarto, assim como qualquer outro objeto que tinha nele.
— Você vai comprar algum? — Gabriel perguntou, vendo que eu passava
os olhos como se estivesse à procura de algo específico.
— Achei que fosse um vendedor — respondi, virando para ele. — E não,
só estou olhando mesmo.
— Não quero ficar muito tempo aqui, só cheira a café — ele fez uma
careta enquanto esticava a gola da camiseta.
Havia sentido o cheiro de café quando entrei, mas ficou mais evidente
depois que ele falou. E isso não era algo ruim, eu gostava de café.
Olhei para cima e vi que havia um andar da livraria com uns senhores
sentados, tomando café enquanto conversavam. Aí estava a explicação.
— Vamos ficar só mais um pouco enquanto Alice não chega. Ela vem nos
encontrar aqui — olhei para o relógio em meu pulso para verificar a hora
pela décima vez.
Decidi andar mais um pouco pela loja enquanto Gabriel vinha logo atrás.
— Você não quer olhar alguns livros? — perguntei, incomodado com ele
me seguindo, além de estar suspirando alto.
— Não, né. Eu não vim comprar nada — respondeu, impaciente.
Parei na frente de uma pilha de livros e a rodeei, passando a mão nos
livros até decidir por pegar um que me atraiu pela sua cor verde, tipo caneta
de marcar texto; uma outra mão veio de encontro ao mesmo livro, fazendo
com que nossas mãos se tocassem. Puxei a minha rapidamente ao sentir o
toque dos dedos frios.
— Ah, descul... — parei de falar quando vi quem era.
Reconheci de imediato. Baixinha, cabelos pretos e olhar expressivo, era a
menina do outro dia na sorveteria. Que infeliz reencontro, me deixou até sem
palavras.
— Oi! — nos encaramos e ela resolveu quebrar o estranho momento de
silêncio ao me cumprimentar. — Pode pegar, eu não vou comprar.
— Nem eu, não gosto de ler — respondi de imediato.
Ela esgueirou os olhos depois que respondi, era melhor eu ter ficado
calado. Afinal, quem iria em uma livraria sem ter interesse por leitura? Eu
apenas. Mas ela não entenderia, claro.
Antes que ela pudesse falar mais alguma coisa, e eu sei que ela iria falar,
senti alguém se entrelaçando em meus braços.
— Cheguei!
Olhei sobre meu ombro e vi a minha namorada com um sorriso
contagiante, irradiando felicidade. Não pude deixar de retribuir com um
outro largo sorriso e um beijo em sua testa.
O cabelo dela, que há alguns dias era preto, agora estava castanho-claro,
devia ser para combinar com o meu. Além disso, o tom de pele dela estava
mais corado.
— Quem era aquela garota? — perguntou ela.
Virei para o lado e não vi mais a menina. Nem percebi ela saindo. Na
mesma rapidez que ela apareceu, também desapareceu.
— Eu não sei, apenas esbarrei nela — menti. Não valia a pena falar sobre
ela.
— Eu trouxe a Laura comigo. Você disse que viria com o Gabriel, então...
A amiga que ela trouxe estava ao lado do Gabriel. Eu e ele já a
conhecíamos, ela estudava no mesmo colégio que a gente.
Olhei para ele com um sorrisinho malicioso e pisquei. Ele somente revirou
os olhos.
— Vamos, eu estou com fome — fiz uma careta para Alice, esfregando a
mão na minha barriga.
Peguei na mão dela e saí a arrastando para fora da livraria, deixando
Gabriel para trás, para que ele viesse junto com Laura.
Uma vez eu já havia falado dessa garota para ele, mas ele me disse que ela
não fazia o seu tipo.
Sinceramente, eu não sabia qual era o tipo dele. Eu já tinha o visto ficar
com algumas meninas aleatoriamente e não achava que ele tinha
preferências, ou pelo menos a amiga da minha namorada ele não preferia. Se
ele colaborasse, poderíamos fazer programa de casal sempre que saíssemos.
Considerando que os corredores do shopping estavam cheios, a praça de
alimentação não estava diferente. Centenas de cabeças e um barulho irritante
de conversas misturadas. Dei uma rápida olhada panorâmica e vi alguns
lugares vazios, para nossa sorte. Adentramos por algumas mesas até
acharmos uma mesa que tivesse ao menos quatro cadeiras vazias.
Quando sentei, notei que o Gabriel vinha segurando a mão da Laura,
assim como eu fiz com Alice. Eles sentaram na nossa frente.
— Vamos pedir o quê? — perguntou ele.
— Pizza! — exclamou Alice, com a mão levantada.
Eu olhei para ela e comecei a rir. Pareceu que ela já estava com o desejo
em mente só esperando alguém perguntar.
— O que foi? — ela deu um tapinha na minha mão que me fez soltar um
gritinho.
— Au! A sua mão é quente para bater, hein. Eu só achei engraçado que
você foi rápida na escolha.
— Eu também quero pizza — Laura optou pela mesma coisa.
Olhei para o Gabriel e ele assentiu com a cabeça, franzindo os lábios. Eu
iria sugerir sanduíches, mas acabei ficando em desvantagem. No fim, a
escolha da Alice prevalecia.
Escolhemos duas pizzas: uma portuguesa, tamanho grande, e uma menor
de frango. Para mim, tudo que tinha frango era o meu favorito.
Fizemos o pedido e não demorou muito até chegar a hora de pegar as
pizzas, então me levantei e fui com Gabriel. Eu teria que ajudá-lo a trazer os
refrigerantes.
— Eu vi você de mãos dadas com a Laura, achei que ela não fizesse o seu
tipo — falei, pousando a minha mão no ombro dele.
— E não faz — retrucou ele, tirando lentamente minha mão de cima dele
—, eu só achei que ela fosse se perder pelo caminho. Ela anda devagar
demais, parece uma lesma.
Havia de se levar em consideração que a Laura tinha pernas mais curtas.
Ela era menor do que a Alice, que por sua vez era menor do que eu.
— Pegue os refris, eu levo as pizzas — ordenou ele, quando chegamos no
Pizza Hut.
Enchi quatro copos com Coca-Cola. Se era para destruir o estômago, que
fosse por completo.
Voltamos para a mesa e as meninas estavam com a mão no rosto, rindo
discretamente. Estavam fazendo fofoca.
Já sentado, dei uma olhada para o lado e vi, ninguém mais ninguém
menos do que a garota dos dedos frios. E ela estava prestes a passar por nós
de mãos dadas com o garoto que não conseguia nem fazer uma cesta. Eu não
podia perder a oportunidade e coloquei meu pé para que ele tropeçasse, mas
o seu instinto foi mais rápido e ele parou antes de bater no meu pé.
Todos na mesa se viraram e olharam para eles, vendo-os parado com
olhares fulminantes. Minha provocação fez efeito.
— Cara, você é um completo idiota! — disse a menina, apontando o dedo
para mim.
Eu me levantei, mas ela não esperou que eu respondesse, dando de
ombros e saindo com o amigo dela. Ela claramente ficou muito furiosa.
— Gente? O que foi isso? — perguntou Alice, puxando-me pela camisa e
fazendo-me sentar. — Essa garota de novo?
— É uma longa história — respondeu Gabriel, suspirando e pegando os
talheres em cima da mesa —, depois o Caio conta, vamos comer antes que
esfrie. Não sou fã de pizza gelada.
— Ah, não! Eu quero saber disso agora! — ela não se contentou e fez cara
feia para mim.
Enquanto comíamos, fui contando do ocorrido na sorveteria. Ela atribuía
palavras sujas à garota e ao garoto enquanto eu falava, como se tivesse
ficado mais furiosa do que eu. Fiquei me sentindo um pouco sujo também
por estar ouvindo aquilo. Ela exagerou, não era para tanto. Mas também, eu
provoquei, de certa forma, então tive que aguentar.
Ficamos por mais uma hora no shopping e depois nos despedimos. Alice
dividiu um Uber com a amiga dela, e eu voltei para casa com Gabriel. Eu e
ele morávamos no mesmo bairro.
Capítulo 3

Toc toc toc!


Acordei com um susto. Meus olhos ardiam e minhas pálpebras estavam
pesadas. Havia alguém batendo incessantemente na porta do meu quarto, e
acho que fazia tempo. De algum modo, eu estava ouvindo as batidas em um
sonho.
— Caio! Caio! Vai se atrasar! — era a voz da minha mãe me acordando.
— Já estou acordado, mãe! — gritei para que ela parasse de bater,
enquanto tirava remela dos meus olhos.
O quarto ainda estava muito escuro. A cortina grossa e escura das janelas
impedia que a luz do sol entrasse, e meu cérebro gostava disso, ele queria
dormir mais.
Sentei na cama, ainda meio desnorteado, usando apenas uma boxer
listrada. O calção do pijama tinha saído durante a noite. Normal para quem
se mexia muito.
Olhei para o meu celular ao lado, e o visor indicava 06h30 da manhã.
— Meu Deus!
Pulei da cama espantado, fazendo barulho no piso de madeira, e corri para
o banheiro. Eu não estava só um pouco atrasado, estava muitíssimo atrasado.
O alarme não tinha tocado. Ou eu não tinha acordado quando tocou. Não
lembrava exatamente. Só lembrava que fiquei até tarde conversando com
Alice ao telefone.
Era o primeiro dia de aula do meu segundo ano. Como veterano do
colégio, eu teria que estar lá para a recepção dos alunos novatos do primeiro
ano. Levarei bronca do Diretor do colégio, com certeza.
Tomei um banho frio super rápido para despertar. Vesti o uniforme do
colégio, que consistia basicamente em uma camiseta branca, um short azul, e
um blusão, também azul. Inclusive, azul era a minha cor favorita, mas esses
detalhes não tinham nada a ver com meu gosto pessoal, eram as cores padrão
da escola mesmo.
Peguei minha mochila e meu celular na mesinha de cabeceira e saí do
quarto, descendo as escadas de dois em dois degraus.
— Você não vai comer nada, Caio? — minha mãe gritou da cozinha
quando eu estava abrindo a porta para sair.
Fui até ela.
— Ah, mãe, eu tô atrasado, a senhora nem me acordou na hora —
reclamei.
— Eu o tinha chamado mais cedo, você que não se levantou. Tome pelo
menos um suco — sugeriu ela, virada de costas para mim, enquanto retirava
alguma coisa no congelador da geladeira.
— Cadê o pai? — perguntei, mesmo sabendo da resposta.
Peguei um copo grande no armário e enchi com um suco que estava na
mesa. Acho que era de acerola, pois engoli tão rápido que nem consegui
distinguir o sabor. Pingou um pouco na minha camisa, mas não me importei.
Como diria a minha avó: menino, você tem a boca furada!
— Ele já saiu — respondeu ela. — Coma alguma coisa no colégio e...
Ela deve ter falado mais alguma coisa, mas não escutei, já tinha
atravessado a porta. Olhei para o pulso e não vi o relógio, esqueci de pegar.
No meu celular marcava quase 7h10.
Menos de um minuto esperei para que o Uber parasse na minha porta. Eu
não iria chegar na escola em menos de dez minutos, que era o limite para me
permitirem entrar no colégio Santa Inês.
Senhor, me ajuda!
Tirei do bolso da mochila meu fone de ouvido todo embaralhado e
consegui deixá-lo normal após certa luta com os milhares de nós.
Dei play nas minhas músicas no Spotify e começou a tocar "Bohemian
Rhapsody" da banda Queen. Era a minha música favorita dos últimos dias,
ou semanas até.
Não consegui nem chegar no verso do "Gallileo, Gallileo" quando meu
celular começou a tocar, impedindo-me de curtir mais a música.
Antes de atender eu já sabia que seria Alice ou Gabriel. Uma pena eles
não terem me ligado antes, mas só agora que eu estava atrasado.
— Onde você tá? — voz doce feminina, era Alice.
— Bom dia pra você também — tossi. — Já estou a caminho, chego em
alguns minutos.
Ouvi ao fundo várias pessoas falando simultaneamente, e uma voz mais
grave pedindo silêncio, devia ser o Diretor ao microfone.
— Bom dia, amor. Corra, estamos no ginásio! — disse ela, e desligou na
minha cara.
A música voltou a tocar instantaneamente e em menos de dez segundos o
meu celular tocou de novo. Suspirei, irritado.
— Cadê você, cara? Tá todo mundo aqui. Você sempre se atrasa — era
Gabriel, reclamando.
Eu sempre me atrasava, mesmo assim ele ainda reclamava.
— Eu-já-sei — falei, pausadamente, e com pouca paciência. — Estou
chegando.
Desliguei na cara dele, pois já estava parado na frente do portão do
colégio. Agradeci ao motorista, e saí do carro puxando meu fone que estava
arrastando no chão.
— Não esquece de dar 5 estrelas, por favor — pediu o motorista.
Acenei com um legal para ele e só fiz olhar a hora no visor do celular.
Cheguei exatamente no limite de atraso. Vi que não era só eu que estava
atrasado, havia outros meninos e meninas se apressando para entrar.
Na portaria, um porteiro careca e visivelmente irritado, estava batendo no
pulso, cobrando pontualidade de todos que passavam. Aproveitei um grupo
de meninas e passei junto com elas para minha presença não ser percebida.
Eu não estava a fim de levar bronca no primeiro dia.
Fui correndo direto para o ginásio, que não era muito distante da entrada.
Conseguia ouvir de longe uma fanfarra.
Chegando lá, olhei para a arquibancada tentando identificar algum rosto
conhecido, mas nada. Muitos rostos eram familiares, porém não enxergava
nenhum dos meus amigos.
Mais um pouco e enfim encontrei Gabriel, um tanto distante, sacudindo os
braços para mim e pulando igual a um louco.
Atravessei correndo pelo meio do ginásio em direção a ele, e dois
professores me chamaram a atenção, batendo o pé. Suponho que eu não
poderia estar passando por ali, mas nem ouvi o que estava saindo de suas
bocas, o barulho era muito alto.
Pulei uma grade para poder me aproximar do Gabriel, e cheguei cansado.
— Dormi demais — falei.
Como castigo, ele deu um tapa na minha cabeça, me jogando um pouco
para a frente.
Ele estava em pé, e não estava só, havia outros amigos nossos que eu não
via há mais de um mês.
Cumprimentei Nicholas, Lucas, Bento, o tonto do Henrique, e também um
outro garoto que eu não conhecia, e tinha cara de calouro. Só não sei o que
ele estava fazendo desse lado, já que aqui só ficavam os veteranos dos
segundos e terceiros anos. Os novatos tradicionalmente ficavam na
arquibancada do outro lado, ao menos foi assim ano passado quando eu era
calouro. Mas enfim, não dei importância e me encaixei em um espaço entre
Gabriel e Lucas.
A banda da escola já tinha parado a barulheira e o Diretor estava prestes a
começar a falar. Ele estava no centro do ginásio, usando um terno apertado.
Atrás dele, estavam vários professores e umas freiras que faziam parte da
administração. O colégio era bastante tradicional. Havia sido fundado por
uma igreja católica e devia ter uns cem anos, no mínimo.
— Estejam todos em silêncio — era o som que saía dos alto-falantes,
fazendo um zumbido quase ensurdecedor. Pus as mãos nos ouvidos para
preservar meus tímpanos.
Olhei de lado e vi a minha namorada, um pouco distante, chamando por
mim. Tinha até esquecido de procurá-la.
Ela estava com as suas amigas, então fiz um gesto com as mãos de que
iria depois ao encontro dela. Ela colocou a mão no rosto insinuando que
estava chorando, mas depois fez um sinal de legal. Entendi que estava tudo
bem em nos vermos depois.
— Bom — continuou o som nos alto falantes —, como Diretor dessa
instituição, Colégio Santa Inês, é uma honra para mim saudar os novos
alunos do primeiro ano e receber novamente os já alunos da casa.
Ouviram-se uns aplausos, mais do pessoal do outro lado, do que deste.
Eles pareciam estar mais animados para isso. Eu também estava no ano
passado, entendia totalmente. Agora já não tinha mais porque se animar.
— Não tenho paciência para essa ladainha — ouvi Lucas quase gritar ao
meu lado. Ele estava roçando o braço dele no meu.
— Ninguém tem, meu caro — concordou Gabriel.
O Diretor continuou a falar por mais alguns longos e torturantes minutos,
explicando todo o manual de boa conduta da escola; as normas que quase
ninguém obedecia; apresentando cada um dos professores que faziam parte
do corpo docente da escola; e também o restante do pessoal, até que chegou
a hora de finalizar.
— Todos deem as boas-vindas aos novos alunos!
— Sejam bem-vindos! — gritamos todos em uníssono.
— Estejam todos dispensados e vão para as suas salas. Olhem nos papéis
pelos corredores a qual sala cada um de vocês pertence — o Diretor
finalizou, com todo mundo já se empurrando para sair.
— Vamos, pessoal — falei para meus amigos.
O Gabriel estava me empurrando por trás quando comecei a andar.
Olhei para a fila do pessoal que estava ao meu lado, um degrau acima, e
dei de cara com o casal da sorveteria, ou do shopping, e agora do colégio.
Parei de supetão.
Os meninos que vinham atrás começaram a se bater, e Gabriel me
impulsionou com tanta força que parei vários metros à frente.
— Por que você parou?
Virei de frente e fui andando de costas, olhando para ele. Apontei para o
lado, na maior cara-de-pau, e fiz ele ver o que eu tinha acabado de notar e
não estava acreditando.
— Que sina — disse ele, voltando a olhar para mim e pedindo para que eu
me virasse, senão eu poderia cair.
Pelo visto ele não se impressionou muito, provavelmente já tinha visto os
dois aqui. Mesmo assim, considerei uma coincidência muito estranha. O
destino estava me pregando uma peça, só podia. Eu teria que aturar esses
dois até no meu dia a dia agora. Nada contra, mas nada a favor também.
Saindo do ginásio, vi Alice me esperando. Ela veio correndo e se jogou
em cima de mim. Pedi para que ela descesse, pois algum adulto poderia ver
aquela cena e nos repreender. E também, porque ela estava de saia, e poderia
acabar mostrando algo que não quisesse mostrar.
Pessoas que passavam já estavam nos olhando e eu já estava começando a
ficar com vergonha.
— Rapazes, vejo vocês depois — falei para os meus amigos, expulsando-
os.
— Mas a gente tem que ir para sala agora, você não ouviu? — avisou o
Nicholas. Eu só conseguia atentar para o cabelo verde dele que estava
reluzente com a luz do sol.
— Apareço já, podem ir — repeti, batendo no ombro dele.
Gabriel, que estava se apoiando no ombro do garoto que ficou ao nosso
lado e que eu ainda não conhecia, não se importou. Ele não falou nada e
apenas seguiu o caminho, enquanto eu me voltei para minha namorada.
— Por que você demorou tanto, meu amor? — perguntou ela.
— Porque eu acordei tarde e ninguém se preocupou em me ligar para que
eu acordasse — isso foi uma indireta, bem direta, e ela recebeu com
sucesso.
— Desculpa — disse ela, apertando minhas bochechas sem qualquer
delicadeza. Talvez tenham ficado vermelhas, mesmo que minha pele não
fosse tão pálida quanto a dela.
— Sem problemas, gatinha. O que importa é que agora eu estou aqui.
Peguei na mão dela e saímos andando juntos com o restante do pessoal
que ainda estava deixando o ginásio.
Estava desacostumado com essa atmosfera escolar. Esse aqui não era um
lugar que eu queria muito estar, mas me sentia feliz em rever todos meus
amigos. Ao menos isso me animava.
Ano passado tive tantas dores de cabeça, então esperava dessa vez
começar com o pé direito.
Capítulo 4

Deixei minha namorada no bloco B de aulas e saí correndo pelos corredores


para o bloco dos meninos, logicamente o bloco A. O Colégio Santa Inês era
dividido apenas nesses dois blocos de aulas, onde os meninos estudavam
separados das meninas. Havia essa segregação por gêneros.
Tive que me acostumar com essa ideia quando entrei no colégio, mas aos
poucos fui percebendo que era legal estar em uma sala só com garotos. Uma
das vantagens era que poderíamos falar sobre coisas que não seria de bom
tom se as meninas estivessem por perto ouvindo.
No meio do caminho, freei na frente de um mural verde, gastando sola dos
meus tênis, e parei para olhar um papel com as indicações dos números das
salas. A minha não era mais a mesma do ano passado, o que era de se
esperar, já que não estou mais no primeiro ano.
Depois de verificar, continuei correndo e cheguei, um pouco ofegante e
com suor na testa, na porta da minha nova sala, que estava de portas
fechadas. Me ferrei.
Empurrei a porta devagar e o professor, falando para a turma, parou e
olhou para mim com os olhos esgueirados, como se estivesse planejando a
minha morte.
— Eu posso saber o porquê de você estar chegando agora? — perguntou
ele, batendo o pé no chão em descompasso. — Todo mundo já está aqui.
Eu não sabia o que responder, então continuei parado na entrada da sala.
— E não me venha dizer que você se perdeu pelos corredores. Já é o seu
segundo ano nesse colégio — continuou ele.
Por que ele não me mandava sentar logo? Eu estava começando a ficar
com vergonha e corado.
— Ele estava por aí com a namorada dele! — Gabriel gritou lá de trás,
como se estivesse com um megafone.
Ouvi alguns risos dos outros rapazes. Ah, maldito Gabriel!
— Vá sentar, vá logo! — ordenou o professor, impaciente.
Eu estava me sentindo sendo julgado em praça pública. Faltava só a
guilhotina. O carrasco já tinha.
— Desculpa aê — falei, e entrei apressado entre duas fileiras de cadeiras.
Sentei bem no fundo da sala, ao lado do Gabriel. As mesas eram duplas,
então ficavam sempre duas pessoas juntas.
— Quem tem um amigo como você não precisa de inimigo — resmunguei
baixinho, sem olhar para ele, enquanto colocava minha mochila em cima da
mesa.
— Eu só quis ajudar, e deu certo. O professor estava prendendo você lá na
frente — justificou ele.
Pensando por esse lado, até que deu certo. Deixei por isso mesmo.
— Ei, shhh. Chegou agora e já tá conversando — o professor gritou lá da
frente para mim.
Ele vai me perseguir agora? Apenas cheguei atrasado, não matei ninguém.
Fiquei calado e nem olhei para ele. Tão cedo do dia e eu já estava
começando a ficar estressado.
Foi assim, com essa positividade toda, que eu estava iniciando as aulas.
Ano passado começou tudo bem e terminou mal, eu espero que essa inversão
fosse um bom sinal.
— Bom, como eu estava dizendo agora há pouco, este ano vamos focar
bastante na prática de alguns esportes e até planejar alguns campeonatos,
então preparem-se! — informou o professor, com desproporcional animação.
Esse homem de meia-idade que estava falando era o professor de
Educação Física, o mesmo que nos ensinou no ano passado. Eu até que
gostava bastante dele nas práticas de futsal, mas isso acabou na hora que
entrei aqui hoje.
— Inclusive — continuou ele —, esse ano temos nessa sala um novo
aluno que veio transferido de uma outra escola. E pela sua ficha — ele fez
uma parada dramática e olhou para o teto como se estivesse tentando
lembrar de algo, e lembrou —, ele é um ótimo jogador de basquete. Quem
sabe não será um bom complemento para o nosso time.
— Quem é? — perguntei ao Gabriel.
— Você verá — ele respondeu, abrindo um meio sorriso, mas sem virar a
cabeça para mim.
O professor foi até a mesa dele e folheou alguns papéis em uma prancheta,
passando os olhos até achar um nome.
— Thales... quem é Thales? — perguntou, enquanto sondava a sala e
coçava a sua barriga saliente.
Agora eu tinha entendido o sorriso do Gabriel quando me respondeu. Eu
só podia ter jogado pedra na lua.
O tal Thales que se levantou algumas cadeiras à minha frente era o mesmo
cara que derrubou meu sorvete e que estava no shopping no fim de semana.
Eu já tinha me espantado em ter visto ele agora há pouco no ginásio, mas
não imaginei que estudaria justamente na mesma turma que eu.
Fiquei pensando em como ele poderia ser um bom jogador de basquete se
não era alto o suficiente para ser um jogador de basquete. Ele devia ter a
minha altura, no máximo um metro e oitenta.
Ele olhou para trás com um sorriso tímido para que todos da sala
pudessem assimilar o seu rosto e voltou a sentar. Eu assimilei esse rosto até
mais do que gostaria.
— Cuidem bem dele, pessoal — recomendou o professor.
Virei para o Gabriel repetindo com deboche o que o professor acabara de
falar e ele estava novamente com aquele sorrisinho.
— Pronto, agora temos um bebê na sala que precisa ser cuidado —
sussurrei.
— Pega leve com ele. Você não tem que guardar todo esse rancor por
causa de uma tigela de sorvete — lembrou. — Vocês dois só tiveram um
início de amizade conturbado.
Como assim? Que amizade? Eu não queria ser amigo desse moleque. De
onde o Gabriel tirou isso?
— Foda-se! — falei, esfregando o dedo do meio na cara dele.

***

Trinta minutos, esse era o tempo que tínhamos livre até o início do
próximo período de aulas.
— Cara, tu é muito vacilão — Nicholas berrou para mim. Ele estava
sentado junto ao Bento em cima da sua mesa, bem na minha frente.
— Baixa essas pernas peludas — falei, batendo no joelho ossudo dele.
Lucas veio do outro lado da sala, pulando por cima das mesas, para se
juntar a nós quatro e já chegou apoiando o braço em meu ombro. Acho que
eu tinha cara de suporte.
— Temos carne nova no pedaço, hein — disse ele, erguendo uma das
sobrancelhas.
Todo mundo se virou e olhou para frente para ver o jogador de basquete
novamente, mas ele nem estava mais na sala. Deve ter saído assim que deu a
hora do intervalo.
— De qual escola será que ele veio? — Bento jogou a pergunta.
Eu nem sei porque eles estavam interessados em saber disso. Eu mesmo
não queria saber, e quem quisesse teria um ano inteiro pela frente para
descobrir.
Olhei para o celular e só tínhamos mais vinte minutos antes do intervalo
acabar, e mesmo assim eu ainda continuava na sala. A fome parecia estar
gritando em meu estômago, enquanto Alice estava me mandando vários
áudios para o meu celular, provavelmente também gritando e perguntando o
porquê de eu ainda não estar no refeitório com ela.
— Não sei de onde ele veio, nem pra onde vai, só sei que EU tô de saída.
Levantei da cadeira e saí. Os outros vieram logo atrás. Eles não iriam ficar
na sala. Esse era o único momento em que tinham a chance de socializar
com as meninas no colégio. Para todo mundo, era um tempo precioso.
Era normal que alguns casais corressem para lugares do colégio que
fugiam à vista das freiras. Elas ficavam a todo momento passeando pelos
corredores nos inspecionando.
Demonstrações de carinho eram coisas que fugiam totalmente às regras do
colégio e eram expressamente proibidas, mas não queria dizer que não
aconteciam, até porque estávamos falando de jovens cheios de desejos à flor
da pele, e que não mediam esforços para realizá-los.
Chegando no refeitório, que era basicamente um pátio coberto, envolto
por várias colunas e repleto de grandes mesas, vi Alice sentada com o seu
grupo usual de meninas. Fui com meus amigos até elas.
Ela me recebeu com um beijo na bochecha e me fez sentar ao seu lado.
Uma amiga dela teve que se afastar para que eu me encaixasse. Os meninos
também se acomodaram com as outras meninas.
— Você demorou. Já já acaba o intervalo, meu amor.
— Eca — as amigas dela disseram, fazendo cara de nojo. Apesar de ser
uma feição que elas pareciam estar sempre.
— Por isso não namoro. Casais são excessivamente melosos — comentou
uma delas, de nariz arrebitado, que estava bem na minha frente. Se bem
lembro, o nome dela era Samantha.
— Você só diz isso porque ainda não encontrou o seu amor de verdade —
replicou Alice, abraçando-me e apoiando a cabeça em meu ombro.
— Eu estou bem aqui — emendou Nicholas, apontando para si.
— Você não faz o meu tipo — retrucou a menina, dando de ombros. —
Ainda mais com esse cabelo verde ridículo.
Preciso nem dizer que ela fez cara de nojo novamente.
Todos começaram a rir. Nicholas tinha perdido a oportunidade de ficar
calado, embora a menina tenha falado brincando. Eu acho.
Comi um sanduíche que Alice havia comprado na cantina para mim e
continuamos conversando até dar a hora de voltar para a sala.
O restante da manhã passou rápido e o primeiro dia do meu segundo ano
estava finalizado sem maiores encrencas.
Capítulo 5

Eu estava naqueles dias de zumbi. Dormi tarde na noite passada, para variar,
e meus olhos ainda queriam se fechar. Meu cérebro parecia se debater
querendo explodir a minha cabeça.
Já na escola, eu estava de cabeça baixa na minha mesa, quase babando, e
com um livro aberto me cobrindo, tentando aprender por osmose. Eu
conseguia ouvir apenas a voz do professor e entendia mais coisas do que se
estivesse olhando para ele. Ao menos essa era a desculpa que eu estava me
dando para não ter que prestar atenção total na aula.
— Como ustedes pueden ver, en el español también hay muchos...
Esse era o último período de aulas do dia. O professor em sala era o
Marcos, ou Marquito, como muitos chamavam por causa da disciplina que
ele ensinava. Acho que ele nem sabia que tínhamos dado um apelido a ele.
Aparentemente, ele não se importava se eu estava prestando atenção ou
não na sua aula, pois não tinha ouvido nenhuma reclamação até o momento;
só do Gabriel, que ficava me dando uns beliscões toda vez que eu estava
começando a roncar.
— Para finalizar a aula, eu quero que o líder da sala vá até a secretaria
pegar uns papéis que eu esqueci de trazer — pediu ele, que costumava
intercalar suas falas entre espanhol e português durante as aulas.
Todos permaneceram calados.
— Quem é o líder, mi gente? — indagou o professor.
— Então... — Bento falou, logo à minha frente.
Nessa hora eu resolvi despertar, passando a mão nos olhos, caso
estivessem com meleca.
— Eu era o líder no ano passado, professor, mas eu não quero mais ser
esse ano — informou ele, com um braço levantado.
No primeiro ano ele tinha se oferecido para ser líder da turma e todo
mundo sabia o quanto ele se arrependeu, ainda mais que ele era um
preguiçoso nato. Ele não tinha noção do trabalho que teria sendo líder. Todo
dia reclamava. Tudo era trabalho para o líder; tinha que ir a todo tipo de
reuniões; tinha que imprimir provas para os professores; tinha que limpar o
quadro quando a aula acabava; tinha que comunicar uma série de avisos aos
alunos; entre várias outras coisas.
Ele bufava como um touro em arena toda vez que ouvia a palavra líder.
Ele já sabia que teria alguma coisa para fazer. A gente só ria do desespero
dele.
— Vamos fazer assim, então. Eu mesmo vou lá pegar esses papéis
enquanto vocês decidem quem será o novo líder — propôs o professor. —
Acredito que todo mundo já esteja familiarizado e que isso não será difícil.
Os ombros do Bento se abaixaram e eu pude sentir que ele tinha ficado
mais despreocupado. Deve ter pensado que o professor iria obrigá-lo a
continuar na função de líder.
— Mas como, professor? — alguém perguntou, lá na frente.
— ¡Una votación! — respondeu ele, revelando suas rugas ao abrir um
largo sorriso. — Rasguem uns pedaços de papéis e anotem o nome do
coleguinha que vocês querem que seja o líder e entreguem ao Bento, será o
último esforço dele como líder.
Dito isso, o professor saiu e foi para a secretaria pegar seus papéis.
Praticamente a sala toda se reuniu em um círculo e começou a tramar.
— Eu não quero ser — adiantou um menino na minha frente.
— Nem eu — disse outro.
— Eu já fui uma vez, então me descartem, pelo amor de Deus — Bento
implorou. Eu ri.
O que estava acontecendo era que ninguém queria ser o líder. Muito
menos eu. Bento que havia nos provocado essa aversão ao posto. Ele deveria
continuar, só por causa disso.
Não iria sair nenhum acordo dali, até que alguém teve uma ideia:
— Vamos votar no novato.
Vi vários rostos se iluminarem de um modo bem maligno.
Notei, só nesse momento, que o novato não estava conosco. Ele ainda não
havia se familiarizado com a turma.
Seria uma boa ideia colocar ele como líder só para sacanear? Ninguém
nem o conhecia direito para saber se ele poderia lidar com isso ou não. Mas,
tudo bem.
— Como é o nome dele? — perguntou um dos garotos.
— Thales, Thales — falou o Gabriel, mandando o boi para o abate.
Todo mundo concordou fácil em escolher o Thales, e em segundos todos
eles tinham anotado o nome dele em seus papéis e entregado para o Bento. O
pobre coitado nem desconfiava do nosso plano.
Quando Bento já estava com todos os papéis em mãos, o Thales veio até
ele para deixar o seu voto. Alguns rapazes não se contiveram e riram. Até
tentaram disfarçar, mas acho que o novato percebeu, porém não demonstrou
nem um pouco se importar. Ele simplesmente voltou para a sua cadeira e
permaneceu calado.
— Isso é certo o que fizemos? — perguntei ao Gabriel. Senti um pouco de
peso na consciência em estarmos escolhendo alguém sem nem ter o seu
consentimento.
— Antes ele do que a gente — respondeu, rindo discretamente. — Achei
que você quisesse se vingar dele.
Não sei em qual momento eu dei a entender que queria me vingar dele,
mas ele entendeu errado. Tudo bem que o Thales cometeu um crime ao
derrubar o meu sorvete, mas não era como se eu quisesse matá-lo por causa
disso. Até passou em minha mente algumas vezes, mas não era sério.
O professor voltou à sala em poucos minutos, trazendo à mão os papéis
que ele falou. Não duvidei que fossem trabalhos. Era apenas a primeira
semana de aulas e já tinha um monte de atividades para fazer. Que saco!
— Então, pessoal, já fizeram seus votos? — perguntou ele, pousando a
pilha de papéis em sua mesa.
— Sim! — disseram alguns.
— Bento, vem aqui pra frente com todos os votos e vamos fazer uma
contagem rápida antes que a aula acabe — ele o apressou com as mãos,
percebendo o desânimo do meu amigo.
Bento levantou relutantemente e foi com os papéis em suas mãos para a
frente da turma. Ele parecia estar excepcionalmente entediado, quando
normalmente ele era mais alegre.
— Sente aí na minha cadeira e vá lendo cada voto enquanto eu vou
anotando no quadro.
O professor apagou a lousa enquanto ele sentava e organizava os pedaços
de papel na mesa.
Logo a contagem começou, e o óbvio iria acontecer.
— Thales — Bento leu no primeiro papel.
O professor anotou o nome no quadro e pôs um risquinho na frente.
E assim seguiu, em todos os papéis lidos era o nome do Thales que saía.
Eu daria tudo para ver qual era a feição dele neste momento, mas da minha
posição eu não conseguia saber qual era pois ele se sentava mais à frente,
exatamente duas fileiras de carteira após a minha.
— Caio!? — Bento leu meu nome e me olhou confuso. Eu também fiquei
confuso.
— Você votou em si mesmo? — Gabriel perguntou, ao meu lado, me
cutucando.
— Claro que não, né? — respondi, ríspido.
Eu realmente não tinha escrito meu próprio nome no papel. Não queria
correr o risco de ser escolhido, mesmo que fosse impossível de acontecer e
eu não tivesse achado totalmente certo votar no Thales. Deve ter sido o
próprio Gabriel que tinha escrito; adorava me pregar umas peças e depois
agir com cinismo.
— Você é muito dissimulado — falei, batendo com o cotovelo no braço
dele.
— Não fui eu, cê tá louco? — disse ele, rindo. Não tinha como acreditar
na palavra desse maldito.
Bento leu mais uns três papéis e estava finalizada a apuração dos votos.
Eu só estava louco para ir para casa.
— Sem sombra de dúvidas, o novo líder é o Thales — decretou o
professor, chamando o felizardo para ir à frente.
O Thales se posicionou ao lado do professor, mostrando ser mais alto do
que ele. Agora pude observar o seu rosto, que não aparentava estar surpreso,
na verdade, estava com um sorriso fechado e observando a todos.
— Vocês escolheram o aluno mais recente da turma como líder, ele deve
ter cativado vocês com tão pouco, hein — disse o professor, batendo nas
costas do Thales.
Alguns meninos riram novamente, pois era totalmente o contrário do que
o professor pensou. De verdade, o pessoal nem teve tempo de formar alguma
opinião sobre ele ainda. O próprio Thales também riu mais abertamente. Eu
não entendia como ele estava conseguindo lidar tão bem com essa situação.
Ele poderia ter negado a liderança, já que não havia demonstrado
interesse, mas, ao invés disso, aceitou sem fazer objeções.
— Como primeira coisa a fazer, entregue essas atividades a cada um de
seus amigos — ordenou o professor, passando os papéis para as mãos dele.
— Vocês terão um fim de semana livre para responder. Façam bom uso.
Eu sabia desde o início que eram atividades.
O novo líder da turma começou a passar, cadeira por cadeira, entregando
as atividades. Fiquei observando, enquanto ele sorria para cada um, mesmo
para os que nem olhavam para ele.
Ao chegar na minha carteira, me concentrei em olhar para a cabeça de
grama do Nicholas na minha frente enquanto ele parou ao lado e jogou uma
folha na frente do Gabriel, mas a minha, ele ficou segurando.
Por alguns segundos, fiquei esperando que ele jogasse, mas ele sacudiu o
papel para que eu mesmo pegasse. Por acaso ele não percebeu que eu estava
com os braços cruzados?
Levantei a cabeça e o encarei, estendendo a minha mão, pegando o papel.
Com um sorriso torto no rosto e suas grossas sobrancelhas arqueadas, ele
murmurou:
— Eu que votei em você.
Após isso, ele saiu e continuou a entregar o restante dos papéis.
Fiquei com a cabeça parada por alguns instantes, fixando o vazio que
antes ele estava. Eu não tinha entendido direito. Ele realmente falou o que eu
achava que tinha ouvido?
Depois disso, fomos dispensados pelo professor e ficamos livres para
curtir nosso fim de semana estudando.

***

Avisei para a minha namorada que eu não poderia passar a tarde com ela
hoje e ela ficou com raiva, pois tinha feito planos para nós dois. Achei
melhor adiar para o sábado, ou domingo. Eu não estava com bom humor,
nem energia para fazer qualquer coisa, por isso fui correndo para casa.
Jogado em minha cama, com a cabeça apoiada nas mãos, e olhando para o
teto azul do meu quarto, que por vezes parecia se aproximar de mim, estava
eu. Pensei que iria pegar em um sono profundo assim que chegasse em casa
e deitasse, tanto que não me dei ao trabalho de tirar o uniforme.
Fazia pouco mais de uma hora que eu tinha chegado e ainda me
encontrava de olhos abertos, com alguns pensamentos me perturbando.
Um rosto em especial estava voando na minha frente, o do Thales. Ainda
estava sem entender o porquê de ele ter votado em mim, mas não apenas
isso, o modo como ele falou e me olhou.
Se ele estava querendo fuder com a minha cabeça por eu ter quase batido
nele e ter o ofendido no shopping, ele estava conseguindo.
Capítulo 6

Em mais um dia, a manhã passou tão rápida que nem percebi. Meu corpo
estava começando a pegar novamente o ritmo de ter que acordar cedo para
vir ao colégio.
Nas férias, eu acordava bem tarde da manhã e a readaptação parecia
impossível, mas algumas semanas já haviam se passado e o sono estava
deixando de ser meu inimigo, ou um deles.
Neste momento meu estômago estava pedindo por socorro, algo lá dentro
parecia incontrolável. Eu estava na fila do almoço do refeitório, mas andava
tão devagar que só de ficar observando a comida na minha frente, minha
fome se reforçava. Basicamente como aquele momento em que ficamos
muito apertados para ir ao banheiro, e quanto mais perto dele chegamos,
mais a vontade se intensifica.
Eu não costumava passar a tarde na escola, até preferia não ficar além do
necessário, mas neste dia teria treino de futsal com o professor de Educação
Física dali a pouco mais de uma hora. Seria até bom para meu corpo. Estava
bastante enferrujado, fazia tempo que eu não treinava.
Um tempo depois, pude começar a colocar comida no meu prato. Pus
arroz, salada, frango e umas frutas. Fui tentando escolher as comidas mais
leves que achei, senão eu colocaria tudo para fora quando fosse jogar. Algo
que havia acontecido uma vez.
Alice estava logo atrás de mim, então fiquei esperando-a colocar a sua
comida para irmos escolher um lugar para sentar.
Notei que ela só havia escolhido salada. Ela devia estar de dieta. Na
verdade, ela sempre estava, pois tinha medo de engordar. Eu não tinha
problemas com isso.
— Seu treino é de que horas? — perguntou ela, enquanto estávamos
andando.
— Em uma hora — respondi, após olhar para o relógio no meu pulso.
— E acaba de que horas?
— Olha, Alice, eu não tô obrigando você a ficar pra me ver treinar —
respondi, um pouco irritado.
— Não é isso, Caio. Eu só queria saber mesmo — disse e saiu andando
apressada na frente.
Eu sabia que ela não tinha paciência para me ver jogando, ela já me falou
isso uma vez, então não tinha necessidade de ficar.
Ela estava indo em direção a uma mesa que alguns amigos meus e amigas
dela estavam almoçando. Ela sentou do lado de uma amiga sem deixar
espaço para mim. Tinha ficado chateada comigo.
Cheguei e sentei ao lado do Gabriel, de frente para ela, mas ela nem se
preocupou em olhar para mim. Pensei em me desculpar, mas as desculpas
ficaram só no pensamento.
— O que é que vocês têm, hein? — perguntou Laura, notando nosso
estranhamento.
— Nada — respondeu Alice. Simples e direta. Não tinha como ser nada.
Ela realmente estava com raiva. Fixou o olhar no prato, mas nem tinha
começado a comer. Admirando as folhas eu sei que ela não estava.
— Você fez o quê pra ela? — Gabriel praticamente cuspiu um grão de
arroz na minha cara ao falar.
— Que nojo — respondi, dando um leve empurrão nele. — Não fiz nada.
Eu não queria ver a minha namorada com raiva de mim por besteira, então
resolvi fazer algo. Levantei da cadeira, fui até ela, e por trás dei um beijo em
sua nuca. Ela não se moveu. Fiz de novo e pude perceber que ela cedeu,
rindo. Foi mais fácil do que imaginei.
— Vá comer, eu não estou mais com raiva — ordenou ela, me
empurrando pela barriga.
Voltei a me sentar e o mundo parecia ter voltado a sua normalidade.
Ninguém estava mais com raiva de ninguém. E Gabriel continuava falando
de boca cheia.
Terminei meu prato, mas tive que esperar por Alice. Incrivelmente, ela
ainda não tinha acabado de comer aquele monte de folhas. Olhei mais além,
por cima da cabeça dela, e vi Thales almoçando com a garota dele.
Ele percebeu que alguém o observava e olhou diretamente para mim. Não
sei porquê, mas meu corpo estremeceu de um modo único, ao mesmo tempo
que senti meu estômago embrulhar. Pensei que fosse colocar tudo que comi
para fora. Mesmo assim continuei a encará-lo, instintivamente.
Eu já não tinha mais controle sobre mim, e mesmo querendo desviar o
olhar, não conseguia, até que Alice ergueu a cabeça e bloqueou a minha
visão.
— Caio?!
Eu estava vendo-a, mas ao mesmo tempo ela não era o foco da minha
atenção. Ela levantou a mão e acenou na frente do meu rosto para que eu a
respondesse e assim pude voltar ao Planeta Terra.
— Caio, já terminei. Você está passando mal? Seu rosto tá tão vermelho
— perguntou ela, com a testa enrugada.
— Tá certo, tá certo. Tá calor aqui, né? — falei, tocando meu rosto e
levantando um pouco a camiseta.
Depois disso não falei mais nada e fingi normalidade.
Após alguns amigos já terem saído da mesa, levantei junto com a Alice e
fomos deixar nossos pratos no local apropriado. Enquanto andava, olhei para
a mesa do Thales e ele já tinha ido embora com a namorada também.
Mais uma vez me encontrava perdido em meus pensamentos, tentando
entender porquê que me senti tão estranho quando o vi agora há pouco. E
também, porque não consegui desviar o olhar. Foi quase como se eu tivesse
ficado apavorado. Mas eu não tinha medo dele.

***

Já no vestiário do ginásio, eu e alguns meninos que iriam jogar nos


trocamos e saímos para a quadra.
Falamos com o professor e ele formou dois times, onde eu fiquei com
Gabriel, Henrique, Bento e Lucas, contra o time do Nicholas, do Danilo, do
Luan, do Benjamin e do Gustavo, todos rapazes da minha turma.
Alice gritava meu nome da arquibancada quando cheguei no centro da
quadra. Olhei para ela, que estava com várias amigas, e, um pouco distante
delas, não pude deixar de notar alguns meninos do time de basquete,
incluindo Thales. Ele não olhava para a quadra, estava conversando com a
namorada dele. Dessa vez, não senti nada estranho. Acenei para Alice e me
voltei para o time.
O professor apitou para que a partida começasse e assim corremos com a
bola. Eu fazia parte da ala do time, mas confesso que não era bom jogador,
jogava mais por diversão e para me manter em forma.
Ao segundo tempo da partida, já estava bastante cansado, meu corpo
estava muito quente e meus poros trabalhando a todo vapor, assim como os
meus batimentos cardíacos acelerados. Em alguns momentos, eu lambia meu
próprio suor que descia exageradamente do meu rosto.
— Passa pra mim, passa pra mim! — Gabriel berrava. Ele era o pivô do
time. Ele ficou com raiva porque não fiz o passe logo e outro jogador acabou
tomando a bola dos meus pés.
Ele continuou a me infernizar, e, com raiva, chutei com muita força a bola
para ele, mas fiz o passe errado e a bola acabou indo na direção da
arquibancada.
Coloquei as mãos na cabeça quando percebi que a bola estava indo na
direção dos rapazes do basquete, quase acertando a namorada do Thales. Se
não fosse pelo reflexo dele em ter segurado a bola, o estrago teria sido feio.
Fiquei despreocupado quanto a isso, porém ele pulou a grade com a bola na
mão e veio em minha direção.
Ao invés de vir até mim, ele poderia ter jogado a bola de onde estava, mas
percebi que o intuito era outro quando ele foi se aproximando e sua cara
estava com uma expressão de fúria.
— Você não pensa nas consequências dos seus atos, garoto? — gritou ele,
parado na minha frente.
— O quê? — falei, sem entender o que ele estava insinuando.
— Você quase acertou uma garota. Se quer se vingar de mim, você se
vingue DE MIM!
Ele soltou a bola e me empurrou, forte o bastante para me fazer cair no
chão. Fiquei sem reação. Não era minha intenção acertar alguém, eu apenas
tinha errado o passe.
Nesse momento meus amigos já estavam ao meu lado e também cercando
ele.
— Não foi porque eu quis, me desculpe. Eu errei a jogada — justifiquei,
mas foi em vão. Ele pareceu não aceitar as minhas desculpas. Afastou meus
amigos do seu caminho e correu da quadra em direção a saída do ginásio.
O treinador veio até nós, me levantou e deu a partida como encerrada
depois da confusão. Eu não podia deixar aquela situação mal resolvida e saí
correndo atrás do Thales. Ouvi Alice gritando por mim, mas não dei
importância.
— Thales! Thales! — gritei quando o avistei bem distante, já com a
namorada dele, mas eles não paravam.
Quando consegui alcançá-los, tive que colocar a mão no seu ombro para
que ele virasse. Os dois viraram.
— Eu... não... — falei pausadamente, pois estava ofegante demais para
conseguir falar normalmente.
— Sai fora, garoto! — disse a menina, rude.
Tomei um tempo para recuperar o fôlego e eles já estavam se virando para
ir embora quando eu disse:
— Eu peço desculpas, sei que vocês estão com raiva do que eu disse
naquele dia na sorveteria e no shopping, mas não tem nada a ver com o que
aconteceu agora. Eu nunca iria querer machucar vocês. Por favor, me
perdoem.
Eles se entreolharam, parecendo estar decidindo se aceitavam ou não,
como que por telepatia.
Ao menos eu estava sendo honesto naquele momento.
— Ok — ele começou —, sei que eu e você tivemos alguns problemas, e
que essa história está indo longe demais. Então, eu aceito suas desculpas.
Ele bateu nas costas da namorada, incentivando-a a falar alguma coisa.
Ela relutou um pouco, mas disse:
— Acho legal da sua parte que você tenha vindo se desculpar — disse,
desviando o olhar para ele e depois voltando para mim —, então, por mim,
ficamos bem.
Fiquei feliz e aliviado que eles tenham aceitado minhas desculpas. Os dois
sorriram, então acho que estávamos todos sendo sinceros naquele momento.
— Vamos esquecer tudo que aconteceu e começar de novo — ele disse,
estendendo a mão para mim. — Eu sou o Thales.
Fiquei sem reação olhando para a mão dele estirada, mas resolvi apertá-la.
Mais uma vez ele abriu seu sorriso de dentes muito brancos, revelando umas
rugas próximas a seus olhos verde-claros.
— E eu, me chamo Caio.
E repeti isso para a namorada dele, que se apresentou como Melissa, ou
Mel, como ela pediu para ser chamada.
A Alice chegou até nós, junto ao Gabriel, no exato momento em que o
Thales e a Mel se despediam.
— Caio, o que aconteceu? — perguntou ela, me envolvendo em um
abraço, e depois se afastando quando sentiu meu suor.
— Nada. Já tá tudo resolvido — respondi, beijando-a na testa.
— Então, é… estamos indo, tchau — despediu-se Mel, levando com ela o
Thales.
Alice esgueirou os olhos enquanto observava eles indo embora.
— Eu não gosto dessa garota — comentou ela.
Eu não queria arrastar isso mais do que já havia sido arrastado e não
perguntei o porquê de ela não gostar.
Dei uns pontapés no Gabriel por ter provocado isso tudo e voltamos para
o ginásio. Eu ainda tinha que tomar um banho e me trocar. Acabou que
estraguei o treino do dia.
Capítulo 7

— Por que você tá trazendo esse garoto? — cochichei no ouvido do Gabriel,


enquanto estávamos andando e saindo da escola.
Ficamos para treinar no colégio mais uma vez, e marquei com Alice para
ir encontrá-la no cinema depois que saíssemos daqui. Chamei Gabriel para ir
comigo e ele trouxe o novo amigo dele, ainda estranho para mim.
— Não posso? — perguntou ele.
— Eu nem conheço esse pirralho — falei, baixinho. Eu não queria que o
menino ouvisse.
— Não seja por isso — disse ele, colocando o garoto na minha frente. —
Eduardo, esse é o Caio. Caio, esse é o Eduardo, mas todo mundo o chama de
Edu. Ele é meu vizinho, e entrou esse ano no nosso colégio. Resolvido.
Cumprimentei ele, que me pareceu bem tímido, nem levantando a cabeça
para me olhar. Mas tudo bem, era só um tempo para ele se enturmar e se
soltar.
Eu também era assim quando criança, talvez até pior. Sempre andava
olhando para baixo para não ter que olhar para as pessoas, mas isso mudou e
agora eu sinto que para viver eu preciso falar com as pessoas e ter amigos.
— Então, você é babá dele? — eu já estava me sentindo livre para fazer
piadas agora que conhecia o garoto.
Eduardo riu um pouco, mas Gabriel me empurrou, fazendo-me quase sair
da faixa da calçada. Não demorou muito para que o Uber que ele chamou
chegasse.

***

Chegamos no shopping e fomos direto para a praça de alimentação. Não


iríamos comer nada, queríamos apenas sentar em algum lugar para esperar
Alice chegar. Pensei que ela já estaria aqui. Eu ainda não tinha me
acostumado com a falta de pontualidade dela, mesmo após um tempo de
namoro.
Sentamos em cadeiras ao lado de uma enorme parede de vidro inclinada
que nos dava uma visão privilegiada de uma parte da cidade, embora o que
estava dando para observar nesse momento era apenas o trânsito caótico de
uma cidade grande qualquer.
Gabriel e Eduardo sentaram juntos na minha frente e eu fiquei os
observando. Eles praticamente esqueceram da minha presença. Éramos
melhores amigos há bastante tempo e ele nunca havia me falado desse
vizinho dele, mas eles pareciam ser bem próximos.
— Eu sei que a conversa do casal aí tá ótima, mas eu também tô aqui —
brinquei, chamando a atenção deles.
Eles se voltaram para mim no exato momento que Alice chegou, sentando
em uma das minhas pernas. Ela trouxe novamente Laura.
— Quem é esse? — foi a primeira coisa que ela perguntou quando
chegou, apontando para Eduardo.
— Edu, vizinho do Gabriel — respondi.
— Nunca vi ele na escola — disse, quase como se ele não estivesse
presente. — Laura? Senta.
A menina estava de pé desde que chegou e escolheu sentar ao lado do
Gabriel, deixando-o entre ela e Eduardo.
— Gabriel, você nem respondeu minhas mensagens — cobrou ela.
— Eu... eu não tive tempo — ele deu uma desculpa bem esfarrapada.
Segurei para não rir.
Percebi que ele não me parecia muito confortável com essa Laura. Talvez
não fosse uma boa ideia ficar jogando-a para cima dele, pois já vi que não
iria rolar. Trataria sobre isso com Alice depois.
— Ei, vamos? — tentei mudar o foco, pois já estava ficando um tanto
constrangedor. — Tá quase na hora da sessão.
Iríamos assistir ao novo filme do Homem-Aranha, que era, nada mais
nada menos, que o meu herói favorito.

***

Três horas depois, já estávamos saindo do shopping. Como sempre,


esperei primeiro Alice ir embora para casa com sua amiga e fiquei para trás
com os meninos.
— Vamos lá pra casa agora, ainda é cedo — pedi ao Gabriel. — Eu
comprei um novo jogo para o meu Xbox One e ainda não testei.
— Qual jogo? — perguntou ele, olhando para o relógio no pulso.
— Tekken 7 — respondi. Ele se animou.
— Mas, e o Edu? — complicou ele.
— Você o coloca num Uber pra casa dele e nós vamos lá pra casa —
respondi, bem didático.
Ele pensou um pouco, perguntou ao garoto se estava tudo bem e ele
respondeu que sim. Desse modo, o garoto foi embora em um carro que
Gabriel chamou.
Chegamos na minha casa quando já passava das 6h00 da noite. Tentei
entrar sem fazer barulho, mas a minha mãe percebeu. Missão completada
sem sucesso.
— Oi, Gabriel. Oi, Caio. Iam entrar sem falar comigo? — perguntou ela,
virando a cabeça com o controle remoto da TV no queixo.
— Oi, tia Cecília.
Gabriel a chamava assim, mesmo minha mãe não sendo, de fato, tia dele.
— Mãe, o Gabriel veio fazer um trabalho comigo, ok? — menti para ela.
— Sem problemas. Fique à vontade, Gabriel.
Ela se levantou e saiu para a cozinha.
Subimos as escadas para o meu quarto. Acendi as luzes e estava tudo na
mais perfeita ordem. Eu saía de manhã deixando uma bagunça, e voltava
encontrando tudo arrumado.
— Por que você mentiu, maluco? — perguntou ele.
— Ela iria reclamar se eu dissesse a verdade — respondi, jogando minha
bolsa na cama e tirando a minha camiseta. — Não tem importância, ligue aí
a TV e o console.
Tirei a bolsa das costas dele e joguei junto da minha. Pedi para que ele
retirasse os sapatos também e colocasse no cantinho perto da porta, pois
minha mãe odiava quem andava de calçados pela casa. Ele sabia disso, mas
sempre esquecia.
Começamos a jogar e depois de um tempo meus dedos já estavam quase
que em carne viva de tanto que eu tentava fazer alguns comandos no
controle de forma exagerada. O maldito do Gabriel estava me humilhando, e
não me deixava vencer uma luta sequer.
Quanto mais ele me acertava no jogo, mais eu xingava.
— Cala a boca, Caio — ele reclamava.
Levei um baita susto quando minha mãe abriu a porta abruptamente sem
nem bater. Dei pause no jogo e nós dois olhamos para ela, em um silêncio
total e constrangedor.
— Seu pai e eu estamos ouvindo lá debaixo suas porcarias! — reclamou
ela, furiosa. — Você não disse que ia estudar?
— A gente já terminou o trabalho, mãe. Que saco! — respondi, porém
com medo.
— Não queira me enganar. Você está jogando desde que chegou.
Ela entrou ao quarto e foi até a minha cama, pegando minha mochila e
revirando-a. Quando ela achou meu caderno, folheou matéria por matéria
como se estivesse conferindo.
— Você é muito irresponsável mesmo — começou ela, quase gritando. —
Tem um monte de coisas pra você fazer aqui, mas ao invés disso, você fica
aí jogando.
Eu comecei a ficar mais tenso, e estava me sentindo envergonhado pelo
Gabriel estar presenciando esse mini ataque dela. Não consegui nem olhar
para ele, que devia estar super desconfortável.
— Ano passado você quase reprovou, lembra? — lá vinha ela de novo,
revirei os olhos. — Não revire os olhos para sua mãe! Achei que você tinha
aprendido a lição. Você não percebe que está nos desapontando? Isso tudo é
brincadeira pra você? Você não é mais criança, Caio.
— A senhora tá exagerando novamente — falei, me levantando. — Não
fiz nada demais, já disse que eu vou me recuperar neste ano.
— Desse jeito? Não consigo nem acreditar — ela continuou, em um tom
elevado.
Gabriel se levantou e foi recolhendo sua bolsa e os seus sapatos. Por um
momento, esqueci que ele estava ali. E preferia muito que ele não estivesse.
— Caio, eu tô indo. Nos vemos amanhã na escola — disse ele, sentindo o
clima pesado. — Desculpa, tia.
— Você não tem culpa pelos erros DELE! — disse ela, passando a mão na
cabeça do Gabriel e se voltando para mim novamente. — Sinceramente, seu
pai e eu não sabemos mais o que fazer com você.
Dito isso, ela saiu do quarto acompanhando Gabriel para que ele fosse
embora.
Bati a porta e pulei na cama, jogando no chão tudo que ela tinha
despejado da minha mochila enquanto esperneei por todo o edredom.
Lágrimas queriam surgir, mas minha raiva era tão grande que eu me segurei
ao máximo para não chorar. E consegui.
Fiquei me sentindo muito mal, um verdadeiro lixo. Eu só pensava em
como minha mãe jogava as palavras sem nem pensar em como elas
poderiam me afetar.
Foi nesse exato momento que eu fiz um pacto comigo mesmo de que a
partir de agora eu iria me esforçar para mudar e ser outra pessoa, para que
nunca mais eu ouvisse que meus pais estavam decepcionados comigo.
Como se não bastasse, meu celular começou a tocar, só que preferi não
atender. Eu não existia para ninguém mais nesta noite.
Acabei adormecendo sem nem ter tirado a roupa da escola e com as luzes
do quarto todas acesas.
Capítulo 8

Era bem cedo quando o alarme tocou no meu celular. Revirei toda a cama
para encontrá-lo e conseguir desligá-lo. Normalmente eu o colocava na
mesinha de cabeceira antes de dormir, mas ontem eu nem lembrava como
tinha dormido. Só sei que apaguei, envolvido em um milhão de
pensamentos. De certa forma, essa caça ao celular acabou me ajudando a
despertar.
Sentei na cama, espreguiçando-me e recordando um pouco da noite
passada. Eu ainda estava me sentindo para baixo e pensei em desistir de ir
para a escola, mas quando lembrei que minha mãe poderia me chatear
novamente, optei por ir assim mesmo.
No espelho do banheiro, pude ver meu rosto inchado, além do normal para
quem acabara de acordar. Não era algo bonito de se apreciar, e por isso
mesmo fui correndo para debaixo do chuveiro. Um banho longo com certeza
me ajudaria a me sentir melhor. E também porque eu não tinha tomado
banho desde ontem quando cheguei.
Acabei saindo rápido do banheiro e não demorando tanto quanto planejei.
Nem ao menos eu quis me aliviar, como fazia toda manhã. Fiquei sem
vontade até de fazer isso.
Sequei meu corpo e meu cabelo, que estava grande demais, bem
lentamente. Desse jeito eu não podia nem mais reclamar do comprimento do
cabelo do Henrique.
Mandei mensagem para a Alice avisando que estava bem, e vivo. Ela
havia me ligado várias vezes, e deve ter ficado um pouco preocupada.
Embora às vezes acontecesse de eu adormecer sem falar com ela por estar
muito cansado.
Também havia mensagens do Gabriel, mas eu não as respondi. Com ele eu
falaria quando chegasse no colégio, até porque ele sabia do que tinha
acontecido.
Peguei a minha mochila, desci a escada, e no último degrau vi que minha
mãe estava me esperando. Eu não estava a fim de falar com ela, então o
plano era ir direto para a escola.
— Não vou tomar café, comerei qualquer coisa na escola — falei, sem
olhar para ela.
Ela pegou no meu braço, não de uma forma rude, fazendo-me virar para
ela.
— Não tenha pressa, por favor. Seu pai e eu queremos conversar com
você.
— O pai ainda não foi pro trabalho? — perguntei, impressionado.
Normalmente ele saía bem antes de mim.
Segui ela para a cozinha, onde com certeza iria começar mais uma
segunda rodada de reclamações. Meus pais juntos, falando comigo, era um
evento raro, e sempre era para me advertir sobre algo ou me dar sermões.
Ele estava sentado junto à mesa tomando café. Usava um terno preto,
pronto para ir para o trabalho. Ele sorriu para mim, revelando algumas rugas
e pediu para que eu sentasse, com um gesto, em uma cadeira do outro lado
da mesa. Minha mãe sentou logo em seguida ao lado dele.
De cabeça baixa, me mantive calado. Não queria demorar ali, então nem
toquei na comida. Eu estava me sentindo como no banco dos réus, prestes a
receber uma sentença de morte do juiz. Nesse caso, era meu pai.
— Você estava chorando, filho? — perguntou a minha mãe.
Neguei com a cabeça, mas ela sabia que eu estava. Se tem alguém que
conhecia bem um filho, era a minha mãe.
Percebi que meu pai tocou a mão da minha mãe, como se estivesse
incentivando-a a falar algo.
— Caio — continuou ela —, quero me desculpar pelo modo que falei
ontem, ainda mais na frente do seu amigo.
Murmurei um “tudo bem” sem olhá-la, embora achasse que ela que estava
sendo sincera. Ela quase nunca me pedia desculpas.
— Filho — era a hora do meu pai falar —, você sabe que o amamos muito
e que ninguém no mundo quer ver sua felicidade mais do que seus pais, e...
Eu poderia estar revirando os olhos para tudo que eles estavam dizendo,
mas dessa vez eles mudaram o tom da conversa, deixando-me confortável.
Meus pais seguiram falando por mais um tempo, e por incrível que
parecesse, não era para me criticar. Eles devem ter conversado bastante
ontem à noite sobre mim. Queriam me aconselhar e me incentivar a voltar
com os bons resultados na escola, sem me fazer sentir pressionado. Meu pai
até me prometeu restabelecer minha mesada como antes, o que me deixou
muito feliz e mais obstinado.
Esse ar de paz era algo que eu não sentia há algum tempo. Com isso, me
comprometi com eles a melhorar meu rendimento e agir com mais
responsabilidade. Eles voltaram a sentir confiança em mim.
Acabei participando do café da manhã com os dois e meu pai quis me
deixar na escola antes de ir para o seu escritório.
O dia estava muito anormal, mas eu estava gostando. Não tinha nenhuma
garantia que seria sempre assim, mas era melhor do que nada.
Minha namorada estava me esperando na entrada da escola quando meu
pai parou na frente. Ela tinha acabado de chegar também e cumprimentou
meu pai de longe antes de ele seguir em frente para o seu trabalho.
— Caio, vamos sair mais tarde. Preciso comprar umas coisas — ela nem
perguntou se eu poderia ir, só avisou.
Até pensei que ela fosse perguntar se eu estava bem, ou o que tinha
acontecido ontem à noite, mas ela só estava preocupada em fazer compras.
Pode ser que ela tivesse esquecido. Não era algo que iria me fazer surtar.
Meus problemas estavam resolvidos, então não tinha porque encher ela com
isso. Tê-la ao meu lado já era de grande apoio.
Ficamos conversando por um tempo na grama perto do ginásio, esperando
o sinal tocar. Coloquei a minha cabeça em seu colo e quase adormeci com
ela passando as mãos em meu cabelo. Não havia sensação melhor no mundo
do que ter alguém que você gosta fazendo cafuné em você.
Olhando para cima pude apreciar todo o encanto dessa garota que resolvi
amar e chamar de namorada. Seu cabelo liso, sua pequena boca vermelha,
seu rosto delicado e toda essa beleza que me encantou desde a primeira vez
que a vi.
Ela podia não ser a melhor garota desse mundo, mas me fazia muito feliz.
Quando o sinal tocou, fui deixá-la em seu bloco de aulas e fui para a
minha aula, que iria ser de Língua Portuguesa, se eu bem recordava.
Entrei na sala e o professor ainda não tinha chegado. Os garotos estavam
todos dispersos conversando ou jogando no celular. Bati na cabeça do Bento
para não perder o costume e sentei na minha carteira, ao lado do Gabriel.
— Como você, tá? — perguntou ele.
Olhei para ele revirando os olhos, sem dar corda para o que ele tinha
falado.
— Tô brincando, Caião — falou, rindo. — Mas sério agora, como você
tá?
— Estou bem — respondi, abrindo um largo sorriso para mostrar que
realmente estava bem. — Ah, e desculpa por ontem, tá? Minha mãe meio
que se descontrolou. Só que hoje a gente se resolveu e ela pediu pra que eu
me desculpasse contigo, que você não deixasse de ir lá em casa, e mais um
monte de coisas, enfim...
Ele sorriu e me puxou para um abraço, enquanto eu tentava me afastar,
sem sucesso. Não havia necessidade disso. Nossos amigos viram e uivaram,
insinuando algo entre mim e ele. Malditos!
O professor entrou e todos correram para seus assentos enquanto eu
arrumava meu cabelo.
— Bom dia, pessoal! — disse ele. Todos responderam de volta. — Antes
de começar a aula, há uma pessoa que quer ter uma palavrinha com vocês.
Ele chamou alguém que estava esperando lá fora só esperando o comando
do professor. Era o Erick, um aluno do terceiro ano, e que todos conheciam
por ser o atual presidente do grêmio estudantil do colégio. Eu até tinha
votado na chapa dele quando teve a eleição. Ele me parecia bem legal e
descolado, só que ao mesmo tempo era um cara que gostava de arrumar
confusão por causa de garotas.
— Bom dia, rapazes. Eu não vou tomar muito o tempo de vocês —
começou ele. — Muitos já devem me conhecer, eu me chamo Erick, sou o
presidente do grêmio, e é justamente sobre o grêmio que vim falar.
Ele continuou, falando dos feitos do grêmio neste ano de mandato que ele
esteve à frente, e que a liderança dele estava prestes a acabar. Também nos
deixou saber que era hora de outros alunos substituírem os membros atuais,
mas que, diferente do ano passado, não se formariam chapas concorrentes.
— Entramos em consenso com a administração do colégio, e foi decidido
que cada turma do segundo ano teria um representante no grêmio. Não sei se
vocês sabem, mas alunos do terceiro ano não podem estar no grêmio, já que
nesse ano nosso foco é exclusivo em entrar na universidade.
— Então, no caso, o nosso representante seria o líder da turma? —
perguntou alguém, ao fundo. O Erick nem tinha aberto espaço para
perguntas ainda.
— Não — respondeu ele —, e falando nisso, o líder não pode se
candidatar ao grêmio, terá que ser qualquer um outro.
Houve um pequeno burburinho. Se ninguém queria ser o líder, imagine
fazer parte do grêmio.
— Silêncio, gente! — pediu o professor.
— Eu estou com uma lista aqui, vou passar pra vocês e, a quem se
interessar, é só se inscrever — acrescentou o presidente do grêmio, dando a
lista para um aluno da frente. — Uma coisa: houve casos em algumas turmas
que apenas uma pessoa se inscreveu, então, automaticamente essa pessoa já
entra para o grêmio. Mas, se houver mais inscritos, vocês fazem uma
votação normal e pronto.
Ele se despediu e pediu para que no final entregássemos a lista para o líder
da turma. Ele quem ficaria encarregado de devolvê-la. A lista foi passando
de mão em mão e eu não vi ninguém assinar. Chegando no Gabriel, ele
repassou logo para mim.
— Vai ficar olhando? Passa logo — disse ele, me vendo parado, olhando
para a lista. Não havia nenhum nome inscrito.
Fiquei observando-a mais um pouco e me veio à mente a conversa que
tive com meus pais. Eles me pediram por mais comprometimento no
colégio, e vi na minha frente a oportunidade para mostrar que eu poderia
assumir a responsabilidade por alguma coisa importante.
Eu não quis me comprometer com a liderança da turma pois não havia
pensado nisso antes. Na verdade, nunca na vida fiquei à frente de alguma
coisa, mas para tudo havia uma primeira vez, e eu tinha capacidade para
isso. Eu sei que eu tinha.
— Eu vou assinar — falei ao Gabriel, escrevendo meu nome na primeira
linha e repassando para os meninos de trás.
— Coragem, seu nome é coragem, cara — ele ironizou, batendo nas
minhas costas, como um incentivo.
O professor deu início à aula, enquanto a lista rodava. Fiquei atento a ela,
e quando a última pessoa foi entregar para o Thales, eu levantei e fui até ele.
— Só você assinou — disse ele, percebendo que eu estava ao seu lado
para ver a lista. — Parabéns, você faz parte do grêmio.
— Vá para o seu lugar — ordenou o professor, quando Thales ia apertar a
minha mão.
Voltei ao meu lugar, me sentindo estranho. Ouvir que eu faria parte do
grêmio me deu calafrios, pensei até em voltar lá e retirar meu nome da lista,
mas eu estaria sendo covarde se fizesse isso, dessa vez eu não iria fugir.
Capítulo 9

A manhã estava bastante chuvosa e o frio tão cedo do dia começava a ficar
incômodo. Forcei minhas mandíbulas para não ouvir meus dentes batendo
uns nos outros. Eu sabia que deveria ter me agasalhado mais antes de sair de
casa. Esta calça do uniforme não ajudava em nada no quesito me manter
aquecido para não pegar um resfriado.
Assim que passei no portão da entrada do colégio, alguém gritou o meu
nome. Eu tinha acabado de chegar e estava andando rápido para me abrigar
em algum lugar. Não olhei de imediato para ver quem era, mas a pessoa
devia estar achando que eu estava a ignorando, já que continuava chamando
por mim.
Cheguei em um lugar coberto e parei, dando uma leve escorregada no piso
de cerâmica molhado, e por pouco não consegui me segurar em um pilar
para não cair. Algumas meninas que estavam passando riram. Não me
importei.
Quando me virei, vi a pessoa que gritava meu nome e ela estava correndo
em minha direção. Chegando mais próximo, reconheci o rosto do Thales
dentro do capuz de seu moletom. Assim que pisou no piso de cerâmica, ele
escorregou, assim como eu, mas rapidamente o segurei, senão ele iria cair
para trás feito uma batata.
Fiquei com ele em meus braços, cara a cara, ao passo que ele parecia
assustado. Suas bochechas estavam rosadas de tanto frio e seus lábios quase
roxos. Quando me dei conta da situação em que estava, levantei-o
rapidamente, afastando-o de mim, fazendo ele quase cair de novo, só que ele
conseguiu se equilibrar. Meus batimentos tinham se acelerado.
Olhei em volta e algumas pessoas tinham parado para observar a cena. Se
antes eu não estava com as bochechas rosadas por causa do frio, agora
definitivamente estava. Achei melhor fingir que nada tinha acontecido e
ignorar totalmente.
— Obrigado, Caio — Thales me agradeceu, tocando meu ombro. Ele
poderia colaborar comigo e não me tocar nesse momento. — Eu ia morrendo
agora.
— Não foi nada demais — falei brincando, mas realmente poderia ter
acontecido algum acidente com ele.
— Você não estava me ouvindo chamar?
— Ouvi, mas eu não queria ficar na chuva, por isso vim parar aqui antes
de ver quem era — expliquei.
— Tudo bem, sem problemas. Eu só queria informar que o pessoal do
grêmio veio falar comigo e pediu pra dizer que vão oficializar os nomes dos
novos integrantes fixando um papel no corredor e também que o Erick vai
postar na página da Comunidade Virtual do colégio no Facebook.
— Eu fui realmente escolhido? — perguntei.
Eu sabia que seria escolhido, mas alguns dias tinham se passado desde o
dia em que pus meu nome naquela lista e eu já nem lembrava mais.
— Sim, sim. Da nossa turma só você se candidatou. E mais, terá uma
reunião nesta tarde com os antigos e os novos membros na sala deles, que eu
não sei onde fica. Mas não perca.
Thales me contou mais algumas coisas que lhe foram ditas. Ele disse que
na reunião seria decidido qual função cada um teria, quais os deveres de
cada um, e que também haveria uma pequena cerimônia de posse na sexta-
feira.
Não sei se eu estava tremendo de frio, ou de tensão, por tudo isso que me
esperava daqui para frente. Uma parte de mim dizia que eu daria conta, mas
a outra estava em plena dúvida. Não contei para meus pais ainda, nem para
minha namorada.
— Caio, você poderia me passar seu número? — perguntou ele, me dando
o seu celular para que eu digitasse.
Fiquei olhando para o celular dele tentando entender para quê ele queria o
meu número. Ele percebeu minha demora e disse:
— Agora que você faz parte do grêmio, e eu sou o líder da nossa turma,
pode ser que eu precise me comunicar com você mais vezes.
— Ah sim, tudo bem — digitei meu número e devolvi o celular dele.
Pude ver ele salvando o contato com meu nome. No mesmo instante meu
celular tocou. Coloquei a mão no bolso e ele colocou a sua mão na minha,
me impedindo de tirar o celular. Seus dedos estavam muito frios, e acabei
sentindo um leve formigamento, como uma troca de impulsos elétricos.
— Não precisa atender, sou eu ligando. Só pra ter certeza que você não
me enganou e passou o número errado.
— Por que eu faria isso?
— Tô brincando, relaxa — respondeu ele, tocando meu ombro novamente
e sorrindo. — Agora você pode salvar o meu número na sua lista.
Retribui com outro sorriso.
Ele foi muito esperto, de certa forma, me forçando a ter o seu número.
Talvez eu nunca precisasse ligar para ele, mas seria bom ter, em caso de
necessidade. Eu ainda continuava considerando-o apenas um colega de
classe, mas não descartei uma possível futura amizade.
A namorada dele, Mel, vinha chegando e parou ao nosso lado. Ela estava
toda agasalhada com seu moletom rosa, bem chamativo.
— Oi, Caio. Bom dia, Thales.
Acho que não sou digno de receber um bom dia também.
Fiquei os olhando por um momento, atento a como eles se tratavam. Eles
se abraçaram, mas não se beijaram, como eu faria com Alice. Cada casal
com suas manias.
Bem em tempo, vi Alice entrando na escola e gritei. Ela não tinha me
visto, mas quando percebeu, se alegrou e apressou o passo. Peguei na mão
dela para que não ocorresse de mais uma pessoa escorregar e eu precisar ser
o herói do dia. Minha cota já tinha sido alcançada por hoje.
— A gente já vai, Caio — despediu-se o Thales, saindo logo em seguida
com a Mel.
— O trânsito estava horrível com essa chuva toda — resmungou Alice,
chacoalhando os braços.
Envolvi ela em um abraço bem forte. Eu não estava querendo imitar a Mel
com o Thales, só queria sentir a minha namorada. Ela estava incrivelmente
quente, mesmo com esse tempo. Senti como se estivesse no paraíso, e não
queria mais soltá-la.
— Que saudade é essa? — perguntou, talvez impressionada.
— Não é saudade, só quero roubar um pouco do seu calor — respondi
brincando, mas ela me empurrou para longe dela.
Ela ficou com uma cara emburrada, embora ela soubesse que não era por
isso, eu realmente gostava do abraço dela. Abracei-a novamente e a arrastei
para os corredores, pois tínhamos que ir para a sala.
Enquanto íamos para nossas aulas, resolvi contar a ela sobre a minha
decisão de me inscrever para o grêmio da escola e que eu tinha sido aceito.
Ela me falou que algumas meninas da sala dela também tinham se inscrito,
mas não sabia quem tinha sido escolhida.
Ela ficou, tudo de uma só vez, entusiasmada, impressionada e preocupada.
Entusiasmou-se porque sentiu que eu realmente queria fazer parte disso, e
que agora ela teria um namorado que fazia parte do grêmio. Ficou
impressionada porque não esperaria isso de mim, já que eu nunca tinha
demonstrado interesse em ser cabeça de algo, em me comprometer com
alguma coisa. Levei isso como um elogio, mas não me pareceu muito que
fosse. E, por último, ficou preocupada, no sentido de que isso poderia afetar
o nosso relacionamento, porque eu teria menos tempo para ela.
Tentei tranquilizá-la dizendo que isso não afetaria em nada, que seria algo
bom para meu amadurecimento, e até para melhorar minha imagem com
meus pais. Eles veriam que eu estava engajado em algo. Estava fazendo isso
tanto por mim, quanto por eles.
Acho que, como um todo, ela compreendeu, mesmo tendo ficado um
pouco chateada porque eu teria que estar naquela tarde para a primeira
reunião dos membros, e não com ela.

***

Cheguei na sala do grêmio cinco minutos antes da hora marcada para a


reunião e já tinha bastante gente amontoada. Tentei assimilar alguns rostos,
mas a maioria era desconhecida para mim. Eu reconheci só alguns membros
da gestão passada do grêmio, eles estavam no fundo da sala olhando alguns
papéis e conversando entre si.
Havia uma mesa comprida no centro da sala, com várias pessoas sentadas
ao redor. Imaginei uma reunião com executivos de uma grande empresa. Era
quase isso, exceto que os executivos éramos nós, os alunos.
Eu estava me sentindo perdido naquele lugar, ninguém nem me deu boas-
vindas quando entrei. Não que eu tivesse relevância para ser digno disso,
mas pelo menos ajudaria a me sentir situado, e mais confortável.
— Caio!
Virei de lado e dei de cara com a namorada do Thales, Mel. Por que será
que ela estava aqui?
— O Thales me disse que você viria, achei que não fosse aparecer até. Tá
quase na hora, vem — disse ela, bastante entusiasmada.
— Você tá fazendo o quê aqui? — perguntei.
— Eu vou fazer parte do grêmio também, garoto. Sou da turma da sua
namorada, ela deve ter lhe contado sobre isso já.
Assenti com a cabeça, como se eu tivesse esquecido desse detalhe, mas
Alice não havia mencionado isso em nenhum momento. Eu também não
sabia que elas estudavam na mesma sala. O Thales deveria pelo menos ter
me falado quando o encontrei mais cedo.
— Acho que já estão todos aqui. Vamos começar — ouvi o Erick falar, no
outro extremo da mesa.
A Mel saiu me arrastando para que sentássemos.
Na frente de cada um de nós, em cima da mesa, havia uns cadernos com
os dizeres "Manual do Bom Gremista". Não ousei abrir de imediato.
— Vocês estão todos aqui porque irão nos substituir no Grêmio Estudantil
do Colégio Santa Inês. Então, acostumem-se desde já a esse lugar — ele fez
um gesto para que olhássemos em volta da sala.
Era uma sala relativamente grande, não muito larga, porém extensa em
seu comprimento. As paredes cheias de cores vivas, de quadros de avisos
pendurados por todo lado, alguns computadores e vários livros em estantes.
Não seria um lugar entediante.
— Na frente de cada um vocês têm o estatuto do grêmio, e neles vocês
também encontrarão descrições das funções a serem preenchidas aqui. No
total são onze, mesmo número de turmas do segundo ano — explicou ele.
Fui folheando o manual enquanto ele continuava a falar. Como ninguém
se candidatou inicialmente a nenhum cargo específico, a proposta era que
teríamos que decidir em comum acordo.
Para o presidente e vice-presidente, seriam escolhidos através de votação
entre nós mesmos, após cada um dos novos membros terem feito uma breve
apresentação de si mesmos e de suas habilidades. E para os outros cargos, os
membros antigos iriam decidir quem iria substituí-los, se baseando também
em nossas apresentações.
A reunião durou três exaustivas horas. Após muita conversa, votações,
desentendimentos e acordos, ficou decidido que o presidente seria, na
verdade, presidenta. Uma menina do segundo ano C, chamada Fernanda
ficou com o cargo. Para a vice-presidência, ficou Amanda, do segundo ano
E.
Fiquei com a função de diretor de esportes. O antigo ocupante do cargo
disse que levou em consideração meu engajamento com o futsal e também o
meu porte físico. Eu gostei dessa escolha. Os outros também gostaram das
funções que receberam.
Terminado tudo isso, fomos dispensados para irmos embora. Uma
cerimônia seria realizada na sexta-feira, apenas para nos apresentar para os
alunos do colégio. A maioria nem se importava com o grêmio, mas o grêmio
precisava se mostrar para todos.
— Estou morta — disse Mel, toda molenga, quando estávamos saindo.
Ela foi escolhida como tesoureira, o que significa que ela iria cuidar das
finanças.
— Não quero mais ser do grêmio — falei, brincando, fingindo cara de
choro. Ela riu bastante. Até que fomos todos embora.
Capítulo 10

O sinal havia tocado para o intervalo e eu estava caminhando em direção ao


refeitório, sentindo fome. Até aí, nada anormal, mas além disso, também
estava um pouco ansioso. Hoje era o dia da cerimônia de apresentação dos
novos integrantes do grêmio. Eu sabia que poucos alunos se preocupavam
com isso, e que não teria muitas pessoas para nos ver, mas mesmo assim eu
sentia que estava dando um grande passo como estudante, e isso me deixava
com certo medo.
Ontem contei para meus pais sobre ter me candidatado e ter sido
escolhido. Eles ficaram muito felizes e me apoiaram. Disseram que agora eu
estava tomando um rumo. Meu pai até relembrou o tempo dele de quando
estudava no ensino médio e também fazia parte de um grêmio. Foi uma
longa história, mas boa de ouvir. Eu não sabia dessa parte da vida dele.
Chegando no refeitório, fiquei olhando entre as pessoas, à procura da
Alice. Ela me disse mais cedo que teria algo especial para me dar hoje, e que
entregaria no intervalo das aulas. Pedi para que me contasse logo o que era,
pois eu não gostava de surpresas, mas ela ficou calada. Fiquei pensando
sobre o que poderia ser, mas não consegui descobrir. Eu só tinha certeza de
que não era nada relacionado ao meu aniversário, nem ao dela.
Juntando isso com a cerimônia de mais tarde, minha ansiedade ficou a
mil.
— Caio, a Alice pediu para você encontrar ela na árvore central do bosque
lá atrás.
Murmurei um "obrigado" para a garota e saí em direção ao bosque. Ela
poderia ter me enviado uma mensagem antes, avisando que estaria lá. Ao
menos eu teria poupado tempo não vindo para o refeitório atrás dela. Ao
invés disso, ela preferiu mandar uma amiga dela, que eu nem lembrava o
nome.
Havia um bosque bem grande por trás do ginásio. Nele, todas as árvores
eram rodeadas por bancos e mesas circulares de concreto. Muitos
costumavam ir lá nos intervalos ou no fim das aulas para conversar, ou até
estudar. Sempre havia uma freira espiando, na tentativa de impedir que
acontecessem coisas que não deveriam se suceder entre os coleguinhas.
Vocês devem estar entendendo o que eu estou querendo dizer.
Chegando lá, vi Gabriel com o Eduardo sentados ao redor de uma das
árvores, conversando. Apenas passei por trás deles, e acho que eles não me
viram. Não parei porque eu estava indo encontrar a Alice. De longe eu a via,
me esperando. Ela se levantou para me receber com um abraço.
Quando me aproximei mais dela, pude ver que havia umas coisas em cima
da mesa que ela estava. Eu e meu estômago ficamos muito felizes, pois era
comida que estava à nossa espera.
— A Lana te avisou? — perguntou ela.
— Sim — recordei que esse era o nome daquela menina.
— Senta, Caio. Já vi que você está de olho nos bolinhos.
Ela acertou. Havia uns bolinhos bem na minha frente, e uma pequena
cesta com frutas. Perguntei a mim mesmo aonde ela conseguiu isso, mas isso
não importava, o importante era que eu poderia comer aquelas coisas.
— Você sabe o porquê disso? — perguntou ela. Supus que estava falando
do lanche especial.
— Porque você sabe que eu vivo com fome? — respondi e ela me bateu
pela resposta. — Porque você me ama demais, então?
— Vocês são muito esquecidos, affs. Vou lhe perdoar dessa vez. Hoje
estamos fazendo seis meses de namoro! — contou ela, batendo palmas e
abrindo um largo sorriso.
De fato, eu não lembrava disso, e não era porque os garotos eram todos
esquecidos, eu apenas não dava tanta importância para algumas datas, como
essa de seis meses de namoro. Mas, sendo um bom namorado, não iria
confrontá-la e estragar o momento.
— Ah, isso é ótimo! Desculpa, sério — fingi estar no mesmo nível de
felicidade que ela estava.
Mesmo assim, ela continuou entusiasmada, dizendo o quanto estava feliz
em estarmos juntos durante todo esse tempo; que nunca tinha encontrado
algum garoto como eu e que faria de tudo para manter a chama do nosso
amor sempre acesa, entre outras coisas. Foi meloso demais, até para mim
que fazia o estilo garoto romântico. Só que ela estava mais romântica ainda.
— Eu poderia ter esperado completar um ano — disse ela, tirando algo da
bolsa —, mas não me contive.
Ela tirou da bolsa dela uma caixinha preta e a abriu. Dentro dela estava
um par de anéis prateados. Meu coração acelerou tanto que eu poderia estar
infartando, mas consegui me manter calmo. Ela estava me pedindo em
casamento? Eu era tão novo para casar.
— Não fique assustado, Caio — disse ela, tocando meu rosto —, são
apenas anéis de compromisso para dar mais seriedade ao nosso namoro.
Pude respirar aliviado depois disso. Senti meu coração ir de cem a zero
em apenas um segundo. Eu não estava pronto para nada mais sério do que
isso.
— Eu estou calmo — falei, tentando camuflar meu pequeno momento de
quase morte.
Olhei para ela e pude ver o quão estava feliz. Fui passando a mão em seus
cabelos e aproximando meu rosto do dela, sentindo a sua respiração ritmada,
até que nossos lábios se tocaram. Seus lábios macios entrelaçaram-se aos
meus como em um desejo de unirem-se para sempre. Eu realmente sentia
algo forte e inexplicável por essa garota. Não havia outra explicação.
Veio em minha mente que alguém poderia nos punir por estar fazendo
aquilo e então me afastei dela. Olhei em volta e, por sorte, ninguém que
pudesse nos encrencar havia visto.
Ela pegou um dos anéis e pôs no dedo anelar da minha mão direita, e eu
fiz o mesmo com ela. Nosso namoro estava agora simbolicamente
representado por algo em nossos dedos, não apenas no coração.
Comemos os bolinhos e as frutas nos minutos restantes do intervalo, até
que o sinal tocou, e era hora de voltarmos para o próximo período de aulas.
Enquanto eu estava indo deixar Alice em seu bloco, ela me perguntou
sobre a reunião do outro dia no grêmio. Contei bem resumidamente o que
tinha rolado durante aquelas três horas, e lembrei da Mel, namorada do
Thales.
— Por que você não me falou que a Mel é da sua turma? E que ela foi
escolhida para participar do grêmio?
Ela parou e me olhou com cara de espanto.
— Por que eu deveria falar essas coisas pra você?
— Sei lá — respondi, tentando pensar realmente em um porquê —, só
achei que poderia ter falado, já que você não gosta dela depois do que
aconteceu entre mim e ela... e o namorado dela.
— Eu realmente não gosto dela, garotinha insuportável. Não sei porque
veio pra minha turma. Argh. Ela é... alegre demais, sorridente demais,
colorida demais, faz amizade com todo mundo, por isso foi escolhida —
disse ela, em tom de deboche.
Ué, uma pessoa ser assim era digna de ser detestável? Não entendi a
lógica dela, mas percebi que ela não ficou confortável com o assunto, então
resolvi não falar mais sobre isso. Além do mais, estávamos na frente da sala
de aula dela. Nos despedimos e corri para o meu bloco.

***

Fiquei com Alice até às 4h00 da tarde, quando ela teve que ir embora para
casa. Ela tinha que sair com os seus pais antes do anoitecer, portanto nem
iria me ver na posse de novos membros do grêmio.
A cerimônia iria acontecer em menos de uma hora no auditório do
colégio, e eu teria que estar pronto logo. O Erick pediu para que usássemos
uma roupa mais legal, que não fosse o uniforme da escola, apenas para
parecermos diferentes do resto do colégio naquele momento, então eu trouxe
algumas roupas de casa na minha mochila.
Fui correndo para o banheiro perto das salas de administração, onde era
menos movimentado. Porém, chegando lá, dei de cara com Thales, bem na
hora que ele estava jogando água no rosto. Seu olhar me perseguiu no
reflexo do espelho assim que passei pela porta. Uma parte do seu cabelo
estava molhado e colado na sua testa.
— A cerimônia é já, já — disse ele, talvez pensando que eu tivesse
esquecido.
— Eu sei, vim só me trocar — falei, enquanto ele ficava de frente para
mim. — Ah, você nem me falou ontem que a Mel é do grêmio.
— Você não perguntou.
Revirei os olhos. Como eu iria supor isso?
Enquanto ele falava que ela estava muito contente em fazer parte disso, eu
pus a minha mochila na bancada e comecei a me despir, começando pela
camiseta e depois pelo short azul. Ele parou do nada de falar e ficou me
encarando, estupefato.
— O que foi? — perguntei, enquanto tirava uma calça jeans e uma camisa
roxa da mochila.
— Você está tirando a sua roupa na minha frente — respondeu ele,
virando de costas para mim.
Eu estava usando apenas uma boxer listrada quando ele disse isso, eu não
estava nu. Não entendi o espanto.
— Qual o problema? Você é meu colega, e é homem — respondi, sem ver
nenhum problema nisso.
Eu e ele éramos dois caras, o que havia de estranho nisso? Se eu estivesse
tirando minhas roupas na frente das garotas, isso sim seria estranho e
desrespeitoso, mas não era o caso.
— Você nunca se trocou ou tomou banho com os rapazes do seu time de
basquete?
Eu estava acostumado a tomar banho, e pelado, com os meus amigos do
time de futsal após os jogos, e ninguém se importava.
— Não e não — respondeu ele, ainda de costas para mim.
— Já pode me olhar, estou totalmente vestido.
— Não precisa, vejo você no auditório. Estarei na plateia o observando.
Até mais.
Dito isso, ele saiu em direção à porta do banheiro e foi embora.
Observei no espelho se eu realmente estava bem vestido e recolhi minha
mochila. Não havia mais o que fazer, a não ser esperar mais alguns instantes
para ser oficializado como Diretor de Esportes do grêmio.
Capítulo 11

— Caio, agora que você está mais envolvido com esse lance de esportes,
deveria adiantar um campeonato pra nós, não acha?
Ainda faltavam alguns minutos para o início da aula, mas como cheguei
mais cedo no colégio, fui direto para a minha sala. Alice me avisou que
chegaria mais tarde, então eu não tinha que ficar esperando por ela na
portaria.
Não havia muita gente na sala ainda, só o Nicholas e mais alguns garotos
que eu não falava tanto. Ele estava me cobrando um campeonato de futsal,
como se apenas o fato de eu fazer parte do grêmio me desse este poder.
Quem dera fosse tão fácil assim.
— Tem que falar isso com o professor de Educação Física, não comigo —
respondi.
— Mas no ano passado foi o pessoal do grêmio que organizou o
campeonato… junto ao professor — replicou ele.
Era verdade, eu lembrava que no ano passado houve um campeonato entre
as turmas dos meninos, e que havia sido idealizado pelo grêmio.
Não foi um bom campeonato, diga-se de passagem, ainda mais que meu
time perdeu. Mas não deixou de ser emocionante. Tinha nos dado uma
melhor preparação para a disputa entre escolas que acontecia todo fim de
ano, apesar de que nosso colégio também perdeu nessa disputa.
Eu daria essa ideia para o pessoal do grêmio, e caso eles apoiassem, eu
falaria com o professor. Fazia mais de três semanas que eu estava no grêmio
e praticamente não tinha feito nada relacionado à minha função, a não ser
umas pesquisas de opinião idiotas e ficar tirando cópias para os alunos. Isso
era o que mais fazíamos naquele grêmio.
Eu ficava só duas vezes por semana, à tarde, na sala do grêmio. Como
tínhamos muitos membros, dava para revezar os dias. Inclusive, hoje era dia
para mim. Durante toda a tarde eu costumava ficar na frente do computador,
nas redes sociais ou estudando, parava só para fazer as benditas cópias dos
outros alunos. Por enquanto era isso o que alimentava o caixa do grêmio.
— Vocês estão com essa cara porquê? — Gabriel chegou perguntando.
Ele veio junto com o Bento e o Henrique.
— A minha é de sono mesmo — respondi, deitando minha cabeça na
mesa da carteira.
— Eu estava dando uma ideia aqui pro Caio de que ele deveria arrumar
um campeonato pra gente, já que ele tá na coordenação de esportes do
grêmio e tal... — contou Nicholas.
— Verdade, Caio. Agiliza isso aí — Henrique disse, batendo nas minhas
costas.
— Tá certo — murmurei, desejando que eles me deixassem dar um
cochilo. — Eu vou jogar a ideia para o resto do pessoal lá.
Nicholas passou o resto da manhã me importunando com esse assunto.
Fiquei com vontade de arrancar aquele cabelo verde desbotado dele. Se
totalmente verde já era feio, imagine agora que a cor original, preta, estava
bem aparente.

***

À tarde fui para o quartel general do grêmio. Só estávamos eu e a Mel lá.


Fazia mais de uma hora que ela tinha colocado para tocar umas músicas que
estavam quase fazendo meu ouvido sangrar. Não era nada que eu já tivesse
ouvido na vida.
— Desculpa, mas que… que merda é essa que você está me fazendo
ouvir? — reclamei, enquanto eu girava na cadeira com rodinhas.
Ela se virou para mim com uma feição quase que demoníaca, e de quem
planejava uma morte terrível para o outro, mas não passou disso.
— Eu entendo você não gostar do que estou ouvindo — começou ela,
aumentando propositalmente o volume da música —, mas, se eu fosse você,
eu não ousaria chamar BTS de merda outra vez na minha frente. Tudo bem?
Eu ri, pois ela parecia ter levado bem a sério o meu comentário.
— Se quiser — disse ela, enquanto batia pausadamente a ponta de uma
caneta na mesa —, eu posso lhe indicar uma playlist ótima de Kpop no
Spotify.
Pelo olhar ameaçador dela, não parecia que de fato ela queria me indicar
algo, era mais como uma provocação. E mesmo eu correndo o risco de ser
assassinado com a ponta de uma caneta, decidi me aproximar dela, usando
minha cadeira com rodinhas como meio de locomoção.
No meio do caminho havia uma mesa, e eu acabei batendo nela, quase
derrubando um jarro de vidro que estava em cima. Era da presidente do
grêmio, e ela iria me comer vivo se algo acontecesse, mas não aconteceu.
A Mel reprimiu um sorriso e eu presumi que ela não queria mais me
matar.
— Sério, abaixa aí. Tenho algo para falar com você.
Ela não se negou e diminuiu totalmente o som. Fiquei agradecido.
— Espero que seja algo extremamente importante, pois eu nunca
diminuiria o volume de Dynamite por algo irrelevante.
Contei para ela que os rapazes que jogavam futsal, e eram meus amigos,
estavam pedindo para que o grêmio organizasse um pequeno campeonato, e
também falei sobre o porquê que isso seria importante para eles, incluindo a
mim. A minha intenção era convencê-la a me ajudar para que o restante dos
membros aceitasse a minha proposta.
— Engraçado... pois o Thales me pediu para falar com você exatamente
sobre isso — disse ela.
— Sobre o campeonato de futsal? — perguntei, confuso.
— Não, ele me pediu para você promover um campeonato de basquete.
Fiquei um tanto surpreso. Por que eu iria promover um campeonato de
basquete? Eu nem jogava basquete.
Ah, esqueci que eu não estava no grêmio apenas por interesses pessoais,
seria agir com egoísmo da minha parte. Mas, meus amigos me pediram
primeiro, e eu não poderia negar isso a eles. Além do mais, eu fazia parte do
time de futsal da minha turma.
— Eu sei que você está pensando em seus amigos, e que também é o seu
esporte — ela basicamente leu a minha mente —, mas, diante do futsal, o
basquete é o esporte mais desvalorizado aqui no colégio. Eles precisam de
mais apoio, sabe? — argumentou ela.
— O futsal também precisa, temos campeonatos fora do colégio para
disputar.
— Eu sei, meu querido — disse ela, pondo as mãos em meus joelhos —,
mas poderíamos deixar para depois o futsal. Planejamos o basquete para o
fim desse semestre, e deixamos o futsal para o segundo semestre, o que você
acha?
Eu comecei a conversa no intuito de convencer ela a me ajudar, e me
encontrava em uma posição onde eu teria que ajudá-la. Ela estava me
persuadindo, e eu não era lá muito propenso a dizer “não” para as pessoas.
Estaria eu traindo os meus amigos se deixasse o futsal para depois, ou eles
iriam entender o ponto da Mel e aceitar de boas?
Ela continuou, falando que o grêmio estava com bastante dinheiro em
caixa, deixado pela gestão passada, e que o colégio também poderia
disponibilizar algum incentivo financeiro, então daria certo fazer agora o
campeonato de basquete. E ainda, poderíamos pensar em algum modo de
arrecadar mais dinheiro durante o evento.
— Ok, então.
Não precisou de muito para que eu acabasse sendo convencido por ela.
Agora só teria que arranjar um modo de me virar com meus amigos.
Antes disso, teríamos primeiro que conversar com o restante do grêmio
para ver se eles aceitavam. E depois, falaríamos com a administração do
colégio. Certo é que ainda faltavam alguns meses até o fim do primeiro
semestre.
Ouvi alguém batendo na porta do grêmio e me afastei, em um impulso, da
Mel, para só depois olhar para saber quem era. Pela porta ser inteiramente de
vidro, era fácil de identificar. Pensei que seria mais algum aluno para tirar
cópias, mas era o Thales. E ele entrou tão logo a Mel o convidou.
Eu não sei o que ele ainda estava fazendo no colégio a essa hora.
— Vamos? — chamou ele, segurando a Mel pelo braço.
— Caio, eu tenho que ir embora agora.
— Não! — gritei.
Eles se assustaram, e até eu me assustei com a minha reação. Exagerei um
pouco, mas foi espontâneo. Olhei no relógio e vi que ainda não era hora de
ela ir embora. Não tínhamos completado nosso turno, e eu não ficaria ali
sozinho.
Thales já estava praticamente arrastando ela.
— Você não vai me deixar aqui só. Falta uma hora ainda pra podermos ir
embora.
— Por favor, Caio. Tenho que sair com o Thales — implorou ela.
Eu não iria deixar ele levar ela só porque eles tinham que sair juntos.
Poderiam fazer isso em outra hora. Compromisso era compromisso. E se eu
estava levando isso a sério, os outros deveriam levar também.
— E vocês vão pra onde? — perguntei, sem fingir interesse em saber.
— Para o cinema — respondeu Thales, mesmo sem interesse.
— Fiquem aqui comigo até dar a hora, daí eu vou com vocês para o
cinema — sugeri, pois eu estava com muita vontade de ir ao cinema.
— E por que você acha que a SUA presença conosco é uma proposta
irrecusável? — questionou Mel.
Eu nem percebi que eu tinha me colocado como alguém que eles fossem
querer como companhia. Não foi minha intenção, eu só queria,
principalmente, que ela ficasse até dar a hora de ir embora. E também,
porque queria ir ver algum filme. Ficaria de vela entre eles, mas isso não
importava.
— Tudo bem — Thales disse olhando para a Mel. — A gente fica aqui, e
depois sai todo mundo junto.
Ela aparentou não gostar muito da ideia, pois beliscou o braço dele, como
se eu não fosse perceber a cara de dor dele, mas acabou cedendo. Eu deveria
me sentir incomodado com a situação, mas era cara-de-pau demais para me
importar.
Ficamos os três conversando e aproveitei para tocar no assunto do
basquete com o Thales. Ele disse que havia muitos rapazes de outras turmas
que jogavam e que gostariam de fazer uma disputa para decidir qual seria o
time principal do colégio, algo que achei interessante.
E como eu não entendia nada de basquete, quis saber mais como isso iria
funcionar. Eu precisava ficar mais a par, até para poder convencer os outros
membros do grêmio.

***

Deixamos a escola antes do anoitecer e corremos para o shopping.


Entramos em uma loja de doces para comprar um monte de porcarias para
nos encher no cinema. Eu não costumava comer muito assistindo a um filme,
mas não quis passar vergonha vendo eles dois enchendo uma sacola
enquanto ficava com nada.
Compramos os ingressos e entramos na sessão de um filme de
extraterrestres que acabou sendo bem ruim, tanto que quando saímos eu nem
lembrava mais o título do filme. Apesar de que teve momentos bem
engraçados por causa dos figurinos e efeitos especiais de baixa qualidade.
Fazia tempo que eu não me divertia assim no cinema, mesmo com um
filme ruim. E o pior era que eu estava vivendo isso com duas pessoas que
nem ao menos eram meus amigos. Estranho pensar que não tivemos um bom
começo quando nos conhecemos naquele desastroso acontecimento.
No fim, Mel admitiu que se divertiu bastante e agradeceu pela minha
companhia. Agradeci aos dois também. Assim, nos despedimos e voltamos
para nossas casas quando já era noite.
Chegando em casa eu liguei par Alice, que tinha me ligado durante a
exibição do filme, mas que acabei não atendendo. Se eu contasse que não
respondi ela porque passei a tarde com a Mel e com o Thales, isso me
colocaria em uma situação conflitante, então acabei tendo que mentir para
ela. Mas não foi nada demais, ela só não precisava saber disso.
Capítulo 12

— Desce daí, louco! O professor vai já entrar na sala — gritei para o


Henrique.
Ele estava em cima da mesa da carteira, dançando e rodando, na ponta do
dedo, uma roupa íntima feminina que o Nicholas havia trazido na sua
mochila. Ele contou que uma menina do colégio esqueceu com ele. Porém
era mentira dele, todo mundo sabia que ele não pegava ninguém,
provavelmente era da irmã dele, o que deixava a situação mais grotesca.
Estava todo mundo rindo alto da brincadeira dele, e ele estava adorando
ser o centro das atenções. Do jeito que ele requebrava, estava prestes a cair
da mesa, aí eu riria sem parar se isso acontecesse. Ele estava pedindo para
ser suspenso caso alguém passasse pela porta e visse essa cena.
— Toma isso dele, Nicholas!
Como ninguém fez nada, decidi eu mesmo ir até ao Henrique e puxar o
short dele para baixo, até ao joelho. Ele ficou praticamente só de cueca e
rapidamente soltou o sutiã para levantar o short. Os garotos riram mais
ainda, deixando-o envergonhado. Só assim ele desceu da mesa, em um pulo,
e parou com a palhaçada.
— Você é um estraga prazeres, hein — resmungou ele, esbarrando
propositalmente em mim com uma cara raivosa.
Sentei de volta na minha cadeira e o Gabriel continuava chorando de tanto
rir.
— Você não deveria ter feito isso — disse ele.
— Ele não ia parar nunca — justifiquei.
O professor de Espanhol entrou na sala assim que o Nicholas apanhou o
sutiã do chão e enfiou de volta na mochila. Todo mundo correu para se
organizar em suas mesas.
Olhei para trás, onde Henrique estava, para mostrar que salvei a pele dele,
mas ele me mostrou o dedo do meio. Da próxima vez eu iria deixar ele se
ferrar.
— ¡Buenos días! — disse o professor Marcos. — Abram seus livros no
quinto capítulo e leiam, em silêncio, o primeiro texto antes de iniciarmos a
aula.

***

Eu estava vidrado no ponteiro do relógio acima do quadro, só observando


a hora passar. Faltavam vinte minutos para acabar a aula. O professor tinha
passado uns exercícios para fazermos e eu já tinha terminado, mas não podia
por enquanto. Tinha que ficar sentado esperando.
— A aula está encerrada, MAS não se levantem agora — disse ele, bem
rápido, prevendo que iríamos nos levantar. — Vou passar um trabalho para
vocês apresentarem.
— Não, professoooor — reclamaram alguns. Ninguém gostava de
apresentar trabalho.
— Não se lastimem antes da hora. Vai ser algo fácil, e em dupla.
Gabriel virou para mim, e piscou um olho. Não precisava nem falar mais
nada, faríamos eu e ele juntos. Isso já estava previamente estabelecido.
— Cada dupla terá um tema que eu vou direcionar e vocês apresentarão
um pequeno diálogo de… sei lá... no máximo, três minutos — explicou ele.
— Em Espanhol? — Lucas perguntou.
— Claro, pra quê eu quero ver vocês dialogando em Português se eu sou
professor de Espanhol?
Todos riram da pergunta óbvia do Lucas, e da resposta certeira do
professor.
— Sobre as duplas, sinto muito estragar a alegria de vocês, mas eu já
defini quem vai ficar com quem.
Eu e o Gabriel bufamos ao mesmo tempo, descontentes.
Ouvi ele xingar baixinho o professor por cometer tal atrocidade.
O professor explicou que escolheu as duplas de acordo com a lista de
chamada, onde o último nome faria par com o primeiro, o penúltimo com o
segundo, e assim por diante. Eu era o terceiro da lista, então alguém do final
formaria dupla comigo. Ele começou a dizer os nomes junto ao tema da
apresentação, e quando chegou a minha vez, falou:
— Caio vai fazer com o Thales. E o tema é amor. Pode ser um diálogo
romântico, ou coisa do tipo, desde que envolva o amor.
— Sério, professor? — perguntei, mas ele nem deu bola.
Gabriel começou a me sacudir e a fingir me dar beijos, enquanto os outros
faziam corações no ar e atiravam flechas de cupido para o Thales. Nesse
momento eu só queria achar um buraco para enfiar minha cabeça.
Quando afastei Gabriel de cima de mim, pude ver o rosto do Thales me
olhando, mais a frente, com um sorriso malicioso.
— Parem as brincadeiras! — ordenou o professor. — Me deixem
continuar e dizer o restante dos nomes. Vocês querem ir embora, ou não?
Encerrado os nomes, o professor avisou que a apresentação seria na
próxima semana, liberando-nos. Quando saímos da sala, procurei pelo
Thales, mas ele já tinha ido embora, apressado.
— Pode ir embora. Encontro você depois — falei ao Gabriel, e saí
correndo atrás do Thales.
Assim que o avistei e me aproximei dele, coloquei a mão em seu ombro
para que ele parasse de andar. Ele se virou, um tanto surpreso.
— Algum problema? — perguntou.
— Precisamos falar sobre esse trabalho.
— Mas é para a próxima semana ainda. Qualquer coisa você me manda
uma mensagem — disse ele.
— Eu sei, mas quero adiantar logo e não deixar para a última hora, quero
pensar em como vai ser. Você tá livre agora pra almoçar comigo?
— Mas... você não tem que ficar no grêmio agora?
— Hoje não.
— E a sua namorada?
— O quê que tem ela? Você tá livre ou não? — perguntei, já irritado. Se
ele não queria ir, que falasse logo.
— Tudo bem, vamos.
Alice não tinha vindo para a escola neste dia pois estava doente. Falei a
ela que iria passar na casa dela após as aulas, mas faria isso mais tarde. Ela
não iria morrer se eu fosse um pouco depois.

***

Acabou que o meu plano inicial de almoçar no shopping com o Thales


não deu certo, pois a praça de alimentação estava muito tumultuada. Tanto
eu quanto ele nos sentíamos incomodados com muita gente falando ao
mesmo tempo, e ainda tinha as crianças correndo e gritando feito loucas.
Seguimos para um restaurante por trás do shopping, que costumava passar
meio despercebido por causa dos grandes edifícios ao redor, mas que tinha
uma boa comida, e que não era cara. Alunos de uma escola próxima
costumavam almoçar nesse lugar, e eu já tinha vindo almoçar algumas vezes
no ano passado com os meninos do futsal assim que acabávamos as partidas
do campeonato entre as escolas da cidade.
O restaurante trabalhava no estilo self-service, então aproveitei para
encher meu prato, mesmo sabendo que talvez eu não fosse comer tudo que
escolhi. Se Alice estivesse aqui, ela iria colocar apenas salada, e talvez um
pedaço de frango, o que não valeria muito a pena. Mas, de verdade, ela nem
viria em um lugar como esse.
Quando o Thales sentou, eu já estava acomodado em uma cadeira. O prato
dele era metade do meu.
— Você não come há quantos dias? — perguntou ele, olhando meu prato.
— Eu estou com muita fome — respondi, pondo a primeira garfada na
boca.
— Tô vendo — ele também começou a comer.
Depois de algumas garfadas, eu já estava começando a me sentir
satisfeito, mas ainda tinha muita comida no prato. Tive que me forçar a
comer tudo, mesmo que eu fosse explodir depois.
— Você sabe o que é o amor, Caio?
Do nada, ele me questionou isso, fazendo eu me engasgar com a pergunta.
Ele se levantou e veio bater nas minhas costas, mas eu já estava bem.
Um grão de arroz parecia ter ficado nas minhas vias aéreas por alguns
instantes, mas depois sumiu.
— Por que a pergunta? — perguntei, quando ele já tinha voltado para a
cadeira dele.
— Nosso trabalho, lembra? Só quero saber o que você pensa sobre amor.
Essa pergunta me pegou desprevenido. Eu nunca pensei sobre o que seria
o amor. Eu costumava dizer com facilidade que amava as pessoas, mas não
sabia realmente o que seria isso.
Eu sabia do amor que tinha pelos meus pais, e era um amor que conhecia
desde que nasci, incondicional, de agradecimento, mas não era esse tipo de
amor que ele estava querendo saber.
Pensando de outra forma, eu só tive uma namorada na vida, e era a Alice.
Antes disso eu havia me relacionado com algumas outras garotas, mas nada
duradouro. Quando conheci a Alice, ela fez meu coração bater de um jeito
diferente das outras meninas. Ela me dava muito carinho e atenção, e me
fazia despertar um lado sentimental que eu mesmo não sabia que tinha.
Meus olhos brilhavam toda vez que a via, ela que dizia. Isso por acaso não
era amor? Uma coisa meio inexplicável, para ser sentido e vivido de todas as
maneiras?
— Eu não sei dizer muito bem — comecei —, eu sei que amo a minha
namorada, gosto de cuidar dela e de protegê-la. Isso para mim é amor.
Estava sendo sincero. Olhei para o anel em meu dedo, e aquilo era a
representação do amor que eu sentia por ela, algo concreto e duradouro. Eu
não sabia se passaria o resto da minha vida com ela, mas seria feliz enquanto
durasse.
Quando comecei a namorar, meu pai me falou que eu não levasse tão a
sério, por eu ser muito jovem e com chances de acabar com o coração
partido. Não sei se ele teve muitas experiências desastrosas desse tipo
quando jovem, e por isso disso isso, mas ele encontrou a minha mãe na
juventude e casou-se com ela. Então a regra não parecia se aplicar a todos,
tanto que eu acabei não seguindo o conselho dele, e me entreguei totalmente
a Alice, deixei que meu coração me guiasse.
— Outra coisa, você acha que o amor surge do nada, ou é, tipo...
construído? — Thales continuou.
Ele estava falando de amor à primeira vista?
— Eu não tenho muita experiência com isso — disse ele, vendo que eu
estava pensando muito para responder. — Uma vez eu me apaixonei, e foi
assim... de repente. E eu simplesmente passei a amar essa pessoa. Simples
assim.
Embora comigo tivesse sido diferente, eu acreditava, sim, que o amor
também podia ser construído. Acreditava que duas pessoas poderiam ficar
regando e regando uma plantinha do amor, por vezes até sem intenção, mas
que uma hora ela floresceria e os dois acabariam amando um ao outro.
Depois do papo, terminamos o almoço e acabou que não falamos
diretamente sobre o trabalho de Espanhol, que era a primeira intenção. O
Thales só ouviu de mim o que eu sabia ou pensava sobre o amor. Enquanto
também dividiu um pouco dos pensamentos dele.
Antes de ir embora, esperei ele pegar um ônibus e chamei um Uber para
mim, pois eu ainda tinha que ir na casa da Alice para ver se ela estava
melhor. Quem sabe se um beijo meu não a curasse de todos os males.
Capítulo 13

— E aí, Caio, você já desenrolou o campeonato? Quando vai ser?


Eu estava em bando no refeitório com meus amigos e a Alice, que estava
com as amigas dela. Nicholas estava me cobrando mais uma vez pelo
campeonato. Eu ainda não tinha falado para ele e para os outros que não
tinha dado certo, a não ser para o Gabriel. Eu estava querendo fugir desse
assunto, na verdade.
— Não vai ter — admiti, não querendo prolongar o assunto e fugir pela
tangente.
— Por que não, cacete? Você é um imprestável mesmo, hein — reclamou
Bento, me insultando.
— Ei, fale direito com ele, imprestável é você — Alice me defendeu.
Os meninos bateram na cabeça do Bento, em represália ao que ele falou.
Ele merecia.
— Ele vai promover um campeonato de basquete primeiro — contou o
Gabriel. Todos me olharem de olhos arregalados, inclusive a Alice.
Eu disse a ele que não falasse nada por enquanto, mas ele tinha a boca
grande demais para isso pelo visto. Ele só não podia dizer que eu não tentei
promover o futsal, só que acabei sendo convencido a mudar de lado.
Aliás, estava tudo certo para o campeonato de basquete. Eu e a Mel
tínhamos falado com o restante do grêmio e eles concordaram. A presidente
tinha conversado com a administração da escola, e eles aceitaram, assim
como o professor de Educação Física, que seria o maior responsável nisso.
— Como assim? — perguntou Alice. Ela nem deveria estar metida nisso,
de início. — Você nem joga basquete.
Não era como se eu só pudesse apoiar algo se eu fizesse parte daquilo.
Porém, não falei isso a ela, pois soaria rude.
— Eu tentei arranjar pra nós, fiquem calmos — pedi —, MAS, foi
decidido que fariam o campeonato de basquete primeiro. Daí no próximo
semestre será feito o de futsal. Só teremos que esperar mais um pouco, e até
lá a gente segue treinando.
Omiti algumas coisas de como realmente havia acontecido para eu não
ficar queimado com eles mais do que já estava. Eles eram meus amigos e eu
precisava que eles estivessem do meu lado.
— Só pode ter sido por causa daquele liderzinho. Ele deu a bunda pra
você?
Henrique foi longe demais falando isso, e eu fiquei bastante irritado, a
ponto de querer socar ele.
— Seu cu, seu fodido do caralho!
— Parem, seus babacas! — Gabriel gritou.
Tentei me acalmar para não perder a razão e socar ele para valer, mas
qualquer dia desses ele iria sentir a minha mão nessa fuça dele.
— Vamos, Alice — puxei ela pelo braço para a deixar em sua sala, pois o
sinal havia acabado de tocar para o próximo período de aulas.
Eu realmente tinha ficado estressado. E olha que eu era a pessoa mais
calma do mundo, mas às vezes não tinha como evitar, pois as pessoas não
colaboravam.

***

De volta a sala, o professor de Matemática estava prestes a entregar os


nossos resultados do primeiro bimestre.
Eu estava um pouco nervoso. Essa era a disciplina que mais me ferrou no
ano passado.
Dessa vez eu estava me esforçando mais para melhorar. Passei as noites
antes da prova, em claro, estudando, e esperava ter me saído bem. Pior do
que tirar nota baixa, era todo mundo saber que você tirou nota baixa, e o
professor dizia a nota de cada um em voz alta.
— Caio, seis vírgula cinco.
E foi assim que ele acabou de decretar a minha morte. A minha única
reação foi jogar minha cabeça na mesa e ficar abaixado. A cabeçada doeu
com a pancada, mas eu merecia depois dessa.
Fiquei desapontado comigo mesmo por ter ficado abaixo da média. Eu
havia estudado bastante e mesmo assim não tinha conseguido tirar uma nota
boa. Não estava esperando por um dez, mas pelo menos alguma coisa acima
da média. Eu nem iria contar para os meus pais, pelo menos não agora.
Gabriel ficou passando a mão na minha cabeça, como se passasse a mão
em um filhote de cachorro abandonado. Mais como provocação mesmo.
Ouvi o professor dar nota sete para ele, e só não ficou na mesma merda que
eu porque tinha cravado em cima da média.
Dois colegas tiraram dez, um deles foi o Thales. Não bastava ser um cara
bonito e jogador de basquete, tinha que ser inteligente também.
— Para os que tiraram nota baixa, vou dar mais uma chance de recuperar,
então prestem atenção! — levantei minha cabeça para ouvir o que o
professor tinha a dizer. Um fio de esperança estava surgindo em meio ao
caos. Deus ouviu as minhas preces, e nem tudo estava perdido. — Vou
passar uma nova prova na próxima aula, valendo dois pontos. Todos podem
fazer, mas é especialmente para os que ficaram abaixo da média.
E assim ele encerrou a aula e nos liberou.
A próxima aula dele era daqui há dois dias, então eu tinha que correr
contra o tempo e revisar tudo. Que dó do meu cérebro.
Peguei minha mochila e fui saindo da sala com os rapazes. Eles estavam
fazendo bagunça como sempre.
Senti uma mão no meu ombro e pensei que fosse o Gabriel que gostava de
se apoiar em mim, mas quando virei, era o Thales.
— Posso falar contigo? — perguntou ele.
Foi o suficiente para os meus amigos começarem a se entreolhar, ainda
mais depois do que Henrique tinha falado no intervalo.
Nem sei por que eu estava me preocupando com isso, na verdade. Quem
não deve, não teme. E se eles não recordavam, eu tinha uma namorada,
assim como o Thales também tinha a dele.
— Podem ir, não precisam esperar por mim — expulsei todos eles, dando
de ombros, antes que soltassem alguma piadinha.
— Bom, eu ouvi que você tirou nota baixa...
— E por isso você veio jogar seu dez na minha cara? — interrompi ele,
que ficou me olhando com a testa franzida.
— Por que eu faria isso? Eu vim lhe oferecer ajuda.
— Ah, desculpa.
— Posso ensinar a você o que precisa saber para recuperar seus pontos.
Você só tem dois dias, então tem que começar de agora.
— Eita — cocei a minha cabeça, pois estava com um problema —, é
que… eu marquei de sair com a Alice agora.
— Eu também marquei com a Mel, mas vou desmarcar. Você quer
aumentar sua nota ou não? Você que decide.
Nada como ser posto contra a parede por um argumento válido. Além do
mais, ele estava sendo um bom colega em se oferecer para me ajudar, e eu
não tinha nada a perder aceitando.
— Ok, então — aceitei a proposta. Eu poderia sair com a Alice outro dia.
Inventaria alguma coisa para ela sobre não poder ir.
Thales abriu um largo sorriso ao me ouvir.
Eu também estava feliz. Provavelmente eu não conseguiria me recuperar
se estudasse sozinho.
— Vamos estudar onde, então? — perguntou ele.
— Topa ir lá pra minha casa?
Ele franziu a testa após ouvir a minha sugestão. Eu preferia estudar em
casa. Era melhor para me concentrar em meu quarto, sem barulho nenhum.
Ficar na escola não daria muito certo.
Além do mais, minha mãe vendo que eu estava levando um colega para
estudar em casa poderia me ajudar a ganhar ainda mais a sua confiança.
Como meu Xbox estava confiscado há um tempo, ela sabia que não
correríamos o risco de ir jogar ao invés de estudar.
— Eu vou lhe deixar em casa — melhorei minha proposta. — Com minha
mãe, na verdade. Eu não tenho carro.
— Tá bem, se você prefere assim... — ele concordou.
O próximo passo era falar com a Alice, enquanto o Thales tinha ido falar
com a Mel. Acertamos de nos encontrar na saída do colégio.
Assim que encontrei a Alice, ainda na escola, falei para ela que eu teria
que ficar no grêmio para cobrir outro membro que teve um problema. Ela
ficou um pouco triste, mas disse que ficaria tudo bem. Logo ela ligou para o
pai dela, que veio pegá-la. Saí correndo do estacionamento quando ela foi
embora.
Chegando na saída do colégio, o Thales já estava me esperando. Ele nem
reclamou da minha demora. E disse que tinha dado certo com a Mel. Contei
a ele que para mim também tinha dado.
Chamamos um Uber e partimos para minha casa. Ele não falou nada
durante todo o caminho, e eu também permaneci calado, não havia muito o
que falar.
Quando chegamos em casa, apresentei o Thales rapidamente para a minha
mãe e depois subimos para o meu quarto. Eu queria tomar um banho, mas
não achei conveniente deixá-lo me esperando mais ainda, então faria isso
depois.
— Pode jogar sua bolsa por aí — falei a ele assim que entramos no quarto.
— Uau, que quarto, hein — disse, impressionado, observando parede por
parede.
Quando o olhar dele conseguiu fixar em algo, ele saiu andando e parou na
frente de uma réplica da Torre Eiffel de LEGO, de quase um metro, que eu
tinha em cima de uma mesa.
— Você já foi à Paris?
— Não — respondi —, mas eu gosto dessa torre.
Pedi para ele tirar os sapatos e deixá-los próximos da porta, onde os meus
já estavam lá. Logo após, ele foi tirando também seus materiais da mochila e
colocando em cima da minha mesa de estudos, que por sinal estava uma
bagunça, mas uma bagunça que eu chamava de bagunça organizada, pois eu
sabia exatamente onde estava qualquer coisa ali, desde que mantivesse
daquele modo. Era o único lugar do quarto que eu pedia para minha mãe não
mexer.
Começamos a estudar pelas questões da prova. A proposta era refazer
todas elas, principalmente as que errei. Eu havia me dado mal nas de
probabilidade.
Em cada questão ele apontava diretamente aonde eu errei, e indicava o
que eu tinha que fazer para os cálculos darem certo. Não era fácil, mas ele
estava sendo paciente com a minha falta de habilidade.
Depois de algumas horas de estudo, e de já termos feito dezenas de
questões, eu estava começando a ficar um pouco exausto e mais lento na
compreensão. E ele foi percebendo isso.
— Tá errado aí — disse ele.
Fiquei olhando para os cálculos, mas não achei exatamente onde estava
errado. Acabei apagando tudo para começar do início, o que fez ele balançar
a cabeça em sinal de desaprovação.
— Continua errado. É assim, olha...
Sabe quando você é criança, está aprendendo a escrever e sua mãe pega na
sua mão para guiar o lápis junto com você? Era isso que o Thales estava
fazendo comigo. Ele colocou a sua mão sobre a minha e começou a escrever
uns números, enquanto eu permitia que ele guiasse sozinho.
Fiquei olhando para o rosto dele, que estava com a ponta da língua para
fora, ao passo que ele ainda escrevia. Ele estava concentrado demais para
perceber que eu já não estava mais me esforçando.
Quando ele enfim notou que estava fazendo aquilo sozinho, parou e me
olhou. Ele parecia estar hipnotizado. Seus olhos nem piscavam. Tive a
impressão que ele estava começando a se aproximar e estalei os dedos na
frente dele.
Ele acordou do transe, e recuou.
— Desculpa, desculpa — disse ele, com o rosto vermelho —, acho que
você já estudou o bastante por hoje. E eu já estou cansado.
Ele começou a recolher os materiais dele e a colocar de volta em sua
mochila. Estava bastante apressado, tanto que não conseguia nem fechar o
zíper direito.
— Ok, vou falar com minha mãe para deixar você em casa agora.
— Não precisa, eu chamo um carro. Não vou fazer vocês ficarem rodando
a cidade — ele já tinha levantado da cadeira quando eu disse isso.
— Promessa pra mim é dívida.
— Apenas me leve até a porta da sua casa, tá ok?
Eu não entendi a pressa dele em ir embora. Eu ainda iria convidá-lo para
comer alguma coisa, mas diante dessa situação, fiz o que ele pediu.
Deixei-o na porta e ele partiu, sem eu nem ter conseguido agradecê-lo.

***

Passei várias horas falando ao telefone com a Alice, e já era tarde da noite
quando desliguei e lembrei de mandar mensagem para o Thales. Agradeci a
ele pela ajuda, e falei que agora eu estava me sentindo mais aliviado e
confiante para recuperar os pontos da prova.
Assim que enviei, ele leu a mensagem. Fiquei esperando por uma
resposta, mas ele não retornou, apenas leu. Poderia pelo menos ter me
mandado um legal, ou um emoji sorrindo, mas me deixou no vácuo.
Capítulo 14

— Ei, ei.
Puxei o Thales pela mochila enquanto ele estava andando no corredor do
colégio com a Mel. Eu tinha acabado de me despedir da Alice quando os vi
passarem e fui correndo falar com ele. Seu cabelo estava um pouco
bagunçado, além do normal.
— E aí, Mel? Thales? — os dois olharam para mim, mas sem esboçar
nenhuma reação amigável. — Estão vendo um fantasma?
— Oi! — disseram os dois.
Eles não pareciam muito felizes em me ver. Não sei se era porque eles
tinham acabado de discutir, e por isso estavam mal-humorados, ou porque
simplesmente era de manhã cedo. E de manhã cedo ninguém está de bom
humor.
— Você saiu com pressa ontem lá de casa, tinha algum compromisso? —
perguntei ao Thales.
— Hã? — ele olhou para a Mel e depois para mim. — Ah, sim, eu
realmente tinha um compromisso. Estava atrasado pra ir na casa dela, não
era?
— Sim, sim, sim — respondeu ela, repetidamente. — Fiquei esperando
por ele no shopping.
— Não era na sua casa?
— Sim, não... — Thales se enrolou. — Eu iria pegá-la em sua casa, mas
como me atrasei, ela foi diretamente para o shopping, daí fui encontrar ela
lá. Foi isso.
Esses dois faziam confusão com pouca coisa, mas ele tinha sido claro.
— Ah, e você nem respondeu minha mensagem — falei, empurrando o
peito dele com o dedo.
— Não respondi? Eu devo ter esquecido. Não foi a minha intenção, sério
— justificou.
— Thales, vamos? — pediu Mel.
— Encontro você na sala, Caio. Tenho que ir com ela.
Ele deu uns tapinhas no meu ombro e saiu com ela.
Corri para a minha sala, pois as primeiras aulas estavam prestes a
começar. E como sempre, o professor ainda não havia chegado. Só estavam
os meus amigos na sala, sentados em cima das mesas.
Cutuquei a cintura do Henrique e ele se contorceu todo, dando um tapa na
minha barriga em resposta.
— Cacete! — xingou ele, enquanto eu sentava ao lado do Lucas, em cima
de outra mesa.
— Eu vi você conversando com o líder da sala há alguns minutos — disse
Nicholas.
Gabriel o chutou na perna por baixo da carteira, como se eu fosse
perceber.
— E? — não entendi o que havia demais nisso.
Eu estava impressionado como agora insistiam em implicar comigo,
relacionando sempre com o Thales. Eles ficaram com raiva porque não
consegui ajeitar o campeonato e resolveram encher a minha paciência pelo
resto da vida.
— E aí que você está virando amigo dele. Um cara aqui estava
reclamando e sentindo sua falta — Henrique respondeu, apontando por
debaixo do queixo para o Gabriel.
Gabriel levantou da cadeira e pegou ele pelo pescoço, esmurrando a sua
cabeça diversas vezes.
O professor entrou bem na hora. Thales vinha logo atrás.
— Parem a bagunça! E mesa não é lugar para sentar — o professor
advertiu.
Fiz contato visual com o Thales, mas ele virou o rosto, me ignorando e
sentando em seu lugar. Se eu não tivesse falado com ele antes, eu pensaria
que ele estava com raiva.
— Eu não reclamei de nada, não — disse Gabriel, ao meu lado. — Você
sabe como ele é idiota.
Eu sabia que ele não tinha falado nada. Se houvesse algo que estivesse
incomodando-o, ele diria diretamente a mim. E não havia nada com o que se
incomodar. Eu apenas estava fazendo uma nova amizade, assim como eu
tinha com esses outros babacas ao meu lado, mas o Gabriel continuaria
sendo o meu melhor amigo.
***

Com todos saindo para o intervalo, eu pensei em ir falar com o Thales,


mas ele já tinha se apressado em sair também, e eu não quis correr atrás dele,
de novo.
Não sei se ele iria me ajudar novamente com a prova de amanhã, já que
não disse nada quando nos falamos mais cedo.
Ele tinha me feito entender coisas que eu não tinha aprendido com o
professor, e agora eu estava mais preparado. Assim eu não teria mais que
mostrar uma nota baixa para meus pais. E ainda poderia recuperar o meu
videogame.
Fui com os meninos para o refeitório encontrar as meninas,
principalmente a minha namorada. Hoje ela estava muito bonita com seu
penteado rabo de cavalo. Eu nunca tinha visto ela usando-o assim, vivia
sempre solto.
Quando comecei a morder o meu sanduíche, vi o Thales em uma mesa
com a Mel. Fiquei olhando para ele até que me visse, mas quando isso
aconteceu, ele não sustentou o olhar por mais de meio segundo e virou
rapidamente para ela. Estava começando a achá-lo estranho. Será que eu
tinha feito alguma coisa que o deixou com raiva?
Conferi meu telefone para rever a mensagem que escrevi para ele ontem,
pois talvez eu tivesse falado alguma besteira, mas não, eu não tinha dito
nada que pudesse chateá-lo. Eu podia estar imaginando coisas também.
— Por que você tá com essa cara? — perguntou Alice.
— Eu só tenho essa.
As amigas dela riram, mas ela revirou os olhos.
— Tô dizendo que você está com uma cara fechada, como se algo
estivesse incomodando você — explicou.
Eu não sei o que ela estava vendo, mas eu não tinha nenhum problema. E
minha cara estava a mesma de sempre.
— Eu tenho prova de recuperação amanhã, deve ser isso — respondi, e
repeti para mim mesmo que era isso.
— Poderíamos sair quando acabar as aulas hoje pra que você relaxe —
sugeriu ela, passando a mão em meu peito.
— Conheço um motel perto daqui — Bento disse, sugerindo.
Houve mais uns risos, e eu fingi não ter ouvido o que ele falou.
— Quem falou em transar, seu idiota? — esbravejou Alice.
— Não dá, desculpa. Eu tenho que estudar hoje ainda — neguei o pedido
dela, atraindo novamente a sua atenção para mim.
— Você vai ficar à tarde aqui de novo?
— Sim, vou estudar por aqui.
— Então vou ficar com você — disse ela, toda feliz.
— Não precisa, Alice. Seria chato para você ficar só me olhando estudar.
E ainda tiraria um pouco da minha concentração.
Ela mudou o semblante, descontente.
— Você está muito diferente ultimamente, hein — apontou.
Eu não sabia o que ela queria dizer comigo “estar diferente”, e não iria
discutir isso com ela na frente dos nossos amigos, ainda mais que era isso
que eles queriam, já que não tinham nada melhor a fazer do que se meter no
nosso relacionamento.
Acabei complicando as coisas mentindo novamente. Poderia ter dito que
iria estudar em casa, já que a minha mãe não permitia que eu levasse
nenhuma garota para meu quarto. Muito menos a minha namorada. Ela tinha
medo de que algo pudesse acontecer se ficássemos sozinhos. Algo que para
ela não deveria rolar ainda.
O que minha mãe não sabia era que desde que comecei a namorar, meu
pai tinha me dado alguns preservativos, só que eu não tinha usado nenhum
ainda. E se preservativo tem validade, os que ele me deu já devem ter
passado do prazo.
Sendo sincero, eu ainda não tive um momento oportuno para usar. Mas se
eu bem conhecia a minha namorada, não ia demorar muito para isso
acontecer.
Assim que acabamos de comer, voltei para a sala para continuar o restante
das aulas. Alice ficou com raiva e não quis nem que eu fosse deixá-la em sua
sala, mas eu não me importei.
No entanto, não consegui mais prestar atenção na aula, principalmente
quando recebi uma mensagem dela dizendo que iria embora antes de tocar o
último sinal, e que, portanto, eu não a veria mais hoje.
Eu sabia qual era o plano dela. Ela queria me fazer sentir mal, para que eu
fosse correndo pedir desculpas a ela, mas dessa vez esse joguinho não iria
funcionar.
Uma hora ou outra ela ficaria bem. Não era a primeira vez que ela ficava
irritada comigo desse jeito. E nem seria a última.
Uma vez ela ficou com raiva de mim porque eu não disse que a amava em
uma mensagem no celular que ela encerrou dizendo o mesmo. No outro dia,
ela quem veio me pedir desculpas, alegando que estava de TPM, e ainda
disse que não ficaria mais chateada por causa disso. Então, era possível que
ela viesse me pedir desculpas no outro dia.
Quando o último sinal tocou, fui falar com o Thales. Novamente ele tinha
se apressado, mas dessa vez eu consegui pará-lo depois de sair da sala.
— Está fugindo da polícia, meliante? — brinquei com ele.
— Não, mas....
— Você quer ir lá pra casa hoje de novo ou prefere outro lugar?
— Desculpa, Caio, mas hoje eu não poderei dar assistência a você. Tenho
que encontrar com a minha mãe agora.
— Ah... sem problemas.
Só que havia muitos problemas, sim. Eu ainda precisava da ajuda dele.
Tinha certeza que ele não tinha que se encontrar com mãe nenhuma. Ele
passou o dia inteiro me evitando, só que achei que fosse algo da minha
cabeça. Naquela hora eu soube que não era. Mas não ia ficar implorando
pela ajuda dele. Não mesmo.
— Tudo que eu ensinei ontem é suficiente pra você tirar os dois pontos.
Faça apenas uma revisão em casa, e vai dar certo — disse ele, e foi embora.
Quer saber? Não seria a Alice nem o Thales que iriam me desmotivar ou
me desconcentrar para a prova. Eu esqueceria esses dois por hoje e estudaria
quando chegasse em casa.
Capítulo 15

Eram exatamente 09h00 da manhã, e eu havia acabado de acordar com o


alarme do celular. Mudei no dia anterior para um som de rock pesado para
que assim eu não corresse o risco de não ouvir.
Não perdi a hora de ir para o colégio, era sábado, embora eu não
costumasse acordar antes das 11h00 no fim de semana. Mas hoje, pulei da
cama porque estava ansioso para ver a minha nota da recuperação de
matemática.
O professor avisou que colocaria as notas no boletim virtual do colégio na
manhã de hoje, então eu quis acordar o quanto antes para ver.
Eu estava bem confiante, mesmo que isso não significasse muita coisa, já
que na outra vez eu também estava, e mesmo assim tirei nota baixa.
Entrei no site pelo celular, mas por algum motivo a página da escola não
estava carregando. Quando eu estava quase desistindo, a tela de login
apareceu e entrei.
Fiquei tão apreensivo que cliquei no lugar errado e fui parar na seção de
expedir documentos, mas não queria expedir nenhum documento.
Quando abri o boletim, corri o olho diretamente para a disciplina de
Matemática, e estava escrito lá: oito e meio. Eu tinha conseguido os dois
pontos da recuperação.
Eu gritei, mas foi de dor, porque o celular caiu bem na minha cara. Mas
não importava, aumentei a minha nota. Eu estava tão feliz que não sabia nem
explicar.
Toc toc toc!
Tinha alguém batendo na porta, e eu tive que me recompor. Desci da cama
e fui atender quem quer que fosse.
— Filho — era a minha mãe. Ela estava com cara de quem já tinha
acordado há muito tempo —, você tá bem?
— Sim, por quê?
— Lá de baixo escutei uns gritos.
— Ah, mãe, não foi nada. Era só para eu despertar.
— Sei. Está bem, então. Desça pra tomar café.
Fechei a porta assim que ela saiu e voltei para a cama. Eu tinha que dividir
com alguém essa minha felicidade. Pensei primeiro em ligar para a Alice,
mas ela devia estar dormindo ainda, e acabaria acordando de mau humor, e
isso me deixaria de mau humor também. Então me veio à mente ligar para o
Thales. Ele que tinha me ajudado, e sem ele eu não teria me recuperado.
Mas, pensando melhor, resolvi mandar apenas uma mensagem. Não tinha
tanta intimidade com ele para fazer uma ligação.
Aproveitando, chamei ele para sair. Queria pagar um sorvete em
agradecimento. Poderia parecer que eu estava exagerando, mas para mim,
isso significava muita coisa.
Desci para tomar café para recuperar minhas energias dos pulos que dei.
Já com um pão na boca, senti meu celular vibrar em cima da mesa. Tinha
chegado uma mensagem. Olhei no visor e vi que era do Thales.
Ele estava me parabenizando e dizendo que aceitava ir tomar um sorvete
no fim da tarde, mas na condição de que ele iria pagar, já que nunca teve a
oportunidade de se redimir quanto ao sorvete que ele derrubou um tempo
atrás. Era algo que eu me recordava bem, então aceitei.
Contei para o Gabriel sobre a minha nota e ele ficou com inveja porque
ele não teve a oportunidade de aumentar a nota também.

***

Marquei de encontrar o Thales na praça próxima à sorveteria. Como


sempre, eu estava esperando pelas pessoas. Ele disse que a Mel viria com
ele, mas não chamei a Alice porque sabia que ela não iria querer vir. E era
melhor evitar um clima estranho.
Quando cheguei, estava perto do fim da tarde e o sol continuava bem
aparente, porém não fazia calor. O clima estava agradável, tanto que vim só
de camiseta regata e bermuda moletom para me sentir mais à vontade.
Ao longe, vi o Thales vindo em minha direção, ajeitando o cabelo que o
vento bagunçava em um ciclo eterno que ele tinha que arrumar novamente.
Ele também estava de regata, mas de time de basquete nas cores amarelo e
roxo. Nela estava escrito LAKERS e o número 24, bem na frente. Só que
diferente de mim, ele estava usando uma calça jeans apertada, marcando
bem suas pernas.
— Parabéns! — disse ele, felicitando-me e sentando na ponta contrária à
minha do banco em que eu estava.
— Valeu, devo isso a você — agradeci, apertando a mão dele —, mas,
cadê a garota?
— Ela teve que furar com a gente. Teve uns probleminhas e tal —
explicou ele.
— Entendo, fica para a próxima então. Alice também não poderia vir —
menti.
— Vamos pra ali? — perguntei, apontando para a sorveteria.
Levantamos e atravessamos pela rua de paralelepípedos até a sorveteria.
Quando chegamos, já estava escurecendo. O sol se pondo, e o céu em tons
de laranja e azul escuro eram um cenário perfeito para quem gosta de tirar
fotos. Mas, definitivamente, eu não era esse tipo de pessoa que gostava de
fotos.
Sentei assim que cheguei, pois estava mal-acostumado em fazer isso
sempre que vinha com o Gabriel. Quando percebi e tentei levantar da
cadeira, Thales me impediu, abaixando-me pelo ombro.
— Pode ficar sentado, eu vou lá pedir pra gente. Você quer qual sabor?
— Hmm… Pistache — respondi, demorando um pouco na resposta, sendo
que eu sempre pedia esse mesmo sabor.
— Eu também gosto desse, vou pedir o mesmo.
Ele não demorou muito e voltou trazendo nas mãos duas tigelas desse
sorvete verde, com muita cobertura de chocolate.
— Será que dessa vez eu consigo tomar todo o sorvete sem que surja uma
bola de basquete do nada e derrame tudo? — falei, enquanto pegava a tigela
da mão dele.
Ele revirou os olhos. Não tinha achado a menor graça.
— Você fala como se eu fosse o tempo todo desastrado. E eu já pedi
desculpas a você.
— Eu sei, eu sei, tô brincando — não queria chatear ele.
— Tudo bem.
Assim que acabei a minha tigela, pedi outra. Dessa vez eu mesmo fui
pegar. E já que ele estava pagando, iria fazer ele ter prejuízo.
— Você vai ter uma dor de barriga com tanto sorvete.
Não sei se ele estava realmente preocupado, ou se não queria me pagar
mais sorvete.
— Falando da prova — disse ele, assim que voltei com a segunda tigela
de sorvete —, eu sabia que você iria se dar bem. Eu vi que você tinha
entendido como se fazia.
— Você explica melhor do que o professor, por isso eu entendi.
— Que nada, ele só tem uma didática diferente da minha. Até porque, eu
aprendi com ele.
Continuamos falando dos assuntos do colégio, até que ficou tarde e era
hora de ir embora.
Chamamos dois carros ao mesmo tempo, um para ele e um para mim, mas
o meu chegou primeiro.
Abri a porta do carro, mas antes de entrar, me despedi dele e o agradeci
novamente. Ainda em êxtase, acabei colocando as duas mãos no seu rosto e
abaixei a cabeça dele para que eu pudesse beijar a sua testa. Foi algo
impensado.
Por alguns segundos, ele pareceu não entender, e ficou me olhando. Mas o
que se sucedeu após isso foi a coisa mais confusa de todo o mundo. Ele
também colocou as mãos em meu rosto, mas ao invés de repetir o que eu
tinha acabado de fazer, o que já seria estranho por si só, ele aproximou seu
rosto do meu e me beijou. Ele me beijou na boca.
Eu não tive uma reação imediata. Fiquei paralisado. Senti meu coração
congelar quando a boca dele ainda estava tocando a minha. A sua respiração
era bem acelerada e os seus dedos ainda em meu rosto pareciam tremer.
Ele abriu os olhos e percebeu que os meus também estavam abertos. Na
verdade, eu nunca os havia fechado.
Não sei quantos segundos durou aquele momento, mas minha única
reação foi a de empurrar ele com tanta força que o fez cair no chão, assim
como ele tinha feito comigo no ginásio.
Ele permaneceu no chão, me olhando com cara de assustado, sem falar
nada. Eu também não disse nada. Eu também estava assustado, e a minha
reação já dizia por si só.
A última coisa que fiz foi entrar no Uber e pedir para o motorista seguir a
rota.
Capítulo 16

Cheguei em casa e subi correndo as escadas para meu quarto. A primeira


coisa que fiz foi ir direto para o banheiro.
Meu estômago estava revirando e eu coloquei todo o sorvete que eu havia
tomado há pouco para fora.
Minha cabeça estava pensando em mil coisas ao mesmo tempo, mas eu
não conseguia me concentrar em nada específico. A imagem do rosto do
Thales, frente a frente com o meu, estava me perturbando. Ainda não
conseguia acreditar no que tinha acontecido.
Eu tinha certeza que não havia provocado aquilo. Tentei relembrar o que
aconteceu, mas não tinha feito nada demais, somente agradeci pelo que ele
me fez. Não pedi por um beijo. Como ele pôde fazer aquilo? O que estava
passando na cabeça dele?
Senti raiva de mim mesmo por ter deixado que isso acontecesse. Eu
poderia tê-lo afastado antes que me beijasse, mas meu corpo não respondeu
tão rápido, permitindo que nossos lábios se tocassem.
Acabei de trair a Alice. Ele traiu a namorada dele. Por que ele tinha que
fazer isso justo comigo?
Conheci ele há tão pouco tempo, mas isso não o impediu de causar uma
tempestade na minha vida.

***

No outro dia, acordei pensando no que havia ocorrido na noite passada.


Não dormi bem, quase não dormi, na verdade. Acabei tendo sonhos ruins.
Sonhei beijando o Thales de novo, mais intensamente dessa vez. Só que
eu não o empurrava, continuava beijando-o, como se fosse algo que eu
quisesse. Era como se existisse apenas nós dois no mundo.
Eu ainda não estava bem com isso. Nem sei se estaria. Ontem ele me ligou
várias vezes, mas não atendi. Não queria ouvir nenhuma palavra da boca
dele. Ele também me mandou dezenas de mensagens, mas não li, apenas o
bloqueei.
Eu estava pensando em como iria olhar para a cara da minha namorada
agora. E até como iria olhar na cara da Mel.
Após um tempo sentado e sonhando acordado na beira da cama, tive que
descer para tomar café, embora eu não estivesse sentindo fome. Só sono, e
raiva.
— Caio? Acordou cedo — minha mãe se espantou ao me ver acordado tão
cedo da manhã, embora eu não soubesse que horas eram.
— Eu não dormi bem — murmurei, sentando em uma cadeira alta na
cozinha.
Ela veio até mim e tocou meu rosto, minha testa e meu pescoço, tentando
sentir minha temperatura, ou algo além disso. Ela pensava que eu estava
doente, com febre, sei lá.
— Está sentindo algo?
— Não, mãe. Eu estou bem. Só não consegui dormir mesmo.
— Aconteceu alguma coisa? — insistiu ela, permanecendo na minha
frente, com ar de preocupada. — Brigou com a namorada? Com um amigo?
— Não, mãe — eu não deveria ter falado nada, ela já vinha supondo mil e
uma coisas. — Eu só não dormi bem mesmo, acho que por causa do calor.
— Mas seu quarto tem ar-condicionado — lembrou ela, embora eu não
tivesse esquecido disso, só não estava com disposição para inventar uma
mentira.
— Mãe, faz um suco para mim — era melhor mudar de assunto e
direcionar para algo que fosse me fazer melhor e que mantivesse ela
ocupada.
Ela foi preparar um suco de laranja, enquanto colocava uns pães na
torradeira. Eu me joguei na mesa, igual fazia na carteira do colégio.
Não estava muito animado para fazer qualquer coisa. Estava tentando
desviar meus pensamentos, mas não adiantava, continuava pensando no
Thales. Continuava me sentindo estranho, sem saber como agiria a partir de
agora. Será que eu conseguiria conviver com isso sem ficar pensando o
tempo todo nisso? Jamais contaria para alguém o que aconteceu, nem para o
meu melhor amigo.
Mas, e se o Thales contasse para alguém? Eu o mataria, com certeza.
O que será que ele estava pensando nesse momento?
Eu não queria saber o que aquele maldito estava pensando. Ele nem
pensou nada antes de me beijar.
— Tome seu café e volte a se deitar, seu rosto está péssimo — nada como
um comentário desses vindo da minha mãe para me fazer sentir melhor.
Eu devia estar péssimo mesmo. Nem tinha lavado o meu rosto depois que
acordei. Minha mãe devia estar se segurando sentindo meu hálito matinal.
Terminei rápido o copo de suco com as torradas e voltei para o quarto.
Fiquei tentando decidir entre tomar um banho ou pular na cama para tentar
dormir. Escolhi a segunda opção. O banho ficaria para depois.
Como não tinha puxado as cortinas das janelas, meu quarto continuava
escuro, o que dava a impressão de que ainda não tinha amanhecido.
Esperava que isso colaborasse para que eu conseguisse voltar a dormir. Na
certa, acordaria só a tarde.

***

— Caio!
Dei conta de que consegui adormecer quando acordei com alguém
chamando pelo meu nome. Abri os olhos lentamente e comecei a ouvir mais
forte minha mãe batendo na porta. Foi quando despertei.
— Oi, mãe! — gritei, em tom de reclamação. — Por que tá me
acordando? Não lembra do que falei de manhã?
— Você já dormiu demais, garoto — ela falou, não muito alto, pois o som
estava sendo cortado pela porta. — E tem um amigo seu aqui.
Tentei ver a hora no celular, mas ele estava desligado desde ontem. Acabei
sendo obrigado a me levantar.
— Tô indo.
Só podia ser o Gabriel. Ele deve ter tentado me ligar para avisar que viria,
mas eu estava incomunicável.
Abri a porta e minha boca aberta de sono se fechou subitamente, quase me
fazendo morder a língua ao ver minha mãe ao lado do Thales.
Não sei como eu estava aparentando para eles, mas meu rosto devia estar
oscilando entre surpreso e indignado, nada próximo a estar feliz ou algo do
tipo.
— Eu já vinha lhe acordar quando o seu amigo tocou a campainha. Ele
disse que você tinha o chamado — contou ela.
Eu não consegui acreditar que ele teve a coragem de vir até a minha casa
mesmo após o que tinha feito. E ainda mentiu para a minha mãe.
Estava me segurando para não o expulsar daqui. Mas minha mãe ainda
permaneceu ao seu lado, então tive que me controlar.
— Ah... foi — confirmei, olhando para o Thales, pensando no que fazer
com ele.
Minha mãe não deve ter percebido o clima de ódio que estava no ar.
Abri mais a porta para que ele pudesse entrar no meu quarto, e minha mãe
também entrou, indo diretamente para as janelas abrir as cortinas.
Coloquei as mãos nos olhos quando toda aquela claridade entrou de uma
só vez. A luz estava forte, o que indicava que estava no meio da tarde.
Respirei fundo tentando me situar. Ainda não sabia se estava sonhando ou
se aquilo realmente estava acontecendo.
— Você está melhor, Caio? — perguntou a minha mãe.
— Sim, mãe.
Thales estava parado perto da Torre Eiffel que ele viu há uns dias, me
olhando. Percebi que eu estava apenas de cueca samba-canção e fiquei
constrangido, além de todos os sentimentos ruins que estava tentando
segurar.
— Vou preparar algumas coisas pra vocês lá embaixo, fiquem aí — ela
saiu, fechando a porta. Deixando nós dois sozinhos no quarto.
Ela realmente não percebeu que eu estava incomodado com a presença do
Thales.
— Você estava doente, Caio?
Ele só podia estar sendo irônico.
Eu parei por um momento, de costas para ele, e fechei meus olhos,
sorrindo involuntariamente.
Ouvi os passos dele vindo até mim e antes que ele se aproximasse o
bastante me virei e o arrastei até a parede com meu braço no pescoço dele.
— O que... você... está... fazendo... aqui? — falei, cuspindo, bem próximo
ao rosto dele, enquanto o apertava com força.
— Eu só vim... — ele tentou falar, enquanto suas mãos em meu braço
forçavam para que eu o soltasse.
Soltei ele quando percebi que seu rosto estava ficando muito vermelho e
suas veias quase explodindo.
Ele desceu pela parede, até ficar sentado no chão, passando as mãos em
seu pescoço e respirando ofegantemente.
Fiquei o observando, enquanto ele me encarava de baixo, tentando se
recuperar.
Vi uma lágrima descendo no seu rosto, e me dei conta de que no ápice da
minha raiva eu quase o esganei.
Comecei a ficar nervoso, me sentindo culpado. Minha adrenalina estava a
mil, meu coração muito acelerado, como se eu tivesse presenciado algo
horrível, mas algo horrível que eu mesmo havia causado.
Corri para levantá-lo, e ele não recusou, apoiando o seu braço em meu
ombro. Levei ele até a minha cama e o deixei sentado.
— Eu só vim... pedir desculpas — disse ele, em meio a soluços de choro.
Eu nunca tinha visto um cara chorando, nem eu jamais havia chorado
daquele jeito.
Corri para trancar a porta na chave para que a minha mãe não pudesse
aparecer de surpresa e ver o que aconteceu.
Peguei uns lenços no banheiro e dei para que ele pudesse se recompor.
— Você não atendeu às minhas ligações, e nem respondeu às minhas
mensagens — continuou ele, passando um lenço no rosto e se acalmando.
— Eu estava com raiva de você — falei, tentando não gritar.
Antes eu estava com raiva, mas agora estava me sentindo culpado. Apesar
de tudo, ele não merecia o modo como o recebi.
Sentei ao lado dele na cama, pois eu precisava sentar também, ou então a
minha cabeça iria explodir de tanta tensão.
— Você acha que também não estou me sentindo mal pelo que fiz ontem à
noite? — perguntou ele, apontando para o próprio peito. Ainda com lágrimas
escorrendo. — Eu errei, eu agi sem pensar, mas eu me arrependi.
Ele se calou, ficou cabisbaixo novamente, olhando para os próprios pés.
Pus a mão em seu ombro e ele voltou a olhar para mim. Foi quando peguei
um lenço na caixinha de lenços e passei em seu rosto. Queria que ele
pudesse se acalmar.
E deu certo, ele continuou me olhando com os olhos brilhantes, mas suas
lágrimas pararam de descer.
Sua feição assustada, com olhar baixo, fez afastar de mim qualquer
sentimento ruim que eu sentia por ele desde ontem, mas eu não podia
esquecer ainda o que aconteceu.
— Eu desculpo o que você fez — comecei, ainda com a mão sobre os
ombros dele —, mas eu não quero mais ser seu amigo.
Senti meu coração ser esmagado ao dizer isso, mas era o certo. Continuar
com ele perto de mim só iria me fazer ficar remoendo aquele beijo.
Mesmo que eu continuasse vendo-o na escola, não ter mais qualquer outro
contato faria com que eu não me sentisse mais culpado. Ele errou, mas eu
também errei.
— Mas... — pedi silêncio, antes que ele continuasse a falar.
— É melhor você voltar pra sua casa agora. Não me ligue de novo. Não
fale comigo quando você me ver na escola. Invente qualquer coisa para a sua
namorada... — ele tentou me interromper, mas eu o impedi novamente. — E
lá embaixo, fale para a minha mãe que você não está se sentindo bem.
Vi mais uma lágrima descer em seu rosto enquanto ele olhava para trás,
abrindo a porta do meu quarto e saindo.
Capítulo 17

Tudo o que eu queria era ter acordado e me dado conta de que os últimos
dias não passaram de um grande pesadelo. Que eu entraria no banheiro,
tomaria um banho, e com o cair da água sob meu corpo as lembranças em
minha mente desceriam pelo ralo assim como qualquer sujeira. Mas, só de
ter aberto os olhos nessa manhã, o choque de realidade tinha vindo com tudo
em mim.
Desejava também poder me olhar no espelho e enxergar a mesma pessoa
de antes, olhar para os outros com os mesmos olhos de sempre, mas seria
algo difícil agora.
Quando beijei uma garota pela primeira vez, eu tinha uns onze anos.
Fiquei tão feliz que saí contando para todo mundo, mas agora foi diferente,
eu não podia contar para ninguém que fui beijado pela primeira vez por um
garoto. Esse teria que ser um segredo.

***

Cheguei na escola e tive a impressão de que estava sendo observado pelas


pessoas. Será que eles sabiam do que tinha acontecido ou eu estava sendo
paranoico?
Queria ser invisível, pois sempre que eu queria fugir de algo, ficar
invisível para mim soava como a melhor opção.
— Ei, Caio — disse alguém, me parando no corredor.
Senti meu coração acelerar, e a vontade era de correr e sumir. Era a
namorada do Thales, e eu não consegui nem fixar o olhar nela. Não sabia
como reagir na sua frente, quando a imagem do namorado dela me beijando
tomava a minha mente outra vez.
— Você tá bem? — perguntou ela, estalando o dedo para que eu me
concentrasse.
— Não... — respondi com a primeira coisa que me veio à mente, dessa
vez já olhando para ela. — Sim, estou... estou bem.
Ela estreitou os olhos e me olhou como se estivesse confusa.
— Ok, eu só vim dar um recado para você. Sei que vamos nos ver mais
tarde no grêmio, mas o Thales me pediu para lhe avisar logo — senti uns
calafrios na espinha só de ouvir o nome dele. — Ele disse que conversou
com o professor de espanhol pra trocar as duplas do trabalho e que você vai
fazer agora com um tal de Lucas.
Parece que o Thales realmente não iria mais falar comigo, como pedi. Eu
ainda não tinha pensado nesse trabalho que faríamos juntos, mas ele se
adiantou em evitar qualquer contato, mesmos os obrigatórios.
— Ele me contou sobre o que aconteceu entre vocês — disse ela.
— O quê? Ele contou o quê? — perguntei, assustado.
— Ele falou que vocês se desentenderam com o trabalho e que preferiram
não fazer mais juntos.
Suspirei em um grande alívio que inundou meu peito, como se eu
estivesse repousando após um dia extremamente exaustivo.
Ele não contou a ela a verdade verdadeira. E eles ainda estavam juntos,
então. Não é algo que eu precisaria me preocupar. Não queria ser o causador
da separação de alguém.
— Mas, enfim, não fiquem com raiva um do outro por besteira, se
reconciliem — pediu ela, olhando diretamente nos meus olhos, e me dando
um toque no ombro. — Eu tenho que ir agora, vejo você mais tarde.
Ela saiu saltitando. Fiquei parado observando-a até que sumisse da minha
vista. Se ela soubesse o que tinha acontecido entre mim e ele, ela não teria
feito esse pedido.
— Por que você tá aqui parado? — senti um forte tapa na minha bunda
quando o Gabriel falou comigo.
Retribui com um cascudo na cabeça dele, enquanto passava a outra mão
em meu traseiro que estava formigando aonde ele havia acertado em cheio.

***

Se antes Alice estava me achando estranho, no intervalo ela teve plena


certeza. Encheu meu saco perguntando o que estava acontecendo comigo, se
eu estava com problemas em casa, se ela tinha feito algo que tinha me
incomodado, qual era o motivo de eu estar evitando-a, e outras mil coisas.
Ela e a minha mãe eram as rainhas das suposições.
Eu não podia contar para ela o que aconteceu ou o que estava
acontecendo, então apenas disse que estava tudo bem, que não havia motivos
para se preocupar. Ela sabia que quando eu não queria falar sobre alguma
coisa, não adiantava insistir, eu não falaria até me sentir bem. Nesse caso,
não sei se me sentiria bem algum dia.
Não consegui prestar atenção nas aulas do dia, e não era porque o Thales
estudava na mesma sala ou sentava em uma cadeira à minha frente, e sim
pelo fato de que ele não tinha vindo para a aula. Eu não queria ter que falar
com ele, mas me preocupava que ele não tivesse dado as caras.
A Mel estava comigo na sala do grêmio, e eu estava me segurando para
não perguntar a ela por ele. Queria saber se estava bem, mas aí ela acabaria
contando para ele depois, e isso seria como se eu tivesse voltado atrás em
tudo que falei ontem, já que foi eu que pedi para ele se afastar de mim.
— Mel — a curiosidade acabou falando mais alto.
Ela se virou para mim em sua cadeira com uma caneta na boca e o celular
na mão, arqueando as sobrancelhas.
A mesa dela ficava bem distante da minha, então resolvi me aproximar,
não havia mais como desistir de falar.
— Por que o Thales não veio hoje? — fui direto ao que eu queria saber.
— Ele passou mal quando acordou, mas já tá tudo bem — contou ela,
olhando de vez em quando para a tela do seu celular. — Os pais dele
acharam melhor que ele tirasse o dia para descansar.
Eu estava achando que ele não tinha vindo por minha causa, para evitar
me ver, mas não foi por causa disso. Apesar de que, mesmo se quisesse, ele
não teria como continuar com isso por muito tempo.
— Espero que ele melhore e possa voltar logo às aulas — desejei,
sinceramente.
— Mande uma mensagem para ele dizendo isso, quem sabe ele não se
sinta melhor.
Ela estava definitivamente, e inconscientemente, disposta a me fazer falar
com ele, mas isso não iria acontecer. Eu não estava mais com raiva dele
como se precisasse fazer as pazes ou algo do tipo, apenas não queria manter
a amizade.
— Ele não precisa, não vai rolar.
Ela se apoiou com as mãos nos braços da cadeira dela e chutou a minha
cadeira bem no meio das minhas pernas, com força o bastante para me
distanciar dela.
— Você é um chato — resmungou ela, dando as costas para mim.
Imediatamente ela se virou de volta, já com um sorriso no rosto, o que me
deixou assustado pela rapidez em sua mudança de humor.
— Volte aqui, preciso tratar de algo com você — disse ela, gesticulando.
— Não vou, não. Você vai me chutar de novo — falei, cruzando meus
braços e dando de ombros.
— Não é isso, temos que falar do campeonato de basquete.
— Ah sim.
Basquete era algo que me trazia a mente, de novo, o Thales, já que ele era
jogador, e foi ele quem me pediu para que fizesse esse campeonato.
Isso só me fez perceber que eu não conseguiria tão fácil me desligar dele.
Havia tantas coisas que nos uniam.
— Eu encontrei com a Fernanda hoje e ela me perguntou quando você vai
disponibilizar as fichas de inscrição para os alunos — Fernanda era a
presidente do grêmio.
— Por que ela não falou diretamente comigo?
— Porque ela não lhe viu desde a semana passada.
— Ah, sim. Eu já preparei as listas. Falta só imprimir pra poder repassar.
— Faça isso o quanto antes — ela empurrou novamente a minha cadeira.
— Agora caia fora.
Planejei entregar no outro dia as fichas nas turmas para que pudéssemos
iniciar, de fato, a organização dos jogos.
Capítulo 18

— Mãe, posso fazer uma pergunta?


— Olha lá o que você vai perguntar, hein, garoto — respondeu ela.
— Deixa pra lá, então.
— Ah, garoto, pergunte logo. Seja lá o que for.
— Então, lá vai. Alguma vez na vida alguém já cometeu algum deslize,
tipo, sei lá... uma amiga sua, que fez a senhora desistir dessa amizade? —
perguntei, sem saber se eu tinha sido claro o suficiente.
Ela estava de costas para mim, lavando uns pratos na pia, enquanto eu
estava comendo umas panquecas para poder ir para o colégio. Ela esperou
tirar toda a espuma de um prato e o pôr no escorredor para poder se virar e
falar comigo.
— Por que você está falando isso? — perguntou ela, se encostando na pia
e enxugando as mãos em um pano de prato florido que estava em seu ombro.
— Mãe, a senhora vai me responder com outra pergunta? — reclamei.
— Desculpa — pediu ela, sacudindo as mãos —, então, olha bem, eu já
vivi muitas situações assim na vida, e já cometi muitos erros também,
porém, eu sempre tive um coração bom demais para deixar que isso pudesse
destruir uma relação, seja ela qual fosse. Eu sempre prezei por resolver meus
problemas da melhor forma, sem guardar mágoas. Você consegue entender?
— Sim — acenei com a cabeça. Eu estava atento ao que ela estava
falando, mas não havia entendido tanto assim.
— Às vezes as pessoas cometem erros por amor — continuou ela —,
ficam cegas a ponto de agir por impulso, e que podem acabar machucando
quem elas amam, mas isso não quer dizer que elas fizeram por mal.
Ouvir isso foi bem certeiro ao que eu estava pensando.
— Ok, mãe, acho que já respondeu ao que eu queria saber, e um pouco
mais — falei, colocando o último pedaço da panqueca na boca e pulando da
cadeira.
— Espera, deixa sua mãe terminar — ela queria prosseguir, e eu tive que
aguentar, já que eu tinha perguntado. — Sabe, Caio, a melhor maneira de
lidar com isso, quando se trata de uma amizade, é perdoar quem cometeu o
erro e não se afastar, isso mostra que você está dando outra chance para a
pessoa se redimir. Não deixe que isso fique lhe perturbando.
Depois dessa eu tive que sair correndo de verdade, porque parecia que ela
sabia tudo que estava acontecendo comigo.

***

Entrei no Uber indo para o colégio ainda pensando no que minha mãe
havia me falado. Ela disse que eu não deixasse que isso ficasse me
perturbando, mas era exatamente o que eu vinha sentindo nos últimos dias.
O primeiro passo eu havia dado, já tinha perdoado o Thales, mas não sei
se meu coração era tão bom quanto o dela, a ponto de voltar a ser amigo
dele.
Quando eu era mais novo, e brigava com meus amigos, principalmente o
Gabriel, passávamos dias sem nos falarmos, mas a amizade sempre gritava
mais alto e no fim a gente voltava ao normal. Mas, dessa vez, eu não tinha
uma amizade tão sólida com o Thales, e não sei se valeria a pena insistir em
algo que mal tinha começado.
Talvez eu não estivesse sentindo tanto se eu tivesse optado por recomeçar
a amizade, deixando de lado o que aconteceu.
Fiquei o caminho todo pensando nele. Sempre trazendo à memória aquele
beijo. Se meu intuito era esquecer, por que eu ficava remoendo isso? Não
fiquei com raiva dele porque foi ele quem me beijou, mas sim porque fez
isso sabendo que eu tinha uma namorada, e ele tinha a Mel.
— Garoto, não é aqui que você vai descer? — o motorista me arrancou
dos meus devaneios quando o carro já estava parado na frente do colégio.
Retirei o dinheiro da carteira e paguei a corrida ao moço, que me olhou
sorrindo pelo espelho retrovisor interno.
Depois de entrar na escola, reconheci, um pouco a minha frente, a mochila
azul e verde nas costas do Gabriel. Ele estava andando lado a lado com o
Eduardo.
Corri até eles e passei a mão bem entre as nádegas do Gabriel. Ele virou,
sem surpresa, tendo certeza quem era e chutou o ar, quase acertando meu
joelho, se eu não tivesse desviado.
— Vocês dois estão tão próximos — brinquei, juntando-me a eles.
— E daí? — Gabriel retrucou, estufando o peito e tentando parecer maior
do que eu.
— Ok, não está mais aqui quem falou — fingi medo.
De repente, senti um peso nas minhas costas que me fez dar um pequeno
impulso para frente. Era a Alice. Percebi quando vi a sua mão com nosso
anel ao colocar os braços em volta do meu pescoço para se segurar.
— Desce, amor — pedi.
Ela desceu tão rápido que quase me levou para trás.
— Bom dia, Caio. Bom dia, meninos — disse ela, ficando ao meu lado e
entrelaçando seus dedos aos meus.
O Gabriel e o Eduardo acenaram para ela em resposta, enquanto dei um
selinho nela.
— Você nem me esperou ali na frente — reclamou ela.
— Você não respondeu minha mensagem se já estava aqui ou não —
justifiquei.
— Eu não vi, desculpa.
Ela soltou a minha mão para conter a saia dela, quando uma brisa forte
passou fazendo-a levantar um pouco.
— Oops — soltou ela.
— Vamos no grêmio comigo pegar uns papéis que deixei lá ontem?
Antes que ela respondesse, eu já estava arrastando-a comigo. Deixei o
Gabriel para trás com o vizinho dele.
— TCHAU PRA VOCÊS TAMBÉM — gritou Gabriel, acenando.

***

Entrei na sala junto com o professor, e ele nem percebeu que eu estava
atrás dele, o que me fez não ser advertido por chegar atrasado.
Agora sim as fichas de inscrição do basquete estavam comigo para passar
nas turmas durante as aulas.
Queria entregar para o Thales preencher a ficha do time dele, mas da
minha carteira vi que ele não estava na sala, de novo.
— Gabriel, você viu o Thales por aí hoje? — sussurrei para que o
professor não ouvisse.
— Não, por quê?
— Preciso que ele assine isso para o time de basquete — respondi,
balançando os papéis na frente dele.
— Aquele cara lá — ele apontou para um menino no outro lado da sala
—, o Bruno, faz parte do time do Thales, pede para ele assinar.
— Ah, sim, eu tinha esquecido — baixei os ombros, descontente.
A verdade era que eu não queria que outra pessoa do time dele assinasse,
eu queria ver ele, saber se ele estava melhor. Ainda mais agora que ele não
tinha vindo para a aula pelo segundo dia consecutivo.
Não era possível que ainda não tivesse se recuperado, ele só tinha passado
mal, até onde eu sabia.
Mandei uma mensagem para a Mel marcando de encontrar ela no fim da
manhã. Ela disse que me esperaria perto do ginásio. A desculpa que inventei
foi que queria tratar de assuntos do grêmio para que ela não pensasse que eu
estava preocupado com o seu namorado, e fosse contar a ele. Porque eu sei
que ela iria fazer isso.

***

Depois de me despedir da Alice, corri ao encontro da Mel. Encontrei ela


sentada perto de uma pequena fonte, enquanto um anjo jogava água pela
boca, segurando uma harpa com as mãos.
— Você demorou demais, eu já ia embora — reclamou ela, com cara de
quem já estava esperando há um tempão.
— Desculpa, tive que esperar a Alice ir embora.
— Eu vi você passando com ela. Fiquei aqui por consideração, mas não
sou obrigada a nada — disse ela, dando de ombros.
— Mais uma vez, desculpa — pedi, juntando as mãos. — Eu quero pedir
um favor a você. Dois, na verdade.
Ela bufou, enquanto seus pés se mexiam impacientemente.
— Peça logo.
— Eu já passei nas turmas da manhã para os rapazes se inscreverem no
campeonato, mas faltam as turmas da tarde, você poderia fazer isso por
mim? Por favor.
— Eu? Por quê? É sua obrigação, não minha! — exclamou ela, apontando
para mim e depois para si.
— Eu sei, eu sei, mas eu preciso sair agora à tarde — expliquei.
— Isso não é da minha conta, Caio.
— Eu vou direto ao ponto, então. A segunda coisa que lhe peço é pra você
me passar o endereço do Thales, quero ir lá na casa dele pra que ele inscreva
o seu time.
Ela curiosamente esboçou um sorrisinho, como se aquilo tivesse chamado
a atenção dela. Mas ainda estava resistindo.
— Não sei se é uma boa ideia, ele ainda não está melhor. Vou perguntar a
ele — ela pegou o celular e eu tentei impedir que ela falasse com ele.
— Não, não avisa a ele. Quero chegar lá sem ele saber. Só faz o que te
pedi, por favor. Passa esses papéis e me dá o endereço da casa dele.
— Se você quer assim, tudo bem.
— Obrigado, obrigado — joguei meu braço para o alto, em comemoração.
Quase que por impulso fiz a mesma coisa que fiz com o Thales, que era
beijar a testa dela em agradecimento. Eu definitivamente tinha que parar
com essa mania.
Tirei da minha mochila as fichas e a entreguei, enquanto ela anotava o
endereço do Thales em um post-it amarelo.
Saí pela portaria do colégio e entrei no Uber que eu tinha acabado de
chamar. Por algum motivo, meu coração estava acelerado. Não sei com que
cara eu chegaria na casa dele, nem o que iria falar quando o visse, mas era o
destino que eu estava indo e não tinha mais como desistir. Desistir era pros
fracos.
Capítulo 19

Meu dedo indicador estava quase tocando o botão da campainha ao lado da


porta de madeira da residência do Thales. Eu estava hesitando se devia
chamar ou não. Fazia mais de cinco minutos que parei na frente da casa, o
que tornaria muito suspeito se eu continuasse parado ali por mais tempo.
Eu não conseguia ver a casa dele propriamente dita, pois havia um muro
de pedras esverdeadas, parecendo lodo, muito alto, na frente. Havia também
um portão grande para saída de carros, com umas flores entalhadas na
madeira, e a porta que eu estava parado na frente.
Se desistisse agora, teria perdido tempo e feito a Mel perder também. Eu
tinha que fazer o que tinha me proposto a fazer, e apertar de vez essa bendita
campainha.
Ding dong! Ding dong!
Apertei duas vezes para ter certeza de que me escutariam. A vontade que
eu tinha era de correr, igual fazia quando criança na casa dos outros.
Passei a mão na testa e senti um pouco de suor, não sabia se era pelo calor
ou pelo nervosismo.
Recuei um pouco quando ouvi passos do outro lado vindo em direção à
porta. Se fosse o Thales, ele iria abrir e depois fecharia na minha cara.
Percebi que a pessoa parou na porta e provavelmente estava me olhando
pelo olho mágico. Entendia que não dava para abrir antes de checar.
A maçaneta virou e a porta se abriu. Vi uma mulher, vestida toda de
branco, aparentando ter a mesma idade da minha mãe, e olhos verdes, como
os do Thales. Ela abriu um sorriso, mais de estranhamento do que de
qualquer outra coisa.
— Olá, posso ajudar em alguma coisa? — perguntou ela.
Hesitei por um momento, pensando no que iria falar para ela. Eu não tinha
me programado para essa parte da história. Deveria ter ensaiado antes para o
caso de não ser o Thales que aparecesse.
— Eu sou o Caio, do Colégio Santa Inês — comecei, cambaleante nas
palavras. Ela olhou para o meu uniforme e pôde conferir pelo símbolo na
camiseta. — Estudo com o Thales, e também faço parte do grêmio... Eu vim
falar com ele... Ele provavelmente avisou que eu viria.
Eu tive que aproveitar da mesma mentira que ele usou com a minha mãe,
para ser mais fácil que essa mulher na minha frente me deixasse entrar.
— Caio, não é? — ela perguntou novamente para confirmar. Afirmei com
a cabeça. — O Thales não me avisou, mas entre.
Ela abriu mais a porta e me deixou entrar. Assim que entrei, pude notar
que havia um espaço bem grande com grama verde na frente da casa, e um
caminho de pedra que levava até a uma escada.
Olhando pela fachada dava para perceber que era uma casa razoavelmente
grande de três pisos, com uma varanda bem aberta na frente, sendo o piso de
baixo para guardar carros. Havia apenas um estacionado.
A mulher me pediu para segui-la por uma escada larga em espiral, quase
tomada por plantas trepadeiras, que dava para o segundo piso.
Para entrar na casa, tinha que passar antes pela varanda. Senti uma brisa
forte assim que subi. De cima dava para ver a avenida e vários carros
passando.
Antes de entrar, tirei meus sapatos e os deixei encostados perto da parede.
— Você quer água, Caio?
— Sim, por favor — não podia negar, estava com muita sede.
Passando pelas salas de estar e jantar, fui seguindo-a até a cozinha. Não
deu tempo de prestar atenção aos detalhes, mas vi alguns quadros na sala que
estavam o Thales, um homem e a mulher que estava comigo, que agora eu
podia ter certeza que era a mãe dele.
— Aqui — ela me deu um copo de vidro com água, e eu fui logo pondo
na boca. Não estava muito gelada. — Sente-se aí.
Sentei em uma cadeira alta, próxima a uma bancada de mármore escura,
bem parecida com a cadeira que tinha na cozinha da minha mãe, enquanto
ela me observava.
— Caio, posso lhe fazer uma pergunta?
— Sim, claro — falei, pondo o copo em cima da bancada.
— Você sabe por que o Thales está assim? — indagou ela, colocando uma
mecha de seu cabelo platinado para trás da orelha.
— Assim como? — perguntei. Eu realmente não sabia como ele estava.
Tinha ido justamente para descobrir isso.
— Já faz dois dias que ele não quer ir para o colégio. Está um pouco
abatido, e chegou uns dias atrás com umas manchas no pescoço — engoli
em seco. — Ele disse que tinha se desentendido com um amigo.
Se eu tivesse dito para ela que esse amigo era eu, provavelmente ela me
chutaria para fora da casa dela, pela varanda mesmo.
Eu estava achando estranha essa história. Pensei que ele tinha passado mal
e por isso não tinha ido para as aulas, assim como a Mel falou.
— Sinceramente, eu não sei, senhora...
— Sara, meu nome é Sara — ela me corrigiu.
— Isso… Sara. Eu não sei o que está acontecendo, e por isso que vim aqui
hoje. Ele é o líder da minha turma e também vai participar de um
campeonato de basquete, por isso vim trazer umas informações para ele.
— Muito bem, então. Eu tenho que sair agora para ir ao supermercado, e
vou demorar um pouco, mas ele está lá em cima — apontou para uma outra
escada no interior da casa —, é só ir lá. Última porta à direita. O Thales está
deitado, eu acho. Falei com ele agora há pouco.
Ela pegou umas chaves de carro em cima da mesa da sala de estar e me
guiou até ao início da escada que levava ao outro piso de cima. Imaginei que
os quartos da casa ficavam todos lá.
Cheguei em cima já cansado de tanto subir escadas. Ainda bem que na
minha casa só tinha uma.
Havia um corredor bem iluminado na minha frente, com uns quadros de
pintura pendurados na parede. Reconheci apenas um quadro, era do Romero
Britto. E só reconheci porque eu havia estudado na disciplina de Artes e
Teatro.
Continuei caminhando, silenciosamente, não de propósito, mas sim
porque eu estava apenas usando meias.
Parei na frente da última porta à direita, pensando se deveria bater ou
apenas abrir?
Toc toc toc!
— Entra, mãe! — ouvi uma voz baixa me mandando entrar. Eu não, a mãe
dele.
Girei a maçaneta e abri devagar a porta. Assim que entrei e a fechei, eu
ainda não conseguia ver o Thales. Via ao fundo apenas uma TV ligada,
colada na parede, e a lateral de um guarda-roupa.
Dei mais uns passos e quando contornei uma parede, vi ele deitado em
uma cama, coberto até ao pescoço por um edredom, cabelos extremamente
bagunçados e com olhos arregalados para mim.
— Você não é a minha mãe! — constatou ele, tentando se esconder ainda
mais no edredom.
— Eu não disse que era ela — falei, rindo, aproximando-me mais da cama
e jogando minha mochila em um tapete no chão.
— O que você tá fazendo aqui, Caio? — perguntou ele, ainda com ar de
assustado.
Ele se levantou e apoiou as suas costas no espelho da cama, revelando seu
peito nu. Esperava sinceramente que ele estivesse usando algo na parte de
baixo que o edredom ainda estava cobrindo.
Aproximei mais da sua cama e sentei em uma das pontas, de frente para
ele, sem mesmo ter pedido a sua permissão.
— Você tem faltado às aulas — falei, pondo minha mão esquerda na cama
para me sustentar. Quase me afundei de tão macia que era.
— Quando você disse que eu não devia mais lhe contatar por ligação, nem
mensagem, queria dizer que eu poderia falar com você pessoalmente?
Ele estava sendo esperto, me fazendo ver que eu mesmo não cumpri o que
falei.
— Você não pode, mas eu poderia — tentei sair por cima.
— Sei — disse ele, coçando o peito, ligeiramente definido — Eu não
estive bem esses dias. Você sabe, né?
— Eu não sei de nada, só soube que você passou mal ontem e não pôde ir.
Só agora pude perceber que o pescoço dele estava com umas manchas um
pouco esverdeadas, como a mãe dele relatou. Ainda eram por causa do que
fiz com ele na minha casa.
— Eu pedi para a Mel falar isso a quem perguntasse, mas eu não passei
mal, eu só estou — ele hesitou um pouco, posicionando-se melhor na
cama… — Só estou envergonhado.
Suas maçãs do rosto coraram. Eu sabia do que ele estava falando. Eu
também me senti assim, mas cara a cara com ele, não sentia mais tanto.
Dentro de mim as coisas pareciam estarem mais resolvidas. Eu só precisava
ver ele, não sabia exatamente porquê, mas precisava.
— Você faltou esses dias porque não queria me ver? — fui direto ao
ponto.
— Claro — assumiu ele. — Mesmo que você já tivesse me desculpado,
perder a sua amizade por algo que eu fiz me deixou pra baixo.
Os olhos dele começaram a brilhar e ele abaixou a cabeça para que eu não
percebesse.
— Vamos esquecer isso — tentei mudar o foco para não ficar muito
emocional esse momento. Eu não queria ver dois caras chorando. — Não
vim aqui pra falar mais disso, nem pra saber porque você não está indo para
a escola — era hora de parecer durão —, vim trazer a ficha de inscrição do
campeonato de basquete para você inscrever seu time.
Ele levantou a cabeça, mas já sem lágrimas nos olhos.
— Por que você não pediu para o Bruno preencher? Ele estuda com a
gente.
— É que — cocei a cabeça. Ele não deixava escapar uma… — Ele
também não foi hoje, daí eu já tinha que estar com todos os nomes, e eu não
conheço os outros membros do seu time.
— Ah, sim — acho que consegui enganá-lo. — Cadê a ficha, então?
Levantei e fui pegar minha mochila. Voltei para a cama e sentei
novamente, dessa vez mais próximo dele.
Quando abri a mochila, percebi que eu havia dado todas as fichas para a
Mel, e não tinha nenhuma comigo. Eu não prestava nem para ser burro.
Como eu poderia ir na casa dele dizendo que tinha ido para que ele assinasse
uma ficha e nem ao menos tinha levado ela?
Fingi mexer dentro da mochila, pedindo inconscientemente por uma
mágica que fizesse aparecer esse bendito papel na minha mão, mas acabei
desistindo.
— Eu esqueci de trazer — assumi, olhando para ele, que começou a rir.
— Você veio aqui realmente fazer isso? — perguntou ele, já desconfiado.
— Claro, por que mais seria?
— De repente... você poderia querer me ver.
Quando ele disse isso percebi que não tinha mais para onde fugir. Era
claro que eu tinha ido ver ele. Só que eu não soube fingir que não era isso.
— Vai assumir que gosta de mim? — perguntou ele, jogando charme.
Recuei quando ele disse isso. Senti mais uma vez meu coração acelerar,
como se eu tivesse sido atingido por um raio na forma de suas palavras. No
entanto, não consegui responder nada.
Ele passou a mão no pescoço machucado e me senti tentado a tocá-lo para
ver se estava bem. Antes que eu me desse conta, joguei a mochila no chão e
fui me aproximando cada vez mais dele, até ao ponto de estar sentindo sua
coxa tocar na minha.
Ele não recuou, ficou me observando com o olhar vidrado em mim.
Pus a mão em seu pescoço e senti a sua pele quente, com veia aparente e
pulsante. Não consegui controlar o meu desejo e aproximei lentamente o
meu rosto do seu pescoço, sentindo com meus lábios quão quente ele estava.
Beijei uma vez, duas vezes, até subir aos poucos até ao seu queixo. Sentia
a sua respiração lenta em minha face e conforme eu trilhava o caminho até a
boca, ele se apressava e sussurrava alguns sons abafados.
Não sei como cheguei até este ponto, mas quando me dei conta eu já
estava envolvido em um beijo com ele, passando a mão em seus cabelos,
pensando que se isso fosse mais um sonho, eu acordasse agora.
Antes de dar continuidade ao que estávamos fazendo, retirei do dedo o
meu anel de compromisso e o deixei perto de um abajur em cima da mesa de
cabeceira ao lado da cama do Thales, como se isso fosse me tornar menos
culpado.
Nunca pensei que um dia estaria, propositalmente, tão próximo de um
outro garoto na minha vida. Pele com pele. Trocando fluidos, trocando
saliva. Estávamos muito envolvidos um no outro.
Eu sentia meu corpo se aquecer mais e mais, quase entrando em êxtase,
toda vez que ele me tocava, e principalmente quando começou a passar suas
mãos por baixo de minha camiseta, percorrendo meu peito e meu abdômen.
Não sei quanto tempo se passou enquanto estávamos colados na cama,
mas foi rápido o bastante para chamarmos o que fizemos de “rapidinha”.
Especialmente que a mãe dele poderia chegar a qualquer momento.
Dei um último beijo nele e falei:
— Eu preciso tomar um banho... e de uma cueca nova, se possível.
Saltei da cama e recolhi minhas peças de roupa no chão. Tentei me cobrir
com elas, pois eu estava me sentindo totalmente pelado mesmo usando uma
cueca e meias.
— O banheiro está ali — disse ele, apontando para uma porta à minha
esquerda. — Tem toalhas secas lá. Levo sua cueca depois.
— Não, me dá agora, por favor.
Não queria que ele tivesse que entrar no banheiro e ainda me ver pelado,
mesmo que isso já não fizesse mais tanto sentido.
Ele se levantou da cama, ao passo que observei seu corpo magro, porém
de músculos bem definidos, vestindo apenas uma boxer, indo em direção ao
guarda-roupa.
Ele retirou uma cueca com listras coloridas de uma gaveta e a jogou para
mim. Peguei ela no ar.
— Não se preocupe, eu nunca usei essa — avisou ele —, e não precisa me
devolver.
Não falei nada e apenas saí em direção ao banheiro. Eu não iria mesmo
devolver para ele uma cueca que eu iria usar. E ainda bem que ele me deu
uma nova.
Quando me virei para fechar a porta do banheiro, vi que ele me observava,
então tranquei rapidamente.
Não demorou muito para que eu deixasse o banheiro secando meu cabelo
com uma toalha e já com meu uniforme de volta ao corpo.
O Thales estava bem na porta com uma toalha branca em seus ombros.
Poupei em não olhar para a sua parte de baixo, porque ele não estava usando
mais nada.
— Espere eu tomar um banho também.
Confirmei com a cabeça e passei ao lado dele, indo na direção da sua
cama para me sentar. Ele já tinha organizado tudo e até trocado os lençóis e
o edredom.
Após todo aquele momento de êxtase ter passado, eu estava agora me
sentindo sujo, não fisicamente, havia acabado de tomar banho, mas era algo
dentro de mim.
Além do cansaço no corpo, esgotado pelo que tínhamos acabado de fazer,
um sentimento de culpa corria pelas minhas entranhas.
Eu não estava me reconhecendo, e não podia continuar com isso. Tinha
que sair dali.
Levantei da cama, peguei minha mochila, e quando estava com a mão na
maçaneta da porta do quarto para poder ir embora, o Thales abriu a porta do
banheiro e saiu apenas de toalha.
— Você tá indo pra onde? — perguntou ele, parado e com a testa franzida.
Permaneci parado com a mão na maçaneta, sem responder nada, enquanto
ele vinha em minha direção, segurando a toalha para não deixar cair.
— Você não ia me esperar?
Ele colocou a mão em meu ombro e eu o afastei, não querendo mais sentir
o toque dele.
— Você não sente nenhum pouco de culpa pelo que fizemos? —
perguntei.
— Caio, não pense assim — disse ele, tentando mais uma vez colocar a
mão em meu ombro, mas eu o impedi.
— Você não sente pena da Mel? Ela é sua namorada — eu estava ficando
com raiva da frieza dele.
— Venha cá.
Ele pegou pela minha mão e me arrastou de volta até a sua cama. Deixei
minha mochila pelo caminho.
— Eu vou lhe falar uma coisa agora, que talvez para você não tire tanto o
peso da sua consciência, mas que eu preciso deixar esclarecido — ele estava
segurando a minha mão com as duas mãos, enquanto sentamos na cama. —
A Mel não é minha namorada.
— Como assim? — perguntei, estupefato.
— A Mel não é minha namorada — repetiu ele. — Somos apenas amigos.
— Mas... — olhei para baixo, tentando entender. — Vocês estão sempre
juntos, andam de mãos dadas, como...
Ele pôs o dedo em meu lábio para que eu parasse de falar.
— Isso não quer dizer que somos namorados.
— E por que você não me falou isso antes? — cobrei.
— Eu tentei uma vez, mas você não me deixou falar.
Eu não lembrava de quando isso tinha acontecido, mesmo assim saber
disso não me isentava de culpa. Melhorava a situação dele, mas não a minha.
— Há uma explicação para eu e ela passarmos a imagem de namorados,
propositalmente, e isso tem a ver com a causa de termos sido transferidos
para o seu colégio, mas eu não posso dar mais detalhes sobre isso agora.
— Por que não?
— Preciso que a Mel esteja comigo quando eu tiver que contar isso. Ok?
Não falamos mais sobre isso, e eu tentei não o culpar pelo que aconteceu.
Logo após ele se vestir, me levou até ao portão da sua casa e nos
despedimos. A mãe dele ainda não havia retornado do supermercado, mesmo
assim achei melhor ir embora, pois precisava tentar absorver tudo o que
rolou. Sozinho.
Capítulo 20

Cheguei em casa e quando olhei para a minha mão, dei conta de que estava
faltando alguma coisa. Meu anel. Eu tinha perdido o meu anel de
compromisso. Fiquei desesperado, porque a Alice me mataria.
Revirei meus bolsos, a minha mochila, jogando tudo no chão, mas não o
encontrei. Procurei nas frestas do piso de madeira, mas nada.
Meu celular começou a tocar no chão do meu quarto, porque eu o tinha
derrubado enquanto procurava o bendito anel. Não reconheci o número
exibido na tela, então deixei tocar. Estava preocupado com algo mais
importante. Eu só podia ter perdido na escola.
O celular tocou de novo, então decidi apanhá-lo do chão e atender.
— Alô?
— Caio, é o Thales. Você já chegou em casa?
— Sim. Qual o problema?
— Por acaso um anel, com o nome Alice gravado, é seu?
— Sim, sim — abri um sorriso de orelha a orelha. — Eu estava louco
procurando agora.
— Você esqueceu aqui.
Levei minhas mãos aos céus em agradecimento. Minha pele estava salva.
Esqueci totalmente que tinha deixado na casa do Thales antes de… de
nada. E novamente fui tomado por um sentimento de culpa que parecia me
agarrar pelo pescoço, quase me sufocando.
— Cara, eu tava procurando por todo lugar aqui, não lembrava que tinha
deixado aí. Se eu tivesse lembrado no meio do caminho eu teria voltado para
pegar.
Não, eu não teria voltado, para evitar que pudesse acontecer mais alguma
coisa. Já não tinha mais certeza se eu conseguia agir com a razão ao invés do
coração.
— Você esqueceu outra coisa também, lembra? — fiquei matutando sobre
o que mais eu teria esquecido. — A sua cueca usada no meu banheiro.
— Isso é algo que eu não quero que você me devolva, pode jogar no lixo.
Mas, não esqueça de levar o anel amanhã para a escola, por favor. Vamos
nos encontrar antes de eu ver a minha… a Alice.
— Como quiser — ele tossiu do outro lado da linha —, e salve meu
número novamente, percebi que você não sabia quem era.
— Certo — desliguei. E não salvei.
Aquela cueca era uma das minhas favoritas, mas não podia correr o risco
de que ele me devolvesse na escola e alguém pudesse ver, muito menos
queria ter que ir na casa dele pegar, e nem que ele viesse até a minha.
Estava exausto e acabei deixando a bagunça que fiz pelo quarto para
arrumar depois, a vontade era só de deitar e dormir até tirar esse sentimento
estranho que me perturbava. Se possível, dormir até o dia seguinte.

***

Acabei de pegar um café com leite e um croissant com um atendente do


McDonald's, e estava levando até uma mesa próxima da entrada do
estabelecimento. Era mais visível para o lado de fora.
Gostava de observar as pessoas passando, mas o motivo agora era que eu
queria que o Thales me visse assim que chegasse. Pedi para que ele viesse
me encontrar aqui antes de entrar no colégio, que ficava a uns cem metros de
onde o restaurante ficava.
Pensei em esperá-lo no portão, mas como eu correria o risco de ver a
Alice chegar mais cedo, preferi aqui mesmo. E também, porque eu não tinha
comido nada antes de sair. Era unir o útil ao agradável.
O Thales me enviou uma mensagem dizendo que estava a caminho e
chegaria em cinco minutos, mas tinham se passado dez minutos desde então.
Era melhor ele ter assumido que ainda estava longe, assim eu não ficaria
com tantas expectativas.
Eita! Vi o Gabriel passando com o Eduardo e virei para que eles não me
vissem. Porém a tentativa foi mais que falha. Um sino na porta soou quando
eles a abriram e vieram em minha direção.
Eu deveria ter pensado que sentando em um lugar tão visível, com tantas
pessoas passando de uniforme azul e branco, poderiam passar também
conhecidos meus.
— Tá fazendo o que aqui? — perguntou ele, prostrado na minha frente, ao
lado do outro.
Mostrei a ele o que estava em cima da minha mesa e respondi:
— O que você acha?
— Ah — ele meteu a mão em meu último pedaço de croissant, o pondo
na boca de uma só vez. E não era um pedaço pequeno.
— Eu ainda queria, sabia? — reclamei. — Você não acha estranho andar
de mãos dadas com ele?
Ele soltou rapidamente a mão do Eduardo e o empurrou para que sentasse
em uma cadeira na minha frente.
— Não, não, não — agitei as minhas mãos para que eles não sentassem,
mas era tarde, os dois já estavam sentados.
— Você não tá feliz em me ver? — perguntou o Gabriel, cuspindo
pedaços do meu café da manhã.
— Não... sim, estou. Eu só não estava esperando por você.
— E está esperando por quem?
— Eu só não esperava encontrar vocês aqui, eu quis dizer isso — passei
as mãos no meu short, pois estavam suando de uma forma anormal.
A porta se abriu novamente e dessa vez era o Thales vindo. A sua testa
enrugada me dizia que ele estava confuso, pois eu tinha falado a ele por
mensagem que estaria aqui sozinho. Até tentei gesticular para ele voltar, mas
ele não entendeu.
O Gabriel o viu e logo virou para mim mostrando um meio sorriso. Ele
com certeza ligou todos os pontos e percebeu que eu estava esperando pelo
Thales.
— E aí, líder — disse ele, cumprimentando o Thales, chacoalhando as
mãos exageradamente.
— E aí — respondeu o Thales, arqueando as sobrancelhas, por
nervosismo ou porque ele gostava de fazer isso mesmo.
Cumprimentei-o também e ele se sentou ao meu lado, mas ainda tive que
me afastar para que ele coubesse no banco.
— Vocês dois marcaram de se encontrar aqui? — meu rosto deve ter se
contorcido com essa pergunta do Gabriel, ele não perdia uma oportunidade
para ser metido e curioso.
— Não/Sim — dissemos juntos, eu e o Thales.
Coloquei a mão na perna dele por baixo da mesa para que ele me deixasse
falar.
— Sim, eu pedi que ele viesse até aqui pra falarmos do campeonato de
basquete.
— E você não poderia falar com ele no colégio? — Gabriel insistiu.
Eu estava a ponto de bater nesse bastardo do Gabriel se ele não se calasse.
— Ah, vá se... não é da sua conta — respondi.
Ele puxou o Eduardo pelo braço, quase derrubando as cadeiras e
levantaram-se os dois.
— A gente já tá de saída. Falar de basquete não é minha praia — disse ele,
indo embora sem nem esperar uma resposta minha.
O Thales levantou e se sentou na cadeira logo à minha frente, onde o
Gabriel estava antes.
Ele jogou a mochila em cima da mesa e começou a procurar alguma coisa
no bolso da frente, provavelmente meu anel.
— Acho que seu amigo ficou chateado — comentou ele, sem olhar para
mim.
— Ele é muito curioso, e quer sempre me deixar sem graça na frente dos
outros. Não liga pra isso.
Ele achou o anel e colocou no dedo dele.
— Olha — disse ele, me mostrando a sua mão com o anel.
— Por que você pôs no dedo, cacete? — reclamei, pegando a mão dele
para tirar o anel, puxando sem sucesso em um vai e vem no dedo dele.
— Cuidado — pediu ele.
Acabou que ele mesmo tirou o anel do dedo e passou para mim, que
imediatamente pus de volta no meu.
— Vamos — falei, pegando minha mochila e me levantando.
Ele me agarrou pelo pulso, bem em cima do meu relógio, e algumas
pessoas ficaram olhando. Fiz um movimento brusco para que ele soltasse.
— Espera, tenho que falar uma coisa.
— Fale enquanto a gente anda — tomei a frente e fui saindo do
McDonald's. Ele veio logo atrás.
Claramente ele não sabia ser discreto. E como se não bastasse meus
amigos que tentavam me envergonhar sempre que estávamos em lugares
públicos, o Thales também não colaborava. Ainda mais que depois de tudo
que aconteceu, mais uma vez fiquei com a impressão paranoica de que o
mundo todo sabia.
Eu andava a passos largos na direção do colégio, mas ele me alcançou
rápido.
— Eu falei com a Mel, e amanhã quando vocês estiverem no grêmio eu
irei lá pra contarmos a você sobre aquilo que eu disse ontem, ok? —
informou ele, caminhando ao meu lado.
Não falei nada, só confirmei com a cabeça. Eu não estava muito
confortável com ele ao meu lado.
Quando me aproximei do portão do colégio, vi Alice parada, encostada no
muro, olhando para lugar nenhum. Por que ela ainda não tinha entrado?
— Oi — falei, parando na frente dela e beijando-a —, você tava me
esperando, amor?
— Claro, quem mais poderia ser? — respondeu ela, não tão contente,
dando uma olhada rápida para o lado. O Thales estava parado ao meu lado.
Eu estava em uma das situações mais desconfortáveis da minha vida.
Minha namorada na frente do cara que eu tinha traído ela. E nada que eu
pensasse faria parecer que isso era normal.
Era impressão minha ou o tempo tinha ficado mais quente de repente?
— Quando eu ia chegando encontrei o Gabriel com aquele outro garoto lá
— continuou ela, pondo os braços em meus ombros, enquanto eu coloquei as
mãos em sua cintura —, aí ele me parou e disse que você estava com o líder
da sua turma lá no Mc, daí resolvi esperar você aqui. Preguiça de ir até lá.
Aquele maldito só podia estar querendo me ferrar, ela nem tinha
perguntado por mim. Ele deveria ter ficado calado.
Ela retirou os braços de cima de mim e me puxou para entrar no colégio, o
sinal estava perto de tocar.
Minha mente estava tentando esquecer que o Thales ainda se encontrava
ao meu lado, mas entramos os três no colégio. Acabei ficando no meio deles,
segurando a mão da minha namorada, que eu tanto amava, e o Thales estava
do meu outro lado, sendo o cara pelo qual eu estava me apaixonando.
Capítulo 21

Os dias foram se passando e eu não estava falando tanto com o Thales. Até o
vi algumas vezes, mas sempre tentava evitá-lo, e ele também não parecia
fazer nenhum esforço para me ver. Pelo menos era o que eu estava
percebendo.
Eu tinha acabado de colar pelos corredores do colégio uma lista com os
times de basquete que iriam participar do campeonato. Dentre eles, sairia o
time que iria representar a escola em competições externas, então era
importante se destacar.
Não preciso nem dizer que estava torcendo pelo time do Thales, mas eu
não queria me envolver muito nisso, então não podia sair falando isso para
ninguém.
Voltei logo para a sala do grêmio, onde teria que passar a tarde com a Mel.
Aliás, ela ainda não tinha chegado.
Estava tentando desviar meu foco para outras coisas, mas minha mente
estava pensando no que o Thales iria me contar quando aparecesse. Ao
mesmo tempo que eu não queria que ele aparecesse para me contar coisa
alguma.
Uma parte da história eu já sabia. Ele e a Mel não eram um casal de
verdade, mas eu sentia que havia muito mais por trás disso.
A porta se abriu e a Mel entrou com o Thales, e já que eles estavam aqui,
talvez esse fosse o melhor momento para conversarmos.
— Põe a plaquinha aí — falei para a Mel, apontando para um papel que eu
havia imprimido, em cima da mesa.
Em dias de reunião dos integrantes do grêmio, sempre colocávamos na
porta um aviso de que estaríamos fechados por no máximo uma hora,
embora dessa vez não fosse haver uma reunião do grêmio. Mas ninguém
precisava saber.
— Oi — dei a mão para o Thales e pedi para que ele sentasse em uma
cadeira na minha frente. Ele abriu um meio sorriso, mesmo não aparentando
estar tão contente.
A Mel puxou uma outra cadeira para sentar e também se posicionou na
minha frente.
— O negócio aqui vai ser tenso — disse ela.
Eu já estava me sentindo incomodado e impaciente mesmo sem a
conversa ter começado, e ela ainda colocou mais pilha.
Ficamos calados por uns segundos, sem ninguém falar nada um com o
outro, apenas trocando olhares. Era o momento em que ninguém sabia por
onde começar.
— Caio — Thales deu a partida, inclinando-se mais para a frente na
cadeira —, vou falar novamente, dessa vez na frente da Mel — ele
posicionou a mão no joelho dela —, eu e ela não somos namorados, nós
somos melhores amigos, apenas.
Ela confirmou para mim com a cabeça, pousando a mão em cima da mão
dele.
— Ok, disso já sei — se eles eram melhores amigos, então eles deviam
contar tudo um para o outro, logo... — Ela sabe de tudo que aconteceu entre
a gente?
A resposta que ele me deu não me relaxou, pois ele disse que sim com a
cabeça.
— Não se preocupe quanto a isso — ela fez um gesto de zíper fechando
na sua boca —, mas, acrescentando ao que ele estava falando, nós já
namoramos uma vez — contou ela. Então, eu não estava tão errado no que
pensava então. Era por isso que eles se comportavam como tal, ou pelo
menos um dos motivos para isso —, mas acabou que não durou mais do que
um mês esse relacionamento. E antes disso, nós já éramos melhores amigos.
E após isso, ainda continuamos sendo melhores amigos. Dessa vez mais
como uma aliada.
— Caio, eu vou ser bem direto em um ponto, eu sou gay — Thales
revelou. Ele fechou os olhos por uns segundos, e depois continuou —, mas o
modo como as pessoas vieram a saber disso foi a pior experiência da minha
vida.
Ele não conseguiu se conter por muito tempo e começou a chorar,
enquanto a Mel o acolhia em seus braços. Eu fiquei sem reação, me sentindo
mal. Só de tentar imaginar o que poderia ter acontecido com ele, meu
coração se apertava.
Eu não fiquei surpreso, nem chocado, em saber que ele era gay, embora eu
nunca tivesse pensado que ele poderia ser gay. Não antes de ele ter me
beijado a primeira vez, claro.
Eu ainda não havia me questionado quanto a isso também. Nenhuma vez
antes de ficar com ele eu cheguei a pensar em ter algo com algum outro cara,
fosse um amigo ou desconhecido, nunca tinha sentido esse tipo de atração.
— Se não quiser falar mais, não tem problema — falei, me inclinando e
pondo a mão em suas costas.
— Não, eu vou contar o resto. Eu não me incomodo em falar, apenas me
dói um pouco lembrar — insistiu ele, enxugando as lágrimas em seus olhos.
— Quando eu comecei a namorar com a Mel, e eu nunca tinha namorado
ninguém antes, eu pude perceber algo que já passava pela minha mente, que
era o fato de eu não gostar de garotas. Eu sentia que eu estava me
descobrindo com aquela experiência, mas eu não queria contar a ela para não
a desapontar. Foi um dos meus grandes erros.
Ele olhou para ela como se estivesse pedindo permissão para continuar a
falar, algo que eu já tinha visto eles fazendo uma vez.
— A verdade é que eu traí ela com um outro garoto da minha antiga
escola. Ele era gay assumido, mas eu não era — continuou ele, em tom de
desabafo —, e, por um descuido meu e desse garoto, a escola inteira ficou
sabendo.
— E eu fui uma das últimas pessoas a saber, inclusive — a Mel tentou
forçar um sorriso, mas ainda não parecia fácil para ela ouvir aquilo.
— Eu virei chacota da escola, sabe? Todos me olhavam torto, como se eu
fosse alguém anormal, e eu estava me sentindo mais mal por ter feito isso
com a Mel, ela também estava sofrendo — mais lágrimas escorriam pelo seu
rosto de olhos avermelhados. — Daí nós terminamos, claro, mas ela me
perdoou. E ao invés de se afastar de mim, ela continuou ao meu lado, porque
ela é minha melhor amiga.
— E por isso vocês se mudaram para outra escola? — perguntei.
— Sim — respondeu ela —, foi ideia minha, na verdade. Não dava mais
pra continuar na mesma escola. Daí eu fiz um trato com ele, de que nesta
nova escola nós nos trataríamos como namorados, pelo menos até irmos para
a universidade, para que ele não viesse a sofrer como sofreu lá.
Eu nunca conseguiria entender o que ele passou para chegar até aquele
momento e ter tido coragem de se abrir para mim, mas eu via neles quão
forte podia ser uma amizade.
Fiquei admirado que apesar de ter sido traída, a Mel não saiu do lado dele,
e ainda permanecia até agora. Não sei se meus amigos continuariam sendo
meus amigos se eu dissesse a eles que gostava de garotos.
— Eu nem sei o que falar diante de tudo isso, eu não esperava ouvir essas
coisas.
— Não precisa falar nada, Caio — disse o Thales, colocando a mão em
meu ombro —, eu só achei que você tinha o direito de saber. Eu percebi que
você estava ficando muito confuso, e eu queria deixar a minha parte
esclarecida. Não estou querendo lhe forçar a nada, eu tenho minha parcela de
culpa no que aconteceu entre nós dois, mas o resto agora é com você.
— Eu preciso de um tempo pra pensar — falei.
— Tome o tempo que precisar.
Passei a mão no rosto dele para enxugar as últimas lágrimas que haviam
escorrido, e não pude deixar de notar quão bonito ele era. Seus olhos
brilhantes como esmeralda, seus lábios rosados não muito grandes, tudo era
simétrico em seu rosto de pele macia.
Tinha esquecido totalmente da presença da Mel quando notei que ela
estava nos olhando, sorrindo. Dessa vez um sorriso de verdade. Retirei
minha mão rapidamente do rosto dele e tentei disfarçar.
— Realmente, você precisa resolver isso logo, Caio. E você sabe de quem
eu estou falando — foi o que ela disse, lembrando da bomba que estava em
minhas mãos.

***

Nesse mesmo dia, à noite, tentei todas as posições na cama, mas não
conseguia dormir. A madrugada chegara, trazendo com ela um silêncio
quase total no meu bairro, se não fosse pela minha respiração um tanto
desregulada.
Tudo que eu tinha ouvido na conversa com o Thales e a Mel me deixou
com medo. Medo de que pudesse acontecer comigo o que aconteceu com o
Thales.
Talvez eu estivesse sendo egoísta, mas não podia continuar envolvido
nisso. Não dava mais para brincar com a sorte. E do mesmo jeito que o
Thales havia cometido um deslize, eu também poderia cometer. Eu não
suportaria ter a minha vida exposta dessa maneira, e tinha certeza que ele
também não. Novamente. Tentei pensar tanto em mim, quanto nele.
Capítulo 22

Os jogos de basquete estavam prestes a começar, prometendo ser de dias


intensos. As últimas semanas tinham sido bastante ocupadas para nós do
grêmio.
Além da organização desse campeonato, ainda tínhamos que lidar com
alguns outros eventos e palestras que outros membros haviam se proposto a
organizar, sem contar nossas provas de fim de semestre.
Eu não tinha tempo para mais nada, estava esgotado. A próxima semana
seria de recesso escolar. Pelo menos um pequeno descanso antes da segunda
parte do ano letivo.
— Olhem o que eu acabei de trazer!
Enzo, o nosso Secretário Geral despejou no chão do grêmio duas sacolas
com várias camisetas que tínhamos mandado confeccionar especialmente
para usarmos nos jogos de basquete.
Eram bem no estilo das que os jogadores usariam, nas cores do colégio,
azul e branco, porém não eram regatas, já que a direção da escola se opôs.
— Por que você jogou no chão, seu louco? — gritou a presidente.
— Eu não vou sair dando na mão de cada um, venham pegar — ele deu de
ombros.
Acabamos de ter uma reunião, então hoje era um dos raros dias que estava
todo mundo aqui, o que era bom que não acontecesse com frequência,
porque qualquer mínimo problema gerava uma discussão de grandes
proporções.
Ajoelhei no chão e comecei a procurar entre os pacotes qual era a minha
camiseta. Todas elas tinham o nome de um de nós.
A Mel também estava procurando pela sua ao meu lado. Eu estava
distante dela há algum tempo, por causa das ocupações de cada um, e só
trocávamos ideias sobre assuntos relacionados ao grêmio.
Aos poucos eu trazia minha vida ao normal. Eu havia pedido um tempo ao
Thales e ele entendeu. Nosso contato vinha sendo apenas em sala de aula,
nada mais. Estava sendo melhor assim, para nós dois.
Quando achei a minha camiseta, tirei ela da sacola para conferir, e estava
tudo certo.
— Você não vai provar? — Mel perguntou quando eu estava dobrando-a
para jogar de volta na sacola.
— Eu deveria?
— Acho que sim.
— Volto já — falei e saí da sala por um instante para não ter que provar
ali mesmo.
Os corredores do colégio estavam bem vazios, pois os alunos da tarde
estavam todos em aula. Apenas uma freira vinha em minha direção e eu
tinha certeza que ela me pararia.
— Por que você não está em aula, rapaz? — eu também sabia que ela
perguntaria isso.
— Eu sou do grêmio — falei, tentando ir embora, mas ela segurou meu
braço.
— Isso não lhe dá carta branca. O que você está fazendo pelos corredores?
— Eu estava indo no banheiro. Posso?
— Não me trate com ironias, garoto. E não fique andando por aí — disse
ela e saiu.
Saí correndo para o caso de não esbarrar em outra freira por aí.
Se tivesse um banheiro próximo do grêmio seria ótimo, e eu não
precisaria me distanciar tanto. Era algo que eu iria reivindicar para a
administração do colégio.
Acabei entrando no primeiro que encontrei, e o destino parecia gostar de
brincar comigo. Dei de cara com o Thales, trocando de roupa.
— O que você tá fazendo aqui? — perguntei.
Ele não se assustou ao me ver, mas se apressou em vestir uma camiseta
branca. Ele tinha acabado de tirar a do time de basquete.
— Não há nada que eu já não tenha visto aí — falei, brincando com a
aparente timidez dele em mostrar o seu corpo para mim.
Ele riu e guardou a camiseta suada dele dentro da mochila em cima da
bancada do banheiro.
— Eu tava treinando com os rapazes. Foi nosso último treino para os
jogos de amanhã. Isso aí é o quê? — perguntou ele, apontando para a sacola
que eu segurava na mão.
— Ah, é a camiseta que o grêmio vai usar durante os jogos, não é bonita?
— chacoalhei na frente dele.
— Você vai provar?
— Sim, eu vim aqui pra isso.
Dei a camiseta para ele segurar e comecei a tirar a do uniforme da escola.
Dessa vez ele não se poupou em ficar me olhando.
Peguei de volta a roupa da mão dele e comecei a vesti-la. Quando eu a
passei por todo o meu corpo, o Thales se materializou frente a frente
comigo, poucos centímetros separando o meu rosto do dele.
— O que é isso? — perguntei, sem me afastar.
Meu coração se acelerou vendo o rosado da sua boca. Era como se os seus
lábios estivessem clamando por mim.
Ele não respondeu nada, apenas me deu um beijo rápido e estalado e se
afastou.
— Eu sinto sua falta.
Dito isso, ele pegou a sua mochila e saiu do banheiro sem olhar para trás.
Virei para o espelho e me vi com os dedos nos lábios, tocando o que ele
tinha acabado de tocar com a sua boca e simplesmente ter me abandonado
aqui.
Ele não sabia, mas eu também sentia falta dele. Ele não imaginava como
eu me sentia toda vez que o via. Eu queria falar com ele, queria tocá-lo,
sentir o seu cheiro, o seu beijo, o seu corpo sobre o meu, mas eu não podia
fazer isso.
Saí de lá e voltei para a sala do grêmio correndo, ainda com medo das
freiras.
— Você não gostou? — Mel veio me perguntar quando sentei na minha
cadeira.
Eu estava olhando para o chão, e depois para os pés dela quando se
aproximou, mas não ergui a cabeça.
— Ei — ela pegou pelo meu queixo e me forçou a olhá-la —, você não
gostou?
— Sim, gostei, ficou boa — respondi, esticando a camisa.
— E por que você tá assim?
— Assim? — franzi o cenho.
— Não parece que está bem. Você chegou, sentou e não falou com
ninguém — observou ela. — Foi o Thales?
— Quê? — virei a minha cadeira, ficando de costas para ela. — Ele lhe
falou alguma coisa?
— Não, mas eu vi pela porta quando ele passou apressado agora há pouco,
achei que vocês tivessem se cruzado.
— Foi mais do que isso.
Apoiei os cotovelos na mesa e envolvi meu rosto em minhas mãos.
— Ei, Caio — ela pôs a mão em meu ombro, apertando um pouco —, está
tudo bem, não precisa ficar assim.
Eu não estava chorando nem nada, só estava me sentindo cansado de tudo
isso, de ficar guardando tudo dentro de mim, tentando enganar a mim
mesmo que não estava gostando dele, mas eu estava gostando para valer.
Ela se agachou ao meu lado e retirou as mãos do meu rosto. Ela me olhava
como se dissesse que ficaria tudo bem.
— Como você fez pra deixar de gostar dele? — perguntei a ela, baixinho
para que ninguém escutasse, embora não fossem ouvir nem se eu quisesse,
pois as mútuas conversas na sala passavam por cima da minha voz.
— Caio, não é assim — ela se aproximou mais de mim. — O meu caso é
diferente do seu. Eu não deixei de gostar do Thales, eu só transformei meu
amor por ele em um outro significado. Na verdade, eu voltei a amá-lo como
era antes do nosso namoro.
— Mas eu não posso continuar gostando dele, eu...
Não percebi que alguém tinha se aproximado até sentir uma cutucada em
meu ombro. Olhei e era o Raul, Diretor Social do grêmio, batendo os dentes
e apontando para a entrada do grêmio.
Quando virei, vi a Alice prostrada na porta, visivelmente chateada. Olhei
para a Mel e percebi que eu estava muito próximo dela, e além disso, ela
estava com uma mão em cima do meu braço.
Saltei da cadeira e fui em direção a Alice. Ela não me esperou e correu
apressada.
— Alice! Alice! — gritei, assim que saí do grêmio, mas ela não parava,
dirigindo-se para a saída da escola.
Alcancei ela em alguns segundos e a peguei pelo braço, tentando não a
machucar.
— Me solta! — bradou ela, tentando se desvencilhar do meu aperto.
— Espera, o que foi? — soltei a mão dela, quando vi que ela poderia se
machucar.
Ela não me respondeu com palavras, mas me deu um tapa no rosto tão
forte que achei que eu fosse tombar para o lado. Não consegui prever que ela
faria isso.
Olhei para ela com a minha mão em meu rosto ardente, tentando entender.
Seu olhar de fúria e cheio de lágrimas me deixaram em choque.
— Então é com essa vagabunda que você tá me traindo?
— Oi? Por que você está falando isso? — perguntei, segurando-a pelo
ombro para tentar acalmá-la.
— Não-encosta-em-mim! — ela se afastou mais para trás, jogando meu
braço. — É por isso que você tava estranho todo esse tempo. Eu sabia, eu
sabia! Garotas sentem quando estão sendo enganadas.
Ela, de repente, tirou o anel do seu dedo e atirou no meu peito,
ricocheteando e indo parar em algum lugar no chão.
— Depois de todos esses meses de namoro, é isso que você faz? Me
fazendo de idiota.
— Não é isso que você tá pensando — passei a minha mão na boca e vi
sangue em meu dedo. — Eu não te traí com ela. A gente precisa conversar.
Ela não quis mais ouvir uma palavra minha e se voltou contra mim, indo
embora.
— Não me siga!
Ajoelhei no chão, observando-a ir embora e comecei a chorar.
A Mel chegou logo em seguida e tentou me levantar.
— Ai, meu Deus, Caio.
Envolvi ela em um abraço bem forte e derramei todas as minhas lágrimas
em seus ombros. Ela não falou nada, apenas permaneceu me apoiando.
Havia algumas pessoas próximas, mas não consegui discernir quem eram
por causa dos meus olhos marejados. Mas isso não tinha mais importância
alguma.
Capítulo 23

— Caio, é você, filho?


Ao chegar em casa, subi correndo as escadas e não atentei para responder
a minha mãe.
Bati a porta do meu quarto para nunca mais ter que sair dele. Suor e
lágrimas se misturavam em meu rosto, lançando fora uma parte da tristeza
que eu estava sentindo.
Atirei o braço com força na Torre Eiffel, que se despedaçou totalmente ao
cair no chão, mas não tão despedaçada quanto meu coração estava.
Sentei no canto da parede, com o rosto entre os joelhos, e fitei o piso de
madeira do meu quarto se umedecendo com as lágrimas que ainda caíam aos
montes.
— Caio!? Você está bem? — minha mãe estava batendo na porta,
forçando a maçaneta. — Caio, abra aqui!
— Me deixa só! — gritei, com a voz embargada.
Será possível que eu não podia ter um pouco de tempo sozinho?
— Caio, abra aqui — insistiu ela, batendo na porta —, a mamãe quer
ajudar, por favor! — senti sua voz preocupada e decidi levantar para deixá-la
entrar.
Ela me olhou por um segundo assim que abri a porta, e me envolveu em
seu peito, acariciando o meu cabelo. Não falamos nada por um longo
período.
— O que houve? Venha, sente-se aqui — entramos no quarto e ela me
levou para sentar na cama.
No caminho, pisei em pedaços de LEGO da torre que estavam por todo o
chão do quarto enquanto andava.
— Olhe sua mão, Caio.
Olhei para a minha mão e ela estava envolta em sangue, havia uma
pequena abertura no meio do meu pulso, algo que eu não tinha visto nem
sentido na hora que aconteceu, mas provavelmente foi quando derrubei a
torre.
— Espere aqui — disse ela, levantando-se e passando a mão em meu
rosto.
Minha mãe voltou do meu banheiro com uma maleta de primeiros
socorros. Ela pegou meu braço machucado e começou a limpá-lo com um
pano úmido. Todo aquele pano ensanguentado me assustou, mas minhas
lágrimas estavam cessando.
Ela envolveu meu pulso com uma atadura em cima do ferimento e fechou
com um esparadrapo.
— Você pode me contar o que aconteceu? — seus olhos estavam
brilhando, embora lágrimas não estivessem escorrendo.
Por um momento, não abri a boca para respondê-la, apenas passei a mão
no cabelo dela. Eu não queria vê-la triste ou preocupada por minha causa.
— Eu e a Alice... a gente terminou, mãe.
Ela me envolveu mais uma vez em um abraço quando percebeu que eu
iria começar a chorar novamente.
Ela não perguntou o porquê do término, e não falou mais nada, só me
acolheu e esperou que eu me acalmasse.
Em seus braços senti o sono chegar e assim ela foi me acomodando na
cama. Retirou meus sapatos e me cobriu com o edredom.
A última imagem que tinha era de seu olhar preocupado se aproximando
do meu rosto e me beijando na testa. Foi quando adormeci.

***

Despertei no meio da noite sentindo minha cabeça latejar. Meu quarto


estava praticamente escuro e silencioso, exceto pela luz da lua que entrava
pela janela entreaberta, e o vento frio que soprava fazendo meu corpo
estremecer.
Sentei na cama com muita dificuldade e me encostei na cabeceira. Meu
pulso estava um pouco dolorido.
Lembrei que eu tinha destruído a minha torre ao notar que ela já não
estava mais em cima da mesa de sempre, nem as peças quebradas estavam
mais atiradas no chão. Minha mãe deve ter juntado tudo e jogado fora
enquanto eu dormia.
Fiz algo errado e agora estava pagando por isso. Eu não sabia como
consertar, nem sabia se havia conserto. A Alice terminou comigo por achar
que eu estava traindo-a com a pessoa errada. Ela não me deu uma única
chance para me explicar. Se é que havia explicação aceitável para o que fiz.
Eu só queria saber como ela estava se sentindo. Queria poder olhar nos
olhos dela, poder acalmá-la. Pedir desculpas.
Nosso amor sempre foi verdadeiro, e eu achava que poderíamos continuar
dando certo após tudo que fiz. Eu estava tentando esquecer o Thales, mas
agora só podia sentir que tudo tinha ficado ainda pior, e eu não podia contar
a ela toda a verdade.
Em algumas horas o campeonato de basquete começaria e eu não estava
com ânimo algum para isso, mesmo que eu tivesse dado tão duro, me
dedicado, corrido atrás e planejado por tanto tempo.
Capítulo 24

Minha mãe tinha vindo me ver quando eu não levantei para tomar café. Ela
achou estranho. Ao tocar a minha testa, constatou que eu estava com febre.
Trinta e oito graus, para ser mais exato.
Suei a noite toda, eu acho. Meu pijama estava colando no meu corpo de
tão molhado. O lençol da cama também estava ensopado.
Parecia que um caminhão havia passado por cima da minha cabeça e para
não ter dúvidas de que morri, deu ré para passar de novo.
— Tente se acomodar na cama, levante um pouco — disse minha mãe,
erguendo-me pelas costas.
Tentei ficar sentado na cama e senti minha cabeça rodar, ela me ajudou
para que eu não tombasse.
Mal consegui abrir os olhos, mas vi que ela estava ao meu lado com um
copo de vidro com água em uma mão e alguns comprimidos na outra.
— Tome isso.
— O que é isso, mãe? — perguntei, cambaleando nas palavras.
— Ai, Caio. Sem perguntas. Tome, é um remédio — ela me deu primeiro
os comprimidos para eu pôr na boca, e depois a água.
Senti eles descendo rasgando pela minha garganta. Isso era uma indicação
de que poderia estar inflamada, e eu odiava tomar remédio.
— Você só se mete em confusão, Caio — disse ela, me encarando e
levando a mão até a minha testa.
— E eu tenho culpa de ficar doente? — falei alto demais, fazendo a dor de
cabeça se acentuar.
— Não, mas... já liguei para o colégio avisando que você não iria hoje.
Ainda bem que não vai perder aula, só um campeonato lá. Eu nem sabia que
você ia entrar de recesso.
— Mãe, que horas são? — perguntei, espantado.
Tentei sair da cama, mas ela me segurou pelos braços. Não sabia se ela
tinha apertado com muita força ou era eu que estava com o corpo todo
dolorido.
— Ai, mãe!
— Você pensa que vai pra onde?
— Eu preciso estar na escola agora, vai começar o campeonato que eu
organizei — falei, sem olhar para ela, tentando sair do seu aperto.
— Desse jeito? Você não vai mesmo! Pode ir tomar um banho e voltar a
dormir. Seu pai disse que, se necessário, eu levasse você ao hospital.
Meu deus, quanto exagero!
Ela fez um som estranho com a boca, negando com a cabeça, e falando
com tanta autoridade e um olhar tão expressivo que me senti intimidado,
dando conta de que eu não iria conseguir sair de modo algum. Ela se fez uma
muralha.
— Ok, mãe — acatei, relaxando os ombros.
— Vá para o banheiro e tome um banho enquanto eu vou trocar os lençóis
da sua cama.
Quando pus os pés no chão, tentando me levantar, senti as paredes se
movendo e o quarto rodar aos meus olhos. Minha mãe me segurou para que
eu não caísse.
— Acho melhor eu dar banho em você.
— Não! — gritei, em resposta à ideia.
Claro que não deixaria minha mãe dar banho em mim. Eu tinha dezesseis
anos, não era mais uma criança desinibida. Queria nem imaginar minha mãe
me vendo totalmente sem roupa. Que vergonha. Eu já estava em uma idade
que algumas coisas não poderiam ser vistas pelos meus pais.
— Não precisa mãe, foi só uma tontura por eu ter levantado rápido demais
— argumentei, começando a andar normalmente e indo em direção ao
banheiro.
Ela não me repreendeu, mas me seguiu com o olhar até que eu entrasse no
banheiro. Com certeza ela ficou tentando me escutar pela porta, achando que
eu poderia desmaiar e cair. Como até eu estava apreensivo com essa
possibilidade, não tranquei a porta totalmente. Alguém precisaria me
socorrer caso isso acontecesse.
Após alguns minutos, saí do banho usando roupas limpas e me sentindo
um pouco melhor, mas ainda com bastante dor de cabeça e com o corpo
quente.
— Descanse mais um pouco para os remédios fazerem efeito. Mais tarde
venho acordá-lo pra você se alimentar — disse ela, apalpando o travesseiro
em cima da minha cama.
Tentei secar vagarosamente o meu cabelo para não piorar a minha dor e
entreguei a toalha ensopada para ela. Pensei em usar um secador, mas o
barulho iria me incomodar.
— Vou deixar esse copo de água aqui — ela colocou em cima da mesinha
de cabeceira ao lado da cama —, e também, uns comprimidos pra você
tomar depois. Estarei aqui de hora em hora para checar se você está
melhorando.
Ela era sempre muito atenciosa quando eu ficava doente. Mesmo eu já
sendo mais grandinho, a sua preocupação com minha melhora continuava a
mesma de quando eu adoecia na infância.
— Mãe — fui até ela e a abracei —, obrigado por cuidar de mim, tá?
— Que nada, Caio. É meu dever de mãe lhe dar remédios para que você
melhore — ela retribuiu, passando a mão em meu cabelo úmido.
— Não estou falando só disso, mãe — olhei para o seu rosto, e ela sorriu
para mim —, falo também por ter cuidado de mim ontem e ter me ouvido e
me deixado chorar em seu colo.
Seus olhos brilharam e ela me beijou na testa. Pediu para que eu fosse
descansar e saiu apagando a luz e fechando a porta do meu quarto, deixando
o ambiente escuro pelas janelas estarem fechadas, apesar da luz do sol estar
querendo entrar.
Antes de descansar, peguei meu celular para ver se tinha alguma
mensagem da Alice. Mandei centenas de mensagens para ela ontem pedindo
perdão, mas ela só visualizou e não respondeu.
Avisei que estava doente, na esperança de que talvez ela se preocupasse
em responder e viesse me visitar, mas nenhuma resposta.
A Mel me enviou várias mensagens ontem e hoje, dizendo estar
preocupada comigo, que as coisas ficariam bem, e que estava esperando a
minha chegada na escola.
Eu estava me sentindo péssimo, não só por estar doente, mas por ter sido
forçado a abandonar meus companheiros justamente nesse dia, quando eles
mais necessitavam de mim. E também por minha ex-namorada estar me
ignorando.

***
Para quem achava que iria se recuperar logo, eu passei três dias de cama, e
não pude sair de casa em momento algum, o que me fez perder todo o
campeonato de basquete. Não me senti tão distante de todo mundo assim,
pois assisti algumas partidas por lives no Facebook quando eu conseguia
ficar acordado. Deu para torcer um pouco e ver que tudo tinha dado certo
mesmo sem eu estar lá.
Apenas o Gabriel tinha vindo me visitar nesses três últimos dias. Não que
eu me preocupasse que as pessoas viessem me ver doente, até preferia que
não viessem, pois meu rosto estava péssimo, um verdadeiro zumbi, mas eu
queria pelo menos que uma pessoa em especial tivesse vindo, a Alice. Mas
ela não veio.
Gabriel contou que no dia da minha briga com a Alice, alguém havia
gravado e compartilhado um vídeo da nossa discussão na Comunidade
Virtual do colégio, e que tinha gerado muitos comentários maldosos. Mas,
ele tinha conseguido derrubar o vídeo a tempo da situação tomar maiores
proporções, e muito provavelmente todo mundo da escola já havia esquecido
porque já havia outra fofoca rolando sobre outros alunos.
Eu tinha passado as três noites que fiquei doente chorando. Chorei de dia
também, lembrando dos bons momentos juntos com a Alice. Lembrei
também de todo o carinho que tínhamos um pelo outro, de todos os seus
sorrisos, das suas declarações, dos seus presentes, dos seus beijos, e de que
tudo isso tinha valido muito a pena. Porém, tudo isso não significava mais
nada.
Eu podia ter feito o que fiz para ela, ou o que ela achava que eu tinha
feito, mas o amor dela foi embora tão rápido assim? A ponto de me ignorar
todo esse tempo e nem ao menos ter vindo me visitar? Se eu tivesse morrido,
ela nem ao menos teria ido para meu velório. Certeza.
Apesar de tudo, desde ontem resolvi não lutar mais pela atenção dela.
Havia um limite para tudo, e minha insistência já devia estar incomodando-
a. A gente se amava, mas eu sabia que o amor nem tudo suporta.
Afinal, eu não podia continuar cobrando dela mais do que eu podia dar,
nem exigir dela que me perdoasse. Eu queria muito poder voltar para ela e
fingir que nada tinha acontecido, mas não estaria sendo honesto com ela e
nem comigo mesmo. Era hora de assumir os meus atos e aceitar as
consequências.
Depois de todos esses dias, toda a dor que senti dentro de mim, o meu
coração despedaçado, a minha raiva, estavam indo embora, e meu coração
estava mais descansado, mais leve e menos triste.
Aquela história de que só o tempo curava a dor estava se fazendo
verdadeira em mim, mesmo que não tivesse se passado tanto tempo assim.
Eu sabia que em vários momentos eu sentiria um vazio, um aperto no
peito, uma certa angústia ao lembrar dela, principalmente ao encará-la na
escola, pois não dava para esquecer, de uma hora para a outra, alguém que
fez parte de sua vida por bastante tempo, mas eu estava me preparando para
superar.
Desde o início do relacionamento eu tinha em mim que seria eterno
enquanto durasse, e fiz disso algo que realmente valesse, nunca deixei de
aproveitar nenhum momento com ela, nunca deixei de lhe dar carinho,
sempre estive ao lado dela, mas era hora de se conformar que havia acabado.
O anel que ainda continuava em meu dedo poderia contrariar tudo o que
eu falei, mas eu estava falando de coração. Ele permanecia porque, além de
tudo, eu o achava bonito, mas agora havia se tornando apenas mais um
acessório.
Capítulo 25

— Caio, tem visita para você!


Sem nem estar esperando ou preparado, minha mãe abriu a porta do meu
quarto trazendo com ela a Mel e o Thales.
Eu tinha acabado de ir ao banheiro, e saí só de cueca, com o cabelo
desgrenhado e com meleca nos olhos. A sorte era que eu tinha pelo menos
escovado os dentes.
— Mãe!!! — gritei, espantado.
O Thales riu com o meu espanto e se apressou em pôr a mão na frente dos
olhos da Mel para que ela não me visse pelado, ou quase isso.
— Desculpa, Caio. Achei que já estivesse de pé há tempos — justificou a
minha mãe, rindo da minha cara.
Corri para pegar uma camiseta e um short, e vesti os primeiros que
encontrei ao abrir o meu guarda-roupa.
— Não venham agora, só um instante, estou me vestindo — tive que tirar
a camiseta e pôr de novo, pois na pressa eu tinha colocado ela ao avesso. —
Pronto!
— Vou deixar vocês aí, mas desçam depois para comer algo — minha
mãe saiu fechando a porta do meu quarto, e o Thales veio com a Mel até
mim.
Sentei na cama, tentando arrumar com a mão o meu cabelo, enquanto eles
ficaram parados na minha frente achando engraçado todo o meu desespero.
— O que foi? — soltei.
— Você ainda estava dormindo, Caio? — perguntou a Mel. — São quase
dez da manhã.
— Claro, eu estava doente, tive que dormir muito para me recuperar cem
por cento — expliquei, mas a verdade era que eu dormia até tarde sempre
que não fosse dia de aula.
— Sei — duvidou ela, balançando a cabeça.
— Sentem aqui — bati na cama para que eles se acomodassem.
A Mel se jogou na cama e ficou deitada de barriga para baixo, com o rosto
apoiado nas mãos, enquanto o Thales pegou uma cadeira junto da
escrivaninha e a trouxe para se sentar, bem próximo de mim.
Desde que ele chegou, seu sorriso continuava a me perseguir, como se
estivesse vendo a imagem de um anjo. Será que fiquei mais bonito depois de
ter estado doente? Isso só podia ser Deus me recompensando.
— Você tá bem, Caio? — perguntou ele.
— Sim, eu tô melhor já — respondi, coçando a minha bochecha. — Tive
febre e dor de cabeça por alguns dias, mas agora já me sinto noventa e nove
por cento bem. Sempre tem aquele um por cento que insiste em não ir
embora, né?
Eles riram.
— Desculpa a gente por não termos vindo aqui lhe visitar antes... —
Thales disse, esticando a gola da camisa, e mudando o semblante, como se
sentisse culpado.
— Não, tudo certo — amenizei —, vocês estavam ocupados com o
campeonato. Você estava jogando e ela, além de ter que trabalhar por si
mesma, ainda se comprometeu em cobrir meu desfalque. Eu fico agradecido.
— E você está bem em relação àquilo? — Mel apontou para o seu peito,
como se fosse o meu.
Thales franziu a testa, repreendendo-a por ter perguntado isso. Ele deve
ter achado que me incomodaria lembrar ou falar sobre esse assunto.
— Ah, sim, estou sim — respondi, sendo sincero. — Eu soube até que
tive meus quinze minutos de fama na comunidade do colégio.
— Má fama você quer dizer, né? — corrigiu ela, batendo levemente no
meu braço. — Porque aquela página ali, meu querido, é um ninho de
fofoqueiros.
— Falou a pessoa que acabou de soltar um veneno e que adora uma fofoca
— interviu o Thales.
— Fofoca dos meus amigos não, Thales. Pare! — respondeu ela,
mostrando a língua para ele. — Mas pelo menos ninguém relacionou o meu
nome ao escândalo, porque você sabe que a Alice só terminou com você por
minha causa, sendo que eu não tenho nada a ver com esse rolo.
— Meeel??? — Thales resmungou, tentando beliscar ela, mas sem
sucesso, porque eu me pus entre eles. — Eu já pedi desculpas por ter metido
você indiretamente nisso.
— Sem problemas, gente! Eu já superei. Não vamos mais discutir sobre
isso, por favor — pedi, enquanto cocei mais uma vez o meu rosto.
O Thales me olhou com assombro e se aproximou mais um pouco.
— O que aconteceu com seu pulso? — ele percebeu um machucado em
meu braço. Eu não estava mais usando nada por cima do corte por ele já
estar se curando, só que ainda permanecia uma mancha roxa.
A Mel se ajeitou na cama e esticou o pescoço para poder ver e também se
espantou.
— Eu me descontrolei um pouquinho — fiz um sinal de pouquinho com
os dedos, esgueirando os olhos —, e acabei destruindo com um só golpe
aquela minha Torre Eiffel. Você lembra dela, Thales?
Apontei para o lugar no meu quarto onde antes ela ficava, mas que agora
restavam apenas lembranças e um espaço vazio. Iria pedir para meus pais
comprar outra, embora eu tivesse um grande carinho por aquela em especial,
pois fazia muito tempo que estava em meu quarto.
Não foi a primeira vez que eu quase havia destruído ela. Outro dia eu
inventei de envolvê-la com umas luzes de pisca-pisca, e tomei um choque
quando liguei na tomada, tão forte que me fez puxar os fios
involuntariamente, quase a derrubando. Ainda bem que consegui salvá-la
antes de se despedaçar no chão, mas era uma pena que ela não esteja mais
aqui para contar sua linda história de sobrevivência.
— Eu entendo, eu vi o quanto você ficou transtornado quando… quando...
— a Mel agora estava tentando se policiar nas palavras. — Naquele dia lá.
— Uma pena, Caio. Eu também gostava daquela torre — Thales disse,
claramente tentando contornar o assunto que a Mel insistia em reviver.
Forcei um sorriso para deixá-los menos desconfortáveis, e também para
mostrar que isso não me incomodava mais. Embora não fosse algo que eu
quisesse ficar falando o tempo todo. Para mim era página virada.
— Ah, olha — a Mel se mexeu na cama procurando alguma coisa no
bolso de sua jardineira jeans e tirou um anel. — Eu guardei pra você, ficou
jogado lá no chão.
Senti que meus olhos se encheram assim que vi. Peguei o anel da sua mão
e fiquei o observando, vendo meu nome gravado na parte interna.
Tentei me segurar e pisquei meus olhos para fazer as lágrimas se
dissiparem e não escorrerem, mas acho que eles notaram.
— Obrigado, Mel — funguei um pouco. — Eu vou guardar isso.
Abri uma gaveta na mesinha de cabeceira ao meu lado e joguei o anel lá
dentro. Aproveitei para tirar o que estava no meu dedo e também joguei lá.
Melhor que eles fizessem companhia um ao outro, poupariam minhas
lágrimas em momentos inoportunos.
Voltei a encará-los e eles estavam me olhando sem semblante algum.
Pareciam ter acabado de participar do enterro de alguém.
— Pessoal, pelo amor de Deus. Não precisam ficar assim, já passou. Eu
estou bem fisicamente e também por dentro — falei, abrindo um imenso
sorriso ao apontar para o meu coração, assim como a Mel fez.
Seus rostos se encheram de alegria, mesmo que pudessem estar forçando.
Nunca achei que teria esses dois tão próximos de mim, na minha casa, no
meu quarto, e muito menos na minha cama. Eu me sentia bem ao lado deles.
— Vamos apenas ser felizes agora — Thales animou-se, colocando a mão
no bolso de sua calça moletom. — Olha o que eu trouxe para você.
Ele retirou a mão do bolso e levantou o braço bem na minha frente,
pendurando uma medalha bem grande e dourada sendo segurada por uma
fita azul. Ela ficou rodando no ar, até que eu a parei pegando com a mão.
— Pra mim? Por que pra mim?
Olhei com mais atenção, e estava escrito nela que era uma medalha de
primeiro lugar no campeonato de basquete. Eu não consegui assistir nem por
live o jogo final que aconteceu ontem, mas fiquei sabendo que o time do
Thales havia vencido. Logicamente eu fiquei muito alegre, e isso até ajudou
na minha recuperação, eu tinha certeza.
— Não, eu não posso ficar com isso, você que venceu — falei,
devolvendo para ele a medalha.
Ele recusou e afastou com a mão a medalha de volta para mim.
— Caio, você vai aceitar sim. Eu lhe devo isso. Sem você o campeonato
não teria acontecido.
— Não teria acontecido agora, mas uma hora ou outra iria acontecer —
retruquei. Eu não queria aceitar um prêmio que era dele e que ele tinha
suado tanto a camisa para conseguir.
— De qualquer modo, você foi a minha motivação para que eu pudesse
chegar até a final e me tornar parte do time principal do colégio. Eu ganhei
por você.
Fiquei sem jeito, sem palavras. Senti meus olhos pestanejarem e um rubor
subir pelo meu pescoço. Até coceira me deu na cabeça.
Olhei para ele e um sorriso disparou em sua boca, pude ver que havia
verdade no que ele estava falando.
Não sei de que forma eu o motivei, mas fiquei feliz que ele tivesse esse
sentimento por mim, e que era grato a ponto de me presentear com esse
prêmio. De tudo que me ocorreu nestes últimos dias, isso tinha sido a minha
maior felicidade.
Virei para a Mel e ela estava piscando os dois olhos ritmicamente, como
se estivesse vendo diante dela a cena mais apaixonante de sua vida, mas eu
já não me incomodava.
Levantei da cama e me aproximei do Thales para abraçá-lo, meio sem
jeito por ele ter permanecido sentado.
Sussurrei um obrigado em seu ouvido e beijei o pescoço dele, finalizando
com um "também sinto a sua falta", algo que estava entalado em minha
garganta há muito tempo e que eu achava que não fosse mais poder colocar
para fora.
Capítulo 26

— Você vai?
A Mel acabou de me contar que o pessoal do grêmio, junto com o time de
basquete que venceu, tinha planejado ir para um resort que ficava localizado
na saída da cidade, bem ao litoral, em comemoração ao sucesso do
campeonato e também para aproveitar alguns dias do recesso.
— Vamos, Caio — pediu o Thales, me balançando pelo braço.
— Eu não sei se minha mãe vai deixar, eu acabei de me recuperar — eu
queria ir, mas tinha esse talvez, se a minha mãe iria deixar.
— Você já está melhor. Não vai ficar doente de novo, além do mais, você
merece, fez tanto esforço e agora precisa curtir com todo mundo — disse a
Mel. Ela estava certa.
— A gente ajuda você a convencer ela. Não é, Mel?
Eles estavam realmente decididos a me ajudar para que isso acontecesse.
Fiquei feliz com a animação deles, e agora mais do que nunca eu queria
participar disso, seria uma injeção de ânimo para eu esquecer algumas
coisas.
— E você pode chamar mais algumas pessoas — ela acrescentou.
Eu já estava pensando em perguntar se eu poderia chamar o Gabriel,
obviamente ele desejaria ir. Fazia muitos anos que tínhamos ido nesse
mesmo resort pela última vez. Quando éramos crianças, nossos pais, que se
conhecem, costumavam nos levar no mínimo umas duas vezes ao ano. Mas
aí acabou que ficamos maiores e eles mais ocupados, e esse programa foi
sumindo da agenda de nossas famílias.
— Ok, vamos tentar — falei, e eles se empolgaram mais ainda. — Vamos
lá pra baixo.
Desci da cama e fui em direção a porta com o Thales. Minha mãe tinha
nos chamado para comer alguma coisa.
— Vem, Mel.
Ela estava parada na frente de um espelho de corpo no centro do meu
guarda roupa, arrumando seu cabelo preto volumoso em um coque.
Ela se virou e veio correndo.
Chegando na cozinha, a minha mãe estava cortando habilmente, em uma
tábua de vidro, uns legumes e os despejando dentro de uma panela.
Ela estava tão concentrada que não sentiu nossa presença, e por isso eu
cheguei com cautela nela, ainda mais que ela estava com uma faca na mão e
poderia se assustar e me machucar.
— Oi, meninos — ela se virou, com a faca na mão —, vocês demoraram a
descer.
— Mãe, abaixa isso — eu mesmo abaixei a mão dela que estava com a
faca. Ela não tinha percebido que estava apontando para mim.
— Vocês vão ficar para almoçar? — perguntou ela, ao Thales e a Mel.
Eles estavam parados na entrada da cozinha e se entreolharam, franzindo a
testa, e se viraram novamente para mim e para a minha mãe.
— Infelizmente nós vamos ter que recusar — Mel disse.
— Ah, por quê? Fiquem, por favor — implorei, fazendo beicinho para
convencê-los.
— Seria ótimo, mas a gente tem um compromisso com a minha mãe daqui
há pouco, Caio — desculpou-se o Thales.
Ficamos alguns segundos olhando uns para os outros com aparente
desapontamento, até que minha mãe falou:
— Ai, meninos — saí de perto dela. Ela estava gesticulando com a faca na
mão —, não vamos ficar assim, haverá outras oportunidades. Mas, vocês não
vão sair daqui sem comer nada, por isso preparei uns lanchinhos, vão lá.
Minha mãe era essa pessoa acolhedora. Embora ela fosse chata comigo
uma grande parte do tempo, ela gostava de me ver com amigos, de ser
receptiva, e não tinha problemas com eles na nossa casa.
Eu só não podia dizer o mesmo com a minha namorada, ex-namorada, na
verdade. A Alice só havia vindo uma vez à minha casa, e minha mãe não
chegou a me falar nada, mas eu senti que ela não gostou dela. A primeira
impressão foi a que ficou.
Ela deve ter ficado feliz com o meu término, mesmo tendo demonstrado
solidariedade aos meus sentimentos. Obviamente ela não me falaria
diretamente que estava contente por eu não estar mais com a Alice, ainda
mais depois de ter visto quão mal eu fiquei.
— Mãe... — estávamos indo para a sala de jantar, quando lembrei de algo.
— Oi — ela se virou para nós.
— Eu queria pedir uma coisa — comecei, um pouco receoso de que ela
não fosse aceitar —, o pessoal da escola vai amanhã para aquele resort que
costumávamos ir, daí eles me chamaram — rangi os dentes, nervoso. — Eu
teria permissão pra ir?
Olhei para a Mel e para o Thales, e eles estavam de mãos juntas,
implorando também com o olhar, para a minha mãe. Achei que a ajuda deles
seria em falar algo para ela, e não em apelar desse jeito como quem apela
para o Divino. Isso não ajudaria muito.
— Olhe, Caio — quando ela começava assim eu sabia que não permitiria.
Logo baixei a cabeça e os ombros, descontente —, você lembra do que
aconteceu da última vez que estivemos lá?
Ela veio até mim e levantou o cabelo que cobria minha testa, revelando ao
Thales e a Mel uma cicatriz que eu tinha, mas que quase ninguém percebia,
porque meu cabelo sempre cobria.
— Mãe — reclamei, tirando a mão dela da minha testa. A Mel e o Thales
me olharam boquiabertos, não porque a cicatriz era grande, e de fato não era,
mas porque eles não sabiam desse detalhe.
— Ele ganhou isso quando era criança nesse resort que vocês querem ir.
— Mãe, eu era criança, tinha oito anos. Não tem nada a ver.
— Eu não falei que não vou deixar que você vá, eu só queria mostrar a
eles, porque eu sei que você não gosta.
Levantei meu rosto com um olhar saltitante e um sorriso de orelha a
orelha com o que ela acabara de dizer. A abracei em agradecimento.
— Mãe, você só cheira a cebola — ela deu um tapa na minha cabeça —,
mas obrigado.
— Tudo bem, agora vá lanchar com seus amigos — ela me deu mais um
tapinha, na bunda, e me expulsou da sua cozinha.
Sentei com a Mel e com o Thales na mesa da sala de jantar, onde minha
mãe havia colocado umas jarras de sucos e alguns biscoitos e frutas.
Eles ficaram felizes que minha mãe me deixou ir, e disseram que se não
fossem pelos olhares piedosos deles, isso não teria acontecido. Embora eu
ache que essa tática não tenha ajudado em nada.
Acabei contando para eles como exatamente consegui essa cicatriz de
Harry Potter na testa. Não tinha a forma de um raio nem nada, mas meus
amigos chamavam assim por ser na testa, igual à do menino bruxo.
Quando eu era criança, e criança tem mania de andar correndo, não via
perigo em passar sem preocupação por lugares molhados. Daí, na última vez
que fomos a esse resort, eu comecei a correr com o Gabriel em volta de uma
piscina enquanto nossos pais estavam tomando sol em umas
espreguiçadeiras, sem prestar atenção na gente. Quando pulei correndo, em
alta velocidade, e pousei no chão, não consegui me equilibrar e tombei para
frente, de cara no solo.
Eu devo ter ficado alguns minutos inconsciente, já que quando acordei
estava sendo carregado nos braços pelo meu pai, com minha mãe
desesperada ao meu lado, enquanto eles me levavam até o carro para irmos a
um hospital.
Quando entramos no carro, eu no banco de trás com a minha mãe,
enquanto meu pai dirigia em alta velocidade, eu sentia minha testa latejando,
como se algo estivesse perfurando a minha cabeça em um movimento
constante.
Eu sabia que estava sangrando, pois eu sentia aquele líquido escorrendo
pelo meu rosto e pingando no colo da minha mãe. Mas ela não falava nada,
só me olhava com um olhar lacrimejante, enquanto passava cuidadosamente
a mão em meu cabelo.
Eu não chorei, talvez porque não estivesse sentindo nenhuma dor naquele
momento, mas fiquei preocupado com ela e com meu pai, eu não queria vê-
los tão desesperados por minha causa.
No fim, tive que levar alguns pontos na testa e fui liberado no mesmo dia
para ir para casa, não sofri nenhuma lesão além da cicatriz e ficou tudo bem.
Esse não era exatamente o motivo de não termos ido mais para esse
resort, mas sim por falta de tempo dos meus pais mesmo. E eu não sentia
mais tanta falta por ter ficado um pouco traumatizado, já fazia tanto tempo
que eu não me importava mais. A cicatriz estava lá só para contar a história.
Capítulo 27

Em pleno fim de semana, dia de dormir até a cama querer me expulsar de


cima dela, tive que acordar antes do galo, se é que existiam galos na cidade.
Não tinha nem resquícios do sol quando meu alarme tocou. A sensação que
tive foi de que tinha acabado de pregar os olhos, mas já tinham se passado
algumas horas desde que havia me deitado. Não deixei que o sono e a
preguiça me desanimassem, pois era dia de curtir com os amigos.
Um ônibus fretado sairia às 06h00 da manhã em ponto da frente do
colégio para levar o pessoal para fora da cidade. Meu pai estava dirigindo o
carro, levando-me até lá. Ele se ofereceu para me deixar no colégio, mesmo
tendo que acordar cedo junto comigo em um dia de sábado. Minha mãe deve
ter pedido a ele.
— Fiquei sabendo que você terminou o namoro com aquela garota — foi
a primeira coisa que ele disse para acabar com o silêncio entre nós dois
desde que saímos de casa há alguns minutos. Ele estava ao meu lado, com as
mãos no volante, batendo os dedos no ritmo de alguma música que devia
estar em sua mente, e o fazia assobiar baixinho.
— Ela que terminou comigo, na verdade, mas já está tudo bem —
respondi, sem entrar em mais detalhes, e tentando parecer que realmente
estava bem.
Eu estava sentado agarrado com minha mochila na barriga. Joguei umas
roupas e uns acessórios que para mim seriam o suficiente para passar dois
dias fora. Na verdade, dois dias e uma noite.
— Sua mãe me contou — ele assobiou mais um pouco e parou para
continuar a falar. — Você é muito novo, filho, não precisa ficar se prendendo
agora. E tenha juízo agora que está livre, para não sair pegando — ele fez
um gesto de aspas com os dedos — todo mundo.
— Eu sei, pai. Eu não quero mais namorar por um tempo. E também não
sou esse tipo de cara que sai pegando... — repeti o gesto de aspas que ele
fez. — Todo mundo.
— Juízo, juízo — aconselhou ele, e voltou a assobiar.
Eu não entendi se as aspas eram para a palavra pegando ou para a parte do
todo mundo. E tampouco o que seria esse todo mundo. Isso incluía todas as
pessoas? Ou só as meninas? Acho que ele teria falado "cuidado para não sair
pegando todas ou qualquer uma" se fossem só as meninas, mas ele disse
todo mundo. Se fosse há pouco tempo, eu não estaria com esses
pensamentos e dúvidas sobre a fala do meu pai, e que não faziam sentido
algum eu estar tentando achar mensagem oculta onde provavelmente não
havia.
Meu pai parou atrás do ônibus que estava estacionado na frente da escola.
Era um ônibus bem grande, azul escuro, daqueles de turismo.
— Pai, manda um beijo pra mãe, e diz a ela que vai ficar tudo bem —
falei, já fora do carro, apoiado com um braço no vidro da porta.
— Cuidado — ele apontou para a testa dele e abriu um sorriso. Ele estava
lembrando da minha cicatriz. — Virei pegar você amanhã na hora que você
falou, no fim da tarde.
Ele saiu e eu fui com a mochila nas costas para a frente do colégio. Havia
algumas pessoas encostadas no muro de entrada e outras no ônibus, que já
estava ligado, esquentando para dar a partida.
— E aí, cara? — Gabriel veio até mim com um abraço quando me
aproximei dele. Ele estava com um casaco preto e uma touca, nas cores do
reggae, cobrindo o seu cabelo, deixando apenas uma franjinha rala
aparecendo. — Conseguiu falar com ela?
Esse “ela” a quem ele se referiu era Alice. Ele sabia que eu estive
tentando contato desde o ocorrido, mas que não houve qualquer retorno.
— Não. Ela não quer mais falar comigo — respondi, tentando parecer que
eu não me importava mais com isso. E, de fato, eu não me importava.
— Você sabe que pode contar comigo para o que der e vier, né? — ele
falou isso e ficou esperando alguma resposta ou reação minha, mas eu não
sei o que ele queria receber, porque eu não tinha certeza sobre o que se
passava na cabeça dele. Esse é o mal de você ter um melhor amigo e mesmo
assim esconder coisas dele.
— Eu sei — respondi.
— Espero que saiba mesmo — falou ele, desconfiado.
Eu não tinha me dado conta, mas por trás dele estava o Eduardo, esse
moleque que andava com ele como um imã. Não sabia que ele viria também,
mas o cumprimentei e deixei a minha mochila com Gabriel.
Saí para falar com o restante do pessoal, principalmente os do grêmio, que
estavam dispersos com suas malas e mochilas atiradas no chão.
— Olha ele! — berrou o Pedro, aproximando-se de braços abertos e me
envolvendo em um abraço. Ele tinha um abraço apertado e deveria guardar
essa força toda para outra pessoa, não para mim. Eu não lembrava do que ele
fazia no grêmio, só sabia que ele era um dos membros. — Nos abandonou
quando mais precisávamos, hein — acrescentou ele.
Ele estava falando da realização do campeonato, embora soubesse que eu
estava doente e que se pudesse eu teria participado.
— Eu teria ajudado se não tivesse ficado de cama, né? — expliquei, com
todos os olhares voltados para mim.
— Você está melhor, Caio? — a presidente do grêmio quis saber. Ela
estava usando um boné com um rabo de cavalo para fora, e um óculos Ray-
Ban bem maior do que o seu rosto com sardas.
— Estou pronto pra outra — falei e todos gargalharam.
— Vem pra cá — a Mel veio até mim, pegando pelo meu pulso, não o que
estava machucado, e me puxou para longe do pessoal. Eu nem tinha a visto.
Ela estava tal qual a Fernanda, com um boné e o cabelo saindo por trás em
um rabo de cavalo. Não sei se era moda, mas era estranho.
Ela me arrastou até ao portão do colégio, e ao encostarmos nele, grossas
correntes de ferro que o trancavam fizeram um som estridente. O Thales já
estava encostado nele, com uma mochila nas costas, usando um casaco e
calça apertada.
Ele virou para mim e logo notei suas bochechas rosadas. O tempo estava
um pouco frio, e nem parecia que já tinha amanhecido, tanto que as luzes
dos postes ainda estavam acesas. Além de tudo, as nuvens estavam se
preparando para descarregar toda a sua fúria em forma de chuva.
— Bom dia, Frozen — falei, aproximando-me dele, vendo-o esfregar uma
mão contra a outra para gerar calor.
— Você não tá com frio? — perguntou ele, quase batendo os dentes. — E
bom dia.
— Um pouco — respondi, abraçando meu próprio corpo, sentindo minhas
mãos frias por cima do casaco moletom.
Mel estava ao seu lado, mas dei um jeito de me encaixar entre eles.
Ficamos os três apoiados no portão, com frio, observando os carros
passarem, esperando a hora de partir.
O motorista abriu um compartimento embaixo do ônibus e pediu para que
guardássemos nossas bagagens. Quem estava só com mochila poderia levar
para dentro do ônibus, pois daria para colocar na parte acima dos bancos,
então peguei a minha de volta com o Gabriel e a coloquei nas costas. Ele já
ia jogar junto com as outras malas.
Quase todos os assentos ficaram ocupados, exceto o que estava ao meu
lado. Gabriel sentou logo atrás de mim com o Eduardo, e a Mel sentou mais
a frente com o Thales.
Não tive como não lembrar da Alice. Se estivéssemos juntos ela estaria
sentada ao meu lado. Nós nunca viajamos juntos quando namorados, então
teria sido uma grande oportunidade, mas não me deixei abalar por causa
disso.
Levantei da cadeira para tirar da mochila o meu celular com o fone de
ouvido, e também um travesseiro de pescoço no formato de donut dos
Simpsons que eu havia trazido.
Joguei a mochila de volta para cima, coloquei o travesseiro em volta do
meu pescoço e sentei, encostando minha cabeça no vidro da janela. O ônibus
já estava em movimento, rumo ao destino.
Apertei play na primeira canção da playlist “This is Queen” da banda
Queen e fechei os olhos. Peguei no sono antes de começar a segunda música.
Despertei com alguém sentando ao meu lado e encostando a perna na
minha. Olhei para o celular primeiro e estava tocando "Love Of My Life", a
décima segunda música da lista, sinal que já tinha se passado algum tempo.
— Eu não quis acordá-lo, desculpa — Thales falou, afastando-se quando
eu me acomodei no banco.
— Não, sem problemas — respondi, arrancando os fones do ouvido, e
pondo junto ao celular entre as minhas pernas.
— Eu não sabia que você tinha ficado sozinho.
Acenei com a cabeça em resposta, confirmando.
— O que você tava ouvindo? — perguntou.
Ele levou a sua mão até ao meio das minhas pernas e eu reagi com um
susto, fechando-as com a sua mão dentro. Meu coração disparou, pois achei
que ele fosse pegar em outra coisa.
— Fique calmo — ele soltou um sorrisinho e puxou a mão de volta,
trazendo o meu celular —, eu só ia pegar isso aqui.
— Eu achei que...
— Eu sei o que você achou — ele arqueou uma das sobrancelhas e
apertou o meu joelho com a mão, fazendo minha perna levantar em uma
contração involuntária.
Ele me pediu para desbloquear o celular e ficou olhando as músicas que
eu tinha nele.
— Eu não conheço quase nada daqui — disse, tirando o fone do meu
celular e conectando no dele, que tinha acabado de tirar do bolso.
— Escuta isso aqui.
— Espero que você não tenha o mesmo gosto da Mel — mencionei,
lembrando do dia que ela me fez escutar K-pop, mesmo assim ele nem deu
conta do que falei.
Coloquei um lado do fone no meu ouvido, e ele colocou o outro no dele,
enquanto ele procurava uma música para começar a tocar.
Ele deu play, desligou a tela do celular e jogou a cabeça para trás no
banco, fechando os olhos. Eu não sabia se era para fazer o mesmo, mas fiz.
Reconheci a música nos primeiros acordes, era "Amor Sem Onde" do
Tiago Iorc.
Embora eu já tivesse ouvido esta canção algumas vezes, ouvir novamente
ao lado dele parecia que a letra ganhava um novo significado.
Tomei aquilo como uma declaração dele para mim. Não sabia se ele tinha
escolhido intencionalmente por causa do que era dito, como se quisesse me
falar algo que não podia expressar em suas próprias palavras, mas estivesse
usando as do Tiago para me dizer.

Quando se despediu e precisou partir


Desde aquele dia eu vivo a lhe esperar
É porque embora eu vá chorar sempre ao te ver partindo
É bom que vá
E vá sorrindo

Eu tinha pedido para que ele se afastasse de mim após o nosso primeiro
beijo. Pedi para que ele me desse um tempo depois que fizemos algo em seu
quarto. Eu precisei pensar sobre o meu namoro, pensar sobre o que eu sentia
por ele para entender o que se passava dentro mim, e ele aceitou. Ele sabia
que precisava me deixar ir embora.
Eu não imaginava que ele sentia algo tão forte por mim, que realmente
estava gostando de mim. Mas agora, percebia o quão isso deve ter doído
nele, ter que observar de longe a pessoa que gosta, sem poder falar, sem
tocar.
Na última estrofe da música eu me aproximei mais dele, pousei a minha
cabeça em seu ombro e relaxei, voltando a dormir.

Pro nosso amor não existe onde


Não pro nosso amor
Eu juro
Vejo um brilho forte e puro de verdades no seu ir
Então quando houver saudade e quiser voltar
Eu estarei aqui
Então quando houver saudade e quiser voltar
Eu estarei aqui
Capítulo 28

— Ei, ei, ei!


Abri os olhos devagar e a luz do sol estava atravessando de sobremaneira
a janela do ônibus. Identifiquei, um pouco embaçado, o rosto da Mel, no
banco da frente. Ela provavelmente estava de joelhos na poltrona.
Tirei lentamente minha cabeça do ombro do Thales e fui me ajeitando.
Estalei meu pescoço para um lado e para o outro, sentindo uma dorzinha. Ter
dormido naquela posição não foi uma boa ideia.
— Tão lindos dormindo juntos — ela continuou, enquanto inflava as
bochechas para parecer fofa.
O Thales levou a mão até a boca dela, que secou como um balão
estourando, para que ela se calasse e não ficasse falando mais do que devia.
— Por que nos acordou? — perguntou ele, coçando os olhos e depois se
voltando para mim.
— Já estamos chegando, ora. Olhem pela janela — apontou, tocando com
a unha no vidro.
Olhei pela janela e observei o mar em uma imensidão de água salgada.
Alguns coqueiros e outros tipos de árvores passavam rapidamente como
vultos. As areias estavam praticamente desertas. Fazia muito tempo que eu
não contemplava isso.
De fato, estávamos nos aproximando do resort. Ele ficava bem de frente
para essa praia, disso eu lembrava.
— Pessoal, sentem-se nos seus lugares! — o professor de Educação Física
fez um gesto para a Mel se virar no banco e para uns rapazes que estavam
em pé se sentarem. Ele que ficou responsável por nos levar, senão, tanto o
colégio quanto nossos pais não teriam permitido que tantos adolescentes
viajassem sozinhos para um lugar distante.
O Thales se levantou rápido ao meu lado, deixando meu fone em cima da
minha perna e foi sentar ao lado da Mel. O ônibus acabara de parar na frente
do resort.
— Escutem bem — continuou o professor, com a sua prancheta siamesa
na mão, e uns óculos escuros que ficavam descendo em seu nariz a cada
sílaba —, quem eu for chamando pelo nome aqui, vai descendo, pegando
suas coisas e me esperando na calçada ao lado do ônibus. Não sigam para o
resort até estarmos todos juntos.
Ele foi chamando de um em um, até que todos estavam reunidos fora do
ônibus, com suas mochilas e malas em mãos. Este processo demorou uns
vinte minutos.
Ventava muito forte enquanto esperávamos, e a areia da praia, embora um
pouco distante, estava batendo em nossos rostos, nos deixando com os olhos
bem fechadinhos.
— Sigam-me.
O professor saiu na frente, guiando a gente para a entrada do resort. Havia
muita grama na frente e os irrigadores estavam todos ligados, chegando a
molhar nossos pés em alguns trechos. Todo mundo se apressou para não
chegar lá dentro ensopado. Ainda não era o momento de unir areia e água
nos pés.
Passamos todos, praticamente de uma vez, pela entrada. Não estava nada
organizado.
Eu não lembrava exatamente de como o hall de entrada do resort era
antes, mas com certeza não era assim, tão grande e monumental. O teto era
bem alto e todo em madeira, assim como algumas colunas que mais
pareciam gigantes troncos de árvores envernizados. Basicamente era tudo
em madeira, o balcão da recepção, as poltronas com almofadas, umas mesas
de centro, umas enormes luminárias, com exceção do piso, que era formado
por grandes peças de porcelanato.
— Esperem aqui — o professor tentou nos agrupar, mas alguns já estavam
dispersos, uns sentados nas poltronas, outros em pé olhando para fora, e
mais alguns admirando toda essa entrada, como eu. — Eu vou fazer o check-
in das nossas reservas e pegar as chaves dos quartos.
Ele saiu e foi falar com um cara na recepção, que já estava nos olhando
com simpatia desde que chegamos. Ou estava assustado com tanta gente,
não sei.
— Está diferente aqui, né? — Gabriel disse, batendo no meu braço.
— Verdade. Eles reformaram e aumentaram bastante.
— É por isso que está bem mais caro vir para cá também.
Eu ri, mas realmente nossos pais desembolsaram uma grana preta só para
aproveitarmos esses dois dias.
O professor voltou alguns minutos depois, com vários cartões magnéticos
nas mãos. Eram as chaves para as portas dos quartos.
— É o seguinte, pessoal — bufou, tentando passar o olhar em todo mundo
—, como eu sou responsável por vocês, e estou aqui em nome do colégio e
também dos pais de cada um, eles me deixaram algumas recomendações, e a
mais importante de todas é que os quartos são para duas pessoas.
Ouvi atrás de mim alguns cochichos sobre quem gostaria de ficar com
quem.
— MAS... não podem ser casais — e assim ele decretou a morte da
alegria de alguns.
Muitos fizeram reclamações, desaprovando essa regra, mas o professor
disse que não poderia fazer nada diferente do que foi ordenado.
A verdade era que havia poucas meninas, exatamente seis, contra mais de
vinte rapazes, mas, que por algum motivo, que eu não preciso nem dizer qual
era, elas tinham formado previamente duplas com rapazes em cada quarto.
— Encontre um parceiro pra você, Caião. Eu vou ficar com o Edu —
Gabriel me avisou, batendo no meu ombro, e depois se apoiando no ombro
do Eduardo.
— Você me trocou mesmo por esse moleque, hein — reclamei, dando um
soco leve no peito do Eduardo, em tom de brincadeira. Ele apenas fez um
gesto com o dedo polegar para baixo, indicando que dessa vez eu tinha
perdido.
O Gabriel apenas riu.
A Mel e o Thales se aproximaram de nós com uma cara de quem não
tinha gostado da ideia, pois com certeza eles tinham planejado de ficar
juntos em um quarto.
— Caio, você já tem dupla para o quarto? Os meus amigos do time já
fecharam e eu fiquei sobrando — ele apontou para trás, onde o time dele
estava, e coçou a cabeça. Ele sobrou, assim como eu. — Posso ficar com
você?
— Pode ser — tentei soar como quem não se importava, mas por dentro
eu fiquei animado com a ideia de ficar em um quarto com ele. Eu só não
podia transparecer isso na frente dos outros. — E você vai ficar com quem,
Mel?
— Ah, eu falei com a Fernanda, vamos ficar juntas — não seria uma má
ideia, ela e a Presidente do grêmio aparentemente tinham gostos parecidos,
então se dariam bem no quarto.
— Já dei tempo suficiente para vocês se organizarem. Venham pegar as
chaves, de dupla em dupla, por favor — chamou o professor. — E não
tentem me enganar, vou passar nos quartos depois para conferir se está tudo
certo.
Peguei o cartão com o professor e entrei no elevador com o Thales, que
ficou apitando por ter gente além do peso suportado. Dois garotos saíram e a
porta se fechou. Fomos para o segundo piso, pois os quartos ficavam todos
na parte de cima.
O nosso quarto era o primeiro, do lado direito ao elevador. Encostei o
cartão perto de um dispositivo que piscava uma luz vermelha ao lado da
porta e ela destravou.
Abri para que o Thales entrasse primeiro e entrei logo após, trancando a
porta, depositando o cartão em um suporte na parede para que as luzes se
acendessem.
Luzes brancas iluminaram todo o quarto. Ele não era tão largo, mas era
bem longo. O piso era de madeira, diferentemente do hall de entrada, mas o
teto eu não consegui identificar o material, só sei que era todo branco.
Havia uma TV bem grande na parede e uns vasos com plantas embaixo
dela, em cima de uma mesa.
Eu achei que teriam duas camas de solteiro, mas tinha apenas uma e outra
de casal, separadas por uma parede na altura delas, feita de tijolos pintados
de branco.
Ao fundo dava para ver a varanda. O Thales tinha aberto as portas de
vidro e as cortinas brancas estavam se movendo com a força do vento que
entrava junto com a luz do sol.
Ele voltou para dentro do quarto sorridente e se jogou na cama de casal,
derrubando umas almofadas no chão e bagunçando todo o lençol.
— Eu vou dormir aqui — afirmou ele, de braços e pernas abertas, olhando
para o teto, aparentando a maior felicidade do mundo por estar deitado
confortavelmente.
— Tudo bem — falei, indo em direção a cama de solteiro. Ele se levantou
e pegou pelo meu braço quando eu estava passando na frente da sua cama.
— Eu estou brincando — disse ele, mostrando a língua e balançando as
pernas —, pode ficar aqui. Eu posso dormir na outra.
— Podemos dormir nós dois aqui — falei em um impulso. Ele me fitou o
olhar por uns segundos e depois deitou, puxando-me para cima dele. Fiquei
jogado em cima de seu corpo, face a face.
Nos olhamos por um tempo, seu olhar fixo no meu, até que alguém bateu
na porta e eu me retirei de cima dele rapidamente.
Tirei meu casaco moletom, joguei em cima do Thales, ficando só com a
camiseta branca que eu usava por baixo, e fui atender a porta.
— Oi! — era a Mel. Ela nem esperou eu retribuir o oi e já foi entrando. —
Vocês ainda não arrumaram as roupas no guarda-roupa?
Ela pegou a mochila do Thales no chão e foi em direção ao guarda-roupa.
Abriu as portas, retirou tudo que tinha dentro e organizou.
Eu e o Thales a observamos, surpresos. Ela percebeu nossos olhares e se
virou para nós.
— O que foi? Vocês não estão com fome? — ela se voltou para mim,
jogando todo o cabelo para o lado. Não estava mais de boné. — Caio, venha
arrumar suas roupas, temos que ir tomar o café da manhã. Todo mundo já tá
lá embaixo.
Peguei minha mochila, tirei tudo de dentro e joguei no guarda roupa. Eu
não ia fazer morada, então não precisava estar tudo bem organizado. Na hora
de ir embora eu jogaria tudo de volta mesmo.
Descemos para o restaurante do resort e fomos comer. A maioria do
pessoal já tinha se alimentado e saído para passear, mas tinha alguns outros
hóspedes sentados, comendo e rindo como se não houvesse amanhã.
Estava todo mundo feliz. O Thales e a Mel estavam, e eu também, por
estar ao lado deles, ainda mais em um lugar como esse. Era um ar totalmente
diferente daquele que eu estava sentindo há alguns dias, carregado de tristeza
e solidão.
Capítulo 29

Subimos para os quartos para colocar umas roupas mais leves e depois
descemos para a área de lazer. Eu não tive nem tempo de ver as piscinas,
embora o Thales tenha dito que a varanda do quarto tinha a visão voltada
para elas. Mas eu queria mesmo era vê-las de perto, e senti-las.
Antes de descer, bati na porta do quarto do Gabriel para saber se ele iria e
ele já estava se trocando também para poder ir. Acabamos descendo todos
juntos.
— Caralho!
Foi o que saiu da minha boca quando chegamos no deck e eu pude ver as
piscinas. Havia uma pequena para crianças e outra ao lado, que era cem
vezes maior, para os adultos, em formato de algo que parecia um pingo
deformado e que se estendia até onde meu olhar não alcançava do ponto que
eu estava.
Um outro restaurante ficava em uma das bordas dela, com uma cascata
saindo do seu telhado, diretamente para as águas translúcidas da piscina. Era
quase como se eu estivesse diante de uma cachoeira.
Definitivamente, o resort estava diferente daquele que eu costumava
frequentar na infância.
— Vamos, vocês vão ficar só olhando? Tem muito sol pra aproveitar — a
Mel bateu com um frasco de protetor solar nas minhas costas e saiu andando
na frente, praticamente desfilando.
Saímos atrás dela, se não continuaríamos todos parados admirando a
piscina.
Havia bastante gente dentro da piscina maior, e a maioria eram os
meninos e as meninas do colégio. Tinha um ou outro hóspede desconhecido.
— Ei, ei — pus a mão na barriga nua do Gabriel para pará-lo. Ele estava
com a camisa jogada no ombro —, ele fica na piscina de crianças, não? —
perguntei, apontando para o Eduardo.
Os dois me encararam, sem ter achado nenhuma graça.
— Olha, Caio — Gabriel se posicionou na minha frente, pondo a mão em
meus ombros. Eu nem conseguia ver os olhos dele por causa dos seus óculos
escuros —, essa piada não colou. E antes de tudo, ele é só seis meses mais
novo que nós dois, e alguns centímetros menor que você, então pare de
implicar.
— Está bem — tirei as mãos dele de cima de mim —, eu falei brincando.
Não está mais aqui quem falou.
Dei uns tapinhas nas costas do Eduardo, sorrindo sem mostrar os dentes, e
saí andando. Eles devem ter achado que fiquei chateado, mas não fiquei. Eu
não tinha nem esse direito.
Fui em direção ao Thales e a Mel, que estavam sentados em uma
espreguiçadeira. Ela estava procurando alguma coisa em sua bolsa de praia.
— Vocês não vão pular na piscina? — perguntei, sentando em outra
espreguiçadeira ao lado deles.
— Eu vou — respondeu ela, levantando o olhar para mim —, mas só
depois que eu passar o protetor solar. Algum de vocês pode me ajudar?
Ela se levantou e virou de costas para nós, tirando por cima da cabeça um
vestido de renda branco, revelando totalmente o maiô colorido que usava, e
também as suas costas nuas.
Eu nunca tinha visto ela com tão pouca roupa, e nem tinha percebido as
curvas de seu corpo moreno.
— Ninguém vem passar, não? — ela continuou de costas, balançando o
protetor solar por cima dos ombros, esperando que alguém pegasse.
— Eu posso passar — levantei da cadeira e me posicionei atrás dela,
pegando o protetor de sua mão.
Abri a tampa e despejei um pouco em minha mão, enquanto ela levantava
o cabelo para tirar das costas. Eu nunca havia passado protetor em ninguém,
nem mesmo na Alice, mas não devia ser algo de outro mundo.
Percorri toda as costas dela e também seus braços. A pele dela era bem
macia.
— Você vai pular na piscina agora? — perguntei, quando acabei de deixá-
la protegida do sol que já ficava bem quente.
— Claro, esse protetor não sai na água, querido — ela virou-se para mim,
me dando um soco no peito, mas olhando para o Thales. — Você deveria
provar das mãos do Caio — e piscou para ele antes de sair e se atirar na
água.
Virei para o Thales me sentindo um pouco envergonhado, com uma mão
roçando na nuca e o protetor na outra. Ele estava me olhando com um olhar
malicioso.
— Se ela soubesse que eu já provei da maciez das suas mãos
massageando outra coisa, e até no meu traseiro...
— Poxa! — quase gritei, olhando para os lados para checar se alguém
tinha ouvido o que ele falou. — Sério, Thales?
— O que foi? — perguntou, achando graça.
— Tem hora e lugar pra falar esse tipo de coisa, e aqui definitivamente
não é o lugar, cacete!
Virei de costas para ele, emburrado e ainda checando as pessoas, mas
aparentemente todo mundo estava entretido demais para ficar prestando
atenção ao que a gente estava falando. Mesmo assim não dava para ele se
arriscar desse modo.
— Você dormiu no meu ombro durante toda a viagem pra cá. Não sei se
você se recorda.
— E daí? — questionei, ainda de costas para ele.
— Quer saber — ele se levantou —, eu vou pular na piscina também.
Ele retirou sua regata branca com estampa de ondinhas, e depois o seu
short de tecido fino, ficando apenas de sunga preta.
Tentei não prestar atenção, porque eu estava com raiva, mas eu nunca
tinha visto ele daquela maneira, pelo menos não assim, parado bem na minha
frente, com o sol batendo forte em sua pele branca e de músculos salientes.
Era verdade que aquele traseiro eu já tinha apalpado e até mais do que isso,
só que, definitivamente, não era momento para ter essa lembrança.
— Você não vai passar protetor? — perguntei, não conseguindo manter a
raiva por mais de dez segundos, ao mesmo tempo que tive que colocar a mão
na frente dos meus olhos para tapar a luz do sol que me impedia de ver ele
sem que meus olhos fossem queimados.
Ele virou a cabeça para mim, arqueando uma das sobrancelhas, como ele
sempre fazia, e com a mão na cintura, dizendo:
— Só se você passar em mim.
— Claro — aceitei sem hesitar —, senta aqui.
Acomodei melhor as minhas pernas na cadeira para dar espaço para que
ele sentasse na minha frente, de costas para mim.
Despejei um pouco do protetor em uma das minhas mãos, esfreguei uma
na outra e comecei a espalhar pelas costas dele. Era tão macia quanto a da
Mel, porém mais firme. Tentei não ficar olhando muito, porque a vontade
era de beijar o seu pescoço.
— Eu não vou passar na frente — avisei.
Ele mostrou a palma da mão por cima do ombro e eu despejei um pouco
do creme branco. Ele começou a passar na parte da frente do seu próprio
corpo, e também na face, enquanto eu percorria toda a parte de trás.
Quando eu acabei, ele se levantou e virou-se para mim:
— Quer que eu passe em você?
— Obrigado, pode deixar que eu mesmo passo — eu até queria, mas de
novo me bateu uma insegurança.
Ele saiu correndo e se jogou na água, próximo de onde a Mel estava
nadando. Seu pulo provocou várias ondas pequenas, espirrando bastante
água para fora da piscina.
Fiquei observando eles nadarem por alguns minutos e depois resolvi
também tirar meu short e minha camisa regata, ficando apenas com uma
sunga azul.
Passei protetor por todo o meu corpo e percebi alguns olhares do Thales
de vez em quando. Pulei na piscina em posição fetal, bem ao lado dele. Fui
parar bem fundo com a força do meu pulo.
Ele veio até mim, depois de submergir, com o cabelo escorrido no rosto e
tentou me afogar, empurrando minha cabeça para baixo da água.
Quando subi de volta, fiz o mesmo com ele, e ficamos repetindo isso por
algum tempo.
Apostamos quem chegaria na outra ponta da piscina primeiro junto com a
Mel e mais outros rapazes, mas praticamente ninguém conseguiu porque nos
cansávamos antes mesmo de chegarmos lá.

***

Decidimos sair depois de algumas horas nadando, e quando começou a


ficar mais frequente esbarrar nas pessoas. E também porquê estávamos
quase virando peixes, além das nossas mãos e pés estarem mais enrugados
do que o rosto da minha bisavó.
— Pega uma toalha pra mim — pedi ao Thales, com o braço e o queixo
encostados na borda da piscina. Ele estava fora se secando.
Saí da piscina, com bastante água escorrendo pelo corpo, e o Thales jogou
uma toalha branca para mim para que eu pegasse no ar. Quase que ela
passava direto para cair dentro da piscina.
— Estou com fome — falei para ele, secando meu cabelo.
A Mel estava deitada de costas na espreguiçadeira tomando sol, e ao me
aproximar dela, ela se levantou sensualmente e lentamente, ficando quase de
quatro, e depois sentando.
Olhei para a piscina e todos os meninos estavam parados, boquiabertos,
olhando para ela.
O Thales se apressou e prontamente se pôs na frente dela, impedindo uma
parte da visão dos garotos sob a Mel.
— Eu acho que você esqueceu que a gente finge namorar. Por que você tá
se atirando para cima de todos os garotos? — perguntou o Thales para ela,
quase que sem mexer os lábios.
Ela se levantou e se pôs na minha frente, já colocando o vestido de renda
novamente em seu corpo.
— E eu só acho que vocês dois deveriam se assumir logo para eu não ter
que fingir namoro com ninguém e pegar todos os garotos que eu tiver desejo.
Eu não sei se ela estava falando brincando, embora o tom que ela usou
denotasse seriedade e um pouco de raiva.
— Claro que não — respondi, sem ter pensando realmente no que eu tinha
falado.
O Thales olhou bem nos meus olhos durante três segundos e jogou a
toalha no meu peito, saindo logo em seguida disparado de volta ao nosso
quarto.
— Vá atrás dele, Caio. Eu levo as roupas de vocês.
Corri atrás do Thales, mas ele já tinha sumido da minha visão. Quando
consegui vê-lo, ele estava entrando no elevador e ao me ver apertou o botão
para fechar a porta para que eu não conseguisse entrar com ele. E eu não
consegui. Tive que esperar o elevador descer de novo.
Chegando na frente do nosso quarto, bati na porta e ele só abriu quando
bati uma terceira vez. Ele tinha colocado uma camiseta e estava visivelmente
chateado, tanto que só fez abrir e recuar sem olhar para mim.
Fechei a porta e fui atrás dele, que estava parado em pé, olhando alguma
coisa em seu celular.
— O que aconteceu, Thales? — parei bem na frente dele.
— Nada, não aconteceu nada — ele passou por mim, esbarrando sem
querer, e continuou a fitar o celular. Eu vi que ele não estava vendo nada em
específico, só passando o feed do seu Instagram rapidamente.
Coloquei a mão em cima do celular dele e ele levantou a cabeça para
mim, revirando os olhos.
— Eu estou bem, só quis subir para o quarto — ele tentou me convencer,
falando quase que silabicamente.
— Para, Thales! Eu sei que você ficou chateado. Ela é sua melhor amiga,
sabia?
— Sério, Caio? Você é incrível mesmo — disse, ironicamente, tentando se
afastar de mim novamente. — Você acha que isso é por causa da minha
melhor amiga? Você acha que estou com ciúmes dela?
— Eu não tô entendendo.
— É claro que você não tá. Você me machucou quando disse "claro que
não".
Por um segundo eu continuei sem entender, mas logo consegui recapitular
o que havia acontecido. Eu havia dito para a Mel que não assumiria nada
com ele. É óbvio que eu fui idiota e insensível. E é óbvio que eu não percebi
que fui idiota e insensível.
Sentei na cama com as mãos fechando meu rosto, porque eu não estava
conseguindo olhar mais na cara dele, tomado por um sentimento de
vergonha e incapacidade.
Senti ele se aproximar e se agachar na minha frente, retirando as minhas
mãos que cobriam meu rosto.
— Me desculpe, Caio. Eu acho que me descontrolei um... — pediu ele,
mas eu o interrompi.
— Não peça desculpas. Eu que tenho que pedir.
— Me deixe falar, pode ser?
Não me opus a ele, e aceitei balançando a cabeça.
— Eu tô sendo injusto com você, tenho que assumir isso. Eu, mais do que
ninguém, entendo o que você tá passando. Eu preciso ter paciência com
você, é isso. Não quero cobrar de você algo que eu também demorei tempo
para aceitar.
Era isso que eu estava esperando dele, esse tipo de compreensão. Ele sabe
que não era fácil para mim, e sei que também não seria para ele. A gente só
tinha que entender um ao outro.
Tentei compensá-lo ao aninhar as minhas mãos em seu cabelo, puxando-o
para beijar a sua boca. Afastei por um instante seu rosto do meu para olhar
em seus olhos e o beijei novamente. Dessa vez, um beijo mais quente, mais
demorado, sem me conter.
Eu só queria passar para ele a confiança que ele estava esperando de mim.
— Eu gosto muito muito muito de você — declarei para ele, apertando
com força as suas bochechas —, mas agora vamos descer. Eu estou
morrendo de fome.
Ele assentiu com a cabeça e me deu um abraço forte, com sua cabeça em
meu peito. Nessa hora tudo ficou bem entre nós dois, e ele sabia que eu tinha
falado verdadeiramente.
Capítulo 30

— De onde você tirou isso? — perguntei, curioso, quando vi o Thales


puxando do guarda-roupa uma garrafa de vidro com algum líquido
transparente dentro, que cogitei ser vodca. Não consegui discernir o nome,
nem a marca, na embalagem.
Estávamos nos ajeitando para irmos até a praia para uma espécie de luau,
com direito a fogueira, e alguém tocando violão e cantando. Coisas típicas
de noite fria na praia.
— Eu trouxe na mochila — contou ele, erguendo a garrafa como um
troféu, olhando para ela.
— Foi ideia sua trazer isso? — perguntei, desconfiado. Eu não sabia que
ele bebia.
— Sim, de quem mais poderia ser?
— Sei lá, você é tão certinho na maior parte do tempo. Só me parece algo
que você não faria.
— Parece algo que você faria? — perguntou, quase como uma
provocação.
— Sim, parece algo que eu ou meus amigos fariam, mas mesmo assim eu
não faria — ele pareceu confuso quando eu falei isso. — Mas, deixa pra lá.
— Eu tô brincando com você, desculpa — ele veio até mim e me abraçou
por trás, eliminando um pouco da minha tensão. — Um colega do basquete
que pediu para eu colocar na minha mochila.
— Você não deveria ter aceitado — falei, enquanto ele me soltou do seu
abraço. — Vai que dá problema pra você.
— Não vai dar em nada. Eles não me colocariam em uma enrascada.
— Você é muito ingênuo, cara — falei, com receio de que ele
interpretasse a minha preocupação de forma errada. — Mas tudo bem, como
você vai levar isso sem ninguém ver?
— Assim — ele pôs a garrafa pela metade dentro de seu short, vestiu uma
camiseta e depois colocou um casaco por cima, ficou imperceptível. —
Tchan-ran! — ele abriu os braços se vangloriando de seu feito.
— Você é louco. Se o professor pegar, estaremos todos ferrados — avisei.
— Ele não vai saber. E se souber, é capaz de querer um gole. E, falando
nisso, você já bebeu alguma vez, Caio?
— Seria estranho se eu dissesse que não? — perguntei, um pouco
envergonhado.
Eu achei que ele riria de mim, ou algo do tipo, mas ele não esboçou
nenhuma reação que pudesse me deixar desconfortável.
— Claro que não. Você acha que eu saio por aí consumindo bebida
alcoólica? Eu só tenho 16 anos. A verdade é que eu só bebi uma vez na vida.
E nem gostei muito — contou e veio me envolver em seus braços
novamente. — Não fique preocupado com isso.
— Tá bem — falei, agora mais tranquilo. — Vamos descer, já está de
noite.
Descemos direto para o hall e estavam todos lá. Acho que até estavam
esperando a gente chegar, já que quando nos aproximamos, todo mundo
começou a se levantar e a sair.
Alguns rapazes iam morrer de frio na praia por estarem usando apenas
regatas. Eles não pensaram nessa possibilidade, e eu fiquei calado.
Falei isso apenas para o Thales, que disse:
— Vai chegar uma hora que eles estarão se sentindo quentes.
Acho que entendi o que ele quis dizer com isso.
Para chegar na praia, tínhamos que atravessar uma estrada bem na frente
do resort e passar por dentro de um restaurante, também de propriedade do
resort. Era um grande monopólio. Talvez até aquela parte da praia fosse
privada, e eu nem sei se isso era possível.
O meu chinelo começou a se encher de areia assim que pisamos o pé na
praia, que por sinal estava bem fria.
Um vento congelante percorreu a minha perna e me fez sentir um calafrio
na espinha.
A faixa de areia não era tão larga até o mar, que não estava com ondas
muito fortes. O professor tinha feito por antecipação uma fogueira, grande o
suficiente para nos manter esquentados a noite inteira. A primeira coisa que
fizemos foi sentarmos todos ao redor dela, o que melhorou
consideravelmente o clima.
Praticamente todo mundo trouxe uma canga ou uma toalha de praia para
sentar em cima e não ter contato direto com a areia, o que não fazia muito
sentido para mim.
Mesmo assim, sentei em cima de uma canga que a Mel tinha levado,
grande o suficiente para caber eu, ela e o Thales. Os dois ficaram ao meu
lado.
— Pessoal, alguém do restaurante vai começar a trazer daqui há pouco
uns petiscos para vocês, já ajeitei tudo com eles.
O professor estava no melhor estilo turista gringo: bermuda branca, uma
camisa florida aberta com uma camiseta branca por baixo, chapéu de palha e
uns óculos de sol bem escuros.
Eu ainda não tinha reparado, mas era noite de lua cheia e ela estava
lindamente refletindo na imensidão escura do mar.
Já estive à noite em algumas praias, principalmente em época de Réveillon
com a minha família, mas dessa vez era diferente, eu estava com meus
amigos, ao redor de uma fogueira, curtindo um recesso escolar, e essa era a
minha definição de felicidade.
Um rapaz do time de basquete do Thales, que inclusive era um dos que
estava de regata de algum time da NBA, trouxe um violão e sentou-se em
cima de uma pedra, convenientemente no formato de um banquinho e
posicionada em nosso círculo. Ele começou a tocar e a cantar uma música do
Legião Urbana, era "Tempo Perdido". E, por algum motivo, todos no círculo
sabiam cantar a canção. Eu também conhecia a letra. Os braços para o alto,
balançando conforme as chamas da fogueira dançavam, foram o
complemento perfeito.
Depois de muitas rodadas de músicas, de petiscos, de refrigerantes, de
piadas sem graça e de histórias de terror que não assustavam ninguém, a
primeira pessoa resolveu se retirar, o professor.
— Pessoal — ele só conhecia essa palavra —, eu estou com muito frio,
mas não posso deixar vocês aqui sozinhos, então eu vou entrar para o
restaurante ali e virei chamar vocês daqui há umas duas horas, mais ou
menos — disse, olhando o relógio em seu pulso. — Vou pedir para um
garçom vir deixar mais comida pra vocês.
Ele se levantou e saiu pela areia da praia, que não era muito distante do
restaurante.
— Essa é a hora! — gritou o mesmo cara que estava tocando violão,
assim que o professor sumiu de vista. Ele gesticulou para o Thales, que tirou
a garrafa de vidro de seu casaco e a levantou. Eu já tinha até esquecido
disso.
Percebi que todo mundo se animou mais, e também que outros dois
garotos haviam trazido mais uma garrafa de bebida escondida.
Provavelmente já estava tudo combinado com todo mundo, só eu que fiquei
de fora dessa armação.
O amigo do Thales veio andando em direção a ele, descalço na areia da
praia, e pegou a garrafa da mão dele.
— Vamos nessa daqui primeiro, e quando secar, a gente brinca de verdade
ou consequência com a garrafa — gritou ele, e algumas pessoas urraram,
pois esse tipo de brincadeira era sempre excitante.
— Vamos aproveitar nossa última noite aqui! — berrou o Bruno, quase ao
meu lado. Ele era o garoto que estudava na minha turma, mas que também
fazia parte do time de basquete com o Thales.
— Última e única — alguém corrigiu.
Acabou que todos os copos descartáveis haviam sido usados para tomar
refrigerante, e não tinha sobrado nenhum para ingerir a bebida alcoólica. A
única alternativa que eles encontraram foi a de derramar diretamente na boca
de cada um. Eu não sei de onde tinha partido essa ideia, mas com certeza
não foi minha.
O amigo do Thales, se sentindo o máximo, abriu a garrafa e saiu
despejando na boca do pessoal, de um em um, diretamente do gargalo.
A maioria dos rapazes parecia estar acostumados com a bebida e não
esboçaram nenhuma rejeição. Já outros, principalmente as meninas, faziam
caretas que mais pareciam estar sendo transpassadas por uma espada, ou
simplesmente chupando a metade de um limão.
Vi o Eduardo rejeitar a bebida na vez dele, mas o Gabriel, ao seu lado,
tomou a dose dele e a do Eduardo, em compensação. Ele até se engasgou,
mas o amigo dele bateu em suas costas para que ele ficasse bem. Ninguém
mais pareceu se importar.
Quando chegou na minha vez, o garoto parou na minha frente e já ia
levando a garrafa até a minha boca, mas eu coloquei a mão para que ele
parasse.
— Obrigado — falei, fazendo careta sem mesmo ter bebido aquilo.
Ele não insistiu e se dirigiu ao Thales, que não fez qualquer objeção e
tomou a sua dose, mesmo vendo que eu não tinha tomado a minha. A Mel,
que já tinha tomado a dela, percebeu que fiquei incomodado, e sussurrou em
meu ouvido que ia ficar tudo bem. Mas eu não tinha certeza se ia ficar tudo
bem.
Depois do Thales, não havia mais ninguém para beber, e também, a
garrafa já estava quase seca. O amigo dele tomou todo o restante de uma só
vez.
Ele se abaixou um pouco, colocando a mão na barriga, pois com certeza
estava sentindo uma forte queimação. Não era isso que bebida alcoólica
costuma provocar?
Em seguida, deixou a garrafa cair na areia e voltou a sentar onde estava
antes.
Olhei para o Thales ao meu lado, e percebi que o seu rosto estava bem
vermelho, com os olhos quase saltando.
— Você é louco, Thales — falei, colocando a mão em sua perna.
— Meu Deus, como isso foi forte — reclamou ele.
Não sei qual o tempo necessário para que a bebida começasse a agir no
corpo dele, mas tinha certeza que em pouco tempo ele não estaria mais tão
sóbrio.
— Eu vou começar com esse jogo! — Fernanda disse, pondo-se de pé,
próxima a garrafa. Ela parecia bastante animada, e um pouco zonza também.
Eu nunca havia brincado de Verdade ou Consequência, mas eu sabia como
funcionava.
Agachada, ela começou a brincadeira rodando a garrafa na areia. Como o
círculo era grande e ainda tinha um empecilho que era a fogueira, estava
difícil saber para quais pessoas exatamente a garrafa estava direcionando,
então ela escolheu quem ela queria que fosse. E ela disse que o fundo tinha
apontado para o Pedro, do grêmio, e a boca para a Amanda, a vice-
presidente. Sendo assim, ela iria responder.
— Verdade ou consequência? — perguntou ele.
— Verdade — respondeu a garota.
— Então — ele pôs a mão no queixo, olhando para o céu escuro, como se
estivesse pensando no que perguntar —, você já beijou alguém dessa roda?
E se sim, quem?
Se a brincadeira havia começado com esse tipo de pergunta, eu não queria
nem saber o que mais viria pela frente.
— São duas perguntas aí — alguém constatou.
— Ok, vou mudar — disse ele. — Quem você já beijou dessa roda?
Todo mundo riu com a esperteza dele.
— O Victor — respondeu, apontando para um menino do time de
basquete do Thales. Ele pareceu bastante orgulhoso da revelação,
sinalizando para si mesmo, como se ninguém soubesse quem ele era. —
Agora é a minha vez.
Pela regra, a pessoa que respondeu era quem rodaria a garrafa. Amanda
rodou e dessa vez a boca ficou apontada para mim, e o outro lado para o
Enzo, também do grêmio.
Thales bateu no meu braço, deixando-me mais apreensivo do que já tinha
ficado.
— Verdade ou consequência? — perguntou o Enzo.
Eu não queria ter que pagar nenhum mico ou fazer algo estranho demais,
principalmente que eu não sabia o que tinha na cabeça, provavelmente já sob
efeito da bebida, desses idiotas. O Enzo mesmo não aparentava mais estar
muito sóbrio. Então, optei por não escolher consequência.
— Verdade! — gritei, animado demais para o meu eu normal.
— Corajoso — Mel comentou.
— É verdade que você e a Alice terminaram porque você traiu ela com a
garota que está ao seu lado?
Tomei um susto com a pergunta dele, ao mesmo tempo que eu havia
atraído a atenção de todos, com rostos alarmados e atentos para saber a
minha resposta.
— Você é louco, garoto? — gritou a Mel, enfurecida. — Isso é pergunta
que se faça?
— Eu só perguntei o que todo mundo estava falando no colégio, ué —
retrucou ele, dando de ombros. — É só responder!
Eu achei que as pessoas não estavam mais falando disso.
— Não, eu não traí a Alice com a Mel, se é isso que querem saber.
Eles não pareceram satisfeitos com a resposta, mas eu não tinha mais nada
a oferecer para eles.
Senti o Thales apertar meu braço, pois ele achou que eu talvez fosse falar
mais alguma coisa.
Levantei para continuar a brincadeira, mas senti uma leve tontura. E olha
que eu nem tinha bebido. Mesmo assim fui e rodei a garrafa.
A ponta da garrafa apontou para o Gabriel, e o outro lado para um menino
de boné vermelho que eu não lembrava do nome. Acho que nesse estágio
nem ele sabia mais o próprio nome.
— Verdade ou consequência?
— Consequência.
Foi uma resposta rápida do Gabriel, o que animou o pessoal. Ele estava
quase na minha frente, mas do outro lado da fogueira e parecia confiante.
— Desafio você a... Deixa eu ver… A beijar alguém dessa roda.
Esse foi realmente um grande desafio, e eu me enganei pensando que seria
difícil para o Gabriel escolher alguém dali para beijar.
— Seu pedido é uma ordem.
Ele se levantou, puxou o Eduardo pelo braço, e protagonizou algo que
quase me fez cair para trás. Ele beijou o garoto. E não foi um selinho, ou
algo do tipo, foi um beijo mesmo, como se os dois esperassem por aquilo
mais do que tudo.
Todo mundo no círculo gritou, e alguns até aplaudiram. Eu fiquei sem
reação, olhando para o Thales, que parecia tão confuso quanto eu.
Voltei a olhar para eles, mas o Eduardo já havia sentado. Gabriel estava
prestes a girar a garrafa, mas antes disso ele falou algo:
— O que acontece em Vegas, fica em Vegas, ok?
Ele basicamente estava pedindo segredo a todo mundo. Se bem que, no
outro dia, a maioria ali não ia nem lembrar do que viu ou ouviu.
O jogo continuou por mais várias rodadas, enquanto mais uma garrafa de
bebida havia sido aberta e foi passando de mão em mão. Eu rejeitei
novamente. E dessa vez consegui impedir que o Thales bebesse, pois ele já
não estava agindo de forma normal. Ele nem conseguia me olhar direito,
como se a sua visão estivesse embaçada.
Essa brincadeira toda foi na verdade o jogo do beijo, porque quase todo
mundo ali beijou alguém ou revelou que já foi beijado por alguém que
estava presente, exceto por mim e pelo Thales.
Além da minha preocupação com o estado do Thales, a coisa que ficou
martelando na minha cabeça foi a imagem do Gabriel beijando o Eduardo.
Parecia algo muito confuso para eu assimilar, ao mesmo tempo que não
deveria ser, pois eu também fazia o mesmo.
Capítulo 31

Entrei no quarto do resort com o Thales um tanto cambaleante. Ele estava


bastante bêbado. Acho que tinha perdido um pouco dos sentidos,
principalmente o equilíbrio. Ele murmurava que as coisas na frente dele
pareciam estar ganhando vida e se movimentando.
Eu vim da praia até ao resort segurando-o para que não tombasse nas
coisas ou caísse no chão, embora eu estivesse cansado, o que não era uma
boa condição para ajudá-lo. Era praticamente duas pessoas que precisavam
de ajuda tentando se ajudar.
Tirando o fato de que ele vomitou na praia, e que eu acabei socando o
rosto dele sem querer, quando a intenção era segurar a cabeça dele, a noite
da fogueira tinha acabado bem.
Fui direto para a cama de casal e joguei ele em cima dela primeiro, quase
arremessando-o no chão com o impulso. Fiquei admirando-o deitado por um
momento e depois deitei ao lado dele, enquanto admirava o teto branco, o
que não fazia sentido algum.
— Acho melhor você ir tomar um banho antes de dormir — falei para ele,
que resmungou alguma coisa incompreensível, e não se esforçou para se
levantar.
— Amanhã — foi a única coisa que eu o entendi dizer depois que insisti
mais uma vez para ele ir tomar banho.
— Então deixa eu tirar essa sua roupa, estão sujas de areia e respingos de
vômito.
Um dos lados da cama se abaixou quando eu fiquei de joelhos ao lado
dele e comecei a despi-lo. Ele não estava tão mal a ponto de não poder fazer
isso ele mesmo, mas não confiei. Ele pareceu não se importar e foi relaxando
o corpo, deixando que eu prosseguisse.
Primeiro abri o zíper do seu casaco e o puxei, tendo um pouco de
dificuldade para passar pelos seus braços. Fiquei olhando para o rosto dele
com bochechas coradas, só que agora ele estava com os olhos abertos, atento
ao que eu estava fazendo.
Depois de tirar o seu casaco, removi a camiseta dele com mais facilidade e
atirei em algum lugar bem longe. Ele sorriu para mim por um instante e me
seguiu com o olhar quando desci da cama. Mas eu ainda não tinha terminado
o serviço. Voltei e coloquei a mão em sua cintura e comecei a puxar a
bermuda para baixo.
Seu corpo se contorceu, provavelmente com o toque dos meus dedos frios
percorrendo a sua coxa enquanto abaixava a roupa, até passar ela pelos seus
pés.
Ele agora estava quase pelado, e eu não tinha a intenção de tirar a cueca
boxer dele. Olhei novamente para o seu rosto, e ele levantou um pouco a
cabeça, sorrindo para mim timidamente.
Um silêncio tomou conta do ambiente e ouvia-se apenas o som do mar,
das ondas quebrando ao longe, e de carros cruzando a noite na estrada.
— Apaga as luzes — ele falou, piscando um olho, meio desajeitado, e
deitando novamente a cabeça na cama. — Espero que você tenha entendido.
Fui até a entrada do quarto a passos rápidos e desliguei todas as luzes. O
quarto não ficou totalmente escuro, pois a luz da lua o iluminava, deixando
um clima que me daria medo se eu estivesse sozinho, mas a presença do
Thales fazia com que todos os meus medos se rebelassem e fugissem para
bem longe de mim. A única pessoa que eu desejava ter perto naquele
momento era ele.
Quando voltei para a cama, ouvi um ronco baixo vindo dele. Tirei as
minhas roupas, ficando só de boxer, assim como ele, e deitei ao seu lado.
Não precisou de muito para que eu adormecesse. Infelizmente, o sono
venceu a minha vontade de dar boa noite a ele antes de dormirmos.
Capítulo 32

Assim que despertei no outro dia, corri para o banheiro e tomei um banho
bastante demorado enquanto o Thales continuava dormindo, recuperando-se
da noite passada. Assim que eu acabei de escovar os dentes, ouvi ele gritar
pelo meu nome do outro lado da parede.
Corri levando a toalha de rosto para enxugar o meu cabelo, e assim que
cheguei na porta, ele estava se acomodando, apoiando as costas na cabeceira
da cama. Ele tocava a cabeça como se tivesse levado uma pancada forte, e
mal conseguia abrir os olhos.
A luz do sol iluminava forte o quarto, o que não colaborava em nada com
a situação dele, mas eu não podia ajudar quanto a isso.
— O que você fez comigo? — perguntou ele, assim que me aproximei,
como se eu fosse o culpado pela ressaca dele.
Mostrei os meus dentes para ele, em um sorriso enorme, e subi na cama,
sentando ao lado dele. Ele não estava com um semblante nada bonito, mas
não era para menos, ele tinha acabado de acordar, e ainda estava com um
pequeno machucado roxo ao lado do seu olho esquerdo.
— Você se lembra de como ganhou isso? — tentei tocar, mas ele afastou a
minha mão, virando-se para se ver no espelho da cabeceira da cama.
— Eu não lembro de nada — respondeu, colocando a mão sobre os olhos
em uma tentativa falha de se poupar da luz.
— Nada que um banho frio não resolva — recomendei, passando a mão
no cabelo bagunçado dele. — Mas seja rápido, vamos partir daqui a pouco.
Tem aspirina lá no banheiro, tome também.
Ele se levantou da cama, um pouco assustado depois que se percebeu
quase pelado, e correu para o banheiro.
Enquanto isso, tentei resgatar comigo mesmo o que havia acontecido na
noite passada e algumas coisas pareciam ter sido sonho, ou fruto da minha
imaginação. O Thales tinha bebido muito pela segunda vez na vida, e isso
conferia, a julgar pelo seu estado agora. A Mel quase bateu em um cara por
insinuar que eu e ela tínhamos ficado, mas acabou não batendo. Isso também
conferia. O Gabriel beijando o Eduardo, essa parte eu ainda estava tentando
decidir se tinha acontecido de verdade ou não. O Thales vomitando na areia
da praia e sendo carregado por mim até o quarto. Isso também conferia. E eu
tirando as roupas dele até adormecermos juntos? Também conferia. Na
verdade, foi a última coisa que aconteceu na noite.
— Caio! — Thales já estava parado e me olhando, em pé, na frente da
cama. — Você tá sonhando acordado? Vamos ver se conseguimos comer
alguma coisa ainda. Perdemos o café da manhã, e provavelmente o almoço.
Minha barriga roncou ao ouvir a palavra almoço. Era melhor eu me
apressar antes de passar mal, ainda mais com essas lembranças. Aconteceu
muita coisa para eu recapitular tudo de uma vez só.

***

Deixamos o resort no meio da tarde, e agora só nos restava memórias


deste lugar. Ver pela janela o mar passando rapidamente me fez pensar que a
vida também passava nessa mesma proporção e que se a gente não aproveita,
por medo, por insegurança, ou seja lá qual fosse o impedimento,
chegaríamos ao fim dela sem histórias para contar, com um coração amargo,
arrependido, querendo voltar e fazer tudo diferente. E definitivamente eu não
queria sentir isso.
— Eu vou sentar com você aqui.
— A Mel não vai ficar com raiva? — perguntei ao Thales.
— Vai nada, ela disse que iria o caminho todo dormindo, está com dor de
cabeça igual a mim — explicou, abaixando o capuz do seu moletom.
Eu também estava sentindo dor de cabeça, mas nada comparada a uma dor
de cabeça de ressaca. Levantei um pouco para olhar sob a poltrona para os
bancos de trás e estava praticamente todo mundo de olhos fechados.
— Tudo bem — sorri.
— Agora me fale o que aconteceu com o meu rosto.
— Isso aqui? — perguntei, pondo o dedo bem em cima do machucado
dele, que se contorceu em dor. — Foi eu quem causei. E você mereceu, de
certa forma.
— Eu? — perguntou, confuso, pois claramente ele não lembrava de nada
do que tinha feito.
— É pra você aprender a não beber mais e a não tentar acobertar bebida
de ninguém — reclamei, embora esse não tivesse sido o motivo do
machucado dele.
— Desculpas — pediu, fazendo biquinho. Eu não resisti.
— Deite aqui — falei, batendo no meu ombro para ele deitar a cabeça.
E ele deitou, permanecendo assim durante todo o caminho de volta.

***

Eu já estava acordado quando o ônibus parou na frente do colégio. Eu


vinha trajeto final quase todo observando o Thales dormindo, encostado no
banco e com a boca entreaberta, quase babando.
Ele não tinha mudado nada desde a primeira vez que bati o olho nele no
início do ano, naquele fatídico dia na sorveteria. Continuava este cara bonito
de sempre, embora eu não tivesse atentado para isso naquele momento. Mas,
o que eu sentia por ele agora era algo que inegavelmente não permanecia o
mesmo. Meu estranhamento no começo se tornou algo que eu não sabia
explicar muito bem em palavras, e que, claramente, meus batimentos
acelerados quando eu o via sabiam desde antes no que isso implicaria, e que
teriam um significado importante na minha vida, nesse descobrimento.
— Peguem suas coisas, moças e rapazes — o professor mudou o
cumprimento dessa vez —, e tenham uma boa volta para casa.
O Thales despertou com o professor falando e eu desejei que ele tivesse
perdido a voz, só para eu ter ficado mais tempo olhando para este cara ao
meu lado.
— Graças a Deus — disse o Thales, se espreguiçando e abrindo o bocão.
— Faz tempo que você acordou?
— Não, não, acordei agora quando chegamos — menti. E ele esgueirou os
olhos sabendo que eu menti.
Descemos todos do ônibus, na frente do colégio, mesmo local de partida,
e o tempo parecia o mesmo de quando partimos ontem de manhã. Estava
escurecendo, e nuvens carregadas estavam prestes a se derramar em
lágrimas.
O vento forte adiantava a noite fria que viria, e bagunçava também os
nossos cabelos.
— Você vai como pra casa? — Thales me perguntou, jogando a sua
mochila quase aos meus pés.
— Meu pai tá vindo me pegar, já liguei para ele — respondi.
Observei que alguns pais já estavam à espera de seus filhos, e alguns
outros saíram em carros de aplicativo. Em poucos minutos, restavam apenas
alguns garotos, e o professor, que só iria embora depois que a última pessoa
saísse.
— E vocês? — perguntei a ele e a Mel.
— Eu vou com ela de Uber. Certo, Mel? — ele a puxou para o lado dele,
colocando o braço no ombro dela.
— Certo. Eu estou exausta. Quero chegar logo em casa — disse ela,
fechando os olhos.
— Podem ir, então...
— Não, a gente vai ficar aqui até seu pai chegar — recusou ele.
— Sério, não precisa. A Mel tá cansada — ela levantou o dedo em um
gesto afirmativo, mas ainda de olhos fechados. — Gabriel vai ficar aqui
comigo.
O Thales fez um beicinho de desapontamento, mas viu que não poderia
ficar. Eu até queria a companhia deles, mas não nesse estado em que a Mel
se encontrava. Preferia que ela chegasse em casa logo para descansar.
— Tudo bem — inesperadamente ele soltou a Mel e me deu um abraço,
não um abraço qualquer, mas um abraço apertado e demorado. Senti em seu
pescoço o cheiro do perfume que eu vinha sentindo todo o caminho de volta
para cá, e isso me fez desligar do mundo por um momento. — Manda
mensagem quando chegar.
Ele recolheu a sua mochila no chão e pegou a amiga pelas mãos. Ela
estava tão molenga que achei que não fosse conseguir andar até o carro que
tinha acabado de parar. Despediram-se acenando e partiram.
Fui andando em direção ao Gabriel, que estava apoiado no portão do
colégio e, ao me aproximar mais, percebi sua mão segurando a mão do
Eduardo.
Eu já tinha visto eles de mãos dadas uma vez, mas ver de novo parecia
diferente. Recordei novamente dos dois se beijando e caiu a ficha de que
aquilo realmente tinha acontecido.
— E aí? Novidades? — ele percebeu meu olhar estranho para os dois, mas
mesmo assim não soltou a mão do Eduardo como fez da primeira vez. Tive a
impressão de que ele segurou mais firme até. — A gente precisa conversar
sobre isso.
Ele sabia no que eu estava pensando e me perguntando, por isso se
adiantou sem eu ter dito qualquer palavra.
— Você viu o que aconteceu ontem, né?
— Eu... — fiquei receoso em tocar no assunto, não sei se estava
preparado. — Lembrei hoje de manhã, na verdade.
— O que você acha, então? — dessa vez foi o Eduardo que abriu a boca, e
eu me dei conta de que nunca tinha ouvido ele falar antes.
— Vocês não eram apenas vizinhos? — respondi com outra pergunta.
— Sim — respondeu o Gabriel —, mas isso não é impedimento.
Essa informação não deixava a história mais clara para mim. Até onde eu
sabia, de toda a minha vida, o Gabriel não era gay. Embora ele
provavelmente pensasse o mesmo de mim, e eu também pensasse o mesmo
de mim, mas agora tudo era diferente, e eu estava me descobrindo. Será que
coincidentemente aconteceu o mesmo com ele?
Notavelmente eles estavam relaxados ao tratar do assunto, e quase rindo
da minha aparente e verdadeira confusão. Mas também, né? Como eu
poderia imaginar uma coisa dessas? Ele nunca me deu motivos para pensar
isso.
— Então — continuei a falar, coçando a nuca —, vocês dois estão
namorando?
— Sim — afirmaram.
Aquilo soou como um choque para mim, mesmo que eu já esperasse por
essa resposta.
Senti um pouco de raiva, não por eles estarem juntos, mas pelo Gabriel
não ter me contado antes. Eu estaria sendo injusto se externasse isso para
ele, já que eu mesmo tinha meus segredos, então respirei um pouco e
transformei todo meu medo e meu desapontamento em algo bom.
— Eu fico feliz, de verdade — coloquei as duas mãos em seus ombros
para passar confiança. — Eu também...
Uma buzina tocou logo atrás de mim, quando eu estava pensando no que
falar em apoio a eles dois. Meu pai tinha chegado para me pegar.
— Vocês querem ir comigo? — perguntei, afastando-me um pouco deles.
— A mãe dele está vindo nos pegar. Fique tranquilo, vai dar certo —
respondeu o Gabriel.
— Ok, estou indo. Até mais!
— Caio — Gabriel gritou quando dei as costas para ele —, você sabe que
também apoio você em tudo, né? Confia.
Voltei a andar sem esboçar nenhuma reação e entrei no carro do meu pai.
Na verdade, eu estava me sentindo muito feliz internamente, mas não
conseguia agir com naturalidade. Precisava de tempo para pensar em tudo
isso.
— O que foi, filho? Não gostou? — perguntou meu pai, quando ele deu a
partida no carro e eu pus o cinto de segurança.
— Gostei sim, pai. Por quê?
— Você está com uma cara emburrada — respondeu ele.
— Ah, eu só estou cansado da viagem, mas está tudo bem.
E estava realmente tudo bem, só havia um mundo em minha cabeça se
colorindo e tentando entender as voltas que ele dava, e como nós nunca
tínhamos certeza alguma do que nos espera.
Capítulo 33

Os dias de recesso voaram tal qual os ventos frios e fortes que estavam
entrando pela janela do meu quarto escuro.
Eu provavelmente dormi metade do tempo, e na outra metade sentia sono
e vontade de dormir mais. Todos me abandonaram. Gabriel tinha ido para
uma casa de campo dos seus pais e levou o Eduardo. Eles até me
convidaram, mas preferi não ir dessa vez. Thales viajou para a casa da avó,
em um interior que tinha nome de santo, levando a Mel junto.
Pelo menos eu consegui zerar dois jogos no meu Xbox, e fiz maratona de
três séries da Netflix. Não tive dias tão imprestáveis assim, mas preferia estar
com todos meus amigos.
No outro dia tudo voltaria ao normal. As aulas, o grêmio, as babaquices
dos meus colegas, mesmo que nem tudo ao meu redor continuasse o mesmo.
Aquele Caio do primeiro dia de aula não era o mesmo de agora. Eu
costumava ter uma namorada, e agora não tinha mais. Eu odiava matemática,
e agora eu apenas não tinha muita simpatia, tanto que estava tirando notas
mais altas. Eu tinha problemas com meus pais, e agora eles me tratavam com
mais paciência. Meu melhor amigo que era solteiro, e que eu pensava que
era hétero, agora namorava um garoto mais novo do que nós dois. Eu
costumava gostar só de garotas, mas agora eu também tinha olhos para os
garotos, em especial um que se chamava Thales. Tudo isso em um curto
espaço de tempo.
Apaguei as luzes, programei o alarme no celular, arrumei o travesseiro,
deitei na cama, puxei o edredom e fechei os olhos com um sorriso perdido
no rosto. Eu não poderia estar me sentindo melhor.

***
Trouxe para a escola algo que precisava devolver para alguém, que eu
sentia que não me pertencia mais, e não tinha sido eu que tinha comprado: os
anéis de compromisso do meu namoro com a Alice.
Desde que discutimos, não tive mais nenhum contato com ela, porque ela
não queria. Bloqueou e me excluiu de todas as redes sociais, e também da
vida dela. Isso me doeu muito, mas, de certa forma, foi bom para eu não ter
que ficar me humilhando atrás dela.
Não me sentia no dever de esclarecer tudo para ela, não por enquanto,
mesmo que eu quisesse que ela aceitasse as minhas desculpas. Eu apenas
não estava pronto para assumir tudo isso. E creio que contar tudo deixaria
ela mais magoada.
Eu queria ao menos ter sabido como ela estava lidando com tudo isso.
Assim como passei dias tão nebulosos, envolto a tristeza, ela também deve
ter sentido algo assim.
Esperei por ela no portão do colégio antes de tocar o sinal para entrar, mas
ela não apareceu. A minha única esperança era encontrá-la no refeitório,
onde costumávamos ficar juntos.
Fiquei um pouco nervoso, confesso. Era como se eu estivesse prestes a
encarar algum desconhecido que pudesse me fazer algum mal, mas era
apenas a minha ex-namorada.
— Alice?
Ela estava virada de costas, na mesma mesa que sentávamos repetidas
vezes nos últimos meses, com as mesmas meninas que eram suas amigas,
mas dessa vez com outros garotos que não eram mais os meus amigos. Havia
também um cara com o braço em seu pescoço que não era eu.
Devo ter falado baixo demais o seu nome, já que ela não se virou para
mim, parado em pé, atrás dela.
— Alice! — chamei novamente. Uma das amigas dela, que estava do
outro lado da mesa, apontou para mim, com os olhos arregalados, como se
tivesse visto um fantasma.
Alice virou a cabeça, e todos da mesa que estavam de costas fizeram o
mesmo. Eu dei um passo para trás ao perceber que estava próximo demais
dela.
As conversas no refeitório cessaram um pouco e tive a certeza, mesmo
sem olhar para os lados, que eu estava agora chamando atenção. Até porque
ainda havia rumores sobre o fim do meu relacionamento rolando.
— Não tenho nada pra falar com você agora, por favor — ela disse isso, e
voltou a me ignorar. Embora os outros rostos ainda estivessem a me
observar.
Eu não tinha ido para conversar com ela, só queria devolver os anéis. E
não sairia dali enquanto ela não me desse bola.
— Alice — coloquei uma mão no ombro dela e desencadeei uma reação
que eu não queria.
— Não toque em mim! — berrou ela.
O rapaz que estava com os braços ao redor dela se levantou rapidamente e
se materializou na minha frente, cara a cara, com o punho cerrado,
apontando para meu rosto.
Era o Erick. O antigo presidente do grêmio. Fazia tempo que eu não o via.
Meu coração acelerou ao ver que ele estava prestes a me socar, fazendo eu
me curvar um pouco para trás, tentando não sentir a respiração bufante dele
em meu rosto.
— Não entendeu o que ela falou, idiota? — esbravejou ele, quase
cuspindo.
— Isso não tem nada a ver com você! — retruquei, tentando passar uma
ideia de que eu não estava com medo dele. Sendo que eu estava, e muito.
Quando ele levantou mais o braço, se preparando para me socar, Alice
interveio e se colocou entre nós dois, de frente para ele.
— Você tá louco? — gritou ela, empurrando-o para trás.
Nessa hora, meus amigos chegaram correndo por trás de mim, um pouco
atrasados se queriam impedir que eu apanhasse.
— Eu ia despachar esse babaca, Alice! — Erick estava se justificando
com ela, ainda com sangue nos olhos.
— Faça-me o favor, garoto! Como se eu precisasse da sua ajuda — disse
ela e se virou para mim, com fogo nos olhos. — E você — ela enterrou o
dedo no meu peito —, trataremos sobre o nosso assunto depois.
— Vamos, Caio! — Gabriel me pegou pelo braço, tentando me tirar dali,
mas eu insisti em ficar, não dando a mínima para ele.
— Eu só preciso de uns minutos, por favor! — pedi a ela.
Ela suspirou forte e me pegou pelo pulso, arrastando-me pelo meio do
refeitório, sob o olhar de todo mundo.
Ela não olhou para mim, nem falou nada todo o caminho em que me levou
para a fonte de água ao lado do ginásio.
Eu já estava cansado e com o pulso doendo quando paramos. Ela virou
para mim, com os olhos vermelhos e brilhantes.
— Você não tem o direito de fazer isso! — ela começou a estapear meu
peito histericamente.
Para impedir que continuasse, puxei ela para um abraço e a apertei forte
contra meu corpo. Ela ainda tentou se desvencilhar, mas cedeu e pareceu se
acalmar.
— Calma, Alice.
Passei a mão em seu cabelo para acalentá-la e quase chorei em seu ombro.
Sentia como se eu fosse a pessoa mais cruel nesse mundo por estar fazendo
ela sofrer e chorar.
Esperei que ela tornasse a si e a afastei de mim. Enxuguei com minhas
mãos as últimas lágrimas que desciam em suas bochechas, soltando um
sorrisinho, que eu não entendi se era sarcástico ou sincero.
— Alice — comecei, com a garganta seca —, eu sinto muito pelo que fiz
você passar, por fazer você ver tudo que a gente viveu ir embora como se
nada tivesse sido verdadeiro — Seus lábios tremeram e seus olhos se
encheram novamente —, mas eu posso dizer, do fundo do meu coração, que
eu te amei todo esse tempo, que tudo que a gente viveu foi real, foi por amor,
e que a única pessoa que errou foi eu. Você não tem que sentir culpa por
nada, apenas eu vacilei.
— Caio — ela me interrompeu pondo o dedo na minha boca —, você está
falando como se a gente tivesse terminado.
Encarei ela, confuso, e me afastei um pouco.
— Como assim? Você terminou comigo.
— Eu não terminei com você. Eu dei um tempo. Eu precisava absorver as
coisas.
— Mas… Mas você não falou comigo desde aquele dia.
— Exato. Eu dei um tempo para que você também pensasse no que fez.
Você pensou?
Para alguém que aparentava estar sofrendo, o semblante dela havia
mudado bem rápido. Ela estava me deixando preocupado.
— Eu não pensei. Eu achei que você já tinha decidido por nós dois —
respondi, apoiando minhas costas em uma coluna de ferro do ginásio,
tentando entender o que estava acontecendo.
— Então, responda agora.
— Responder o quê, Alice?
— Você quer voltar?
— Hã? Eu não quero voltar. Eu… Eu...
— Não precisa falar mais nada. Você já fez a sua escolha. E esses anéis
que você está nas mãos — ela apontou para meu pulso fechado e suado, que
agora estavam quase fundindo os anéis —, pode jogar no lixo. Você acabou
de fazer isso com o nosso relacionamento.
Ela não esperou eu dizer mais nada e virou as costas para ir embora. Tudo
que ela deixou foi uma confusão enorme na minha cabeça.
Quando voltei para a sala, entrei atrasado alguns minutos, para variar, mas
a professora não reclamou, só fez cara feia e baixou os seus óculos para
dizer que estava de olho em mim.
— O que aconteceu? — perguntou Gabriel, assim que sentei ao lado dele.
— Seu pescoço tá bem vermelho.
— Acho que foi a Alice — respondi, passando a mão em meu pescoço
para conferir. Senti uma trilha ardente, devia ter sido das unhas dela quando
estavam me batendo.
— Vocês brigaram? — insistiu ele, enquanto eu olhava para a frente, caso
a professora virasse e nos pegasse conversando.
— Mais ou menos — sussurrei, ainda passando a mão no pescoço.
— Mais ou menos?
— Ela que surtou por um momento, mas resolvi com ela já — contei,
virando a cabeça para ele. — Você acredita que ela disse que tinha só dado
um tempo do nosso namoro? E pediu pra voltar….
— Vocês voltaram? — ele falou alto demais e todo mundo se virou em
nossa direção.
Coloquei a mão na boca dele, enquanto corei de vergonha.
— Fiquem calados, vocês dois! — a professora gritou lá da frente,
ameaçando jogar em nossa direção o lápis que ela estava usando para
escrever no quadro branco.
— Sinto muito, professora — desculpamo-nos.
Todo mundo voltou a encarar o quadro, inclusive nós dois, que não
falamos mais nada um para o outro.
O visor do meu celular piscou e tremeu em cima da mesa com a chegada
de uma mensagem. Era do Thales, ele dizia que queria falar comigo quando
a aula acabasse. Não olhei para ele quando entrei, mas agora vi a parte de
trás de sua cabeça lá na frente.
***

— O que foi?
Thales me encarava com raiva quando chegamos atrás do ginásio, mesmo
lugar que eu tinha me resolvido com a Alice. Segui ele da sala até aqui sem
dizer nada o caminho todo pois ele não parecia estar de bom humor.
— Vocês voltaram? Por que você não me falou antes que queria isso? —
cobrou ele, apoiando-se com uma mão na parede, acima do meu ombro.
— Quê? — perguntei, embora tivesse entendido agora o motivo de ele
estar assim. — Você ouviu o que o Gabriel falou na aula?
— Vocês voltaram ou não? Só quero saber disso.
— Você tá com ciúmes? — perguntei, sorrindo provocativamente.
Estávamos em um jogo de perguntas sem respostas onde eu queria apenas
brincar com a cara dele antes de falar a verdade, mas percebi que estava indo
longe demais quando os olhos dele brilharam, e seu nariz foi ficando
vermelho aos poucos.
— Thales — quase coloquei a mão no rosto dele para acalmá-lo e enxugar
as suas lágrimas, mas hesitei por estarmos no colégio —, eu sinto muito. Eu
e a Alice não voltamos e isso não vai acontecer. Eu já falei que estou
gostando de você, apenas de você.
Ele fungou um pouco e enxugou ele mesmo as suas lágrimas, mudando
rapidamente a expressão.
— Você é um idiota — disse ele, rindo. — Você acha que eu pensei
mesmo que vocês tinham voltado?
— Ah não — falei, tentando agarrar ele, mas ele se esquivava sempre. —
Eu aqui tentando enganar você, mas era eu quem estava sendo enganado.
Você me paga!!!
Ele correu mais para o fundo da escola, e quando consegui agarrar ele
pelos braços, acabamos caindo na grama. Um para cada lado.
— Vamos lá pra casa, tenho algo que quero fazer com você.
Ele virou de lado e estreitou os olhos.
— Não é isto que você tá pensando.
— Eu não tô pensando em nada — retrucou ele.
Ele se levantou da grama e saiu correndo novamente para ir embora. Eu
não corri porque já estava cansado demais e fiz ele me esperar no portão da
saída.
Capítulo 34

Tínhamos acabado de entrar e fechar a porta da casa, nem sabia onde minha
mãe estava, mas gritei por ela.
— Mãe, eu trouxe um amigo.
— Vem aqui na cozinha, querido! — gritou ela.
Ao me aproximar da cozinha, um cheiro bastante agradável entrou pelas
minhas narinas, atiçando a minha fome.
— A senhora tá preparando o quê? — ela estava enxugando as mãos em
um pano de prato pendurado em seu avental todo estampado de frutas
quando chegamos.
Ela abriu um sorriso largo, mas não foi para mim, foi para o Thales.
Ele ficou sem jeito e fez uma careta estranha quando ela o abraçou e
beijou a sua cabeça. Agora ele sabia de onde eu tinha pego essa mania de
beijar a cabeça dos outros.
— Thaaa… Thales, não é? — perguntou, afastando-se dele. Ele assentiu,
com a bochecha corada de vergonha. — Eu não esqueceria nunca do seu
nome, ainda mais com este rosto lindo.
Até parece. Ela estava em dúvidas se era esse mesmo o nome dele.
— Mãe — tentei trazer a atenção para mim, que era filho dela —, a
senhora não me respondeu sobre o que estava fazendo.
— E por acaso você não está sentindo o cheiro? — perguntou ela, com a
mão na cintura, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Eu estava
sentindo, mas não estava identificando ao certo.
— É bolo de laranja? — Thales palpitou.
Fiz uma cara de ameaça para ele, pois provavelmente era isso mesmo.
— Isso — ela apertou a bochecha dele —, coloquei agora há pouco no
forno. Vocês vão lá pra cima? Mais tarde levo pra vocês quando esfriar.
— Sim.
Puxei o Thales pela mochila para irmos em direção a escada que subia
para meu quarto, mas minha mãe nos parou.
— Meu filho — ela colocou as mãos no cabelo do Thales —, obrigado
por ajudar o Caio a se recuperar na escola — e o abraçou.
— Mãe, Jesus Cristo! — revirei os olhos.
Arranquei o Thales dos braços dela e o fiz subir a escada correndo, antes
que ela voltasse de novo, querendo me trocar por ele.
Não o traria mais tantas vezes em casa para evitar essa babação toda.
Tudo bem que ele me ajudou no colégio, mas não foi algo tão heroico assim,
eu não era tão burro, só estava desinteressado.
— Não fique se achando para cima da minha mãe, não — avisei para ele
quando entramos no quarto, segurando-o pela gola da camisa.
— Mas eu não fiz nada, ué.
— Você, com essa carinha... — fiz um biquinho de peixe na boca dele
com a minha mão e o beijei sem avisar. — Conquista todo mundo.
Comecei a encurralar ele, o fazendo andar de costas até que topasse na
minha cama e tombasse para trás. Aproveitei para me jogar em cima dele.
— O que você tá fazendo? — perguntou ele. — Achei que tivesse me
chamado para outra coisa.
Ouvimos alguém bater na porta e nos levantamos da cama em um pulo
rápido e com o coração saindo pela boca.
A porta se abriu e a minha mãe entrou. Ainda bem que ela bateu antes de
entrar, pois quase fomos pegos no flagra. Quero nem pensar no que teria
acontecido.
— Oi, mãe — eu estava de pé ao lado do Thales, tentando parecer normal.
— Está aqui o que você tinha pedido mais cedo — ela estava segurando
uma caixa grande e amarela nas mãos.
— Ah, obrigado — fui até ela e peguei a caixa, um pouco pesada, e a
coloquei no chão, em cima do tapete ao lado da minha cama. — Mais
alguma coisa, mãe? — ela estava parada, me olhando com certa estranheza.
— Oi? Não, você nem me disse obrigado.
— Eu disse sim — eu lembrava do que tinha dito.
Ela coçou a cabeça, pensando em falar mais alguma coisa, mas desistiu e
saiu fechando a porta.
— Não entendi nada — comentei com o Thales, sentado na minha cama.
— Nem eu, mas o que é isso? — ele apontou para a caixa no chão.
Peguei a caixa de volta, agachando-me, e coloquei em cima da cama. Abri
ela e surgiu um amontoado de pequenas peças para montar.
O Thales enfiou a cabeça dentro e pegou uma peça qualquer.
— Lembra da minha Torre Eiffel?
— Mentira, né? É isso aqui? — ele colocou os olhos de volta no interior
da caixa e começou a revirar as peças, examinando algumas delas.
— Sim — confirmei, alegremente —, eu achei que ela tinha se destruído,
mas só tinha se desmontado.
Pensei que a minha mãe tivesse dado um fim nela, mas ela recolheu todas
as peças e guardou em uma caixa para que um dia, quem sabe, eu quisesse
montar novamente. Mas acontece que ela esqueceu de me falar, e só lembrou
ontem, senão eu já tinha montado de volta há mais tempo.
Tive a ideia de chamar o Thales para me ajudar nessa tarefa, já que ele
havia gostado da torre quando a viu pela primeira vez.
Eu havia montado ela pela primeira vez quando tinha uns dez anos. Na
verdade, foi meu pai quem montou, eu só ficava dando as peças para ele, que
pacientemente juntava uma por uma.
— Você quer montar comigo? — perguntei, sabendo que ele não negaria.
— Claro, vai ser legal! — seu rosto se iluminou com entusiasmo, como
criança quando recebe brinquedo novo.
— Eu vou pegar o manual de instruções aqui — eu ainda o guardava em
uma gaveta, talvez prevendo que um dia fosse precisar novamente. Seria
quase impossível montar sem ele. — Coloca a caixa no chão de volta, vamos
montar aí.
Peguei o manual e sentamos no chão, ao lado das peças. De um volume
bem pequeno e compacto, ele se revelou uma folha bem grande, estirado na
extensão da abertura dos meus braços.
Havia figuras de todas as peças enumeradas de acordo com a ordem e
posição de montagem.

***

Depois de algum tempo, o chão do meu quarto estava cheio de migalhas e


farelos. Minha mãe havia nos trazido alguns biscoitos e uns pedaços do bolo
de laranja que ela havia feito. O Thales estava com mais fome do que eu e
devorou quase tudo sozinho.
Estávamos há quase duas horas montando a torre e já dava para ter um
vislumbre dela, faltavam apenas algumas peças para finalizarmos.
Teríamos terminado antes se o Thales não tivesse batido com o pé nela
quando tínhamos montado a primeira parte, fazendo-a se desmontar
novamente. Tenho certeza que ele fez de propósito para demorarmos mais.
— Está faltando uma peça — constatou ele, olhando para a torre na nossa
frente, maior que a nossa altura, sentados.
— É verdade — estava faltando justamente a última peça, o topo da torre.
Revirei a caixa atrás de mim, mas não havia sobrado mais nada dentro
dela. Nem havia nenhuma peça perdida ao nosso redor.
— Será que não deve estar perdida aqui pelo seu quarto? — cogitou o
Thales.
— Talvez, quer procurar?
Começamos a procurar pela peça perdida por todo o meu quarto,
principalmente embaixo das coisas. Talvez minha mãe não tenha visto
quando juntou tudo. Nem eu vi, durante todos esses dias.
Não demorou muito e eu achei a peça ao lado da minha cama, encostada
na parede.
— Achei! — gritei, levantando da minha posição, agachado, que já estava
me dando dor na coluna.
Ele veio correndo de onde estava e sentou ao meu lado. Colocamos a
última peça juntos, e levamos com cuidado a torre para cima da minha
mesinha que ela ficava antes.
Capítulo 35

— Ei.
Era o Gabriel, enrolando seu braço no meu pescoço na saída da sala. Uma
aula de matemática havia acabado e estava todo mundo saindo.
— Solta, cacete!
— Você não vai ficar se esquivando para sempre dessa conversa, não.
Venha cá.
— Para, Gabriel — tentei tirar ele de cima de mim, mas ele afrouxou mais
o aperto e eu não pude fazer nada.
— Você também — consegui ver apenas um tênis All Star preto e
panturrilhas volumosas se aproximando e indo para o outro lado do Gabriel.
Era o Thales. — Quero falar com vocês dois.
— O que é isso, Caio? — Thales me perguntou, quando o Gabriel
começou a andar, levando nós dois forçadamente em baixo de seus braços.
— Eu não sei — respondi. — Sério, Gabriel? Eu tenho que ir para o
grêmio daqui a pouco. Para onde você tá nos levando?
— Você ainda tem uma hora para estar no grêmio, e o Thales tem tempo
de sobra. Só quero conversar com vocês.
Ele nos soltou depois de nos arrastar até o bosque do colégio, fazendo a
gente sentar nos bancos de concreto.
— Você não sabe ser gentil, não? — soquei o braço dele por estar
sentindo uma dor no meu pescoço. O pescoço do Thales estava
incrivelmente avermelhado, tamanha a força que o Gabriel tinha feito para
nos manter em suas garras.
— Relaxa — ele sentou entre mim e o Thales —, vocês lembram daquele
assunto?
— Qual assunto? — eu sabia qual era o assunto, e ele sabia disso, mas eu
não estava a fim de tratar disso com ele, mesmo que ele tivesse sido franco e
esclarecido a parte dele para mim.
Ele apontou para mim e depois para o Thales, confirmando que era sobre
nós dois. Ele realmente queria tratar daquele assunto.
— Eu vou começar, então, já que você está querendo não falar novamente
— ele disse para mim, e depois se voltou para o Thales. — Ele já contou
sobre mim e o Eduardo, né?
— Sim, fiquei sabendo — Thales respondeu. Eu tinha contado para ele no
dia após a volta da viagem.
— Eu não estava tão sóbrio naquela noite, e foi por causa do seu amigo —
ele pôs o dedo no peito do Thales —, aquele do basquete, que acabei
beijando o Edu na frente de todo mundo sem pensar, embora eu ache que
ninguém mais lembra ou se importe. Pelo menos não saiu na Comunidade
Virtual.
— Você bebeu porque quis. E beijou o Eduardo porque quis também —
respondeu o Thales, também enfiando o dedo no peito dele. — Mas, uma
coisa eu aconselho a você: tome mais cuidado e seja mais discreto.
— Não se preocupe comigo, vou tomar cuidado e tentar não pisar na bola
quando estiver com o Edu — disse, não levando tão a sério o conselho do
Thales. — Ninguém desconfia de que eu sou gay.
— Vou acreditar em você, hein. Mas não é fácil, seja você um dos caras
mais macho do colégio ou não, isso não importa. Você vai sofrer bullying de
qualquer forma.
— Calma, Thales. Eu estou brincando — ele tentou diminuir a tensão da
situação, vendo o Thales se irritar um pouco. — E eu não vim falar de mim.
Eu quero saber de vocês dois — continuou ele, apertando os nossos joelhos.
— O que tem eu e o Thales? — perguntei.
— O que tem? É isso que quero saber, cara — ele percebeu a minha
contínua resistência e achou melhor tratar com o Thales. — O que rola entre
vocês?
O Thales olhou para mim franzindo as sobrancelhas, sem saber o que
falar, ou se deveria falar alguma coisa.
— Vire pra mim — fiz Gabriel se voltar para mim, com um sorriso
provocativo. Ele estava nos encurralando, então era melhor ceder de uma
vez —, eu vou falar, você é meu melhor amigo e tem todo o direito de saber.
— Agora você lembra que sou seu melhor amigo, né?
— Ah, sem drama, hein! Eu e o Thales... — olhei para o Thales e ele
estava aparentemente tão apreensivo quanto eu, mas deu o aval para que eu
prosseguisse — estamos nos conhecendo melhor.
Os olhos do Gabriel dispararam, e ele fingiu levantar o seu queixo caído,
sendo o idiota que ele era sempre.
— Eu não vou dizer que eu já sabia sobre vocês, mas confesso que eu já
suspeitava dessa aproximação repentina. No início o Caio odiava você — ele
disse, olhando para o Thales —, e de repente vocês se tornaram amigos
quase inseparáveis.
— Você me odiava? — Thales me perguntou, surpreso.
— Odiar é uma palavra muito forte — mostrei o punho fechado para o
Gabriel. — Eu apenas não gostava dele. E você sabe disso, Thales — ele
abaixou os ombros em alívio.
— Você sabe que a Alice já superou você, né? — perguntou o Gabriel. —
Ela até estava por aí com aquele cara do 3º ano.
— E daí? — perguntei, sem saber aonde ele queria chegar com isso. E eu
não tinha mais tanta certeza se ela já tinha seguido em frente como ele
pensava.
— Tô querendo dizer que vocês dois não precisam esperar muito para
começar a namorar.
— Ah, para, cara. Eu acabei de falar que a gente está se conhecendo. Eu
preciso de um pouco de tempo antes de iniciar um outro relacionamento.
Você entende, não é, Thales?
Thales abriu um sorriso para mim e eu entendi que ele compreendia.
— Tudo bem, então. Tô só querendo ajudar. Não tá mais aqui quem falou.
— A gente não precisa de cupido, meu amigo. Acho que o cupido nem
trabalha para casais gays — brinquei.
— Então você também é gay? — Gabriel perguntou.
— Eu não sei.
De verdade, eu não sabia. Eu sempre ficava com meninas e gostava.
Nunca havia pensado em ficar com meninos antes do Thales surgir. Então,
talvez gay não fosse a palavra que me definisse totalmente.
— Eu acho que sou bissexual. Eu ainda gosto de garotas. Não agora,
claro. Neste momento não estou gostando de nenhuma garota — esclareci,
um pouco nervoso, antes que o Thales me entendesse mal.
— Hm — Gabriel coçou o queixo —, eu já acho que sou gay totalmente.
— Não existe gay pela metade, Gabriel. Ou 70% gay — rebateu o Thales.
— Eu tô aprendendo ainda, cara — disse ele, revirando os olhos para o
Thales. — Eu nunca gostei tanto de ficar com meninas, eu só ficava mesmo
por pressão dos nossos colegas. Inclusive sua, Caio.
— Eu? Mas eu não sabia. Desculpa, sério.
— Tá desculpado. Sinto muito não ter falado isso pra você antes, eu tinha
medo que você se afastasse de mim. E outra coisa, eu só vim ter certeza
sobre isso recentemente.
— Só não me diga que você já gostou de mim.
Não sei porque pensei isso, mas veio à minha mente e era melhor deixar
esclarecido, já que estávamos nesse momento de contar tudo.
— Claro que não, seu idiota! — ele me pegou novamente pelo pescoço e
fez cafuné na minha cabeça. — Você é como um irmão para mim.
— Da próxima vez, não me pega pelo pescoço assim, ok? Se não... —
ameacei, com raiva de verdade, pois ainda estava doendo.
Capítulo 36

— Alguém me ajuda!
Virei em minha cadeira e vi a Júlia, Diretora Social do grêmio,
desesperada, tentando pegar no ar uns papéis que a impressora estava
cuspindo sem parar no chão da sala.
Corri até ela e apertei o botão de desligar da impressora, mas ela não
cessava, acabei puxando o cabo de energia, não era possível que continuasse
funcionando.
— Obrigado, Caio! — ela me agradeceu, enquanto outros meninos na sala
riam. — Calem a boca, seus idiotas. Não foi minha culpa. Affs.
Ela começou a recolher todos os papéis no chão e eu a ajudei com isso.
— O que é isso? — perguntei.
Estava escrito em uma folha quase toda preta, com figuras de rosas,
espadas, adagas e pingos de sangue:

Audições para a Apresentação de Fim de Ano do


Colégio Santa Inês

Romeu e Julieta: Morrendo de Amor

Inscrevam-se!

Todas os papéis e funções

Assinem abaixo

____________________________
— O professor de Artes e Teatro pediu para eu imprimir e fixar nos
murais — explicou ela, tomando o último papel da minha mão.
— Que tosco — comentei.
— O quê? — perguntou ela, ficando em pé e colocando os papéis em
cima da mesa dela.
— O nome da peça — respondi, rindo.
— Eu lembro que você fez parte da peça dele no ano passado — apontou
ela.
— Não precisa me lembrar disso — encerrei a conversa e voltei para a
minha cadeira.
Ano passado eu tinha sido convencido pela Alice a tentar um papel na
peça de fim de ano. Era uma representação de A Bela e a Fera. E por mais
desacreditado que eu tivesse ido para a audição, e até rezando para não ser
escolhido, acabei conseguindo o papel da Fera, e ela, convenientemente, o
da Bela, justamente os papéis principais.
Foi a coisa mais vergonhosa que já fiz na vida, principalmente que eu tive
que me vestir com um figurino bem apertado, que marcava praticamente
todo meu corpo, em especial as partes de baixo. Sem contar o pelo sintético
que tive que colocar no rosto para ficar mais parecido com uma fera, mas
que me fez suar tanto que fiquei parecendo mais um gato escaldado.
Felizmente esse ano não tinha Alice para me obrigar a fazer peça
nenhuma.

***

— Eu estou feia hoje? Ou mais bonita? — perguntou a Mel, enquanto


estávamos indo para o refeitório.
Eu e o Thales paramos e olhamos para ela, analisando-a dos pés à cabeça.
Ela estava como sempre, com bastante maquiagem, cabelo solto todo jogado
para trás, e um sorriso confiante.
— Não! — respondemos.
— Não o quê?
— Nem mais feia, nem mais bonita, está normal — falei, voltando a
andar. — Por que a pergunta?
— Sei lá, percebi uns olhares estranhos e uns cochichos dos outros
enquanto andamos, talvez eu esteja imaginando coisas.
Eu e o Thales olhamos para trás e para o pessoal que passava por nós, mas
não percebemos olhares estranhos nenhum. Ela realmente estava imaginando
coisas.
— Parem aí! — gritou o Thales, pondo a mão no meu peito e na barriga
da Mel. — O que é isso?
Estávamos parados na frente de um mural verde na parede do corredor,
repleto de informativos fixados, mas ele estava apontando especificamente
para aquele que a Júlia havia impresso ontem no grêmio.
— Não é nada, é só uma peça estúpida que vai ter aí — tentei voltar a
andar, mas ele me impediu novamente.
— Audições para Romeu e Julieta! — leu ele, entusiasmado. — Eu adoro
esse trágico romance. O que você acha, Mel?
— O que eu acho? Acho estúpido igual ao Caio falou — ela levantou a
mão para que eu batesse, mas eu não bati. — Agora vamos, estou com fome.
— Deixem de pressa, eu quero me inscrever, alguém tem uma caneta aí?
— Sério? Você não vai querer isso, vai passar vergonha — falei por
experiência própria, tentando desestimulá-lo, mas sem sucesso. Ele ficou
fazendo beicinho.
Dei uma caneta para ele que eu tinha colocado por algum motivo no bolso
de trás do meu short.
Fiquei conversando com a Mel, enquanto ele registrava seu nome na lista,
que já tinha vários outros nomes escritos.
Dessa vez eu percebi uns rapazes que passaram por nós e olharam
indiferentes para o Thales, e depois conversaram alguma coisa entre eles.
Achei estranho, mas não dei importância.
— Você escreveu meu nome! — berrou a Mel.
— O meu também — constatei. — Pode riscar! — tentei pegar a caneta
da mão dele, mas ele se esquivou e eu acabei não conseguindo.
— Quero vocês participando comigo, por favor. É no último dia de aulas,
vai ser legal — mais uma vez ele fez beicinho, como se isso fosse nos
comprar sempre, mesmo que eu me sentisse persuadido quando ele fazia
essa cara. — E se passarmos vergonha, teremos umas férias inteira para que
as pessoas esqueçam.
— Eu nem sei atuar — adiantou a Mel, cruzando os braços.
— Você sabe fingir, então sabe atuar — ela abriu a boca com o
comentário ácido e certeiro dele. — E não precisa necessariamente pegar um
papel de atuação, pode ser uma contrarregra, ou figurinista, está dizendo
aqui, olha — ressaltou ele, apontando para umas letras minúsculas na parte
de baixo do cartaz.
Olhei para a Mel e ela deu um longo suspiro, mas aceitou. Acabei
aceitando também e deixando meu nome lá. Eu iria querer ser alguém dos
bastidores, no máximo.
— Quem sabe eu não consigo o papel do Romeu — sonhou o Thales,
abrindo um largo sorriso.
— Ou da Julieta!
Ele empurrou a Mel para longe, e eu ri do comentário maldoso dela.
Se isso faria o Thales feliz, então eu estaria dentro.
Chegamos no refeitório e nos dirigimos até uma mesa que os meus amigos
estavam. A Mel foi para o outro lado tratar alguma coisa com a Presidente
do grêmio.
Um garoto esbarrou no Thales sem querer e pediu desculpas, mas depois
saiu rindo. Havia algo muito estranho acontecendo por aqui e eu estava
ficando perturbado.
— Senta aqui! — Gabriel se afastou e abriu espaço no banco para mim e
para o Thales sentarmos.
— Valeu — agradeci.
— Caio — Henrique me chamou a atenção e apontou para trás. Olhei para
onde ele apontava e voltei imediatamente a olhar para ele. Ele me mostrou a
Alice com seu pessoal, nos braços do novo namorado, ou seja lá o que
aquele garoto fosse dela.
— Poxa, cacete! — levantei para tentar socá-lo, mas ele se afastou para
trás.
— Você sente ciúmes? — insistiu.
Os olhos do Thales estavam fixados em mim, como se ele também
estivesse ansioso pela minha resposta.
— Claro que não. Vai se ferrar! — mostrei o dedo do meio para ele.
— Enfim — falou o Gabriel, passando a mão nas minhas costas e
tentando mudar o assunto —, você vai participar da peça esse ano, Caio?
— Vai! — o Thales se adiantou e respondeu por mim. — Já se inscreveu,
por sinal.
Chutei a perna dele por baixo da mesa. Não era para ele ficar entrando na
onda dos meus amigos.
Todo mundo começou a rir, o que me deixou mais irritado.
— Então quer dizer que esse ano teremos mais uma vez a honra de
apreciar a bundinha do Caio? — Bento comentou, ironicamente,
escondendo-se atrás do Nicholas.
— Seu... — hesitei em falar um palavrão quando vi uma freira passando
ao nosso lado. — Cala a boca!
Olhei para o Thales e ele estava com cara de quem não entendeu nada,
mas riu junto com o resto para não perder a graça. Ele iria querer uma
explicação depois, e perceberia que férias nenhuma apagava da memória
momentos embaraçosos, a não ser que todo mundo que fosse assistir à peça
estivesse bêbado.
— Você também vai, líder? — perguntou o Lucas, na ponta da mesa.
— Sim, e tô bastante animado pra isso — respondeu o Thales.
— Melhor não ficar tanto — Lucas começou a rir de novo. Uma risada tão
tosca quanto ele.
Thales fechou a cara. Ele realmente estava sem entender nada do porquê
que zombavam tanto dessa peça. Na verdade, estavam zombando de mim.
Capítulo 37

Chegou o dia da audição para a peça de fim de ano do colégio e eu não


estava nada contente, estava um pouco nervoso, na verdade. A vontade de
desistir era maior do que qualquer coisa, exceto pela consideração pelo
Thales.
Estávamos eu, ele e a Mel, escorados em uma parede quente, em uma fila
quase na entrada do teatro do colégio. O sol da tarde estava diretamente em
nossas cabeças, e todo mundo queria entrar de uma vez. Faltava pouco para
liberarem a nossa entrada.
Dei uma esticada no pescoço para checar a fila até o fim e, ao meu ver,
tinha mais pessoas do que no ano passado para tentar alguma coisa na peça.
Procurei inutilmente um buraco para enfiar minha cabeça e tentei
atravessar a parede quando vi ao longe a Alice se juntando a uma amiga
dela. Ela furou a fila, mas ninguém pareceu se importar. Eu me importei por
ela estar ali, não imaginei que ela fosse tentar um papel novamente.
Eu tinha certeza que ela tentaria o papel de Julieta. Ela atuava bem, era
linda e não gostava de perder tempo se fosse por algo menor do que o papel
principal.
Esperava, mais do que nunca, que o Thales não conseguisse o papel do
Romeu que ele tanto queria. Eu não sabia como ele conseguiria lidar com a
situação de ter que contracenar com a minha ex, nem eu saberia como lidar
com isso.
— Eu desisto — falei, mas quando resolvi fugir, o Thales me puxou pela
gola da minha camisa, apertando meu pescoço.
— Não vai, não. Você me prometeu — afirmou ele, em tom ameaçador.
— E além do mais, você já participou da última vez.
— Eu não prometi nada — Não prometi mesmo, mas não iria desafiá-lo,
nem o desapontar.
— Anda — Mel me empurrou quando a fila começou a se movimentar e o
pessoal a entrar no teatro.
Fomos recebidos pelo professor de Artes e Teatro, que eu já conhecia bem
por causa do ano passado quando ele era o Diretor da peça, e pelo visto
também seria esse ano. Ele era bastante paciente e competente.
O professor era um homem de meia idade, magro, e estava trajando uma
calça cáqui, uma camisa azul marinho e uma boina de couro marrom na
cabeça. Se não fosse por essa última peça, ele estaria mais bem aparentado.
Ele entregou um formulário a cada um que entrava para que colocássemos
nossos nomes e a função que iríamos tentar, para logo entregar a ele
novamente.
O teatro estava com uma luz bem baixa, o que dificultou que descêssemos
com mais rapidez até a fileira de poltronas mais próxima do palco. Não que
eu quisesse sentar lá, mas o Thales quis.
Assim que todo mundo entrou, o professor sentou na beirada do palco, de
frente para nós e começou a falar:
— Acho que todos já preencheram os formulários, e eu preciso que vocês
venham me devolver — ele gesticulava mais do que as palavras saíam de
sua boca —, mas antes disso, quem for tentar as funções que não sejam de
atuação, podem apenas me entregar e deixarem o teatro, se quiserem. Eu
publicarei depois uma lista com os nomes dos que eu escolhi. Venham me
entregar.
Levantamos, e novamente em fila indiana, um a um, entregamos na mão
dele os papéis. Na minha vez ele me chamou a atenção:
— Caio, certo? — eu tinha dado as costas para ele, e quando me chamou,
voltei a encará-lo. — Você não vai tentar nenhum papel dessa vez? Eu não
posso deixar de aproveitar o seu talento apenas como alguém que vai ajudar
por trás das cenas, quero você fazendo parte da peça.
Todo mundo ficou me olhando e eu fiquei envergonhado, não sabendo
como negar ao pedido dele, que mais parecia uma ordem. Achei que ele não
fosse mais lembrar de mim.
— Eu não... — ele balançou o dedo em sinal de que não aceitaria um não
como resposta. — Tudo bem, eu posso tentar.
— Muito bem, pode ir sentar — e voltou a receber os formulários do
restante do pessoal.
O Thales veio logo atrás de mim, apoiando-se em meu ombro.
— Olha o que você fez, Thales. Culpa sua, eu nem queria — resmunguei,
me afundando de volta na poltrona, ao lado dele e da Mel.
— Desculpa, eu não achei que ele fosse pedir pra que você tentasse um
papel — justificou ele.
— Amigos, como eu não fui forçada a tentar nenhum papel na peça — ela
sorriu provocativamente —, e nem sou obrigada a ficar aqui, eu irei para o
grêmio, tenho umas coisas importantes a fazer. Depois vocês me contam
como foi. Espero que vocês dois consigam os papéis de Romeu e Julieta.
Bye.
Ela saiu correndo antes que o Thales pudesse xingar ou bater nela.
Outras pessoas também deixaram o teatro, as que não iriam tentar nenhum
papel. Melhor assim, menos gente para me ver pagando mico no palco.
— Pelo que estou vendo aqui — o professor se pôs de pé no palco e uma
luz vinda de cima se projetou nele, sem necessidade —, há o dobro de
pessoas em relação ao número de personagens, mas fiquem tranquilos, quem
não conseguir um papel pode fazer parte do cenário, quem sabe ser uma
árvore, um arbusto, uma parte do castelo...
A gente riu, ninguém ali iria querer ficar parado igual a uma estátua a
peça inteira. Talvez eu quisesse.
— Eu estou falando sério, gente — ele não riu, estava realmente falando
sério —, mas vamos ao que interessa. Quero que vocês formem duplas, e eu
lhes entregarei uma cena da peça, que iremos de fato apresentar, para que
vocês encenem agora para mim. Eu quero ver como vocês se saem, daí eu
poderei escolher quem vai ficar com qual papel.
Ele pediu que seguíssemos para o palco e sentássemos, formando um
grande círculo. As duplas se apresentariam no centro dele.
A minha dupla era o Thales, e a cena que ele nos entregou, que era igual
para todos, tinha só alguns diálogos pequenos entre Romeu e Julieta. Ele nos
deu alguns minutos para decorarmos.
— Você já fez isso? — perguntei ao Thales, sentado na minha frente,
tocando seus joelhos nos meus.
— Já, quando eu era criança e tive que apresentar para a escola inteira
uma peça cristã, onde eu fazia papel de um anjinho. Fora isso, nada mais.
— De anjinho você não tem mais nada — brinquei. Ele me esnobou.
Ficamos lendo e treinando os diálogos por um bom tempo, até que o
professor decidiu que era hora de começar.
— Vamos lá — ele continuou sentado, no mesmo círculo que todos, com
uma prancheta e caneta na mão, e iria avaliar dali mesmo as nossas
performances. — Vocês dois aí, levantem-se.
Ele apontou para um garoto e uma garota que estavam ao meu lado de
mãos dadas. Eles eram namorados, e bem populares no colégio, embora eu
só os conhecesse de vista.
Eles se puseram de pé e foram para o centro do círculo. O garoto era mais
alto que a namorada dele.
Meu olhar cruzou com o da Alice pela primeira vez desde nossa última
conversa e ela acenou, do outro lado do círculo. Respondi sorrindo
timidamente, e depois desviei o olhar. O Thales me cutucou discretamente.
O professor fez um gesto para que a menina e o menino iniciassem a cena,
mas ela parecia ter alguma objeção:
— Professor...
— Aqui eu não sou o professor, sou o diretor — reiterou o Diretor da
peça.
— Diretor — continuou ela —, esta cena do beijo é necessária?
Essa era uma pergunta que eu estava fazendo ao Thales. É claro que não
iríamos encenar, só estávamos esperando alguém perguntar primeiro.
Pelo que deu para entender aqui, esse beijo acontecia entre o Romeu e a
Julieta em algum lugar alheio a um baile que estava acontecendo na mansão
dos pais dela.
— Claro... — disse ele, pondo a mão na sua cintura — que não! — ele riu,
sozinho. — Eu esqueci de falar, mas não precisam encenar essa parte do
beijo, vocês podem até fingir, como quiserem, mas não concluam o ato.
Inclusive, essa peça é uma adaptação minha, e por ordens do colégio, a
maioria dos beijos ou das cenas mais acaloradas tiveram que ser cortadas. Só
haverá um beijo, e que não será ensaiado, acontecerá a primeira e única vez
no dia da apresentação. Ele acontece no leito de morte dos personagens
principais, quando a Julieta acorda do seu sono profundo e percebe o Romeu
morto ao seu lado. Enfim, vocês conhecem a história. Sem mais delongas,
comecem!
Ele presumiu que todos conheciam essa obra do Shakespeare soltando um
spoiler, mas eu não conhecia. Talvez eu fosse o único naquele lugar, ou até
no mundo, que não conhecia. Eu só sabia que era um romance proibido entre
dois jovens e que acabava em tragédia. Nunca li a peça, nem assisti a
nenhuma adaptação teatral ou para o cinema. Nunca havia me interessado,
sendo bem sincero.
O Thales disse que cuidaria dessa parte para mim caso eu conseguisse
algum papel.
As primeiras duplas que encenaram pareciam mais estar representando
uma comédia. A maioria estava nervosa e engasgava nas falas, nos fazendo
rir, o que deixava eles mais nervosos ainda.
O Diretor parecia compenetrado nas atuações e analisava, com feição
séria, anotando tudo em suas fichas.
— Para a próxima dupla eu quero fazer uma troca — disse ele —, eu sei
que pedi para vocês escolherem as duplas, mas eu não fiquei muito feliz com
duas escolhas, em particular, e quero mudar, desculpem-me a parcialidade.
Troquei olhares com o Thales e ele também não estava entendendo nada.
— Alice, levante-se com sua amiga — elas se puseram de pé. — E você,
Caio, levante-se com seu amigo.
Não acreditei que ele iria fazer aquilo.
— Quais os nomes de vocês? — ele perguntou simultaneamente para o
Thales e para a amiga da Alice.
— Thales.
— Manuela.
— Ok, formem uma dupla e voltem a sentar — ordenou ele. — E Alice,
junte-se ao Caio, vocês vão encenar agora.
Virei para o Thales, e ele me forçou um sorriso. Eu sei que ele não tinha
gostado da ideia, nem eu.
Fiquei frente a frente com a Alice, e embora fosse incômodo, ainda assim
pareceu algo natural entre nós dois. Talvez se eu tivesse que encenar com o
Thales, eu ficaria nervoso, mas com a Alice, seria como se estivéssemos em
nosso relacionamento.
— Você tá bem? — ela me acordou dos meus pensamentos. Eu estava
encarando-a, mas ao mesmo tempo não estava.
— Sim, sim, desculpa — sorri —, vamos começar.
Por já ter visto algumas duplas encenando, acabei não cometendo os
mesmos erros que eles e tentei dar o melhor de mim. Embora eu ainda
esperasse não ser escolhido.
Eu e Alice nos saímos bem com os diálogos e com a interpretação. Tentei
não ficar tão próximo dela, mas ela sempre fazia com que nos
aproximássemos.
O pessoal aplaudiu quando terminamos, junto com o Diretor, que pareceu
ter adorado.
O Thales foi a última dupla a tentar, e eu tive que ficar sentado ao lado da
Alice até o fim. Eles também foram bons. Eu não conhecia esse lado
artístico dele e ele estava bastante confiante e obstinado. Interpretou como se
conhecesse bem a amiga da Alice, e falasse de todo coração e alma.
— Garotos, eu amei todos vocês — o Diretor agradeceu, se curvando —,
então, preciso de tempo para pensar em quem serão os escolhidos.
Divulgarei amanhã uma lista com os nomes e os papéis que cada um vai
fazer. Estejam dispensados e boa sorte!
Minhas costas estavam doendo muito quando levantei. E ainda tive que
ajudar a Alice a se levantar, mesmo querendo sair de perto dela o mais
rápido possível.
O Thales se aproximou logo em seguida.
— Vamos? — ele apertou a sua mão em meu ombro e me guiou para fora
do palco.
Quando saímos do teatro, o sol estava prestes a se pôr. Nem percebi as
horas passando.
A Mel mandou mensagem para o Thales falando que ainda estava no
grêmio e pediu que passássemos por lá, ela queria saber tudo que aconteceu.
Capítulo 38

— Olha, Caio!
A Mel entrou saltitante e alegre na sala do grêmio, sacudindo uma folha
na mão. Parecia que tinha ganhado na loteria.
— O que é isso? — tentei pegar da mão dela, mas ela puxou. E eu estava
com preguiça de me levantar da cadeira para tentar roubar dela.
— É o resultado da audição da peça.
Não era algo que eu estava tão interessado em saber. Ontem o Thales
quase não falou comigo depois dessa bendita audição, e até chegou a dizer
que não queria mais participar da peça, mas hoje de manhã ele tinha mudado
totalmente de humor e opinião, estava ansioso para saber o resultado. Difícil
de entender.
Acho que ele só estava de cabeça quente quando saímos do teatro. Ainda
bem que não entrei no humor dele, senão teríamos discutido por nada.
— Você quer que eu fale? — perguntou ela, escondendo o papel por trás.
— Claro, ora. Fala logo! — bati com força a mão na mesa sem querer e
ela se assustou. — Eita, desculpa.
— Esquentadinho, veja você mesmo.
Ela me entregou o papel e meu queixo caiu com o que os meus olhos
viram.
Eu fui escalado para ser o Romeu, e a Alice... bem, Julieta. O nome do
Thales vinha logo abaixo do nosso, ele seria um tal de Páris, ou seria Paris?
— O Thales vai matá-lo, só acho — Mel comentou.
— Eu sei — voltei a olhar para ela e devolvi o papel.
Já estava me sentindo um cara morto. Eu teria que contracenar com a
minha ex, fazendo um par romântico com ela, e ainda teria um beijo no final.
O colégio bem que poderia ter proibido todos os beijos.
Isso era muita ironia do destino. O Diretor não poderia ter me metido em
uma enrascada maior do que essa.
— Ele ainda não viu — recebi um tapa na cabeça, vindo da Mel. — Ei,
estou falando com você. O Thales está em uma reunião do conselho de
classes e ainda não viu. Ele vai sair já. Se prepare.
— Eu acho que vou pra casa — tentei me levantar, mas ela me abaixou
pelos ombros.
— Pare com o drama, ele não vai fazer nada, eu só estou colocando pilha.
Até porque foi ele quem nos obrigou a fazer isso.
— Falei a mesma coisa pra ele ontem. Mas, enfim, você conseguiu
alguma coisa?
— Sim — ela revirou os olhos —, vou ajudar com os figurinos.
— Vamos trocar — pedi, tentando me safar.
— Por acaso eu tenho cara de Romeu? E de quem gosta de beijar
meninas? — perguntou, apontando para si mesma.
— Não e sim — respondi, brincando.
Levei outro tapa na cabeça. Se a Mel estava me batendo assim, de graça,
imagine quando o Thales soubesse que eu seria o Romeu e ele não seria a
minha Julieta.
Um toque de notificação soou do bolso da Mel e ela retirou o celular para
ver o que era.
— Acho que o Thales já sabe — disse ela, olhando para o seu celular. —
Ele pediu para encontrá-lo atrás do ginásio. E ainda finalizou com uns
emojis de choro.
— E depois o dramático sou eu — falei.
— Eu volto já, trago ele...
— Não, eu vou com você. A Júlia fica aqui cuidando do grêmio, certo? —
falei alto para que a garota sentada no fundo da sala escutasse, e ela
respondeu com um tudo bem sem tirar os olhos do seu celular.
Saímos apressados ao encontro do Thales por trás do ginásio, e chegando
lá, ele estava cabisbaixo, sentado na grama, com o rosto afundado em seus
joelhos e nem percebeu quando nos aproximamos.
— Thales — gritou a Mel, tocando nos braços dele.
Ele levantou a cabeça, assustado, e seu rosto se revelou avermelhado,
abatido e chorando. Fiquei apavorado ao vê-lo daquele jeito. Isso não podia
ser por causa da peça. Algo a mais tinha acontecido.
A Mel se ajoelhou na grama e o abraçou.
— O que aconteceu, Thales? — perguntou, virando o rosto para mim,
confusa.
Ele começou a chorar mais ainda, e mais alto, apertando o abraço com a
Mel.
— O que aconteceu, Thales? — repeti a pergunta dela, já muito
preocupado com ele.
— Eles já sabem... — respondeu ele, com uma voz embargada, sem
conseguir terminar a frase.
— Quem sabe o quê? — perguntou a Mel.
Ela se afastou dele, e ele levantou a cabeça, tirou o celular do bolso e deu
para que ela visse o que estava na tela.
Sentei ao lado dele, colocando a mão em sua cabeça, entristecido por ele
estar daquele jeito, enquanto a Mel via alguma coisa.
— De novo isso? Esses babacas! — indignou-se ela, passando o celular
para mim.
“Mais novo casal gay do colégio!!!”, era isso que estava escrito no título
de um post da Comunidade Virtual.
Meu coração disparou e eu fiquei alguns segundos apenas olhando para
aquela frase com medo de descer a tela, mas eu desci. Havia uma foto. Uma
foto minha e do Thales. Eu e ele estávamos sentados um do lado do outro,
comigo deitado no ombro dele enquanto dormíamos. Eu reconheci a foto
imediatamente. Ela havia sido tirada por alguém na volta da viagem de
ônibus que havíamos feito no recesso.
E o post não acabava por aí. Havia prints de alguma conversa no
WhatsApp sobre o que tinha acontecido na última escola que ele havia
estudado. Eu não aguentei ler tudo, ainda mais que eu já conhecia a história
por inteiro.
Infelizmente alguém tinha descoberto tudo sobre o Thales, e ainda juntou
meu caso com ele para fazer uma espécie de exposed de nós dois. Eu estava
prestes a começar a chorar, mas eu olhei novamente para o Thales, e ver ele
daquele jeito só me fez pensar que eu deveria apoiá-lo e permanecer forte
para fazer isso.
Ao mesmo tempo, um ódio tão forte tomou conta de mim naquele
momento que a minha vontade era de sair dali e bater em todos que estavam
falando mal dele nos comentários do post.
— Olhe para mim — fiquei de cócoras na frente dele e fiz ele me encarar,
mesmo ainda em lágrimas —, você tem a mim. Você tem eu e a Mel ao seu
lado. Não se preocupe com isso. Você está me entendendo, Thales?
— Levante daí, vamos tomar uma água — disse a Mel.
Ajudamos ele a se levantar e o levamos para a sala do grêmio. Ele se
acalmou ao nosso lado, mas estava tremendo e com medo. Era estranho ver
um cara como ele transbordando toda a sua vulnerabilidade, acanhado e
temeroso.
Ficamos no grêmio até que ele se acalmasse totalmente e fomos para casa.
Eu pensei em deixá-lo em sua casa, mas ele quis ir sozinho.
Capítulo 39

— Preciso da sua ajuda — falei ao telefone para o Gabriel.


— Onde você tá, cara? Eu tava ligando para você há um tempão, mas
você não atendia.
— Meu celular estava descarregado. Só ligou agora que cheguei em casa
— expliquei, enquanto sentava na frente do meu computador para abrir a
página da Comunidade Virtual novamente. — Você viu o post, né?
— Vi sim. Todo mundo viu, na verdade. Como isso foi acontecer?
— Não sei. Só sei que o Thales está péssimo. Não é a primeira vez que
isso acontece com ele.
— Eu li os prints, não sabia que ele tinha passado por isso na outra escola.
Mas, e você... como você tá?
— Eu? Eu não sei ainda. Minha cabeça está a mil. Ainda não parei para
pensar nas consequências dessas revelações, mas eu quero tentar diminuir os
danos, por isso tô ligando pra você.
— Como posso ajudar?
— Foi você que conseguiu retirar da Comunidade Virtual aquele post da
minha discussão no colégio com a Alice, não foi?
— Sim.
— Então, preciso que você faça o mesmo agora — pedi, enquanto a
página abriu na minha frente e eu vi que o post continuava lá com as pessoas
comentando.
— Meu Deus, Caio! — disse ele, espantado, do outro lado da linha. —
Você sabe quem eu procurei para tirar aquele post da outra vez?
— Claro que não.
— O Erick. O Erick é o administrador da página.
— O novo namorado da… — não consegui terminar a frase, porque eu
não estava querendo acreditar no que eu havia acabado de perceber.
— Da Alice, sua ex-namorada — completou ele.
— Preciso desligar o telefone agora. Faça o que eu pedi, por favor.
Não esperei ele responder e desliguei na cara dele. Eu tinha que sair de
casa e ir encontrar uma pessoa imediatamente.
Troquei de roupa às pressas, porque eu ainda estava com o uniforme do
colégio e desci as escadas, mas minha mãe me parou antes de eu sair.
— Pra onde você tá indo, Caio? Acabou de chegar.
— Mãe, eu preciso sair para resolver algo com a Alice — contei,
impaciente, mirando a porta da entrada na minha frente.
— Mas vocês não terminaram?
— Exatamente. Preciso resolver isso com ela.
Ela pareceu confusa, mas abriu espaço para que eu passasse assim mesmo.
E eu saí apressado sem nem fechar a porta.
— Tome cuidado!
Chamei um carro pelo aplicativo e segui direto para a casa da Alice. Era
fim de tarde e estava começando a anoitecer. O trânsito estava mais parado
do que o normal, ou era a minha impaciência e irritação me fazendo perder a
noção do tempo.
Durante o caminho inteiro eu só pensava em chegar na casa dela para
confrontá-la cara a cara. Eu precisava de uma explicação para aquilo.
Parei na frente da casa dela após alguns minutos que mais pareceram uma
hora inteira. Mas vi pelo relógio em meu pulso que a corrida não havia
durado mais do que vinte minutos.
Apertei a campainha da casa dela freneticamente, até que alguém
apareceu e abriu o portão. Era a empregada da casa dela. Eu não lembrava
do nome dela, mas lembrava dela. E parecia que ela também lembrava de
mim, pois sorriu assim que me viu.
— Olá, garoto. Veio ver a Alice?
— Sim — respondi, temendo que ela não fosse me deixar entrar, mas ela
não se opôs e deixou que eu passasse.
— Ela está no quarto dela. Vou levar você até lá — disse ela, me
acompanhando pela entrada da casa.
— Não precisa. Eu sei onde é o quarto dela. E ela sabe que eu estou
chegando.
— Tudo bem — respondeu, me mostrando a escada que subia para o
quarto da Alice, e informando: — os pais dela não estão em casa.
Ela piscou um olho para mim quando pisei no primeiro degrau, e eu fingi
não entender o que ela havia dito. Com certeza ela não sabia que eu e a Alice
havíamos terminado há muito tempo.
Bati três vezes na porta do quarto da Alice e ela gritou do outro lado
dizendo que estava vindo.
Quando abriu a porta, não pareceu tão surpresa com a minha presença e
mostrou um sorriso cínico. Não esperei ela me deixar entrar e segui para
dentro do quarto. Ela fechou a porta e me seguiu.
— Olá para você também, Caio.
— Sério?
Tirei o celular do meu bolso com dificuldade, pois eu estava bastante
nervoso, e coloquei bem na cara dela.
— Você pode me explicar o que é isso?
Ela se afastou um pouco e ficou olhando por alguns segundos para a tela
do meu celular, até que resolveu falar.
— Não sei, me diga você — respondeu e foi sentar na sua cama, virando
de costas para mim.
Segui ela e parei na sua frente, porém guardei o celular de volta no bolso.
Ela já sabia sobre o que eu estava falando, mas resolveu pagar de
desentendida.
— Por que você fez isso? — perguntei.
— Como você acha que eu fiquei depois que descobri que você me traiu?
E pior, não foi nem com quem eu pensei que fosse. Foi com aquele… aquele
viadinho do Thales.
— Não toque no nome dele. Você não tem o direito — falei, tentando não
elevar meu tom de voz, mas se ela falasse novamente o nome do Thales, eu
não iria me controlar.
Ela se levantou da cama e ficou cara a cara comigo, quase espumando.
— Então você tá com ele mesmo, né? Nunca pensei que você fosse…
— Gay? — completei, porque eu percebi que ela se sentia incomodada em
ouvir ou falar essa palavra. — Isso não diz respeito a você. Nossa relação já
tinha acabado, mas você ainda foi capaz de fazer tudo isso. Sério, você não
era assim.
— Eu não era assim mesmo! VOCÊ me fez assim — gritou no meu rosto,
cuspindo.
— A culpa é minha por você ser tão mau caráter? Eu não estou ouvindo
isso. Não estou mesmo.
Saí de perto dela, pois estava ficando mais irritado só de olhar para o seu
rosto, que não expressava nenhum sentimento de arrependimento, muito
pelo contrário, era uma feição de vingança. E ela parecia estar adorando me
ver enfurecido.
— Você quer saber como descobri tudo isso?
Não respondi.
— Eu vou contar assim mesmo.
Ela se aproximou de mim e começou a me rodear, passando a mão no meu
ombro, como se tentasse me seduzir.
— Primeiro que eu achei que você estava me traindo com aquela sonsa da
Mel e fui procurar saber mais sobre ela — contou, ainda me rodeando. — Só
que eu acabei descobrindo outra coisa muito mais interessante. Eu tenho
uma prima que estuda na mesma escola que ela e o Thales estudavam.
Então, eu perguntei a ela se os conhecia. E adivinha? Ela me contou tudo.
— Você se acha muito esperta, não é? — perguntei, afastando a mão dela
de perto de mim.
— Eu sou esperta. Mas, continuando… depois que eu descobri tudo isso,
eu resolvi dar mais uma chance pra você. Você lembra?
— Quando você me perguntou se eu queria voltar?
— Sim, mas o que você fez? Você jogou essa oportunidade fora — ela
deu um tapa no meu peito e voltou a sentar na sua cama. — Daí, eu comecei
a espalhar a fofoca no boca a boca, mas não surtiu o efeito que eu desejava.
— Você é uma doente!
— Você, que é gay.
— Quê?
— Não importa. Continuando o que eu estava falando, eu tive que partir
para o plano B e fazer aquele post na Comunidade Virtual. Não tinha como
não dar certo. Mas, você sabe porque eu fiz tudo isso? Porque eu amo você!
Eu não podia mais continuar ouvindo toda aquela conversa doentia e não
esperei mais ela falar nada quando saí correndo do quarto para ir embora.
Ao chegar no jardim eu não consegui segurar e vomitei. Eu estava me
sentindo tão mal que meu corpo não aguentou.
— Garoto, você tá bem?
Era novamente a empregada da família. Ela estava com uma mão nas
minhas costas, fazendo algum tipo de massagem, mas eu não dei atenção
para ela e fui até a porta para sair daquela casa. Eu não queria ficar mais um
segundo naquele lugar.
Vaguei por alguns quilômetros pelas ruas iluminadas e movimentadas da
cidade antes de ir para casa, e fui quando me senti melhor.
Capítulo 40

— Tá arrumando as coisas por quê? Ainda nem tocou o sinal — Gabriel


indagou, virando a página do seu livro.
Eu estava jogando meu caderno e minhas canetas dentro da mochila sem
me importar se a aula tinha acabado ou não. Eu precisava sair.
Olhei para o relógio em cima do quadro na sala e faltavam cinco minutos
para o sinal tocar, não faria diferença se eu desse o fora naquela hora.
— Tenho que encontrar a Mel — respondi, levantando da cadeira e indo
em direção a porta.
— Ei, mocinho — o professor em sala apontou para mim —, ainda não
terminei a aula.
Dei de ombros e saí apressado da sala assim mesmo. Levaria falta, mas
tudo bem. Não tinha conseguido prestar atenção na aula, de qualquer modo.
Eu estava presente só em corpo, porque a alma e o coração estavam longe.
Encontrei a Mel sentada no chão e com as costas na parede do lado de
fora do grêmio, ela estava me esperando enquanto lia algum livro.
— Ei — chutei o tênis branco dela para ela me notar, deixando uma marca
de sujeira.
— Cachorro! — xingou ela, ficando de pé com dificuldades. O vento
quase fez a saia dela se levantar. — Você fugiu da aula?
— Fugi, claro. E você também — constatei.
— Só porque você pediu — ela fez cara de cão raivoso, mas parecia mais
com um chihuahua.
— Por que o Thales não veio hoje? — perguntei, apoiando meu braço na
parede quando o sinal tocou e os alunos começaram a sair das salas e a
passar por nós. — Ele não responde às minhas mensagens, nem atende às
ligações.
— Ele está de atestado pelo resto da semana.
— De atestado? Ele ficou doente depois do que rolou ontem?
Ela se aproximou de mim e segredou em meu ouvido:
— Ele não está doente de verdade, ele apenas não quis vir. Você sabe
como ele está se sentindo, Caio.
— Eu sei, mas... — pensei um pouco e tentei não ser insensível ao caso
dele. — Ele não vai conseguir fugir da realidade pra sempre. Qual a
diferença de ele vir só na próxima semana, ou ter vindo hoje? As pessoas
vão falar do mesmo jeito.
— Caio??? Você não está sendo empático com ele.
— Sendo o quê?
— Deixa pra lá. Mas você precisa falar com ele.
— Eu vou lá na casa dele, você vai comigo? — eu estava tentando sair
dali o mais rápido possível, pois as pessoas passavam olhando para mim
curiosos.
— Não, eu tenho que ficar aqui no grêmio. E você também, inclusive, tem
que cuidar de umas coisas do campeonato de futsal que se aproxima.
— Faz essas coisas por mim. Cobre aí meu turno, por favor!
— De novo? Mas eu…
Não esperei ela resmungar mais e saí correndo, pois eu precisava falar
com o Thales.

***

Apertei a campainha da casa dele duas vezes, até que a porta se abriu.
— Você?
— Sim, eu mesmo.
Passei pela porta sem esperar que o Thales permitisse a minha entrada.
Claramente ele não esperava pela minha visita.
Ele estava usando apenas uma bermuda moletom preta, mostrando o
elástico cinza de sua Calvin Klein, chinelos, e nada cobrindo seu peito.
— É assim que você recebe as pessoas? — perguntei, quando ele trancou
a porta.
— Eu não sabia que você viria — respondeu, coçando o pescoço.
— Claro, você não me responde no celular — aproveitei a deixa para
reclamar —, mas eu estou falando de como você está vestindo. Você recebe
as pessoas assim?
— Ah — ele tocou seu corpo, dando conta de como se vestia —, eu estava
na sala assistindo e vim diretamente atender quando a campainha soou.
Ainda bem que era você. Entra.
Entramos na casa dele, e a sua mãe estava sentada em uma poltrona, na
frente da TV.
Ela se levantou assim que me viu e veio até mim, contente, com uma
xícara grande na mão. Pelo cheiro inconfundível, ela estava tomando café.
— Oi, Caio! Eu não sabia que você viria, o Thales não me avisou nada...
— ela fez cara de desaprovação para o filho. — De novo.
— Eu... — pisei no pé dele discretamente e ele parou de falar.
— E olha que mandei ele avisar — contei. Ele arregalou os olhos ao ver a
minha fácil capacidade em mentir para a mãe dele. Melhor ele ser mal visto
pela mãe, do que eu, alguém não tão íntimo.
— Não tem problemas, você será sempre bem-vindo aqui — Já podia
considerar a mãe dele como a minha terceira mãe. A segunda era a do
Gabriel, e a primeira, era a primeira mesmo. — Vem assistir aqui com a
gente — convidou ela.
— Não, mãe. Eu vou subir com ele para o quarto.
— E você não vai terminar o episódio que estamos vendo?
Olhei para a TV e a tela estava paralisada em uma imagem de alguém com
o estômago aberto em uma mesa de cirurgia. Não era algo bonito de se ver.
— Depois, mãe. Tchau.
— Tudo bem, eu vou terminar aqui então, sozinha… sozinha — ela
dramatizou essa última palavra, tentando fazer chantagem emocional, mas o
Thales nem se importou. — Se cuidem.
Antes que ela terminasse de falar, ele me puxou pelo bolso do meu short
do colégio.
Subimos as escadas e entramos no quarto dele.
— Você não parece estar doente — cutuquei ele, sentando em sua cama
bagunçada.
— Doente? Ah, sim — ele se sentou ao meu lado. Pensava que eu não
sabia da história do atestado. — Eu não estou doente, eu só...
— Você vai ficar fugindo até quando? — interrompi, mas depois repensei
que falei besteira.
Ele baixou a cabeça e pôs a mão em meu joelho.
— Você não entende, Caio. Eu estou passando por isso de novo.
— Olhe pra mim, quero olhar nos seus olhos — levantei o queixo dele e
ele se direcionou a mim —, eu posso não estar sofrendo como você, porque
eu resolvi lidar dessa forma com esse nosso exposed, mas eu entendo muito
bem que fugir do problema não significa resolver o problema. Eu mesmo
fazia isso sempre, mas não adiantava — suspirei. — Uma hora ou outra
temos que encarar e enfrentar.
— Como eu vou encarar isso, Caio? Me fale — o olhar dele inundou-se
de tristeza.
— Como eu disse, o primeiro passo é não fugir do problema. Você
consegue fazer isso? Mostrar para as pessoas a sua fraqueza é só mais uma
arma para elas continuarem te atacando.
Ele me abraçou e uma lágrima desceu em meus olhos.
Eu estava falando aquelas coisas de coração, não só para ele, mas para
mim mesmo. Já passou o tempo em que eu me trancava no quarto ou saía de
casa para esquecer dos problemas, como se isso fosse dar um fim neles.
— Você lembra do que falei ontem? — perguntei, acariciando a sua
cabeça. Não sei se ele estava chorando. — Eu vou estar ao seu lado. Eu vou
te proteger.
Ele me apertou em seus braços e ficamos ali por alguns minutos, sem falar
nada, sentindo o calor um do outro, e nos enchendo de força.
— Você pode dormir aqui hoje? — perguntou ele, voltando a me olhar,
com o nariz escorrendo.
— Eu não sei se minha mãe deixaria — era tudo que eu queria, passar a
noite com ele em meus braços. — E nem sei se sua mãe concordaria.
— Não teria problemas com a minha mãe — ele passou a mão no nariz e
fungou —, e eu posso pedir pra ela ligar pra sua. Se quiser, claro.
— Vamos tentar. Mas eu não trouxe nenhuma roupa.
— Isso é o menor dos seus problemas, tenho um guarda-roupa repleto.
Seus olhos agora brilhavam, mas de alegria. Seu rosto tinha se acendido
como o sol que nasce ao amanhecer.
Fiquei muito feliz que ele pudesse confiar em mim, que ele visse em mim
não só alguém que ele gostava, mas que também gostava dele, e que estava
disposto a se transformar em um escudo para protegê-lo.
— Vamos lá embaixo pedir para a minha mãe ligar para a sua.
Saímos do quarto e descemos as escadas bem devagar e silenciosamente,
o Thales queria assustar a mãe dele. Não foi minha ideia.
— Mãe! — ele gritou quando nos aproximamos do sofá.
Ela pulou assustada, com o controle remoto na mão, em posição de
ataque.
Não sei como ela iria nos matar com essa arma altamente perigosa, mas eu
e o Thales começamos a rir e ela pôs a mão no coração para sentir se ainda
batia.
Tentei parar a gargalhada, mas eu não consegui. A risada tosca do Thales
me fazia rir mais ainda.
— Seus loucos, quase me matam! — reclamou ela. — Quer ficar sem
mãe, Thales?
Paramos de rir um tempo depois, quando nossas barrigas começaram a
doer de tanto se contorcer.
— Desculpa, mãe.
— Foi ideia dele! — acusei, prontamente.
— Só pode ter sido ideia desse moleque, ele sempre faz isso. Mas, o que
vocês querem?
— Mãe, o Caio pode dormir aqui hoje? — Thales perguntou.
Ela me olhou, tentando entender qual era o motivo disso e perguntou:
— Você está metido em algum problema, Caio? Fugiu de casa? Fez...
— Mãe...
— Não, senhora… Sara. Foi o Thales que me pediu.
Ela pensou mais um pouco no caso e concordou.
Eu a entendi, só estava preocupada, e não queria criar problemas para
ninguém.
— Seus pais sabem?
— É...
— Mãe, ligue para a mãe dele e peça. A gente não sabe se ela vai deixar,
mas tente, por favor — Thales implorou, tentando ganhar a mãe dele com
sua cara de cachorro pidão.
— Filhinhos, vocês só metem as suas mães em enrascadas. Tudo bem, eu
vou ligar — disse ela, fazendo biquinho e me pedindo o telefone.
Disquei o número em meu telefone, fiz a chamada e passei para a mão
dela.
— Esperem aqui — ela colocou o telefone no ouvido e saiu para algum
outro cômodo da casa. Acho que ela queria falar com a minha mãe a sós.
Papo de mães.
— Você vai ver, ela vai conseguir. Minha mãe tem um alto poder de
persuasão — ele piscou um olho para mim, e me puxou para o seu lado.
— Tomara — cruzei os dedos.
A mãe dele voltou uns dois minutos depois e me passou o celular.
— Ela quer falar com você — a feição dela não era das melhores.
— Oi, mãe — falei, temeroso, esperando pela proibição.
Abri um sorriso quando ela começou a falar. Ela só queria dizer que eu me
cuidasse e que tivesse modos na casa dos outros. E assim nos despedimos.
— Obrigado, mãe!
O Thales me abraçou e eu fiquei sem jeito olhando para a mãe dele. Ela
pareceu não se importar e sorriu para mim.
— Mãe, você é o máximo! — bradou ele, agradecendo-a, porém ainda me
abraçando.
Ele percebeu que eu estava tentando me soltar dele e não me deixou sair.
A mãe dele acabou nos deixando sós e indo para algum outro lugar da
casa.
— Você é louco! — dei um soco no ombro dele quando me soltou. —
Quase quebrou minhas costelas — esse não era o real motivo de eu ter
reclamado.
— Você tem muitos músculos para se proteger — retrucou ele, passando a
mão em meu peito.
— Para! Sua mãe pode aparecer a qualquer momento.
— E daí?
Não insisti na discussão. Subi as escadas correndo e ele veio atrás de mim.
Acho que esses não eram os modos que a minha mãe pediu para eu ter na
casa dos outros.

***

Passamos a tarde toda jogando no PS4 dele. Como eu estava em território


inimigo, acabei perdendo quase todas as partidas dos jogos de corrida e de
luta que ele escolheu. Embora, mesmo no meu território, eu também fosse
um péssimo jogador de qualquer coisa.
Depois de anoitecer, descemos para jantar com a mãe dele e comemos
rapidamente porque o Thales queria voltar para o quarto e dançar no Just
Dance. Ele ainda tinha muita energia para gastar hoje. Só de pensar que a
direção da escola achava que ele estava doente e de cama...
— Eu não sei dançar, Thales — resmunguei, enquanto ele escolhia a
música que íamos dançar no jogo. — E a minha barriga está cheia. Isso não
vai dar certo.
— Se não sabe, aprende — retrucou ele. — Vou escolher uma coreografia
mais leve para não termos que fazer movimentos tão exagerados.
Eu não conhecia quase nenhuma música das que ele escolheu.
Começamos com umas mais fáceis, e mesmo assim eu perdia quase todos os
movimentos que iam passando na tela da TV dele. Eu não conseguia nem
entender como se faziam aqueles passos.
Com o passar do tempo, fui perdendo a timidez e já estava pegando os
movimentos mais facilmente, mesmo que o Thales estivesse há anos-luz de
mim no quesito dança. Ele parecia um profissional.
Enquanto eu me divertia olhando para ele dançando, ele se concentrava
em não errar e fazia bem mais pontos que eu.
Preciso nem dizer que ele se saiu melhor em todas as músicas, mas o que
valeu foi a diversão.
Dezenas de músicas depois, estávamos suando e cansados, era hora de
parar. Aquela energia toda do começo tinha se esgotado totalmente.
Joguei meu corpo no chão do quarto dele e ele se atirou também, colando
a minha cabeça na sua.
— Estou morto — falei.
— Eu também — repetiu ele, ofegante.
— Você é péssimo, Caio. Tem os quadris mais duros que a minha avó de
oitenta anos.
— Sei! — bati minha cabeça na dele, e me arrependi com a dor. — Au!
— Seu louco, tá doendo aqui também.
Ele se levantou e sentou no chão, me olhando de cima. Senti um pingo de
suor da cabeça dele cair na minha testa.
— Eca, Thales!
Fiquei de pé e chutei a coxa dele. Ele me pegou pelo braço e fez força
para subir, pondo-se ao meu lado.
— Vamos tomar banho! — falei.
— Vamos? Nós dois juntos? — ele coçou a cabeça, desconfiado, e eu
concordei com a cabeça. — Não acho uma boa ideia, melhor você ir
primeiro. Irei logo após.
Ele me empurrou em direção ao banheiro. Acho que não gostou da ideia,
mas não tinha problema. Era melhor eu manter meus pensamentos impuros
para depois.
— Eu vou precisar de uma outra cueca novamente — avisei.
— Dessa vez não vai.
Ele foi em direção a gaveta de cuecas dele em sua cômoda e puxou uma
que era familiar.
— Não acredito que você guardou, Thales — falei, impressionado, e
assustado ao mesmo tempo. — Eu mandei você jogar fora.
Ele veio até mim trazendo na mão a cueca de super-heróis que eu deixei
na casa dele quando tinha ido pela primeira vez.
— Claro que eu não iria jogar — Ele a entregou na minha mão —, eu
mandei lavar, mas não usei, obviamente. Eu só estava esperando a
oportunidade para lhe devolver, ou quem sabe guardar de lembrança sua. Eis
que surge uma oportunidade.
Ele me deu um tapa na bunda e me conduziu até a entrada do banheiro no
quarto dele.
— Ah, só mais uma coisa — falei, só com a cabeça para fora da porta do
banheiro —, como você conseguiu um atestado?
— Meu pai é médico e minha mãe é enfermeira, então... — respondeu,
estalando os dedos, como se já tivesse usado desse privilégio outras vezes.
— Ok, espertinho.
— Vá logo, quando você sair eu lhe darei um pijama.

***

Confesso que pensei que poderíamos aproveitar a noite sozinhos em um


quarto e fazer alguma coisa mais especial, além de jogar e dançar, mas no
fim ficamos tão cansados e esgotados que após o banho a única coisa que
queríamos era dormir.
Thales apagou as luzes do quarto quando eu já estava deitado na sua
cama, restando apenas a iluminação de um abajur, ao meu lado.
Ele levantou o edredom e entrou embaixo, se aproximando até nossos
corpos se tocarem. Ele estava de pijama completo, e eu quis usar apenas a
parte de baixo. Preferia dormir mais livre.
— Deite aqui em meu peito, com certeza é mais confortável que esse
travesseiro aí — comentei.
— Mais confortável não é, mas com certeza eu me sentirei melhor.
Ele repousou delicadamente sua cabeça em meu peito nu, bem em cima
do meu coração. Eu o envolvi em meu braço, e fiquei passando a mão em
seu cabelo ainda um pouco úmido.
— Obrigado, Caio — murmurou, já sonolento. — Eu te amo.
Ele deve ter sentido meu coração bater mais forte em meu peito quando
ouvi da sua boca um primeiro "eu te amo".
Aquele momento foi tão especial que eu desejei tê-lo ao meu lado todos
os dias, todas as noites antes de dormir, para todo sempre em minha vida.
— Eu também te amo — respondi e beijei a cabeça dele.
Apaguei a luz do abajur, envolvendo o quarto em uma escuridão sem fim
e continuei acariciando seu cabelo até que adormeci. Ele já tinha adormecido
há bastante tempo.
Capítulo 41

Uma pequena fresta de luz passou pela janela do quarto do Thales e veio
diretamente iluminar o meu rosto, fazendo-me despertar.
Abri os olhos vagarosamente e a primeira coisa que vi foi ele ao meu lado.
Ele tinha retornado para o seu travesseiro e estava dormindo de lado, com o
rosto voltado para mim e as mãos embaixo da cabeça.
Um meio sorriso se revelava nele, acho que ele estava sonhando, e só
podia ser comigo.
Eu também estava sorrindo para ele, mas não era em sonho, era a mais
pura realidade. Significava muito para mim tê-lo ao meu lado. Pensei em
tocar no rosto macio dele, ou em seu cabelo bagunçado, mas fiquei com
receio de acordá-lo.
Levantei cuidadosamente da cama, tirei o pijama que ele tinha me dado e
deixei jogado no chão.
Vesti meu uniforme da escola que eu tinha deixado no banheiro dele, lavei
meu rosto e tentei dar uma arrumada no meu cabelo, bem mais bagunçado
que o dele. Tudo isso fazendo o menor barulho possível. Nem as luzes
acendi.
Como eu não queria arrancá-lo do seu sonho gostoso, peguei um post-it
amarelo na minha bolsa e escrevi um recado para ele, deixando colado na
mesa de cabeceira, ao lado de sua cama.
Quando ele acordasse, não me veria, mas receberia o meu carinhoso bom
dia escrito. Até coraçõezinhos eu desenhei.
Abri a porta do quarto e parei para observá-lo na penumbra por mais
alguns segundos. Mas já era hora de partir.
Desci devagar as escadas, rezando para ter alguém acordado na casa.
Senão, como eu iria sair?
Escutei um barulho quando cheguei no último degrau e segui o som,
segurando meu sapato na mão e a minha mochila nas costas.
— Oi, Caio — a mãe do Thales estava com uma xícara nas mãos, na
cozinha, novamente. — Já acordou? — perguntou, olhando para o relógio no
seu pulso. Ainda era bem cedo.
— Bom dia. Já sim, eu tenho que ir em casa ainda antes de ir para o
colégio — expliquei, bocejando.
— Ah, sim. O Thales já acordou? — perguntou, dando um último gole no
seu café, e depois colocando a xícara na pia.
— Não, achei melhor deixá-lo dormindo.
— Tudo bem — disse ela, aproximando-se de mim —, ele inventou esse
atestado só para faltar às aulas. Ele sempre tem esses momentos.
Fiquei pensando se o Thales contava para os pais dele a verdade sobre
esses momentos.
— Mas eu já avisei a ele que vai ter que repor todas as aulas perdidas.
— Pois é — concordei.
— Vamos, eu levo você em casa.
— Não, não precisa, eu chamo aqui pelo app — recusei, não querendo dar
trabalho.
— Não será incômodo, eu estou indo para o hospital. Tenho um tempinho
ainda até a hora do meu turno.
— Tudo bem, então.
Ela pegou a chave do carro dela pendurada na parede da cozinha e me
guiou para fora.

***

Pelo restante da semana eu fiquei solitário no colégio. Eu tinha a Mel, o


Gabriel e o restante dos meus amigos, mas eu sempre me sentia incompleto
por não ter o Thales por perto.
E também, o clima estava estranho com todo mundo. Na verdade, as
pessoas estavam estranhas comigo. Ninguém chegou a me perguntar nada
diretamente, mas eu sabia que elas estavam com meu nome nas suas bocas.
O Thales não quis retirar o atestado e preferiu deixar como estava para só
voltar na outra segunda-feira. Talvez fosse melhor para ele, pelo menos até a
poeira baixar.
Eu e ele ainda não tínhamos conversado sobre os papéis na peça, pois eu
estava evitando, até que ele tocou no assunto quando fui novamente à casa
dele no fim de semana. Não fui para dormir, claro, seria abusar demais da
boa vontade da minha mãe e da mãe dele. Ele falou que, sinceramente, não
se importava que eu faria par com a Alice. Ele disse que confiava em mim, e
além dos mais, aquilo seria só uma peça. Mas eu ainda estava decidindo se
iria continuar depois de tudo que aconteceu.
Nesse encontro, aproveitamos para ver dois filmes que ele escolheu entre
várias adaptações dessa história do Shakespeare. Para mim, só um seria
suficiente para eu me familiarizar, mas ele insistiu em assistir dois para fixar
bem.
O Professor-Diretor ficou de nos entregar na semana seguinte o roteiro da
peça para começarmos a decorar as falas e também ficou de nos passar um
cronograma dos ensaios em conjunto, que ocorreriam em todas as semanas
que antecedem a apresentação. Então, não tínhamos ideia ainda se a peça
dele seria tão parecida com a peça original, já que ele disse que tinha feito
uma adaptação.
Capítulo 42

— Eu vou pra casa.


— Não, você vai ficar — ordenei ao Thales, puxando-o pela alça da sua
mochila.
Ele tinha faltado às aulas da semana passada quase toda, e hoje
praticamente se escondeu durante a manhã no colégio. Nem ao menos saiu
da sala no intervalo para ir ao refeitório. Tive que ficar na sala com ele. E
agora que a aula acabou, ele já quer ir embora para casa.
Se bem que ele não tinha mais nada a fazer no colégio, mas eu queria que
ele ficasse, tinha que encarar as pessoas.
Ele com certeza percebeu alguns olhares desconfiados dos garotos de
nossa sala. Todo mundo sabia das notícias que rodavam pelo colégio, mas
ninguém ousou tocar no assunto ao nosso lado. Quem viesse falar alguma
gracinha iria ouvir muito da minha boca.
Pedi para o Gabriel não colaborar com quem tivesse falando, e até para ele
tomar mais cuidado em como se comportava ao lado do Edu, senão eles
seriam os próximos a serem falados pelo colégio.
— Eu tenho treino de futsal daqui a pouco, fica pra me ver, por favor —
pedi ao Thales, enquanto saíamos da sala com o pessoal.
— Não sei, Caio. Acho melhor não — disse ele, atento às pessoas que
passavam.
— Ei, olhe para mim — segurei ele pelos ombros —, você tem que
aprender a se importar menos e começar a agir normalmente. Eu sei que é
difícil, mas vamos tentar?
Eu não queria deixar as pessoas dizerem quem eu, ou ele, deveríamos ser.
Eu prometi ao Thales estar ao lado dele, e estava fazendo de tudo para passar
a ele toda a confiança que o fizesse se sentir protegido em mim, em meus
braços e em meu coração.
— Sabe o que você vai fazer agora? — ele estava me olhando nos olhos
—, vá pegar na sala dos professores com o diretor da peça os nossos roteiros,
cruzando todo esse corredor de cabeça erguida. Não se sinta intimidado. E
vá depois para o ginásio. Tenho que ir me trocar agora, tudo bem?
— Tudo bem — disse ele, forçando um sorriso.
Podia parecer que eu estava o obrigando a enfrentar os outros, e havia um
pouco de verdade nisso, mas só estava tentando dizer a ele que ele podia
fazer isso sozinho. Nem sempre eu estaria ao lado dele para enfrentar esse
tipo de problema.

***

O Thales apareceu no ginásio quando eu já tinha começado a jogar com o


meu time. Os treinos vinham acontecendo duas vezes por semana devido à
proximidade da nossa disputa entre turmas, que inclusive eu que estava
sendo um dos organizadores por causa do grêmio, assim como fui no de
basquete no semestre passado.
Ele veio com a Mel e sentou com ela na arquibancada, perto de um
pessoal que também estava nos vendo jogar, ou apenas estavam vendo o
tempo passar.
Acenei para eles enquanto corria e acabei perdendo um passe de bola do
Bento.
— Presta atenção, Caio! — reclamou ele, com suor escorrendo pelo
pescoço. — Você fala com seu namorado depois.
O professor de Educação Física, e treinador, também me chamou a
atenção, apitando. Achei que eu tivesse cometido uma falta.
O Nicholas passou a perna na minha frente e acabei tombando no chão
duro. Ainda bem que consegui conter o impacto com as mãos, senão eu teria
metido o rosto na quadra. Eu sei que não tinha sido intenção dele. Fazia
parte.
Eu estava quase lavando a quadra com tanto suor que escorria por todo o
meu corpo. Meu cansaço já afetava a minha agilidade e performance nos
últimos minutos do segundo tempo. Eu não tinha feito nenhum gol, um
verdadeiro fracasso.
O professor apitou o fim da partida e eu saí cumprimentando os rapazes
do meu time pelo treino.
Fui até a grade da arquibancada onde estava o Thales, e ele levantou,
aproximando-se também da grade, deixando a Mel sentada sozinha, viajando
em algum dos seus livros.
— Você deve ter perdido uns dez litros nesse meio tempo — apontou ele,
quando nos aproximamos, separados por um monte de ferro na altura do
meu peito.
Ele me entregou uma garrafa de água e eu a sequei em menos de cinco
segundos.
— Pegou o roteiro com o professor? — perguntei, colocando a mão na
grade, próxima da mão dele.
— Sim, tá na minha mochila — ele apontou para trás.
— Mas, e aí, como você está se sentindo? Alguém olhou torto para você?
— fiz uma careta. — Diga, e eu irei quebrar a cara deles agora — fechei o
punho e bati contra a palma da minha mão, demonstrando o que eu poderia
fazer.
Ele riu e me socou de leve.
— Eu estou bem, eu acho. Só teve um grupo de meninas que ficou de
falatório quando eu passei por elas — contou ele.
Tinha uns dois caras sentados na arquibancada, abaixo da Mel, que
estavam fazendo o mesmo, nos olhando e rindo. Revirei os olhos e parei de
encará-los.
— Sendo assim, eu já não posso fazer nada, não bato em garotas —
brinquei. — Mas, enfim, espera por mim aí, eu vou só tomar um banho e
volto já.
— Tá bom.
Dei as costas para o Thales e ouvi alguém chamar por ele, não era a Mel.
— E aí, Thales!
Virei novamente e vi que era um dos caras que estava nos olhando agora
há pouco, eles estavam rindo enquanto o Thales subia pela arquibancada sem
dar atenção a eles, mesmo assim fiquei observando-os.
— É verdade que as bolas do Caio estão entrando na sua trave? — o outro
cara perguntou, ironicamente, falando alto o bastante para que todos na
quadra ouvissem, emendando com alguns gestos obscenos.
O pessoal que estava um pouco distante começou a rir, mas eu tentei não
ceder aos insultos.
Quando o Thales colocou o pé no degrau que eles estavam sentados, o
mesmo cara se esticou e apertou a bunda dele.
Eu não aguentei mais aquilo e corri, pulando pela grade, subindo a
arquibancada e me pondo de frente para os dois idiotas.
— O que vocês estão fazendo, seus imbecis? — perguntei, indignado, e
com os dois punhos fechados.
Eles olharam um para o outro e soltaram um risinho.
— Calma, cara, a gente não quer confusão! — disse um deles, baixando
os ombros.
O outro, ainda não contente, resolveu provocar mais uma vez.
— Veio proteger o seu namoradinho?
— Vim! — senti meu sangue acelerar e esquentar em questão de
milésimos. A raiva tomou conta de mim.
Acertei um soco nele, bem no meio do seu rosto, iniciando uma grande
confusão.
O amigo dele se levantou e me chutou, fazendo eu cair violentamente no
degrau de baixo. Ele pulou em cima de mim e desferiu um soco em meu
rosto que fez a minha cabeça bater com força no chão e ver o mundo girar.
Ele não teve tempo de dar outro soco, quando o Thales veio de lado e o
acertou, fazendo-o cair mais abaixo.
— Caio, você tá bem? — ele me puxou pelo braço, com um olhar
desesperado.
— Parem, parem! — ouvi os gritos da Mel, mas eu não sabia nem de onde
partiam.
Quando me pus de pé, o cara que eu tinha nocauteado veio por trás do
Thales e acertou um soco nas costas dele. Eu pulei em cima dele novamente,
e soquei mais uma vez o seu rosto ensanguentado.
Não percebi a aglomeração que tinha se formado, e quando senti alguém
me pegar por trás, dei uma cotovelada com força, pensando ser o outro cara,
mas ao me virar me dei conta que tinha acertado o rosto do professor de
Educação Física, que cambaleou tonto para trás.
As pessoas tomaram conta da arquibancada e impediram que a briga
continuasse.
O Gabriel e o Lucas me seguraram pelos braços, enquanto eu forçava para
voltar a bater nos dois caras que estavam tentando partir para cima de mim
também, mas sendo impedidos por outros rapazes.
— Seu filho da puta! — gritou o que estava com o rosto ensanguentado
para mim. Acho que quebrei o nariz dele.
— Sossega, seu idiota! — gritou o Gabriel pare ele, me apertando.
Meu sangue estava fervendo por todo o corpo e eu não conseguia me
conter. Eu estava decidido a defender a honra do Thales.
— Parem, seus delinquentes! — o professor ressurgiu gritando ao meu
lado, e todos pararam.
Ele estava com a mão no nariz e ao retirar, por um instante, notei que
estava sangrando.
— Você... seu moleque — ele apontou raivosamente para mim —, está
fora do campeonato, e de qualquer outro jogo que queira se meter —
anunciou ele.
— Mas... — tentei falar, me desvencilhando dos braços que me
seguravam.
— Calado! — gritou mais uma vez para mim. — Venham os quatro para a
diretoria. Agora!
Ele apontou para mim, para o Thales e para os dois que nos provocaram.

***

Eu ainda não havia tido tempo de organizar meus pensamentos até estar
sentado na sala do Diretor do colégio, junto ao Thales e aos outros dois.
Estávamos sendo fuzilados com o olhar do professor, segurando uma
compressa de gelo em seu rosto, e do Diretor, com cara de cão raivoso na
nossa frente, no outro lado do seu gabinete.
— Eu liguei para os pais de todos vocês e eles já estão a caminho —
esbravejou, batendo com força em sua mesa, nos assustando. — Vocês não
têm nada nessas cabeças? Qual a necessidade dessa confusão? Olhem o
estado em que vocês se encontram, moleques.
Eu olhei para o Thales e ele se mantinha cabisbaixo, com uma bochecha
avermelhada e o cabelo todo bagunçado.
Toquei no meu rosto e senti um inchaço e dor próximo aos meus olhos. A
dormência pela explosão de adrenalina na hora da briga estava passando e as
dores no resto do corpo atingido começavam a se manifestar.
Passei a mão na parte de trás da minha cabeça para sentir se estava
sangrando, mas não vi nada na palma da minha mão. Identifiquei apenas um
inchaço na região.
— Quem começou essa baderna? — perguntou o diretor.
— Ele! — os dois caras me acusaram.
Olhei para eles, irado. Aquele que eu tinha socado duas vezes segurava
um pano em seu rosto, enquanto sua camisa estava repleta com pingos de
sangue.
— Eles que provocaram! — retruquei.
O Diretor bateu na mesa de novo, com sangue nos olhos.
— Nada justifica! Se eles provocaram ou não, não lhe dá o direito de bater
neles!
— O senhor não sabe o que eles fizeram — argumentei em vão —, e eles
também nos bateram.
— E que provocação foi essa que fez você partir para cima deles? —
questionou o diretor.
O Thales colocou a mão em meu pulso e apertou. Olhei para ele e ele
pediu para eu não falar mais nada, mas eu não me contive.
— Eles estavam praticando bullying com o meu amigo e ainda o
assediaram — contei.
O Diretor fechou os olhos e soltou todo o ar de seus pulmões, voltando a
nos fixar.
— Vocês sabem que temos uma política de tolerância zero com o bullying
e qualquer outro tipo de agressão, principalmente a física. Antes de tomar
qualquer atitude impensada, devemos ser comunicados — ele falou
diretamente para mim, como se a culpa fosse toda minha. — Nós podemos
resolver o problema!
A porta da diretoria se abriu e entraram a minha mãe e a mãe do Thales.
— Ai, meu Deus, o que aconteceu? — perguntou a minha mãe, tocando
meu rosto, delicadamente.
— Thales, o que foi isso? — indagou a mãe dele, preocupada.
Mais duas mulheres entraram na sala e deviam ser as mães dos outros dois
caras. Parecia que os pais homens não gostavam de tratar dos assuntos de
seus filhos.
As duas se juntaram aos garotos, analisando os estragos feitos, mas não
aparentavam muita surpresa.
— Bom, já estão todos aqui — disse o Diretor, pondo-se de pé. — O que
aconteceu é que seus filhos se envolveram em uma grande confusão e esse é
o resultado. Inclusive, o seu filho — ele apontou para a minha mãe —,
acertou esse professor.
O professor de Educação Física estava sentado em um canto da sala,
recuperando-se.
— Não foi porque eu quis — falei, quando minha mãe me deu um tapinha
no braço.
— O que eu posso fazer com você, filho? Você estava indo tão bem —
minha mãe me olhou triste e desapontada.
Ela ainda não entendia que eu não havia provocado aquilo, e que eu só
estava querendo proteger o Thales.
— Como punição pelo que fizeram, os quatro serão suspensos das aulas
por cinco dias — decretou o diretor —, e serão encaminhados para o nosso
psicólogo.
— Está feliz? — perguntou a mãe de um dos dois garotos, acertando um
tapa forte na cabeça dele.
— Senhora, não precisa fazer isso aqui — condenou o Diretor. — E
cuidem melhor dos seus filhos, não é a primeira, nem a segunda vez, que
eles vêm parar na diretoria por causarem confusão. Na próxima, eles serão
expulsos.
Ele falou isso para as duas mães dos encrenqueiros. Elas ficaram caladas.
— E você — ele apontou para mim novamente —, tem sorte que o seu
professor optou por não levar pra frente a sua agressão, mas você está
proibido de participar do campeonato de futsal e de qualquer outro esporte
esse ano. E tudo isso vai ficar manchado no seu histórico.
Mesmo com tantas punições a mim, o mais atingido com certeza foi o
Thales. Ter que passar por problemas relacionados a bullying novamente não
estava sendo fácil para ele. Eu sentia muito por ter agido de forma errada,
mas eu não suportei assistir ele sendo ridicularizado na minha frente.
— Por enquanto é só isso — concluiu o Diretor. — Assinem esses papéis
aqui e estejam todos liberados.
Após isso, saímos todos da sala do Diretor, e foi ali que a minha mãe
conheceu a mãe do Thales pessoalmente. Não era o melhor momento, mas a
vida não escolhia lugar nem hora para que coisas assim acontecessem.
Elas pediram para mim e o Thales esperarmos um pouco, enquanto elas se
distanciaram para conversar.
— Como você tá? — perguntei ao Thales, olhando para seu rosto ficando
roxo.
— Estou melhor do que você, eu acho — ele riu e isso acalmou meus
pensamentos. Ao menos ele estava tirando sarro da situação. — Você não
deveria ter partido pra cima deles.
— Mas eles estavam brincando com você — aleguei —, eu falei para você
que iria protegê-lo.
— Mas eu não achei que seria assim — retrucou ele.
— Eu faria o que fosse necessário para que ninguém tirasse sarro de você
— falei, batendo na camisa dele, toda suja. — E agora ninguém se atreverá a
mexer contigo, já sabem do que eu sou capaz — tentei soar
ameaçadoramente, mas a verdade era que eu não queria ter que chegar
àquele ponto novamente. Foi a primeira vez que me envolvi em uma briga
daquele nível.
Olhei para as nossas mães e elas estavam nos observando, de braços
cruzados, mas aí viraram a cabeça e começaram a conversar novamente. Eu
não conseguia escutar sobre o que elas estavam tratando, só via os lábios
delas se mexerem. Eu acho que elas haviam sacado que algo estava rolando
entre os filhos delas.
— Meninos — a Mel chegou correndo, nos tocando, tentando sentir se
tinha algo quebrado ou fora do lugar —, como vocês estão? Eu fiquei
desesperada.
— Estamos bem — respondi, mesmo sentindo o meu corpo meio
deslocado.
— Ai, Thales, olha seu rosto — ela tocou o rosto dele e ele se afastou
fazendo uma careta. — E o seu também, Caio — segurei as mãos dela antes
que me tocasse.
— Estamos doloridos, Mel — reclamei.
— Ah, desculpa — ela murchou. — Vocês foram punidos ou algo assim?
— Deixa eu listar — falei, apontando nos dedos: — fui expulso do time
de futsal, de qualquer outro esporte esse ano também, e peguei cinco dias de
suspensão. Para o Thales foram só cinco dias de suspensão, coisa pouca —
brinquei.
Tentei rir, mas minha face estava dolorida demais para se mover.
— Vamos, é hora de ir pra casa — disse minha mãe, se aproximando com
a mãe do Thales.
— Vamos, Thales — disse a mãe dele, massageando o seu ombro. — Oi,
Mel! Esses meninos só nos dão trabalho.
— Demais, a senhora nem imagina o quanto — ironizou ela, como se
tivesse que estar sempre cuidando para que não saíssemos dos trilhos.
Deixamos a escola sob olhares de desconfiança e desaprovação de alguns
alunos que passeavam pelos corredores. Era horário de intervalo. O assunto
do dia, ou da semana, seria essa confusão. Quem sabe já não estava na
Comunidade Virtual.
Capítulo 43

Minha mãe me proibiu de sair de casa durante os dias em que fui suspenso
enquanto eu não tivesse me recuperado totalmente, e tivesse repensado tudo
que fiz para não repetir nunca mais.
Eu já tinha concordado comigo mesmo que não faria mais aquilo, mas que
não deixaria, de modo algum, de ajudar o Thales sempre que ele precisasse.
Eu falei tanto para ele não se importar com os comentários maldosos e
simplesmente ouvir de cabeça erguida, dando de ombros, mas eu mesmo
acabei partindo para cima de quem o julgava, sem pensar nas consequências.
É aquele ditado, né? Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.

***

Só no sábado consegui permissão dos meus pais para sair. Eu já não


estava com mais nenhum hematoma aparente pelo corpo, e não sentia mais
nenhuma dor física. Não tinha quebrado nenhum osso, e fiquei sabendo por
um grupo de conversa da minha turma que o menino que recebeu dois socos
meus não tinha quebrado o nariz, tinha apenas se cortado. Eu senti um
pouco, bem pouco, de pena dele depois. Se eu tivesse chance, pediria
desculpas. Só esperava que ele tivesse aprendido a lição. Não queria ter que
ensiná-lo novamente por esses meios.
O Thales havia planejado irmos passar a manhã em um parque natural da
nossa cidade. Nele tinha uma torre bem alta, com visão panorâmica para a
cidade, e que ele gostaria muito de subir.
Eu nunca tinha ido neste lugar, nem o Thales, então era a primeira vez
para nós dois.
Ele queria fazer as coisas de um jeito diferente hoje e pediu para eu ir para
a casa dele bem cedo, e de lá iríamos para o parque de ônibus. A minha casa
ficava na direção contrária ao nosso passeio, já a dele era caminho para o
parque, que ficava no outro lado da cidade.
A mãe dele se ofereceu para ir nos deixar de carro, mas ele não quis,
queria ir de ônibus para poder dar uma volta maior pela cidade, embora eu
não estivesse interessado nisso.
— Pra quê tudo isso? Parece que você está querendo fugir de casa.
O Thales estava enchendo a mochila dele com umas coisas que ele roubou
do armário na cozinha da mãe dele.
— E se eu estiver planejando isso mesmo? — ele virou para mim e
piscou. — Estou brincando, isso é pra gente mesmo, já que vamos passar a
manhã lá.
— Vai ser um piquenique? — perguntei.
— Digamos que sim — ele jogou mais um pacote de alguma coisa na
mochila e a fechou. — Você já participou de um piquenique?
— Não.
— Nem eu — ele saiu andando e gritando. — Mãe, cadê?!
Fui atrás dele.
A mãe dele desceu a escada e trouxe na mão um tecido dobrado e
quadriculado, alternando entre azul e branco. Nada poderia simbolizar mais
um piquenique do que essa toalha. Só faltava a cesta com frutas e outras
besteiras, que neste caso era a mochila do Thales.
— Aqui! — disse ela, entregando a toalha para ele. — Não vai mais voltar
pra casa, não?
Ele me olhou revirando os olhos.
— Eu perguntei se ele estava fugindo de casa. Quero deixar bem claro que
não tenho parte nesse plano — brinquei.
Ele tentou me chutar, mas a mãe dele o segurou pela mochila.
— Vamos, temos que aproveitar o sol frio da manhã — ele disse, beijando
a mãe dele e saindo. — Tchau, mãe.
— Aproveitem, meninos — ela passou a mão em minha cabeça. — Passo
para pegar vocês antes do meio-dia, quando o sol ficará insuportável.
Ela nos levou até a porta e saímos andando pela calçada.
Havia uma parada de ônibus perto da casa do Thales, então seguimos até
lá.
— Você sabe qual ônibus temos que pegar? — perguntei.
— Não, mas me deixa fazer o trajeto aqui num app que vai mostrar as
opções.
Ele tirou o celular do bolso de sua bermuda jeans e tentou achar a
informação que precisávamos.
Esta procura dele estava demorando muito e os ônibus estavam passando,
talvez até perdíamos algum que poderia ir para onde queríamos.
— Eu não sei mexer nisso — disse ele. — Ah, achei.
— Meninos, vocês estão indo pra onde?
Uma garota, aparentando ser um pouco mais velha que a gente, usando
uns óculos escuros e um vestido verde, que estava sentada ao meu lado
desde que chegamos na parada, tocou no meu braço. Ela deve ter percebido
que não sabíamos qual ônibus pegar.
— Vocês estão querendo ir para onde? — repetiu ela.
— Para o Parque da Cidade — respondi.
Ela nos deu três opções de ônibus para pegarmos. Ela realmente conhecia
as linhas de ônibus. E ainda foi mais eficiente que o app do Thales.
— Esse último que falei — continuou ela —, demora mais a chegar, mas
um dia chega. Garanto.
Eu ri, mas o Thales não achou a menor graça.
— Obrigado — agradeci, tocando-a no braço impensadamente.
— De nada — ela sorriu timidamente. — Lá vem o ônibus de vocês! —
berrou ela, apontando.
— Pede parada, Thales! — falei.
Ele esgueirou os olhos e levantou os braços. Outras pessoas tinham pedido
parada também, não iríamos perder, de qualquer modo.
— Tchau! — acenei para a garota quando entrei no ônibus. O Thales já
tinha entrado.
Sentamos em cadeiras nem tão atrás, nem tão na frente do ônibus, mas
exatamente no meio. Eu acabei contando quantas cadeiras tinham para frente
e quantas tinham para trás. Loucura minha. Só não contei quantas pessoas
tinham, mas eram várias.
O Thales sentou ao lado da janela, colocando a mochila em seu colo, e eu
fiquei com a cadeira ao corredor.
O vento entrava pela janela e batia no cabelo dele, revelando sua testa
branca.
— Ei — falei, mas ele não se virou.
Toquei a coxa dele e ele me olhou, seriamente.
— O que foi? — perguntou.
— Por que essa cara?
— Eu já tinha achado no app, tá?
— O quê?
— Eu tinha achado qual ônibus teríamos que pegar — respondeu, irritado.
— Ah, desculpa. A menina só quis ajudar, e foi bem na hora que você
falou.
Cutuquei a cintura dele e ele não fez nada. Cutuquei várias vezes e ele
começou a se contorcer, rindo.
— Para!
Eu parei e ele abriu um sorriso para mim. Estava tudo resolvido.
Ele ficou me olhando e entrelaçou a mão dele na minha, pousando em
cima da minha perna. Ter visto nossas mãos juntas acendeu uma pequena
chama em meu coração, me fazendo sentir uma conexão forte com ele.
Apertei com mais firmeza a minha mão na dele para não deixar de sentir
isso.
Quando olhei de lado, percebi uma mulher com uma criança, sentada em
uma cadeira lateralmente, que nos olhava com uma cara fechada, bastante
raivosa. Ela imediatamente pôs a mão cobrindo os olhos do menininho e eu
soltei a mão do Thales, envergonhado.
O Thales notou e ficou olhando para a mulher também.
Ela se levantou da cadeira dela, pegou o menino pela mão e foi sentar
mais para trás.
Meu coração gelou com o olhar dela, e pela proibição ao seu filho. Essa
situação me deixou triste. Eu não queria obrigar ninguém a gostar de nada,
mas ser visto assim foi muito desconfortável.
Não falei nada para o Thales de como eu havia me sentido para não
estragar a nossa manhã e olhei para ele, sorrindo. Ficaria tudo bem, eu disse
para mim mesmo.
Pela janela, comecei a ver uma mata verde surgindo, e consegui enxergar
também uma torre, não tão longe. Era sinal de que estávamos chegando.
— Temos que descer agora — Thales falou, levantando-se da cadeira e
pondo a mochila em suas costas.
Levantei junto e seguimos para a porta de saída do ônibus, ao fundo. A
mulher com seu filho ainda estava lá, mas eu fingi não ver eles.
O motorista abriu na parada seguinte para que a gente descesse e assim eu
pude me sentir aliviado.
Um vento correu pelo meu corpo no momento em que desci e eu abri os
braços para absorver toda aquela natureza ao meu redor. Nem parecia que
era um lugar que fazia parte da cidade.
— Vamos! — Thales pegou pelo meu braço e me arrastou para a entrada
do parque.
Havia, na entrada, um grande pórtico de concreto, com uma estrela na
ponta, e uma guarita para controlar a entrada das pessoas e dos carros no
local. Apesar de que não tinha nenhum carro entrando, e apenas algumas
outras pessoas vindo atrás da gente.
— Aproveitem! — disse o guarda, de branco, quando passamos pela
entrada. Ele me entregou algum panfleto falando do parque, mas eu nem
olhei e dei para o Thales guardar na mochila dele.
Havia um caminho de paralelepípedos que dividia a mata, não muito
fechada, e que provavelmente levava até a torre.
— Iremos só depois lá em cima, primeiro temos que encontrar um lugar
pra estabelecer nosso piquenique — disse o Thales.
Adentramos pela mata, e quanto mais andávamos, mais verde a paisagem
se tornava.
Havia muitas folhas e gravetos das árvores caídos pelo chão, era
impossível andar sem pisar neles fazendo barulho de galhos se quebrando.
A maioria das árvores tinha uma plaquinha com seus nomes escritos, mas
não atentei em ler. Eu esqueceria tudo depois, de qualquer modo. E eu não
tinha planos para ser biólogo.
— Ali!
O Thales apontou para um local dentro da mata, que tinha umas mesas
próprias para fazer piquenique. Tudo aqui era perfeito. Saímos correndo
entre o verde, pisando em mais folhas secas, até chegarmos nas mesas e
sentarmos em um banco.
— É muito legal aqui, eu deveria ter vindo antes — disse o Thales,
olhando para cima, com a boca aberta, maravilhado.
A pouca luz do sol que passava pelas árvores iluminava todo o local de
um jeito muito bonito e surreal.
Thales abriu a mochila e eu o ajudei a abrir a toalha de mesa que a mãe
dele tinha nos dado. Além das listras azuis e brancas, ela era cheia de figuras
de frutas e formiguinhas. Esperava que não tivesse formigas de verdade. Ele
dispôs tudo que trouxe em cima da mesa. Várias frutas, biscoitos e até uma
caixinha de suco natural.
— Uau — falei.
— Quero que esse dia seja legal.
— Só de estar aqui com você, nesse lugar tão bonito, já se torna mais do
que legal — ele se alegrou com o que eu disse e chegou mais perto de mim.
Ele colocou a mão dentro da mochila para tirar mais alguma coisa que
tinha restado.
Ele me mostrou uma pequena caixinha vermelha.
— O que tem aí? — tive a impressão de que já tinha presenciado essa
situação alguma vez.
Ele abriu lentamente e surgiram dois anéis prateados. O sol refletiu neles e
incomodou a minha visão por um instante. Eles eram parecidos com os que a
Alice havia me dado, mas não eram iguais.
— Vai entrar mosca — disse ele, empurrando meu queixo para fechar a
minha boca. — Caio?
— Oi — respondi, imóvel, olhando fixamente para ele. Seu sorriso estava
bem aberto e seus olhos brilhando como eu nunca tinha visto antes.
— Você sabe o que significa isto?
— Eu imagino, mas me diga você o que é — respondi, enchendo-me de
tensão e ansiedade.
— Caio, eu sei que você ainda não se sente pronto para entrar em um
relacionamento, shhh... — abri a boca para falar, mas ele me impediu e
continuou. — Nem eu talvez esteja pronto também, mas eu acredito que já
está na hora de assumirmos um compromisso. Nós já declaramos que
amávamos um ao outro, então nada mais nos impede disso. A gente não
precisa anunciar agora para todo o mundo, só importa que eu e você
saibamos.
Uma lágrima desceu em meu rosto e ele se aproximou, beijando minha
boca rapidamente.
— Eu aceito — respondi ao pedido dele, como se fosse pedido casamento.
Ele retirou os anéis da caixinha e pôs um deles em meu dedo, e eu pus o
outro no dedo dele. Encaixaram-se perfeitamente.
Nos abraçamos para selar o compromisso e esse se tornou um momento
inesquecível para mim. Ele não poderia ter escolhido uma hora, um
momento e um lugar mais propícios.
As folhas farfalhavam forte, como se a natureza contemplasse a nossa
felicidade.

***
Devoramos tudo que ele tinha trazido em pouco mais de uma hora.
Conversávamos e observávamos algumas pessoas passarem, alguns pássaros
pousarem cantando nos galhos das árvores e uma dezena de folhas caírem e
se juntarem ao cemitério natural no chão.
Recolhemos tudo que estava na mesa e guardamos de volta na mochila
dele, com cuidado para não esquecer nada jogado no chão.
Caminhamos um pouco pela superfície de pedra, e quanto mais nos
aproximávamos da torre, mais ela se revelava alta e imponente.
Subimos por uma rampa que nos conduzia até uma parte mais elevada da
torre, e que nos levava até um elevador.
Ao chegar no topo, havia uma enorme parede de vidro, em um dos lados,
que nos dava a visão do lugar em que morávamos.
Era algo impressionante, e extremamente alto. Quase senti uma vertigem,
mas toda aquela beleza me prendeu mais.
A visão era privilegiada da imensidão do verde que agora estava aos
nossos pés, e também de toda a cidade e seus arranha-céus, casas e pontes.
Virei para o Thales ao meu lado, com a mão no vidro, tão extasiado
quanto eu, e levantei a minha mão para ver o anel em meu dedo. O que ele
simbolizava era tão infinito quanto o horizonte que estava na nossa frente.
Capítulo 44

No fim da aula eu saí com o Gabriel pelo colégio distribuindo alguns


panfletos para avisar a todo mundo sobre o campeonato de futsal.
Campeonato esse que eu fui impedido de participar, e até de assistir.
— Galera, não esqueçam de vir prestigiar os meninos do futsal disputando
nosso campeonato interclasses na próxima semana. Mais um evento que o
nosso grêmio traz para vocês!
— Não, obrigada — uma garota afastou a minha mão, recusando-se a
receber o panfleto.
Mais à frente, ela recebeu das mãos do Gabriel, e ainda sorriu para ele.
Desde que voltei às aulas, depois da punição da escola pela briga no
ginásio, as pessoas ainda me olhavam com indiferença, com desconfiança,
ou até com deboche. O Thales disse que também estava sentindo isso, mas
que agora ele se via mais despreocupado para ficar se escondendo.
Ao menos com meus amigos as coisas continuavam normais. Eles até
brincavam que nunca iriam querer se meter em uma briga comigo para não
terem o nariz quebrado, mesmo que isso não tivesse chegado a acontecer.
Como se eu fosse capaz de fazer isso com algum deles.
No entanto, ninguém tocou no assunto entre mim e o Thales. Eu sabia que
eles pensavam muitas coisas sobre isso e eu não teria problemas em explicar
ou esclarecer nada que viessem falar ou perguntar, mas se eles preferiam
manter-se calados, com receio de me constranger ou algo do tipo, pra mim
estava tudo bem. Eu e o Thales saberíamos a melhor hora para assumirmos
para todo mundo.
Ele apareceu junto da Mel enquanto eu ainda entregava os panfletos.
— Ei, Caio, mais tarde teremos o primeiro ensaio da peça — disse ele,
pegando um panfleto da minha mão. — O que é isso?
— É do campeonato que eu falei agora há pouco — recordou a Mel para o
Thales, apoiando-se no ombro dele, que pareceu lembrar.
— Ouvi por aí que a Julieta já decorou todas as falas da peça — disse o
Thales para mim.
— Sorte a dela, porque eu mesmo só decorei algumas coisas.
— Eu posso ajudá-lo com isso, já que eu tenho poucas falas. A gente
treina juntos — Thales se ofereceu.
— Tudo bem — aceitei. — Vocês têm alguma coisa pra fazer agora?
— Não — responderam os dois.
— Então, peguem isso aqui — entreguei nas mãos dos dois uma parte dos
meus panfletos —, e me ajudem a sair distribuindo, por favor. Mas tem que
ser em outros pontos do colégio.
— Ok — disse o Thales.
— Caio, isso é trabalho seu, não nosso — Mel reclamou, cruzando os
braços.
— Deixa de ser preguiçosa, Mel. Você também é do grêmio, tem que
ajudar ele — lembrou o Thales, fazendo ela estreitar os olhos para mim.
Nos despedimos e eles partiram na direção contrária à minha.

***

— O que você tá fazendo? — perguntei.


— Estou tirando as suas medidas, ora. Fique quieto — respondeu a Mel,
de joelhos na minha frente, com um lápis na boca e uma fita métrica
circulando uma das minhas coxas.
Estávamos todos da peça em cima do palco no teatro, esperando começar
o primeiro ensaio, enquanto ela estava tirando as nossas medidas para
mandar fazer as roupas para a apresentação.
— Pronto! Agora você, Thales — ela me empurrou e se levantou para
começar a tirar as medidas dele.
Ele abriu as pernas e os braços, deixando-a rodear todo o corpo dele.
— O Thales tem tudo maior do que você — comentou ela, tirando a
medida da cintura dele.
— Você que pensa — falei, prontamente.
Ela me olhou com os olhos arregalados e eu fechei a cara, torcendo para
que ninguém mais tivesse ouvido o que eu acabei de insinuar.
— Venham aqui, todo mundo — gritou o Diretor, surgindo de trás do
palco, estalando os dedos euforicamente. Ele estava usando aquela mesma
boina feia. — Hoje é nosso primeiro ensaio! — ele bateu palmas, como se
estivesse com castanholas, e nós batemos junto com ele, achando graça.
Ele nos chamou para chegar mais perto dele e nos juntarmos na sua frente.
— Estão todos com seus roteiros em mãos? — levantamos os braços,
mostrando a ele que estávamos. — Muito bem, vocês tiveram um tempo
para ler e decorar, mas não se preocupem com isso, os ensaios vão servir
justamente para pegarmos melhor as falas e nos afeiçoarmos com as cenas.
Temos algumas semanas até o grande dia. Tirem seus sapatos e façam um
círculo, em pé mesmo.
Tiramos os calçados e os amontoamos na lateral do palco. Depois
formamos um círculo, com o Diretor em pé no centro.
— Vamos relaxar primeiro, não quero ninguém tenso para não atrapalhar
as interações — disse ele, movendo os braços em um ritmo lento e dançante.
— Peguem nas mãos dos amiguinhos ao lado e sintam a energia fluir,
correndo pelos seus corpos. Fechem os olhos.
Fechei os olhos e segurei nas mãos da Mel e do Thales. O metal frio no
dedo dele me arrepiou, mas logo o calor de sua mão tomou conta e me fez
apertá-la com mais força, quase que se unindo para nunca mais soltar.
Desejei poder andar de mãos dadas com ele sempre que eu quisesse, assim
como eu fazia normalmente com a Alice, mas eu sabia que isso só poderia
acontecer mesmo naquele momento.
— Abram os olhos e soltem as mãos — disse o Diretor.
Olhei para o Thales e ele estava sorrindo para mim. Não queríamos soltar
a mão um do outro, mas tivemos que fazê-lo.
— Eu estava quase dormindo — disse um menino ao lado da Alice, alto
demais, do outro lado do círculo, espreguiçando e bocejando.
— Não era desse tipo de relaxamento que eu estava falando — retrucou o
Diretor. — Ei, você — ele apontou para uma menina próxima de mim —, vá
pegar as espadas.
A menina, que provavelmente devia ser uma das assistentes dele,
obedeceu e saiu correndo para o fundo do palco.
— Alguém aqui já brincou de espadas? — perguntou o Diretor. — Não é
esse tipo de brincadeira que estou falando, seus mente-sujas — corrigiu,
quando alguns meninos começaram a rir e a falar entre si, levando a
pergunta do professor para um outro sentido.
A menina voltou correndo com algumas espadas de madeira nas mãos e
soltou vagarosamente no chão, bem nos pés do Diretor.
— É desta espada aqui que eu estou falando! — ele ergueu uma e depois
passou a desferir golpes no ar, parecendo mais com movimentos de esgrima.
— Venham aqui e peguem uma espada, Romeu, Páris, Capuleto, Teobaldo,
Mercúcio e Benvólio.
Esses eram os nomes de alguns dos personagens que eu e outros rapazes
iríamos interpretar.
Colocamos em punho uma espada cada um. Elas eram realmente de
madeira, portanto não muito pesadas. E mesmo que eu nunca tivesse visto
uma espada de verdade na vida, só em filmes, os formatos delas pareciam
reproduzir bem como era uma de verdade.
— Façam duplas e treinem golpes com elas, devagar e sem tentar acertar o
outro para que ninguém se machuque. Qualquer coisa temos uma
ambulância de prontidão lá fora — brincou o Diretor, e se afastou.
Formei dupla com o Thales e ele, sem avisar, golpeou a minha barriga
com a ponta, levemente arredondada, da sua espada, me fazendo pular para
trás. Se fosse de verdade, teria me traspassado e colocado minhas vísceras
para fora.
— Me desculpe — disse ele.
— Não acertem o outro, eu já falei — reclamou o Diretor.
Todos ficaram nos olhando enquanto batíamos as espadas umas nas
outras, fazendo sons de madeiras estalando. Estávamos levando aquilo na
brincadeira, tentando uma vez ou outra acertar o oponente, mas o Diretor
observava pacientemente e pedia para que continuássemos repetindo.
Terminando isso, ele pediu para que encenássemos uma briga que, na
peça, acontecia entre as famílias rivais dos Capuletos e dos Montecchios, na
praça de Verona. Dessa vez, com a presença de alguns personagens
femininos.
Ninguém tinha muitas falas nessa parte, mesmo assim demoramos a
acertar o passo da cena e depois de várias repetições, começamos a agradar o
Diretor.
— Muito bem — disse ele, aplaudindo —, vamos finalizar essa cena por
hoje. Guardem as espadas. Agora, venham só Romeu e Julieta até mim.
Para o Diretor, a partir daquele dia, nossos nomes passariam a ser os
nomes dos personagens.
Eu e a Alice nos aproximamos dele e ele disse:
— Vamos fazer aquela cena da varanda agora.
Essa cena eu ainda não havia conseguido decorar todos os diálogos, eram
um tanto extensos e poéticos demais, mas o roteiro estava na minha mão
para que eu lesse.
Thales me aconselhou a não cobrar tanto de mim logo no primeiro dia de
ensaio. Eu ficaria melhor na medida que os ensaios fossem acontecendo.
Só queria estar tão confiante e radiante como a Alice parecia estar, só que
eu já estava exausto de tanto manusear aquela espada e ficar repetindo a
cena dezenas de vezes.
— Como não temos os cenários montados, por enquanto — o Diretor
focou nessa última parte —, vamos improvisar uma varanda.
Ele nos deixou e saiu para pegar alguma coisa atrás do palco.
Ficamos parados, frente a frente, eu e a Alice, no centro do círculo. Tentei
ao máximo não olhar para ela, e eu estava conseguindo. Eu ainda sentia
muita raiva dela, mas precisava me controlar.
— Como você tá, Caio? — perguntou ela.
— Estou cansado por causa da outra cena — respondi, olhando para
baixo.
— Não falo disso, estou perguntando se você já se recuperou totalmente
daquela briga com aqueles garotos idiotas. Fiquei preocupada com você.
Dessa vez eu levantei a cabeça para olhar para o resto dela.
— Obrigado por se preocupar comigo por causa de algo que você
provocou.
— Eu...
O Diretor voltou bem na hora que ela ia falar mais alguma coisa. E ainda
bem que voltou, pois eu já queria sair de perto dela se ela falasse mais algo.
Ele trouxe uma escada móvel de alumínio, daquelas que se abrem, e a
posicionou no palco.
— Pronto! Suba aqui, Julieta — disse ele, batendo em um dos degraus.
— Eu, Diretor? E se eu cair? — queixou-se ela, franzindo a testa.
— Você não vai cair — ele colocou a mão em meu ombro. — Um
cavalheiro desses não deixaria uma donzela dessas cair, não é mesmo?
Respondi que não deixaria, embora não me preocupasse se ela caísse.
Ajudei a Alice a subir na escada cuidadosamente e ela se sentou na base
mais alta dela, fechando as pernas por causa da saia. Ela parecia tremer,
receosa que pudesse cair. A escada não era muito alta, tinha cinco degraus
apenas, mas uma queda dali poderia causar algum machucado.
O Diretor foi até ao Thales e o trouxe até nós.
— Você não vai participar da cena, mas vai ficar segurando a escada para
que ela não se mova — disse ele.
O Thales foi para a parte de trás da escada e revirou os olhos. Eu sorri
para ele.
Ele segurava a escada com tanta firmeza que eu não sabia se ele estava
com raiva de mim ou tramando derrubar a Alice lá de cima.
Eu e ela recitamos repetidas vezes as falas um para o outro e eu passei a
não me sentir muito à vontade em estar me declarando para a minha ex,
ainda mais sob os olhares do Thales.
Quando eu comecei a bocejar e a Alice a sentir câimbras por ficar muito
tempo sentada naquela escada, o Diretor encerrou o ensaio daquele dia.
Chamei o Thales e a Mel para irmos tomar um sorvete fora do colégio,
mas eles preferiram ir para casa. O Thales disse que estava cansado. Eu
também estava, mesmo assim eu queria ir. Eu só queria passar mais tempo
com ele.
Capítulo 45

— Romeu, Romeu! Ah! Por que és um Montecchio? Como estou


apaixonada.
Esse era o Thales ensaiando comigo as falas da Julieta na peça.
Eu estava com dificuldades em decorar as minhas falas, e teria que
praticar além dos ensaios, mas não queria ficar me encontrando com a Alice
para isso, então pedi para o Thales, já que ele havia se oferecido para me
ajudar. Ele decorou praticamente todas as falas dela em um curto espaço de
tempo.
Não teria um lugar melhor para praticarmos do que este em que
estávamos, o Parque da Cidade, aquele local onde o Thales me pediu em
namoro.
Vínhamos aqui todos os fins de semana desde o início dos ensaios, e essa
já devia ser a quinta vez, ou a sexta, não lembrava mais. Tínhamos adotado o
parque como nosso refúgio para aproveitar a calmaria, a brisa sempre fria e o
canto dos pássaros.
— Você não precisa falar assim! — reclamei.
— Assim como? — perguntou o Thales.
Tentei imitar o modo como ele movia os braços quando repetia as falas da
Julieta, de um jeito cômico, e ao mesmo tempo como se estivesse morrendo,
literalmente, de amor.
Ele riu até sua barriga não aguentar mais de dor, e eu não achei a menor
graça. Era eu que estava me passando por ridículo nessa hora.
— Desse jeito — falei e repeti só mais uma vez os movimentos —, me dá
vontade de rir também quando você faz.
— Mas não é assim que Alice faz? — provocou ele.
— É sim, mas ela é menina, e não fica parecendo tão ridículo quando ela
faz.
— Tudo bem, então vá ensaiar com ela!
Ele jogou o roteiro dele de lado na mesa de piquenique e se levantou do
banco. Peguei pela mão dele e o puxei, fazendo ele voltar e cair sentado em
meu colo.
Ele olhou para mim, rindo.
— Estou brincando — disse ele, apertando as minhas bochechas. — Eu
nunca deixaria você ir correndo para ela. Só que você não pode falar esse
tipo de coisa e achar que eu nunca vou ficar com raiva — e me beijou.

***

Fizemos o nosso último ensaio geral com o Diretor faltando uma semana
para a apresentação, vestindo as roupas que usaríamos no grande dia. A Mel
conseguiu cuidar dessa parte em tempo.
— Você está bonito — falei para o Thales.
— É o mínimo que eu poderia estar. Eu só vou usar essa roupa durante
toda a peça. Já você, tem umas três.
— Serão duas — rebati —, sendo uma para o baile e outra para o restante
da peça.
— Engraçado que eu também vou estar no baile e em outras partes da
peça, mas só tenho essa roupa — constatou ele, coçando sua barriga.
Devia ser porque eu era o protagonista masculino, e não ele. Porém fiquei
calado para não o contrariar.
Vendo-o nessa roupa, eu poderia defini-lo como um nobre príncipe
palhaço com uma espada embainhada na cintura. Todas as espadas haviam
tido suas lâminas de madeira pintadas de prata, e os seus cabos de dourado,
para dar um aspecto mais realista. Ensaiamos muito com elas até as brigas
parecerem mais como passos de dança do que disputas em si.
Já sobre as roupas, o Diretor tinha chamado de "uma espécie de traje
Dândi mais leve". Palavras dele, e eu nem sabia o que significava isso. Eu
mesmo chamei de traje da antiguidade que coçava pra caramba e fazia calor.
Eu também estava vestido como o Thales, só mudavam as cores das nossas
peças, assim como o resto dos rapazes. Exceto o personagem do Frei
Lourenço, que usava um hábito marrom com capuz.
Nossas roupas consistiam basicamente de um fraque, um colete, uma
camisa por dentro com uns babados, uma calça colada quase fundindo-se às
nossas pernas e uns sapatos masculinos de saltos. Estávamos um tanto
ridículos.
— Vocês estão lindos — disse a Mel, dando uns últimos retoques em meu
fraque. Eu suspeito que ela estava sendo irônica e debochando da gente.
Estas roupas nem de longe eram bonitas.
Além das roupas, o cenário também estava montado no palco. Era a
primeira vez que o víamos por completo. Nos ensaios havia apenas a
varanda, não tão alta, na qual eu e a Julieta trocaríamos juras de amor. Agora
víamos também paredes que pareciam de um castelo e um lustre pendurado
acima de minha cabeça, para a cena do baile de máscaras.
Estava tudo muito bonito. E eu me senti orgulhoso de fazer parte daquilo,
mesmo que no início eu não quisesse ter participado.
Estar com o Thales o tempo todo nessa produção me deu um impulso
maior, ele me fez sentir mais confiante e a incorporar melhor o Romeu.
Capítulo 46

Eis que o grande dia chegou! Veríamos quais surpresas o destino me


reservava para esse dia.
Por trás da cortina fechada, dei uma espiadinha em como estava a plateia.
As poltronas do teatro estavam praticamente todas ocupadas. Nas cadeiras
da frente, eu via alguns professores, o Diretor do colégio, algumas freiras, e
a partir daí o restante das fileiras estavam ocupadas por alunos barulhentos e
os seus pais, principalmente os nossos, que fazíamos parte da peça.
Por mais incrível que parecesse, meu pai tinha vindo com a minha mãe.
Ele nunca participava dos eventos do colégio, nem das reuniões de pais, em
grande parte devido ao seu trabalho, mas também porque ele não
demonstrava interesse em participar.
Eles estavam muito felizes e orgulhosos de mim, do Caio que eu havia me
tornado.
O ano letivo tinha acabado nessa semana, e meus resultados não poderiam
ter sido melhores. Eu cumpri com o estabelecido, tanto com as promessas
que fiz aos meus pais, e as que fiz a mim mesmo. Passei em todas as
disciplinas com notas altas, tornando-me um dos alunos do segundo ano com
os maiores índices do colégio. Consegui assumir uma posição no grêmio e
principalmente dar conta da função a qual eu estava designado, e também
me tornei um filho mais amoroso. Meus pais sentiram a minha mudança e a
nossa família se tornou mais unida.
Eu só não consegui manter a mesma vida amorosa que eu tinha no início
do ano. Em compensação, a minha relação atual me completava e me fazia
mais feliz do que nunca, por dentro e por fora. Toda a minha mudança
durante o ano se devia a ele, ao Thales.
Apesar do nervosismo, eu estava me sentindo nas nuvens, quase prestes a
sair correndo pelo mundo compartilhando com as pessoas toda a minha
felicidade.
— Ei! — alguém tocou a minha cintura por trás e eu fechei a brecha da
cortina, assustado. Era o Gabriel com o seu namorado, o Eduardo.
— O que vocês estão fazendo aqui? — perguntei.
— Viemos lhe desejar boa sorte.
Ele me abraçou bem forte e sussurrou em meu ouvido que estava torcendo
por mim, agradecendo por todo o apoio que eu tinha dado a ele durante todo
esse tempo, ainda mais nesse ano, quando coisas novas se revelaram.
Retribui o abraço dele, apertando-o forte também, e falando que ele era o
melhor amigo que eu poderia ter. Uma lágrima quis brotar, mas me contive.
Eu não poderia parecer que tinha chorado quando a peça começasse. Essa
parte do choro seria só no final.
— Obrigado, Gabriel.
— Obrigado você.
— Ei, o que vocês estão fazendo aqui em cima do palco? — a Mel chegou
reclamando com eles. — Voltem para seus lugares, a peça começará em
instantes.
— Tchau, Caio. Boa sorte — Eduardo me cumprimentou.
— Tchau, Romeu! Você está bonito, hein — Gabriel bateu nas minhas
costas e saiu com o Eduardo.
— Você está todo bagunçado, Caio! — disse a Mel, arrumando a minha
roupa que não estava nada desarrumada. Ela já tinha vindo fazer isso há
alguns minutos.
O Thales brotou e empurrou ela com o quadril. Assim ela saiu em direção
a outro garoto para perturbá-lo também.
— Seu rosto tá muito branco. Colocou maquiagem? — perguntei, quando
ele se pôs na minha frente, alinhando meu colete. O rosto dele estava bem
pálido. As luzes dos holofotes provavelmente iriam acentuar isso e ele iria
parecer um zumbi.
— Um pouco, apenas. Você deveria se maquiar também.
— Não acho que seja necessário — falei.
— Tudo bem, como desejar — disse ele, batendo em meu peito. — Você
está calmo?
— Sim.
— Mentira, eu vejo que você tá tenso. Acalme-se, vai dar tudo certo. O
que está acontecendo ali?
Olhei para o lado e vi um pessoal rodeando alguém.
Chegamos mais perto e era a Alice, sentada em uma cadeira, com o rosto
um pouco vermelho, parecendo sufocada.
— Gente, se afastem — abri os braços, afastando-os —, vocês não veem
que ela está se abanando sem ar?
— Tome! — o menino que interpretaria o Mercúcio trouxe um copo com
água e deu para ela.
— O que ela tem, Mel? — perguntei. Ela estava uma pilha de nervos.
— Acho que ela está tendo uma reação alérgica por causa do vestido.
O vestido da Alice era extremamente bonito, de cor azul, mas estava
fazendo-a coçar pelo corpo inteiro. Meu corpo já tinha se acostumado com
os meus trajes, e não irritava tanto, mas fazia muito calor.
— Será que teremos que cancelar a peça? Cadê o Diretor? — a Mel foi ao
extremo, suando igual a uma goteira.
— Não! — a Alice se levantou de sobressalto. — Eu vou ficar bem, já
estou bem.
Ela tentou transparecer que estava bem, mas ainda se coçava.
— O Diretor está chamando todo mundo lá no camarim, vamos! — disse
uma menina, a mãe da Julieta.
Incrivelmente coube todo mundo dentro do camarim masculino, e a
temperatura de lá estava mais agradável por causa do ar-condicionado. Eu
queria poder ficar ali a peça inteira.
— Vamos dar as mãos e fechar os olhos — disse o Diretor —, vamos
rezar em silêncio para que tudo dê certo.
Fizemos o que ele pediu e aproveitamos aquele minuto para nos
conectarmos com nós mesmos e pedir para quem quer esteja sempre
cuidando de nós lá em cima, que fizesse tudo sair conforme vínhamos
ensaiando exaustivamente durante as últimas semanas.
— Vamos lá, vamos lá! — gritou o Diretor após um minuto de preces.
Saímos todos do camarim e ele foi até a Alice, conversou por um instante
com ela e saiu, atravessando a cortina, prestes a iniciar a peça.
Escutávamos muito barulho das pessoas do outro lado, mas foi baixando
na medida que o Diretor pedia silêncio. O que aumentava eram as batidas do
meu coração.
Tinha que me acalmar, tinha que me acalmar.
O Diretor voltou um minuto depois anunciando que era hora do show.
As luzes se acenderam no palco e as cortinas se abriram, revelando apenas
o cenário para quem estava na plateia. Um grande muro, por enquanto.
A peça iniciava com um prólogo pré-gravado, cantado em coro,
apresentando a narrativa que seria contada.
A primeira cena do primeiro ato consistia no início de uma briga de
espadas, entre os membros das famílias rivais dos Capuleto e Montecchio,
sendo dispersada com a chegada do príncipe de Verona, que jurou punição
com morte a qualquer um que começasse novamente uma briga.
Nos saímos bem de início, apesar do nervosismo. Manuseamos com
maestria as espadas.
Nas próximas cenas, sucederam os acontecimentos da Senhora Capuleto,
mãe de Julieta, revelando a ela que o seu pai havia prometido a sua mão a
um conde, chamado Páris, e que ela o veria pela primeira vez no baile de
máscaras.
Na cena do baile, um lustre desceu no palco e a maioria dos personagens,
mascarados, dançavam, até o primeiro encontro de Romeu e Julieta. Eles não
se conheciam, mesmo assim se apaixonaram, descobrindo em seguida que
eram membros das famílias rivais.
No segundo ato, a varanda que a Julieta se declararia para Romeu, foi
posta no palco. Apenas ela e eu no palco fazíamos nossas juras de amor. Eu
saí de lá prometendo casar-me com ela no outro dia.
Em outra cena, eu conversava com o Frei Lourenço e acertava os detalhes
de como seria o casamento com Julieta, e ele concordava, com o desejo de
que esse casamento pudesse unir as duas famílias.
Esse ato finalizou com a consumação do casamento, às escondidas, de
Romeu e Julieta, pelo frei.
O terceiro ato começou com uma cena onde o primo de Julieta, de nome
Teobaldo, comprava uma briga com o sobrinho do príncipe e amigo de
Romeu, Mercúcio. Romeu aparecia e tentava intervir, por agora fazer parte
da família de Teobaldo e pelo príncipe ter proibido brigas desse tipo, mas ele
não ouviu os conselhos e acabou matando Mercúcio com sua espada.
Como vingança, Romeu feriu e matou Teobaldo, sendo punido depois
pelo Príncipe de Verona com a expulsão da cidade.
Julieta ficou sabendo por sua Ama sobre os ocorridos e chorou pelo seu
marido.
Neste mesmo ato, o pai de Julieta marcava o casamento dela com o conde
Páris, sem avisá-la, para os próximos três dias.
A pedido do Frei Lourenço, Romeu fugiu para outra cidade, chamada
Mântua, para voltar quando as coisas ficassem melhores para ele em Verona.
Antes de fugir, Romeu foi até a casa de Julieta despedir-se dela,
prometendo voltar.
No fim do ato, o pai de Julieta comunicou a ela sobre o casamento dela
com o Páris, e ela se negou, fazendo-o desconsiderá-la sua filha, caso não
aceitasse.
Iniciando o quarto ato da peça, Julieta foi conversar com o Frei Lourenço,
e ele a aconselhava a dizer a seu pai que aceitaria casar-se com Páris, mas
tinha um plano para que isso não viesse a acontecer. Ele entregou a ela uma
poção para ela tomar na noite antecedente ao casamento e que a faria parecer
morta. Com isso, comunicaria Romeu para buscá-la quando ela estivesse na
cripta de sua família, acordada depois que o efeito da poção passasse.
Julieta seguiu o plano, e a Ama dela a encontrou, aparentemente morta,
comunicando aos pais dela em seguida.
Em outra cena, colocaram uma estrutura onde a Alice ficaria deitada,
enquanto os pais de Julieta, sua ama, o frei e o seu esposo prometido, Páris,
choravam a sua falsa morte.
Fechando o penúltimo ato, Alice saiu de cena, estranhamente, já que ela
deveria permanecer deitada.
— O que foi, Alice? — perguntou o Diretor, vendo-a chegar correndo.
Assim que saiu da visão da plateia, ela desabou aos meus pés.
— Ai, meu Deus! — gritou a Mel.
Assustado, tentei erguer ela. Outros rapazes vieram me ajudar, levando-a
para sentar em uma cadeira, próxima ao camarim das meninas.
— Alguém traz água, pelo amor de Deus! Traz logo! — pediu a menina
que interpretava a mãe dela e tinha acabado de deixar o palco também.
Ela não tinha desmaiado, mas não estava muito consciente. Seu rosto
suava muito, e estava todo irritado, assim como o pescoço. A alergia não
tinha cessado.
— Eu sabia que ela não conseguiria terminar a peça do jeito que estava —
disse o Diretor, com uma mão na cabeça, preocupado, abanando a Alice com
papéis em sua outra mão. — Temos que finalizar a apresentação agora.
Fechem as cortinas e eu irei me desculpar com o público. Imprevistos
acontecem.
— Não! — gritou o Thales, atrás de mim. — Podemos finalizar sem ela.
— Como? Ela é a Julieta — apontou o menino que interpretava o Frei
Lourenço.
— Isso, como Thales? — perguntou o Diretor, enquanto a Alice começava
a se recuperar, depois de beber um copo d'água.
— Eu posso interpretar a Julieta, eu sei todas as falas dela.
O Diretor pareceu rir por um instante ao ouvir a ideia dele, no mínimo
ridícula, mas voltou a ficar sério ao perceber que ele não estava brincando.
Eu olhei para ele, tentando entender que ideia maluca era aquela, mas ele
não me olhou.
— Eu só preciso de uma peruca, dessas que tem aqui — Thales apontou
para uma caixa aos pés do Diretor, repleto de perucas e partes de figurinos.
— E alguém precisa morrer por mim, já que eu sou o conde Páris que será
morto pelo Romeu.
Alguns meninos riram, enquanto as meninas continuavam preocupadas
com a Alice.
— Eu posso ser o Páris — o menino que interpretava o Mercúcio se
ofereceu.
— Mas você já morreu — apontou o Thales.
— Eu posso morrer de novo, ora. Não estamos falando de vida real. Além
do mais, eu consigo decorar rápido as falas, e eu assisti vocês ensaiando a
cena da briga várias vezes. Posso muito bem encenar com o Caio.
— Gente, eu já estou bem... — Alice tentou se levantar, mas o diretor a
fez se sentar novamente.
— Não, você não está, pode ficar aí. A peça acabou pra você! Quanto a
vocês — ele apontou para o Thales e para o outro menino —, prossigam
com a ideia.
— Thales, você ficou maluco? — perguntei, enquanto ele revirava as
perucas e escolhia uma de fios loiros.
— Não, eu estou salvando a peça que tanto nos esforçamos para fazer e
que não pode terminar assim sem um final.
Fiquei com receio, mesmo com a obstinação dele, mas acabei convencido
de que a ideia poderia dar certo.
Ele colocou a peruca na cabeça, e eu tive que me conter para não rir.
— E aí, fico bem como Julieta?
— Eu preferiria que você fosse meu Romeu, mas por enquanto, serve
como Julieta.
— Vamos terminar isso, pessoal — chamou o Diretor. — Quem não for
participar das últimas cenas, cuide da Alice, ela está deitada lá no camarim.
O resto, vamos tocar o barco. A plateia já deve estar achando estranha a
demora para o último ato.
Todos se dispersaram e eu ouvi o Diretor, enquanto andávamos para a
lateral do palco, falar para o Thales que ele tinha ficado bem com aquela
peruca.
— Contamos com você, Thales. Agora entre em cena e deite-se onde a
Julieta estava. O resto você disse saber o que fazer.
O Thales respirou fundo, sorriu para mim, e entrou no palco.
Ouvimos os cochichos da plateia aumentarem, enquanto ele se deitava no
túmulo. As pessoas com certeza estavam confusas com essa mudança
repentina.
Poderíamos dizer que essa transformação tinha sido efeito colateral da
poção que o Frei Lourenço havia dado a ela.
A confusão deles aumentaria quando virem que Mercúcio ressuscitou e se
transformou em Páris.
O último ato começou e na primeira cena eu entrei, comprando um frasco
de veneno de um velho boticário depois de saber da morte da Julieta.
Em outra cena, eu partia de Mântua, montado em um cavalo de pau, até a
cidade de Verona, e ia direto para a cripta de Julieta. Chegando lá, encontrei
primeiramente o Páris, fazendo guarda para ela.
Travamos uma briga por ele não me deixar ver o corpo da Julieta e eu
acabei matando-o.
Aproximei do Thales, vestido de Julieta, deitado com os olhos fechados, o
observei e tomei o veneno, repousando para uma morte rápida ao lado dele.
Na cena seguinte, chegou o Frei Lourenço e encontrou Julieta, recém
desperta, chorando a minha morte.
O Frei tentou convencê-la a deixar a cripta, mas ela se negou e ele saiu de
cena.
Meus olhos continuaram fechados o tempo todo, e eu fiquei apreensivo
com a cena que viria em seguida, seria o único beijo da peça, antes da Julieta
cometer suicídio. Essa cena não havia sido ensaiada, mas como era o Thales,
ao invés da Alice, eu pensei que ele pularia essa parte, até que senti os fios
de sua peruca em meu rosto e os seus lábios tocarem os meus.
Não consegui abrir os olhos e deixei que o beijo continuasse.
Gritos de espanto e pedidos para que parássemos ecoaram da plateia, e as
cortinas foram fechadas antes mesmo do beijo e da peça acabar.
Por melhor que tivesse sido a intenção do Thales para terminar a peça, ele
mesmo fez com ela não chegasse até ao fim.
— Garotos, olhem o que vocês fizeram! — o Diretor chegou correndo até
nós, quando a cortina já estava fechada e ainda se ouvia um grande
burburinho do outro lado dela. — Eu vou perder o meu emprego por causa
disso.
Ele ficou andando de um lado para o outro, pensando no estrago que
acabamos de fazer.
Eu e o Thales descemos do túmulo e não bastou muito para chegarem,
exaltados, alguns professores e o Diretor do colégio.
Peguei pela mão do Thales e saí correndo com ele, enquanto víamos o
Diretor da peça sendo rodeado por urubus. Esperava que ele conseguisse se
explicar e não se dar mal por nossa causa. Não tinha sido a nossa intenção.
Passamos correndo por todo o resto do pessoal da peça, sem parar para dar
qualquer explicação e seguimos em direção a saída pela frente do teatro.
Empurramos uma porta para o lado de fora, já escuro. A noite tinha
tomado conta do céu, mas isso não nos impediu de continuarmos correndo.
Levei o Thales até um local que pudéssemos ficar sozinhos por alguns
instantes. Era na fonte de água ao lado do ginásio.
Paramos e sentamos ao lado da grama, ofegantes, sem conseguir falar
nada.
Tirei algumas peças da minha roupa, ficando apenas com a camisa e a
calça, enquanto o suor pingava pelo meu rosto.
Olhei para o Thales e ele também estava se despindo.
— Tira essa peruca, pelo amor de Deus! — puxei ela da cabeça dele e a
atirei bem longe.
— Que loucura acabamos de fazer, Caio — disse ele, com sua respiração
acelerada, exibindo aquele sorriso que tanto me conquistava.
— Ideia sua — falei, deitando na grama. — Você sabe que acabamos de
nos assumir na frente de todo mundo do colégio, inclusive de nossos pais,
né?
— Tenho certeza que nossos pais já sabiam há muito tempo — disse ele,
me deixando pensativo. — Mas, como você está se sentindo?
Ele se deitou na grama também, ao meu lado.
— Além de cansado? Eu estou me sentindo feliz, muito feliz. Ainda não
caiu a ficha muito bem — respondi, admirando a imensidão do céu escuro e
estrelado.
— Agora que estamos livres, somos tão infinitos como esse céu acima da
gente — disse o Thales.
Eu me levantei um pouco e o beijei. Dessa vez não era Romeu e Julieta, e
sim Caio e Thales.
Os irrigadores do jardim foram ligados quando ainda nos beijávamos, nos
assustando por um instante, mas levando de nossos corpos e almas de tudo
de ruim que tinha se passado no ano.
Ele se levantou e me ajudou a levantar também, e, com os braços abertos,
rodopiamos enquanto nos ensopávamos mais e mais.
— Eu te amo, Caio!
O Thales gritou para que o mundo inteiro ouvisse, fixando o céu.
— Também te amo, Thales! — gritei o mais alto que podia.
O amor de Romeu e Julieta nasceu e morreu proibido. O meu amor com o
Thales também era, para muitos, um amor proibido. Assim como as famílias
rivais da peça do Shakespeare, também tínhamos ao nosso redor aqueles que
nos apoiavam e aqueles que nos condenavam, mas infelizmente, nem se
morrêssemos, literalmente, por causa desse amor, isso faria as pessoas se
unirem, como fizeram as famílias dos Capuletos e dos Montecchios, no final
que não chegamos a encenar.
Só queríamos que todo mundo entendesse que o amor transcendia a
barreira dos gêneros, não importava se fosse homem ou mulher, a única
questão era decidir amar ou não amar.
Por isso mesmo não deixaríamos que as pessoas nos crucificassem ou nos
fizessem perder as esperanças de dias melhores. Com a força de nossa união
mostraríamos que podemos ter os mesmos direitos que qualquer um outro.
Epílogo

Estava começando a ficar com vergonha por estar sentado há mais de meia
hora na mesa de um bar quase cheio e ter pedido apenas uma Coca-Cola,
que por sinal já esquentou e eu não tomei nada.
Thales não atendia ao telefone, mas eu sabia que ele estava tramando algo.
Eu só queria ir para casa após um dia exaustivo na faculdade de Arquitetura.
A ideia de vir para esse lugar foi somente dele.
E como se não bastasse o garçom no outro lado do balcão me olhando de
vez em quando, porque eu não pedia mais nada, havia um outro cara em uma
mesa há uns dez metros de distância da minha, encarando a mim. E olha que
ele estava com outro homem, que parecia ser o namorado dele, pois ambos
estavam de mãos dadas em cima da mesa.
Era um bar gay. As únicas duas mulheres que estavam aqui eram
provavelmente lésbicas ou bissexuais. Não era a primeira vez que eu tinha
vindo. Na verdade, vim muitas vezes. Eu gostava do ambiente. A música era
calma, não era para dançar. Era para bater um papo e rir depois de um dia
cansativo de trabalho, ou faculdade.
Quem descobriu esse lugar foi o Thales ao mudarmos para esta cidade, e
para este bairro, há dois anos, quando passamos a morar juntos. Um lugar
entre mil na maior capital do país.
Ele se materializou na minha frente bem na hora que eu ia levantar para ir
embora. O seu corpo agora impedia a visão incômoda do cara
comprometido.
— Desculpa a demora — disse ele, sentando e retirando por cima da
cabeça a sua bolsa preta, daquelas no estilo mala que jogadores de futebol
costumam usar.
Todo mundo que olha para o Thales pensa que ele acabou de voltar de
uma academia. Suas roupas, seu tênis, sua bolsa, tudo muito específico, mas
ele usava essas coisas porque era estudante de Educação Física. Embora eu
ache estranho que estudantes do seu curso tenham que se vestir assim o
tempo todo. E as pessoas ainda reclamam de estudantes de Medicina que
usam jaleco para onde quer que vão.
— Esperou muito? — perguntou, abrindo um sorriso enorme e bonito,
mas que mesmo assim não me contagiou.
— O que você acha? — respondi, cruzando os braços, e indiferente.
— Desculpa, sério. Eu tinha que passar no shopping antes de vir pra cá, e
não deu pra avisar porque a bateria do celular descarregou — explicou.
— O que você foi fazer no shopping?
Ele abriu mais um largo sorriso e começou a procurar por algo em sua
bolsa. Não demorou muito para que ele retirasse uma caixa pequena e
quadrada e colocasse em cima da mesa.
— Lá vem você de novo — falei.
— Não seja chato, por favor. Ainda mais hoje.
— Hoje? — perguntei, confuso.
— Eu poderia dizer a falácia de que “homens são esquecidos”, mas aí, eu
também sou homem, e não sou esquecido.
— Aham, sei — bufei.
— Então, a verdade é que existem homens românticos, que guardam datas
especiais, e existem os que não são românticos.
— No caso, EU sou o romântico, né?
— Claro que não!
— E quem foi que lhe presenteou com um buquê de flores no ano
passado? Com uma cesta enorme de chocolates, TODOS BRANCOS, no
ano retrasado?
— Ah, realmente foi você. Mas então, porque você não lembrou do nosso
aniversário de 3 anos de namoro dessa vez? — perguntou, deslizando o dedo
em espiral na mesa.
— Eu passei dias estudando para uma prova que fiz hoje. E você sabe o
quanto eu estava quebrando a cabeça por causa disso. Eu nem dormi direito
ontem — reclamei, quase deitando na mesa para descansar.
Ele levantou de sua cadeira, veio até mim e me beijou. Foi um beijo
demorado, que fez eu recobrar quase todas as minhas energias. E voltou a
sentar no seu lugar.
— Sente-se bem agora? — perguntou. Ele sabia que um beijo dele era
sempre a cura para qualquer problema meu.
Sorri para ele, envergonhado, ao mesmo tempo bastante comovido,
porque ter o Thales ao meu lado por mais de três anos tem sido a coisa mais
importante da minha vida. A gente passou por tantas coisas até chegar aonde
estamos, e saber que nosso amor ainda resistia era a coisa mais gratificante
que eu poderia viver.
— Você não vai me dar isso? — perguntei, apontando para a caixinha que
ele tinha deixado em cima da mesma. Ele estava tão fixado em meu olhar
que parecia não se importar com mais nada.
— Ah sim, desculpa — pediu, pegando a caixinha.
— Estou contando quantas vezes você vai me pedir desculpas hoje.
— Ai, descul… Para, Caio! Não me teste — disse, batendo na minha mão
em cima da mesa.
Comecei a rir e quase não consegui parar, enquanto ele me olhava
emburrado. Mas parei.
Ele abriu a caixinha na minha frente e era um relógio. Um relógio
prateado, muito bonito.
— Outro relógio? — perguntei.
— Outro relógio, Caio? Aquele seu relógio de estimação parou de
funcionar há dois meses.
Era verdade. Eu usava o mesmo relógio há três anos, e só deixei de usar
porque ele parou de vez, sem chance de conserto. Acontece que eu gostava
muito dele. O Thales havia me dado no nosso primeiro Natal em família
juntos.
Peguei o relógio da mão dele e coloquei no meu pulso. Encaixou-se
perfeitamente.
— Ficou lindo — disse, debruçando-se por cima da mesa para alisar o
meu braço. — Caio?
Fiquei tão emocionado com o presente que comecei a chorar, e não
consegui disfarçar, mesmo com a cabeça baixa para ele não perceber.
— Desculpa — pedi, olhando para ele. — Eu não lembrei de comprar
algo para você também.
— Caio, pelo amor de Deus. O meu maior presente é você.
— Que clichê — falei, em um misto de lágrimas com riso.
— Eu sou um clichê gay.
E assim terminamos a noite. Bebemos alguns drinks. Mais ele do que eu.
Até que resolvemos voltar para casa andando no meio da noite, porque ainda
não era fim de semana, e não podíamos nos dar ao luxo de passar a
madrugada em claro.
Extras (Conto Natalino)

POV Caio

— Oi — disse o Thales, bocejando, mas desmanchando-se em um largo


sorriso.
Era quase meio-dia e ele ainda estava deitado em sua cama, enrolado em
seu edredom que tem o corpo de algum super-herói até o pescoço.
Seu cabelo todo desgrenhado, além do usual, entregava mais ainda que ele
acabara de acordar. E, provavelmente, só acordou porque eu fiz essa ligação
por videochamada.
— Por que você tá me olhando assim? — perguntou ele, do outro lado da
tela, franzindo o cenho, e bocejando mais uma vez.
— Você só acordou agora? Sério? — perguntei.
— A gente tá de férias, dã. Por que eu acordaria cedo? Aliás, “oi para
você também”, tá?
— Ah, desculpa — cocei a cabeça, impaciente, e falei em voz mansa: —
Oi. Bom dia.
— Por que você tá implicando logo cedo? Como se você fosse um
exemplo de espécie que acorda cedo — ironizou.
— Espécie?
— Sim, você é o próprio bicho-preguiça — respondeu, rindo.
Ri sem vontade em resposta, mas sem disfarçar. Olhei para as paredes
laterais do meu quarto para não ter que revirar os olhos para ele.
Ultimamente eu estava tentando me controlar quanto a revirar os olhos. Eu
fazia isso mais do que qualquer coisa.
— Você tá chateado com algo? — perguntou, saindo do foco da câmera
por um segundo e voltando logo após, ao sentar-se na sua cama.
— Não é isso, é que eu estava ansioso pra falar com você, só que você
demorou demais a acordar hoje — reclamei, porém não tão chateado como
eu pensei que estaria.
— Por quê? — perguntou, confuso.
— Minha mãe…
— Eu já sei — disse, interrompendo-me.
— Sabe o quê?
— A minha mãe veio aqui no meu quarto há alguns minutos contar que a
sua mãe ligou para ela nos convidando para a ceia de Natal na sua casa —
disparou.
Meu cérebro entrou em colapso por um instante e eu demorei alguns
segundos para assimilar o que ele tinha falado.
— Mãaaaaae!!! — gritei em direção à porta meu quarto.
— O que foi, Caio? — perguntou o Thales, com o rosto aumentado na
minha tela.
— Agora sim eu estou chateado. Minha mãe pediu para EU ligar para
vocês e convidá-los para um jantar aqui no Natal…
Parei de falar quando a porta do meu quarto se abriu e a minha mãe entrou
desconfiada.
— Mãe — resmunguei, indignado. — Só um minuto, Thales. Falo já!
Atirei o celular em cima da minha cama com a câmera apontando para o
teto do quarto.
— O que foi, querido? — perguntou ela, aproximando-se de mim e
passando a mão no meu rosto como se nada tivesse acontecido.
— Mãe, porque a senhora ligou para a mãe do Thales? A senhora disse
que era para eu ligar.
— Ah, querido. Eu não achei que você fosse ligar. Por isso eu mesma
liguei.
— Por que eu não ligaria, mãe? — perguntei, batendo os pés mais rápido
que uma britadeira.
— Porque você é muito esquecido — disse, sem hesitar.
Fechei a cara para ela e a encarei, de braços cruzados. Revirar os olhos?
Sim, eu tive vontade, mas não fiz. E eu também não podia dizer que ela
estava mentindo, porque ela não estava. E também porque eu não podia
chamar a minha própria mãe de mentirosa, mesmo que ela mentisse para
mim, algo que ela nunca fez.
— Você lembra quando…
— Mãe — interrompi ela, fechando os olhos —, não precisa me lembrar
de nenhum momento que eu esqueci de algo só para me provar que eu sou
esquecido. Eu não estou contrariando o que disse.
— Não é o que sua feição está me dizendo — disse ela, arqueando uma de
suas sobrancelhas.
— Ah, desculpa, mãe. Eu só queria ter sido a pessoa a ter convidado eles
— falei, baixando a guarda.
— Não fique chateado, meu filho. Venha cá.
Ela me puxou e me envolveu em um abraço.
— Tá bom, mãe — falei, afastando-me dela.
— Eu vou sair agora, tudo bem? — respondi que sim com a cabeça,
forçando um meio sorriso. — Qualquer coisa me liga, ou liga para seu pai.
Ele já saiu também.
Pulei na cama assim que a minha mãe saiu do quarto e fiquei olhando para
o teto. Só após alguns instantes eu lembrei que estava falando com o Thales.
Assim que peguei o celular e apareci, ele abriu um sorriso genuíno e
apaixonante. O cabelo dele não estava mais tão desgrenhado.
— Obrigado por esperar — falei, fingindo que não tinha esquecido dele.
— Com todo prazer — respondeu. — Eu ouvi tudo o que você e a sua
mãe estavam conversando.
— Ouviu? — perguntei, desconcertado. — Me desculpe pelo pequeno
escândalo que fiz.
— Na verdade — começou ele, enrolando um cacho de seu cabelo em seu
dedo —, eu achei muito fofo da sua parte. Eu não sabia que isso seria tão
especial para você.
— Como não? Nossos pais vão se conhecer pela primeira vez. Isso é mais
do que especial pra mim.
— Isso também significa muito pra mim, Caio.
Os olhos dele brilharam e ele sumiu da tela por alguns segundos, mas logo
reapareceu.
— Foi fazer o quê? — perguntei.
— Nada — mentiu.
Eu sei que ele tinha ido enxugar os olhos dele que estavam nadando em
lágrimas. Entendo que ele estivesse com vergonha de chorar na minha
frente.
Uma longa pausa se instaurou e eu falei a primeira coisa que me veio à
mente para quebrar o gelo:
— Quando é o Natal mesmo?
Ele revirou os olhos e sorriu desajeitado.
— Exatamente daqui há uma semana, seu esquecido. A gente vai se ver
hoje?
— Eu estou invisível por acaso? — brinquei, checando minhas mãos e
braços.
— Caaaaaaaaio — resmungou, demorando-se em meu nome —, eu tô
falando sério.
Ele era a única pessoa nesse mundo que conseguia ser lindo até com raiva.
Era por isso que eu amava esse cara. Não tinha como não amar.
— Desculpa, a gente vai se ver sim. Eu vou só tomar um banho e apareço
por aí. Vou desligar aqui.
— Não precisa desligar, me leva para o banheiro com você!
Tentei parecer desentendido, mas de repente ele se distanciou do celular,
levantou a camiseta que ele usava como pijama até ao seu pescoço, e
começou a fazer movimentos circulares na auréola do seu peito, enquanto
mordia os lábios.
Parecia um pornô.
— Claro que não, seu pervertido! E você não está sendo nada sexy, ok?
— Affs — disse, murchando e vestindo-se.
— Eu tô brincando. Você é sexy!
E desliguei a videochamada na cara dele.
A verdade era que ele estava sexy até demais e algo lá embaixo estava
começando a se mexer.
POV Thales

Eu não sei quem estava mais tenso nesse momento. Se era eu, porque meus
pais, em especial o meu pai, estava prestes a conhecer os pais do meu
namorado, e também, o próprio Caio. Ou se era a minha mãe, sentada no
banco do passageiro do carro, ao lado do meu pai, batendo os pés
freneticamente no assoalho, enquanto estávamos os três parados em um
engarrafamento em plena noite de véspera de Natal há mais de 15 minutos.
Eu estava rezando para que tudo ocorresse bem.
— Não dá para ir mais rápido, querido? — perguntou a minha mãe.
Meu pai, na maior tranquilidade do mundo, que eu não sei como ele
conseguia ter, virou-se para ela e falou:
— Amor, não tem como eu passar por cima dos outros carros.
— A não ser que fôssemos um tanque de guerra — comentei, tentando
fazer graça, mas falhando.
Minha mãe virou o rosto para mim, sentado no centro do banco traseiro,
em um esforço meticuloso e calculado, porque ela não queria amassar o
vestido dela, e depois virou-se novamente para a frente do carro. Ela não
tinha achado a menor graça. Ainda não estávamos no espírito natalino.
A única vez em que meu pai tinha visto o Caio, e não fazia muito tempo,
foi no dia embaraçoso em que eu tive a brilhante ideia de colocar uma
peruca loira e protagonizar aquele beijo no palco do teatro do colégio. Foi
um completo desastre.
Após isso, eu e o Caio, em conjunto com nossos pais, decidimos sair do
Colégio Santa Inês. Embora o Diretor já tivesse alertado que seríamos
expulsos de qualquer modo. Meus pais não confiavam nas políticas no
combate ao bullying e à homofobia dessa escola.
A Mel, o Gabriel e o namorado dele também resolveram trocar de colégio.
Eu não tinha problemas em trocar de escola, estava acostumado até.
— Thales, você colocou no carro as coisas que eu pedi? — perguntou a
minha mãe.
— Eita, mãe! — falei, colocando as mãos na cabeça em desespero.
Ela virou para trás com seus olhos verdes arregalados, como se eu tivesse
cometido um crime.
— Não acredito, Thales! — disse, pausadamente.
Eu estava fingindo que tinha esquecido e achei melhor não fingir por mais
tempo para não acabar estragando a noite feliz que já não estava tão feliz
assim.
— Eu trouxe mãe, fique calma.
— Ah, Thales, não brinca comigo assim. Você sabe que eu não gosto
dessas coisas.
— Thales, não brinque com a sua mãe — reclamou meu pai, em uma
tentativa de parecer uma bronca, mas ele falava tão calmo que nunca parecia
uma bronca de verdade.
As coisas às quais minha mãe se referiu eram três presentes que ela fez
questão de comprar para o Caio e para os pais dele. Ela me pediu até para
escolher o presente do meu namorado, embora não fosse a coisa mais fácil
do mundo, pois ele não gostava de receber presentes.
Pelo espelho retrovisor externo do carro vi que o semblante da minha mãe
passou, em um milésimo de segundo, de séria à uma completa felicidade
quando o carro, enfim, começou a se movimentar.
— Sério que esse engarrafamento todo era por causa de um bendito
semáforo? Meu Deus! — disse meu pai, pensando alto.
A hora na tela do meu celular não passava das 9:00hs da noite. Isso
indicava que chegaríamos bem cedo na casa dos pais do Caio. E já
estávamos próximo, se eu estivesse certo sobre onde a gente estava.
A cidade estava bastante iluminada por causa da decoração natalina,
principalmente nas grandes avenidas. Eu não acharia ruim se continuasse
assim o ano inteiro.
Quando meu pai fez uma certa curva à direita, eu me dei conta de que era
a rua que o Caio morava. Até porque, já tinha vindo aqui algumas vezes, e
estava familiarizado.
Subitamente, me senti nervoso e meu coração acelerou de uma maneira
incomum.
— Thales? Thales!
Minha alma voltou ao corpo quando minha mãe apertou meu joelho em
uma tentativa de atrair minha atenção.
— Oi, mãe.
— Eu estou lhe perguntando se é nesta rua a casa dos pais do Caio.
— Ah, desculpa. É sim, acho que sim — respondi, ainda um pouco
desatento.
— Paaaai — reclamei, afastando-me da janela que ele tinha aberto —, por
que você abriu? Bagunçou meu cabelo.
Uma rajada de vento havia entrado no carro pela janela ao meu lado, o
que me fez tomar um susto pensando que meu penteado estava destruído.
— Pra você olhar e ter certeza se é essa a rua.
— É essa sim. Já pode fechar o vidro, tá? Affs!
Minha mãe virou-se para trás mais uma vez e estreitou os olhos,
analisando-me.
— Não está nada bagunçado, Thales. Está igualzinho como deixei —
disse a minha mãe.
Ela mesma tinha arrumado meu cabelo, sendo que ela nunca fazia isso
desde... desde meus 10 anos de idade.
— Pai, quando você chegar na frente da casa é só buzinar que alguém vai
abrir o portão da garagem — avisei.
Esse era a última mensagem que o Caio havia me enviado antes de sumir
há mais de uma hora do WhatsApp.
Na rua do Caio só havia uma casa decorada para o Natal, justamente a
dele. E parecia que os seus pais tinham roubado a decorações da cidade
inteira para eles.
— Pai, é aqui, para! — apontei.
Era tanta luz que eu mal estava conseguindo enxergar além delas. As
quatro árvores enfileiradas na calçada, que da última vez que eu tinha os
visitado não tinham forma alguma, apenas formato de árvore, agora estavam
geometricamente quadradas, com luzes coloridas ao redor, e grandes laços
em cima de cada uma, dando a impressão de que elas eram caixas de
presente.
Eu nem ouvi meu pai buzinar, mas sabia que ele tinha buzinado porque o
portão automático na frente da casa estava se abrindo.
De fora já dava para ver que a fachada da casa de dois andares também
estava decorada com luzes LED e outros tipos de iluminação natalina, mas
só ao entrar foi que tivemos uma noção mais clara de como tudo aqui parecia
a própria transfiguração do Natal.
Desci do carro primeiro e fui abrir a porta para a minha mãe descer. Ela
demorou a destravar o cinto de segurança, e eu tive que ajudá-la.
— Estou com vergonha — disse ela ao colocar-se de pé fora do carro.
— Porquê? — perguntei.
— Vergonha da nossa casa ter apenas umas luzes na varanda, e a casa dos
pais do Caio estar tão linda — disse, em uma risada nervosa.
Eu não sei se eu gostaria que a minha casa estivesse tão decorada como
essa. Não era como se eu quisesse vencer o concurso de casa mais bem
iluminada da cidade para o Natal.
Dei apenas alguns passos com a minha mãe apoiando as suas mãos em
meu ombro, porque ela estava usando um salto alto fino que provavelmente
estava afundando na grama, até que a mãe do Caio apareceu.
— Boa noite! — disse ela, cumprimentando a minha mãe com um beijo
no rosto, e depois cumprimentando-me, igualmente. — É um prazer receber
vocês aqui na minha humilde casa pouco iluminada, como já devem ter
percebido.
Nós três rimos, porque claramente ela estava sendo irônica.
— Você está lindo, Thales — elogiou ela, passando a mão suavemente
pelo meu rosto.
— Obrigado, você… — olhei para a minha mãe temendo ser repreendido
pela falta de educação — desculpa, a senhora está deslumbrante.
Foi a mesma coisa que eu disse para a minha mãe quando saímos.
Enquanto a ela tinha escolhido para a ocasião usar um vestido vermelho de
ombros cobertos, com a saia mais curta na frente, a mãe do Thales, por sua
vez, estava com um vestido verde ajustado ao corpo esbelto dela, que parecia
ser coberto por pequenas pedras espaçadas como esmeraldas, além das
mangas em transparência que iam até a metade do antebraço. As duas
estavam perfeitas, e eu não podia escolher entre elas quem estava mais bem
vestida.
Meu pai demorou a sair do carro e veio nos acompanhando alguns passos
atrás em direção a entrada da casa. Ele também parecia impressionado com
tantas luzes. O sorriso no rosto dele era como sorriso de criança.
Na parte do solo, todo o percurso do jardim até a porta de entrada era
repleto de pequenos anjos de barro iluminados de dentro para fora, e que
pareciam nos guiar até a casa.
Espalhadas pelos cantos, havia algumas renas iluminadas. Umas pareciam
estar olhando para os visitantes, outras pareciam estar comendo o jardim.
Havia uma outra até deitada.
A parte externa da casa do Caio era tão grande que, além de tudo, ainda
havia um presépio de luzes trançadas na palha com os personagens bíblicos
em tamanho real, incluindo o Menino Jesus que piscava loucamente.
Minha mãe e a mãe do Caio foram as primeiras a alcançar a porta de
entrada, e elas ficaram paradas nos esperando, porque eu e meu pai
estávamos andando demasiadamente lentos analisando cada detalhe da
decoração, e mesmo assim não deu para ver tudo.
A porta branca da entrada estava decorada com três grandes guirlandas
dispostas verticalmente, onde na do meio estava escrito “Feliz Natal” em
inglês.
Quem abriu a porta para nos receber foi o pai do Caio. Eu só tinha visto
ele pessoalmente uma vez, e foi bem rápido, no dia da peça. Sempre que eu
vinha aqui na casa do Caio ele estava em seu escritório.
Não sei porque, mas eu achei que fosse encontrar ele usando um terno. Só
que ele não estava usando um traje social. Ele usava calça jeans justa, blazer
e camisa em gola “v” não muito acentuada. O pai do Caio estava muito em
forma para a idade dele. Embora eu não soubesse a idade dele.
Não daria para dizer que o Caio era filho de outro pai, senão desse pai.
Eles eram muito parecidos.
— É um prazer ter a sua família em nossa casa — disse ele ao
cumprimentar a minha mãe em um abraço acanhado.
Em seguida, ele abraçou o meu pai, com mais segurança, e veio em minha
direção, pousando suas mãos pesadas em meus ombros.
— Então quer dizer que você é o rapaz que travou uma batalha pelo meu
filho com uma garota e acabou angariando o coração dele?
A tensão se instaurou no ar depois disso. Eu fiquei sem reação. Eu nem
sabia o que responder, nem se ele estava falando sério. Apesar da sua feição
extremamente séria.
— Maurício, por favor, né? Olha a cara do menino.
A mãe do Caio veio em minha direção me tirar de uma enrascada e
apertou o meu ombro em uma tentativa de me fazer relaxar.
— Eu estou brincando com você, Thales. Não se sinta intimidado.
Ele me deu um abraço forte e demorado que dissipou toda a minha tensão.
Eu tinha ficado parado igual pedra.
— Pai, eu ouvi o que você falou. Não foi desse jeito que as coisas
aconteceram, não — disse o Caio, brotando por trás do pai dele. — Assim
você o assusta.
Todo mundo riu e eu percebi naquele momento que eu estava em um lugar
seguro, e que aquela família era a família que eu realmente queria estar e
fazer parte.
— Vamos entrar — convidou a todos, o pai do Caio.
— Mãe — falei, pegando no braço dela —, eu esqueci as coisas lá no
carro.
Meu pai ouviu e colocou as chaves do carro na minha mão para que eu
fosse pegar.
Os adultos entraram na casa, enquanto eu fiquei do lado de fora com o
Caio, que me olhava com os olhos apertados. Ele estava tão lindo que eu não
conseguia me aguentar para não pular em cima dele.
— Peço desculpas pelo meu pai. Tenho certeza que ele planejou falar isso
antecipadamente.
— Sem problemas. Eu só fiquei com vontade de correr para bem longe e
nunca mais voltar.
— Só se você fosse me levar junto — propôs, acariciando a minha
bochecha.
— Com toda certeza.
— Então — ele se afastou de mim para poder me olhar dos pés à cabeça
—, você decidiu me fazer se apaixonar por você novamente hoje?
Eu, estava usando por cima de uma camiseta vinho, uma jaqueta de couro
preta, além de uma calça jeans bem apertada.
— O que você acha? — perguntei, dando uma volta.
Ele deu um passo para frente e aproximou seu rosto do meu ouvido,
falando baixinho:
— Eu gosto de um badboy assim.
A respiração dele em meu pescoço me fez arrepiar.
— Para, Caio! — falei, afastando-o de mim.
— Não tenho culpa se você está tão bonito — disse, com olhos ardentes
para cima de mim.
— Não mais do que você — rebati.
Ele realmente estava muito lindo. Eu falaria isso mesmo se ele não fosse
meu namorado. Coincidência ou não, ele estava usando uma camisa de
manga longa colada ao corpo também na cor vinho, porém seu jeans era
branco, além de um tênis Vanz.
— Vamos ali no carro do meu pai — convidei, e saímos andando lado a
lado pelo caminho de anjinhos de barro brilhantes.
— Você já deve ter percebido que a minha mãe é a louca do Natal.
— Eu não diria que a minha sogra, a Cecília, é a “louca do Natal”, e
você... — parei de andar e apertei a bochecha dele fazendo biquinho de
peixe. — Não deveria falar assim da sua mãe.
Dei um beijo rápido no biquinho de peixe dele e soltei as suas bochechas.
— Se for pra ganhar um beijo toda vez que eu chamar a minha mãe de
louca, esse não foi o melhor incentivo para que eu parasse.
— Não me faça apertar sua bochecha de novo.
Tentei pegar o rosto dele, mas ele se esquivou e saiu correndo. Eu
comecei a correr quando ele já estava ao lado do carro do meu pai.
Apertei um botão no controle e o carro fez um barulho do porta-malas se
abrindo.
— Quer que eu pegue? — perguntou o Caio, oferecendo-se.
— Não, eu mesmo pego — respondi, colocando três caixas de presente de
tamanhos iguais empilhadas em meu braço.
— Hmm, três caixas de presente. Suponho que uma seja para mim. Você
sabe que…
Coloquei meu dedo na boca dele para que ele se calasse, enquanto fazia
um esforço de malabarista para manter os presentes empilhados no outro
braço.
— Caio, por favor. Pelo menos uma vez. É Natal!
— Tá certo, desculpa. Agora me deixe ajudar, porque eu estou só
pensando na hora que você vai derrubar tudo isso.
Ele pegou dois dos presentes e deixou um comigo, justamente o que eu
tinha escolhido para ele.
Começamos a andar de volta para a casa, até que ele parou do nada.
— Deveríamos mandar uma foto nossa para a Mel.
Ele se agachou, colocou seus presentes no chão e tomou o outro da minha
mão, deixando-os lado a lado.
— Ah, claro. Ela está em Paris. Deve estar sentindo muita falta da gente
— brinquei.
— Deixa de ser bobo, claro que tá. Deve estar até sentindo falta do
grêmio. Me dá seu telefone. O meu não tá aqui.
Ele enfiou a mão no bolso de trás da minha calça e puxou meu celular em
um esforço quase miraculoso.
Não foi difícil para ele desbloquear o aparelho, já que tanto no meu
quanto no dele estavam gravadas as nossas impressões digitais.
Ele ativou a câmera, encostou o rosto dele no meu e tiramos uma selfie
sorrindo, com uma rena nos olhando ao fundo.
— Pronto, enviei — disse, mostrando a tela do celular para mim.
— E ela já visualizou, inclusive — falei.
Ele virou o celular para si, e eu corri para o lado dele. Na tela eu vi que a
Mel estava escrevendo algo.
— Vaca! — falei, após ver o que ela tinha escrito.
Na mensagem ela dizia “vejo três veados lindos”, seguido de um emoji de
cabeça de rena.
Ela também tinha enviado uma foto. Também era uma selfie dela com um
garoto de óculos.
— Quem é esse? — perguntou o Caio.
— É um francês que ela conheceu ontem na cidade. Eles estão se
pegando.
— Sério? — perguntou. — Preciso aprender com ela.
Virei para ele quase espumando, e ele disse, rindo:
— Não mais, né? Eu precisava aprender ANTES, foi isso que eu quis
dizer.
POV Caio

Thales pegou um presente no chão e saiu andando a passos rápidos.


— Espera! — gritei, tentando pegar os outros presentes que ele deixou pra
trás.
Ele não me esperou e apressou mais ainda os passos, a ponto de entrar
dentro de casa antes de eu conseguir alcançá-lo.
Quando abri a porta e entrei em casa, tentando não derrubar os presentes,
eu o vi no hall de entrada, parado na frente da árvore de Natal da minha mãe.
— Que linda — ouvi ele dizendo quando fechei a porta.
Cheguei mais próximo da árvore, coloquei os presentes embaixo dela, e
me juntei ao Thales, admirando a árvore.
— Sua mãe tombou as Kardashians — disse, sem me olhar.
— Quem?
— Ninguém.
Entrelacei minha mão na mão dele e depositei a minha cabeça em seu
ombro, apreciando a árvore na nossa frente, tentando sentir o que ele estava
sentindo.
A árvore que a minha mãe escolheu esse ano era de longe a mais bonita e
mais alta de todas que já tínhamos usado no Natal. Ela tinha quase três
metros e era dourada com bolas prateadas, mas que acabavam ficando
também douradas por causa da árvore em si.
— Eu que coloquei a estrela lá em cima — contei, apontando para a
estrela no topo. — Foi a minha contribuição no Natal.
Ele riu e bateu no meu peito.
— É pra se orgulhar? — perguntou.
— Claro que sim. E se você prestar atenção, ela fica mudando de cores, e
são exatamente as sete cores do arco-íris.
Nessa hora o Thales virou de frente para mim e inesperadamente me
abraçou.
— Você tá feliz, Caio? — perguntou, em um tom abafado pelo meu corpo.
— Sim, muito.
— Eu também. Eu nunca imaginei que um dia eu me sentiria tão feliz
como estou me sentindo ao seu lado. A minha família, a sua família, nós
dois juntos. Eu não poderia pedir um presente de Natal mais especial do que
esse.
— Linda, não é?
Nós dois nos assustamos e nos separamos quando a minha mãe apareceu
do nada ao nosso lado. Ela estava olhando para a árvore que ela mesma
ornamentou, de braços cruzados.
— Mãe, quando você apareceu aqui? — perguntei, ainda com o coração
quase saltando pela boca.
— Apareci exatamente agora — respondeu, virando a cabeça para mim.
— Eu acho que os dois esqueceram que tá todo mundo esperando por vocês
lá na sala.
— A gente se distraiu com outras coisas, mãe.
— Tudo bem. Mas vamos agora, meninos.
Ela saiu na frente e a seguimos até a sala. Todo mundo estava sentado.
Meu pai e o pai do Thales estavam cada um em uma poltrona, e a mãe do
Thales estava sentada no sofá na frente deles. Eles estavam conversando
alguma coisa, mas pararam com a nossa chegada.
— Deu certo, meu filho? — perguntou a mãe do Thales.
Ele fez que sim com a cabeça e foi sentar-se ao lado dela. Eu o segui e
sentei ao seu lado. A minha mãe também sentou ao meu lado.
— Então — começou a minha mãe, colocando a mão em meu joelho —,
antes de eu ir atrás de vocês a gente estava falando da decoração natalina. A
Sara falava do quanto amou, e que no próximo Natal vai fazer igual. Daí eu
disse que ela iria concorrer comigo o prêmio de casa mais decorada da
cidade.
Ela terminou a frase com uma risada fora de hora, mas que a mãe do
Thales também riu.
— Quantas vezes eu já ganhei, Caio?
— Seis vezes — respondi, orgulhoso.
Eu olhei para o Thales e ele estava boquiaberto e surpreso, porém não tão
surpreso assim.
A minha mãe não enfeitava a casa toda apenas com o intuito de vencer
esse concurso, ela fazia porque realmente gostava. Era quase como uma
terapia de final de ano para ela.
— Acho que deveríamos beber alguma coisa — disse o meu pai para o pai
do Thales. — Aceita um conhaque?
— Eu posso ir pegar! — falei, solícito, querendo parecer prestativo.
— Não, deixe que eu pego, isso é coisa para adultos — respondeu meu
pai.
— Mas…
— Caio — minha mãe colocou a mão no meu joelho para que eu não
questionasse meu pai.
Não era como se eu quisesse participar com eles e beber um copo de
conhaque, eu só tinha me oferecido para ir pegar.
Meu pai se levantou para ir até a cozinha e o pai do Caio foi junto com
ele, deixando as mães e os filhos sozinhos na sala.
— Vocês não vão beber? — perguntei a elas.
— Eu tenho cara de quem bebe conhaque? — minha mãe colocou a mão
embaixo do queixo, e com os seus olhos piscantes realmente não dava para
imaginar essa mulher linda bebendo conhaque e caindo pelos cantos depois.
— Eu não gosto também — comentou a mãe do Thales.
— Mãe, eu posso ir lá em cima com o Thales? — perguntei.
— Sim, claro. Nós vamos ficar conversando aqui. E eu vou já dar uma
olhada no peru.
Bastou ela dizer isso para eu pegar o Thales pelo braço e puxá-lo junto
comigo pela escada até ao meu quarto.
— Fecha a porta, por favor — pedi, quando entrei primeiro no quarto,
acendendo as luzes.
— Por que você quis vir para cá? — perguntou.
— Fechou? — repeti.
— Sim, mas…
— Eu queria te mostrar uma coisa.
Fui até ele e o conduzi até a minha cama, fazendo ele sentar-se nela,
enquanto eu fiquei em pé.
De frente para ele, desabotoei a minha calça, fiz uns movimentos
desajeitados de gogoboy, e quando comecei a abaixar o zíper ele pegou na
minha mão e me parou.
— O que você tá fazendo? — perguntou, rindo com espanto.
— Deixa eu continuar e você verá. Não é nada disso que você está
pensando.
Retirei as mãos dele de cima das minhas e me abaixei, dando um beijo
nele, e voltei a fazer o que estava fazendo.
— Você está me atiçando — disse ele, olhando fixamente para minhas
partes baixas.
— Excitando? — perguntei, fingindo desentendimento.
Ele não ousou me responder e eu dei continuidade ao meu quase strip-
tease.
Em um movimento rápido, mais rápido do que um piscar de olhos, baixei
minha calça até a altura do joelho.
— Meu Deus! — foram as únicas palavras que saíram da boca do Thales,
surpreso com olhos arregalados.
— Minha mãe que comprou — falei.
— Eu não queria dizer isso, mas eu tenho que dizer: sua mãe é sim a
louca do Natal.
Eu não me contive e comecei a rir enquanto ele admirava, estupefato, a
minha cueca boxer natalina. Minha mãe havia comprado para mim essa
cueca com a cabeça de uma das renas estampada na frente, onde o focinho
dela ficava exatamente no meio.
— Eu não tenho palavras para isso — comentou.
— E ainda tem mais.
Levantei a barra da minha calça e mostrei a ele a minha meia de cano alto
repleta de duendes com gorro, árvores de Natal e renas.
— Isso não faz parte do concurso, né?
— Claro que não.
Tornei a me recompor, até que um cheiro agradável começou a entrar
pelas minhas narinas.
— Você tá sentindo isso? — perguntei, abotoando a calça.
Olhei para a porta do quarto e ela estava entreaberta.
— Você não trancou a porta, Thales. Imagine se alguém aparecesse
quando eu estava de frente para você só de cueca.
— Seria um escândalo natalino — brincou ele. — Mas agora que você
falou, eu estou sentindo um cheiro bom vindo lá de baixo, sim.
— É o peru da minha mãe.
— Eu prefiro o seu.
Olhei para ele, não tão impressionado quanto eu poderia estar, e o peguei
pelo braço.
— Vamos descer.
Descemos correndo pela escada até chegar na sala. Meu pai e o pai do
Thales estavam lá tomando seus conhaques, e conversando sobre algum
assunto que provavelmente não era do interesse das mulheres da casa, muito
menos dos filhos. Eles nem perceberam quando passamos indo em direção à
cozinha. Chegando lá, encontramos nossas mães de frente para um peru
enorme recém-saído do forno.
— Muito bem. Já quero um pedaço — falei.
— Nem pensar — disse, afastando a minha mão do peru com um tapa.
— Au, mãe! Isso dói.
Ding dong! Ding dong!
O som da campainha ecoou por toda a casa.
— Deixe que eu atendo! — gritei para que meu pai não se levantasse.
— Você está esperando alguém, filho? — perguntou a minha mãe,
enrugando a testa.
— Eu não, mas vou lá saber quem é.
— Eu vou também — disse o Thales.
Saí correndo pela casa e ele veio atrás de mim.
— Vou ver quem é, pai! — falei enquanto voava pela sala. Nem sei se ele
ouviu ou entendeu.
A campainha soou mais uma vez antes de chegarmos na porta estreita.
Olhei pelo olho mágico e tive uma grande surpresa ao abrir a porta.
— Gabriel? Edu?
— Surprise, bitches!!! — exclamou o Gabriel.
— O que vocês fazem aqui a essa hora?
Olhei para o relógio no meu braço e eram quase 10hs da noite. Era
estranho que eles estivessem na rua em plena noite de Natal.
— Eu e o Edu estávamos indo para um lugar de Uber e,
coincidentemente, o carro estava passando pela sua rua, daí resolvemos
descer para desejar um Feliz Natal, porquê o nosso não está nada feliz.
Ele e o Edu esboçaram semblantes de que não estavam muito bem, apesar
de o Gabriel ser o tipo de pessoa que nunca deixava transparecer quando
algo não estava bem.
— O que aconteceu? — Thales perguntou.
— Nós fomos meio que... — respondeu o Edu, tentando encontrar a
palavra. — Expulsos do Natal da nossa família.
— Como assim? — perguntei, preocupado.
— Meninos!!!
Mais uma vez a minha mãe apareceu do nada, como tivesse se
teletransportado da cozinha para cá. Cada aparição dela era um susto que eu
tomava.
— Oi, Gabriel. Oi… — ela ficou olhando com estranhamento para o Edu.
— Eduardo, tia. Ele é meu namorado.
Segundos constrangedores se sucederam. Nem os grilos ousaram se
pronunciar depois dessa revelação inesperada na frente da minha mãe. Ela
não sabia que o Gabriel era gay, nem que ele namorava.
— Ele é lindo, Gabriel.
Foi isso que a minha mãe disse em resposta.
A tensão escancarada em nossas faces se transformou em sorrisos de
alívio. Eu nunca pensei que a minha mãe pudesse ser tão cabeça aberta.
— Vamos entrar, meninos. Não é seguro estar a essa hora com o portão
aberto. Vocês vão ficar para a ceia, certo?
Ela perguntou para o Gabriel e para o Edu, e antes de responder eles se
entreolharam. Não era a intenção deles ficar.
— A gente tá só de passagem, tia. Não vamos poder ficar — respondeu o
Gabriel.
— Eles vão ficar sim, mãe.
Puxei o Gabriel e o Edu pelo pulso para dentro de casa e a minha mãe
fechou a porta logo em seguida.
— Mãe, eu vou ficar aqui com eles no jardim por um instante, pode ser?
— Tá bem, eu vou voltar para a cozinha. Deixei a Sara sozinha lá.
— Quem é Sara? — perguntou o Gabriel, depois que minha mãe saiu.
— É a minha mãe — Thales respondeu.
— Os pais dele estão aqui — contei.
— Ceia em família. Que incrível — disse ele, não tão contente quanto a
fala dele exigia.
— O que aconteceu na sua casa? — perguntei, sem arrodeios.
O Gabriel tocou o braço do Edu como se pedisse para que ele falasse.
— Bom — o garoto começou, mirando o Gabriel, sem saber de onde
partir, ou como falar —, não foi por nada demais, sabe? Eu levei o Gabriel lá
pra casa, junto da minha família, e em um determinado momento nós demos
as mãos. Todo mundo sabe que eu e ele estamos namorando, mas é como se
todos fingissem que não sabem. E a gente também não toca no assunto para
não gerar mais conflitos.
— E foi só por causa disso — o Gabriel pegou o gancho da fala do
namorado para poder falar e entrelaçou a mão na dele —, por causa dessa
demonstração de carinho que a mãe dele criou uma confusão na frente de
todo mundo. Ela simplesmente explodiu para cima da gente dizendo que nós
dois estávamos sendo depravados na frente do restante da família. Disse que
não tínhamos nem a decência de esconder tamanha bizarrice.
A voz dele começou a ficar trêmula e ele parou de falar por um instante. O
Edu começou a passar a mão no cabelo dele, tentando acalentá-lo.
— Mas o pior — Eduardo falou, olhando para mim —, foi meu pai, MEU
PAI, Caio — repetiu, quase engasgando e batendo em seu peito —, ter
pedido para que eu me retirasse dali. Da minha própria casa…
A partir daí ele também não se conteve e as lágrimas desciam aos montes
em seu rosto, enquanto ele tentava enxugá-las com a camiseta. Meus olhos
também começaram a se encher, mas eu me segurei.
Eu não conseguia acreditar que algo assim tinha acontecido com eles.
Senti-me péssimo só de ouvir.
— Desculpa, Caio. Eu não queria estragar o seu Natal em família com
uma história dessas. Acho melhor a gente ir embora. Você nos desculpa com
a tia, tá?
— Claro que não — falei, tocando o braço do Gabriel quando ele já se
virava para poder ir embora.
A coisa mais reconfortante que eu poderia oferecer a eles naquele
momento era um abraço. E eu os abracei forte. O Thales também se juntou a
nós em um abraço coletivo.
— Tá bom, pessoal — disse o Gabriel, fungando bastante ao dispersar
todo mundo do abraço. — Agora que a tia sabe que todo mundo aqui é gay,
ela vai achar que estamos fazendo um grupal.
— Meu Deus, Gabriel — exclamou o Edu, socando o braço do namorado.
O Gabriel era a pessoa que tinha a boca e a mente mais suja desse mundo.
Era por isso que eu gostava dele.
— Só uma coisa, Gabriel — falei, virando o rosto dele para mim —, eu
não sou gay, eu sou bi.
— Tanto faz — disse, dando de ombros.
— Bebê, — o Gabriel soltou uma risada indiscreta quando o Thales me
chamou assim, mas o Thales não percebeu e continuou falando —, acho
melhor a gente entrar para que os meninos cumprimentem nossos pais, já
que eles vão ficar aqui.
— Verdade. Vamos — concordei.
Assim que abri a porta e entramos, ouviu-se uma gargalhada ecoando por
toda a casa. Inconfundível, era a gargalhada da minha mãe.
— Com certeza meu pai está contando piadas de médico — disse o
Thales. — Vocês precisam ouvir. São MUITO engraçadas.
Ao chegarmos na sala, minha mãe continuava rindo, quase chorando. A
mãe do Thales também estava se desmanchando em lágrimas. Eu acho que
ela estava rindo mais por causa da risada minha mãe do que das piadas do
marido.
— Pessoal! — gritei, chamando a atenção deles. — Esses dois aqui são o
Gabriel e o Eduardo, eles são nossos amigos e vão ficar para a ceia conosco.
Meu pai e os pais do Thales se levantaram para cumprimentar os mais
novos participantes da noite, que ficaram um pouco envergonhados.
— Seu pai tá contando aquelas piadas, Thales — contou a mãe dele, indo
sentar no outro lado da sala. O rosto dela estava vermelho de tanto rir.
Eu já estava com vontade de rir sem nem ao menos ter escutado as piadas.
— Sentem aqui, meninos — disse a minha mãe.
Nós quatro sentamos lado a lado em um sofá, enquanto os outros se
dispersaram pelas poltronas e pelo outro sofá.
O pai do Thales recomeçou seu show de piadas e simplesmente fez todos
se acabarem de tanto rir. Era uma piada melhor, ou pior, atrás da outra.
— E tem mais essa — continuou ele, já na centésima piada: — Depois de
uma cirurgia, o paciente fala: doutor, entendo que vocês médicos se vistam
de branco, mas por que essa luz tão clara? Meu filho, eu sou São Pedro.
Mais uma gargalhada histérica da minha mãe e eu já não aguentava mais
com tanta dor na barriga. Eu estava esparramado no sofá.
— Pai, todo mundo aqui vai ter um ataque cardíaco — brincou o Thales.
— Isso é verdade — confirmou ele, com seus conhecimentos médicos.
Ele parou de contar piadas para que todo mundo pudesse se recompor. Eu
acho que a minha mãe e a do Thales teriam que retocar as maquiagens delas.
Olhei para o relógio mais uma vez e ainda eram 11:00hs da noite. A hora
simplesmente não passava. Nunca dava meia-noite.
— Vocês estavam indo para onde antes de virem pra cá? — perguntei ao
Gabriel.
— Para a Praça da Árvore — respondeu.
— Pai — falei, acenando para que me olhasse —, a gente pode sair pra
dar uma volta?
O Thales, o Gabriel e o Edu me olharam confusos, porque simplesmente
eu tinha decidido algo agora, sem consultá-los.
— Sair pra onde, Caio? — perguntou a minha mãe. — Já, já é hora da
ceia.
— Mãe, vai dar tudo, menos a hora da ceia. E a gente só quer ir na Praça
da Árvore. Cinco minutos daqui — respondi, fazendo cara de quem implora
por algo.
Meu pai olhou para o relógio em seu pulso e disse:
— Por mim tudo bem.
Eu achava engraçado quão meu pai era permissivo para algumas coisas, e
para outras não. Eu não podia consumir bebida alcoólica, mas podia sair no
meio da noite.
— Por mim também — concordou o pai do Thales.
A mãe dele olhou para a minha mãe e as duas pareciam conversar
telepaticamente, até que chegaram a uma resposta, também decidida por
telepatia e por gestos.
— Tudo bem — disse a minha mãe.
— Mas com duas condições: — emendou a mãe do Thales — voltem
antes da meia-noite e deixem seus celulares ligados para alguma emergência.
Eu vou ligar de 10 em 10 minutos.
— Mãe — resmungou o Thales.
— É isso ou nada — reafirmou a mãe dele.
— Ok — aceitei, mais uma vez em nome de todos. — Vamos!
— Sejam cuidadosos! — recomendou o meu pai quando já estávamos
saindo da sala.
— Tá bem, pai! — gritei, sem olhar para trás. — Chama um Uber,
Gabriel.
Não demorou nem cinco minutos para nos encontrarmos dentro do carro.
Eu fui no banco ao lado do motorista.
De instante em instante ele olhava pelo espelho retrovisor interno do carro
para o banco de trás, onde o Gabriel e o Edu estavam se pegando sem
nenhuma inibição. Não sei como o Thales estava suportando, mas o
motorista não conseguia disfarçar um sorriso largo no rosto, e eu fiquei
aliviado por ele não ter nenhum problema com isso.
A Praça da Árvore era exatamente como o seu nome. Era uma praça onde
durante todo o mês de dezembro ficava a maior árvore de Natal da cidade.
Não sei quantos metros tinha, mas era definitivamente gigante.
Acabou que não foi exatamente para a Praça da Árvore que tínhamos ido.
O Gabriel nos trouxe para o estacionamento de um grande supermercado da
cidade. A única coisa que separava esse supermercado, que ficava em uma
parte íngreme, da Praça da Árvore, eram as rodovias movimentadas que
cortavam a cidade.
A visão que tínhamos da enorme árvore era melhor do que se
estivéssemos perto dela. Os jogos de luzes eram a coisa mais incrível que a
gente poderia estar vendo.
— Você já tinha vindo aqui? — perguntei ao Gabriel.
— Eu e o Edu já viemos algumas vezes — respondeu ele, olhando para a
árvore ao longe.
— E você, Thales?
— Eu não.
Nas bordas do estacionamento, que era enorme, havia amontoados de
outros adolescentes. A maioria deles estavam sentados, jogando conversa
fora.
— Eu gostei desse lugar — disse o Thales, com olhos brilhantes para
mim. — É como se aqui a gente pudesse ser quem nós somos.
Peguei ele pelas mãos e o puxei para beijá-lo. Eu não teria coragem de
fazer isso fora de casa, mas aqui eu não me importei.
— Vocês são meu casal favorito de todo o mundo — disse o Gabriel,
quando desgrudei do Thales.
— Eu tirei uma foto bem Tumblr de vocês. Olha — disse o Edu,
mostrando-nos a foto.
Era a foto mais incrível que eu já tinha visto na vida. Eu e o Thales nos
beijando com a árvore de Natal ao fundo justamente na hora em que ela
estava toda colorida.
— Ei, vamos ali.
Gabriel apontou para o outro lado do estacionamento, onde parecia haver
umas pessoas andando de patins.
Saímos os quatro caminhando sob o vento forte e frio que quase rugia ao
bater em nossos corpos. Não sei como, mas o cabelo do Thales continuava
intacto.
Encostamos em umas grades de metal super frias e ficamos observando
um bando de garotos em cima de rodinhas, fazendo movimentos que eu não
conseguiria fazer nem se eu quisesse. Havia uma dúzia de patinadores.
Alguns pareciam estar aprendendo ainda, outros eu diria que eram
profissionais.
Um dos patinadores veio em nossa direção e freou bem na nossa frente.
Um outro veio logo em seguida.
— E aí, maricas? — disse o primeiro.
Olhamos um para o rosto do outro, sem entender bem o que estava
acontecendo. Aparentemente ninguém de nós conhecia esses dois caras.
— Oi? — perguntei, ainda duvidoso se ele realmente estava falando com
a gente.
— Parece que os viadinhos do Papai Noel deram uma fugida do trenó em
plena noite de Natal — disse o outro, sarcástico, enquanto o primeiro, ao seu
lado, soltou um riso que mais parecia tosse de cachorro.
Quando o outro patinador disse isso, Gabriel pulou agilmente pela grade e
se pôs na frente dele. Eu pulei logo após, ficando ao seu lado.
— Repete, seu idiota! — Gabriel esbravejou.
— Preciso mesmo repetir? — perguntou, inflando o peito e aproximando-
se face a face com o Gabriel.
Eu resolvi entrar na discussão, e literalmente entrei no meio dos dois,
separando-os.
— Para sua informação — falei, apontando o dedo para o peito do
encrenqueiro —, não são veados, são renas.
Embora eu tivesse falado na maior seriedade possível, o Gabriel, o Edu e
o Thales caíram na risada, o que deixou os dois patinadores bufando de
raiva.
Aquele que estava cara a cara com o Gabriel levantou o braço, ameaçando
explodir em um soco.
— Cara, você tem certeza que quer fazer isso? — Gabriel perguntou, não
deixando se intimidar. — Nós somos quatro. Vocês são dois, e estão em cima
de rodinhas. Quem será que está em desvantagem?
Tendo falado isso, Gabriel deu um empurrão naquele que estava
encarando-o, fazendo ele cair de bunda no chão.
O comparsa dele se esforçou para conseguir levantar ele, quase caindo
também, mas conseguiu.
— Vocês vão se ver comigo! — esbravejou, após se levantar, fazendo
gesto de arma com as mãos — Seus viados!
Gabriel ameaçou empurrar ele de novo, e os dois saíram patinando
fazendo mais ameaças e falando dezenas de palavrões.
— Babacas — esbravejou o Edu.
— É o bastante, Edu — pediu o Gabriel, tentando acalmar os ânimos.
— Eu fiquei com medo — disse o Thales, mostrando as mãos trêmulas.
Pulei de volta para o outro lado da grade e fiquei ao lado dele.
— Eu sou seu protetor — falei, dando um beijo na bochecha fria dele.
— Acho melhor irmos embora — recomendou o Edu, envolto nos braços
do Gabriel.
— Não. A gente não vai deixar que esses babacas acabem com a nossa
noite.
— Babacas mesmo — confirmei. — Eu acho incrível as pessoas acharem
que as renas do Papai Noel são veados.
— Temos aqui um expert do Natal — disse o Thales, afastando-se de
mim.
— Mas é verdade. Vocês sabiam que são nove renas e todas elas têm
nome? Eu sei de todos.
— Então nos diga os nomes que eu sei que você tá louco pra dizer —
falou o Gabriel, debochando.
— Rodolfo — comecei, contando nos dedos —, Corredora, Dançarina,
Raposa, Cometa, Cupido, Trovão, Relâmpago e...
— Está faltando uma — notou o Gabriel.
— Eu sei, estou tentando lembrar. Ah, é a Empinadora.
Thales se alegrou em um pulo, parecendo ter gostado do nome.
Na mesma hora, mais dois patinadores vieram ao nosso encontro. Não
eram os mesmos de antes.
— Tudo bem com vocês? — perguntou um deles, em um tom amigável.
Olhei para o Gabriel e para o Edu, que não esboçaram nenhuma reação, a
não ser um quase riso, e voltei a olhar para o patinador, mas não respondi
nada.
— A gente conhece esses dois, Caio — contou o Gabriel. — Pode liberar
essa tensão aí.
Eu ri, de nervoso. E relaxei.
— Eu sou o Juan — falou o que havia perguntado antes, estendendo a
mão para mim e para o Thales.
— E eu sou o Theo — disse o outro, em um sorriso amarelo e sincero.
— Thales e Caio, prazer — disse o Thales, apertando as mãos deles por
nós dois.
— Desde quando vocês se conhecem? — perguntei.
— Desde a última vez em que eu o Edu estivemos nesse lugar. Eles que
mandam no pedaço aqui.
— A gente manda bem no Slalom, no pedaço a gente não manda, não —
corrigiu o Theo.
O Juan percebeu que eu não estava acompanhado o que eles estavam
falando e decidiu explicar.
— Slalom é a modalidade de patins que a gente prática. Inclusive, vocês
não querem tentar com a gente?
— A gente nem tem patins — disse o Thales.
— Moleque, esse é o único problema que vocês não têm aqui — disse,
apontando para uma barraca há alguns metros da gente. — Eles alugam
patins, mas esses daqui são nossos.
— Vai ter que ficar para uma próxima oportunidade — disse o Thales,
mostrando a tela do celular para mim. — Faltam quinze minutos para a
meia-noite.
— Eita, cacete. Chama um Uber, Gabriel — pedi, espantado em como a
hora tinha voado quando menos devia. — A gente tem que ir, de verdade.
— Tudo bem, Feliz Natal para vocês — disse o Theo.
Desejamos Feliz Natal uns aos outros e saímos dali correndo, com a
promessa de voltarmos outro dia para praticar o tal Slalom.
— Gabriel — ouvi o Thales falar quando já estávamos dentro do carro de
volta para casa —, aqueles dois são gays?
— Bom, eu não sei do Theo, mas segundo o meu gaydar, o Juan é.
O motorista do Uber nos olhou de soslaio, e decidimos não prolonguei
mais a conversa. Ficamos calados durante o restante do trajeto que durou
menos de cinco minutos.
— Moço — falei com o motorista —, tem como você buzinar aí para que
abram o portão?
Ele assentiu com a cabeça e buzinou várias vezes seguidas.
— Obrigado — agradeci na quarta vez, senão ele ia parar nunca de fazer
barulho.
Minha mãe e a mãe do Thales estavam paradas no portão à nossa espera.
— Meninos, entrem!
Minha mãe esperou que passássemos todos para poder entrar e fechar o
portão apressadamente.
— Rapazes, não é porque eu disse que vocês deveriam chegar antes da
meia-noite, que necessariamente poderia ser um minuto antes — reclamou a
mãe do Thales, em tom de brincadeira.
— Tecnicamente nós obedecemos a sua condição, mãe — disse o Thales,
andando abraçado com ela.
— Temos que correr e fazer uma oração antes da ceia. Vamos!
Todo mundo apressou o passo junto com a minha mãe. Não havia alguém
mais apegado às tradições do que ela.
A mesa já estava posta quando chegamos na sala de jantar. O cheiro de
tantas comidas diferentes juntas em um só lugar aumentava a minha fome e
eu só queria pular a parte dessa bendita oração para me jogar no que
realmente interessava.
— Vamos todos dar as mãos. Fechem os olhos, por favor — pediu a
minha mãe.
A enorme mesa de madeira e alumínio dourado da casa tinha espaço para
10 pessoas, e por pouco nossos braços estendidos não se fecharam em um
círculo. De um lado eu tinha o Thales de mãos macias, do outro eu tinha o
Gabriel, fazendo cócegas o tempo todo.
Enquanto a minha mãe conduzia a oração em voz alta, a minha mente não
estava na oração em si. Eu estava fazendo uma retrospectiva do ano que
tinha passado até chegar a esse momento, nessa noite mais do que feliz. Eu
estava me sentindo tão bem, tão abençoado, que meu peito não estava se
aguentando e eu comecei a chorar. Acho que o Thales percebeu, pois ele
apertou minha mão com mais firmeza. Eu sabia que podia contar com ele
para sempre. Sabia que todos nesta sala eram a minha família de verdade.
Sabia que mesmo que o mundo lá fora não fosse acolhedor, eu tinha pessoas
que se importavam comigo e com a minha felicidade. E eu não queria perder
isso. Nunca.
FIM
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Table of Contents
NOTA DO AUTOR
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Epílogo
POV Caio
POV Thales
POV Caio

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