Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida por qualquer meio
sem permissão por escrito, exceto no caso de breves trechos em críticas. A
violação dos direitos autorais é crime definido pela lei 9.610/98 e punida nos
termos do artigo 184 do Código Penal.
NOTA DO AUTOR
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 36
Capítulo 37
Capítulo 38
Capítulo 39
Capítulo 40
Capítulo 41
Capítulo 42
Capítulo 43
Capítulo 44
Capítulo 45
Capítulo 46
Epílogo
POV Caio
POV Thales
POV Caio
A todos aqueles que me
conhecem de verdade
NOTA DO AUTOR
Não tinha nada de interessante para assistir na Netflix. Havia lido mil
sinopses de filmes de todos os gêneros procurando por uma novidade, e já
estava em um loop infinito. Não me espantaria se depois eu tivesse câimbras
no polegar. Isso nem devia ser possível.
Na verdade, não queria assistir nada. Eu estava sentado no sofá da sala da
minha casa porque o tédio me pegou de jeito.
De quebra, minha mãe deve ter pensado que a melhor forma de me tirar
dessa quietude era enchendo a minha paciência.
— Mãe, faz meia hora que a senhora está repetindo a mesma coisa — e eu
não estava exagerando quando disse isso. Sinceramente, nem estava
prestando muita atenção ao que ela estava falando, só escutava algum
barulho incomodando no meu ouvido. Preferia que fosse um mosquito.
Virei a cabeça para vê-la e ela estava olhando para mim, de braços
cruzados, como se estivesse prestes a me fuzilar, mas não me deixei sentir
intimidado.
Minha mãe odiava quando eu demonstrava não dar importância para as
coisas que ela falava, e eu fazia isso para ver se ela parava de me irritar, mas
não era uma estratégia que dava muito resultado.
— Se eu passar um dia inteiro falando, você ainda vai continuar sendo
malcriado — ela continuou a me repreender, como se eu tivesse dez anos de
idade. — Parece que você está fazendo isso de propósito. Não estou mais te
reconhecendo, Caio. Você quer chamar a atenção de quem?
Tirei a minha bunda do sofá e dei as costas para ela, correndo escadas
acima para meu quarto. Ela deve ter ficado mais furiosa, mas mesmo assim
não ouvi os passos dela ecoando atrás de mim.
Ao chegar no quarto, pulei na cama, e com o travesseiro em meu rosto
gritei o mais alto que podia. Não queria que a minha mãe ouvisse, só queria
me livrar da raiva que estava sentindo naquela hora.
Não sei se era exatamente raiva, mas fiquei estressado por nada.
Sentei na cama fitando o travesseiro molhado e passei a mão em meu
rosto para enxugar as lágrimas que ainda escorriam.
Por alguns segundos, encarei a parede cinza do meu quarto e decidi que
devia dar uma volta fora de casa. Calcei um tênis surrado da Nike que deixei
jogado embaixo da cama e desci pelos degraus de madeira, fazendo barulho
para que a minha mãe soubesse que eu estava de saída.
Sabia que ela tentaria me impedir, mas decidi ser malcriado, como ela
havia me chamado.
Por sorte, assim que pisei fora do portão, o Uber que eu tinha chamado
havia acabado de parar na frente de casa. Entrei e sentei no banco de trás do
carro sem nem olhar para o motorista com atenção.
— Posso seguir?
— Pode — respondi.
Ainda pude ver, pela janela do carro, minha mãe parada na porta
entreaberta da casa. Ela lançava seu olhar de desaprovação para mim.
***
***
Trinta minutos, esse era o tempo que tínhamos livre até o início do
próximo período de aulas.
— Cara, tu é muito vacilão — Nicholas berrou para mim. Ele estava
sentado junto ao Bento em cima da sua mesa, bem na minha frente.
— Baixa essas pernas peludas — falei, batendo no joelho ossudo dele.
Lucas veio do outro lado da sala, pulando por cima das mesas, para se
juntar a nós quatro e já chegou apoiando o braço em meu ombro. Acho que
eu tinha cara de suporte.
— Temos carne nova no pedaço, hein — disse ele, erguendo uma das
sobrancelhas.
Todo mundo se virou e olhou para frente para ver o jogador de basquete
novamente, mas ele nem estava mais na sala. Deve ter saído assim que deu a
hora do intervalo.
— De qual escola será que ele veio? — Bento jogou a pergunta.
Eu nem sei porque eles estavam interessados em saber disso. Eu mesmo
não queria saber, e quem quisesse teria um ano inteiro pela frente para
descobrir.
Olhei para o celular e só tínhamos mais vinte minutos antes do intervalo
acabar, e mesmo assim eu ainda continuava na sala. A fome parecia estar
gritando em meu estômago, enquanto Alice estava me mandando vários
áudios para o meu celular, provavelmente também gritando e perguntando o
porquê de eu ainda não estar no refeitório com ela.
— Não sei de onde ele veio, nem pra onde vai, só sei que EU tô de saída.
Levantei da cadeira e saí. Os outros vieram logo atrás. Eles não iriam ficar
na sala. Esse era o único momento em que tinham a chance de socializar
com as meninas no colégio. Para todo mundo, era um tempo precioso.
Era normal que alguns casais corressem para lugares do colégio que
fugiam à vista das freiras. Elas ficavam a todo momento passeando pelos
corredores nos inspecionando.
Demonstrações de carinho eram coisas que fugiam totalmente às regras do
colégio e eram expressamente proibidas, mas não queria dizer que não
aconteciam, até porque estávamos falando de jovens cheios de desejos à flor
da pele, e que não mediam esforços para realizá-los.
Chegando no refeitório, que era basicamente um pátio coberto, envolto
por várias colunas e repleto de grandes mesas, vi Alice sentada com o seu
grupo usual de meninas. Fui com meus amigos até elas.
Ela me recebeu com um beijo na bochecha e me fez sentar ao seu lado.
Uma amiga dela teve que se afastar para que eu me encaixasse. Os meninos
também se acomodaram com as outras meninas.
— Você demorou. Já já acaba o intervalo, meu amor.
— Eca — as amigas dela disseram, fazendo cara de nojo. Apesar de ser
uma feição que elas pareciam estar sempre.
— Por isso não namoro. Casais são excessivamente melosos — comentou
uma delas, de nariz arrebitado, que estava bem na minha frente. Se bem
lembro, o nome dela era Samantha.
— Você só diz isso porque ainda não encontrou o seu amor de verdade —
replicou Alice, abraçando-me e apoiando a cabeça em meu ombro.
— Eu estou bem aqui — emendou Nicholas, apontando para si.
— Você não faz o meu tipo — retrucou a menina, dando de ombros. —
Ainda mais com esse cabelo verde ridículo.
Preciso nem dizer que ela fez cara de nojo novamente.
Todos começaram a rir. Nicholas tinha perdido a oportunidade de ficar
calado, embora a menina tenha falado brincando. Eu acho.
Comi um sanduíche que Alice havia comprado na cantina para mim e
continuamos conversando até dar a hora de voltar para a sala.
O restante da manhã passou rápido e o primeiro dia do meu segundo ano
estava finalizado sem maiores encrencas.
Capítulo 5
Eu estava naqueles dias de zumbi. Dormi tarde na noite passada, para variar,
e meus olhos ainda queriam se fechar. Meu cérebro parecia se debater
querendo explodir a minha cabeça.
Já na escola, eu estava de cabeça baixa na minha mesa, quase babando, e
com um livro aberto me cobrindo, tentando aprender por osmose. Eu
conseguia ouvir apenas a voz do professor e entendia mais coisas do que se
estivesse olhando para ele. Ao menos essa era a desculpa que eu estava me
dando para não ter que prestar atenção total na aula.
— Como ustedes pueden ver, en el español también hay muchos...
Esse era o último período de aulas do dia. O professor em sala era o
Marcos, ou Marquito, como muitos chamavam por causa da disciplina que
ele ensinava. Acho que ele nem sabia que tínhamos dado um apelido a ele.
Aparentemente, ele não se importava se eu estava prestando atenção ou
não na sua aula, pois não tinha ouvido nenhuma reclamação até o momento;
só do Gabriel, que ficava me dando uns beliscões toda vez que eu estava
começando a roncar.
— Para finalizar a aula, eu quero que o líder da sala vá até a secretaria
pegar uns papéis que eu esqueci de trazer — pediu ele, que costumava
intercalar suas falas entre espanhol e português durante as aulas.
Todos permaneceram calados.
— Quem é o líder, mi gente? — indagou o professor.
— Então... — Bento falou, logo à minha frente.
Nessa hora eu resolvi despertar, passando a mão nos olhos, caso
estivessem com meleca.
— Eu era o líder no ano passado, professor, mas eu não quero mais ser
esse ano — informou ele, com um braço levantado.
No primeiro ano ele tinha se oferecido para ser líder da turma e todo
mundo sabia o quanto ele se arrependeu, ainda mais que ele era um
preguiçoso nato. Ele não tinha noção do trabalho que teria sendo líder. Todo
dia reclamava. Tudo era trabalho para o líder; tinha que ir a todo tipo de
reuniões; tinha que imprimir provas para os professores; tinha que limpar o
quadro quando a aula acabava; tinha que comunicar uma série de avisos aos
alunos; entre várias outras coisas.
Ele bufava como um touro em arena toda vez que ouvia a palavra líder.
Ele já sabia que teria alguma coisa para fazer. A gente só ria do desespero
dele.
— Vamos fazer assim, então. Eu mesmo vou lá pegar esses papéis
enquanto vocês decidem quem será o novo líder — propôs o professor. —
Acredito que todo mundo já esteja familiarizado e que isso não será difícil.
Os ombros do Bento se abaixaram e eu pude sentir que ele tinha ficado
mais despreocupado. Deve ter pensado que o professor iria obrigá-lo a
continuar na função de líder.
— Mas como, professor? — alguém perguntou, lá na frente.
— ¡Una votación! — respondeu ele, revelando suas rugas ao abrir um
largo sorriso. — Rasguem uns pedaços de papéis e anotem o nome do
coleguinha que vocês querem que seja o líder e entreguem ao Bento, será o
último esforço dele como líder.
Dito isso, o professor saiu e foi para a secretaria pegar seus papéis.
Praticamente a sala toda se reuniu em um círculo e começou a tramar.
— Eu não quero ser — adiantou um menino na minha frente.
— Nem eu — disse outro.
— Eu já fui uma vez, então me descartem, pelo amor de Deus — Bento
implorou. Eu ri.
O que estava acontecendo era que ninguém queria ser o líder. Muito
menos eu. Bento que havia nos provocado essa aversão ao posto. Ele deveria
continuar, só por causa disso.
Não iria sair nenhum acordo dali, até que alguém teve uma ideia:
— Vamos votar no novato.
Vi vários rostos se iluminarem de um modo bem maligno.
Notei, só nesse momento, que o novato não estava conosco. Ele ainda não
havia se familiarizado com a turma.
Seria uma boa ideia colocar ele como líder só para sacanear? Ninguém
nem o conhecia direito para saber se ele poderia lidar com isso ou não. Mas,
tudo bem.
— Como é o nome dele? — perguntou um dos garotos.
— Thales, Thales — falou o Gabriel, mandando o boi para o abate.
Todo mundo concordou fácil em escolher o Thales, e em segundos todos
eles tinham anotado o nome dele em seus papéis e entregado para o Bento. O
pobre coitado nem desconfiava do nosso plano.
Quando Bento já estava com todos os papéis em mãos, o Thales veio até
ele para deixar o seu voto. Alguns rapazes não se contiveram e riram. Até
tentaram disfarçar, mas acho que o novato percebeu, porém não demonstrou
nem um pouco se importar. Ele simplesmente voltou para a sua cadeira e
permaneceu calado.
— Isso é certo o que fizemos? — perguntei ao Gabriel. Senti um pouco de
peso na consciência em estarmos escolhendo alguém sem nem ter o seu
consentimento.
— Antes ele do que a gente — respondeu, rindo discretamente. — Achei
que você quisesse se vingar dele.
Não sei em qual momento eu dei a entender que queria me vingar dele,
mas ele entendeu errado. Tudo bem que o Thales cometeu um crime ao
derrubar o meu sorvete, mas não era como se eu quisesse matá-lo por causa
disso. Até passou em minha mente algumas vezes, mas não era sério.
O professor voltou à sala em poucos minutos, trazendo à mão os papéis
que ele falou. Não duvidei que fossem trabalhos. Era apenas a primeira
semana de aulas e já tinha um monte de atividades para fazer. Que saco!
— Então, pessoal, já fizeram seus votos? — perguntou ele, pousando a
pilha de papéis em sua mesa.
— Sim! — disseram alguns.
— Bento, vem aqui pra frente com todos os votos e vamos fazer uma
contagem rápida antes que a aula acabe — ele o apressou com as mãos,
percebendo o desânimo do meu amigo.
Bento levantou relutantemente e foi com os papéis em suas mãos para a
frente da turma. Ele parecia estar excepcionalmente entediado, quando
normalmente ele era mais alegre.
— Sente aí na minha cadeira e vá lendo cada voto enquanto eu vou
anotando no quadro.
O professor apagou a lousa enquanto ele sentava e organizava os pedaços
de papel na mesa.
Logo a contagem começou, e o óbvio iria acontecer.
— Thales — Bento leu no primeiro papel.
O professor anotou o nome no quadro e pôs um risquinho na frente.
E assim seguiu, em todos os papéis lidos era o nome do Thales que saía.
Eu daria tudo para ver qual era a feição dele neste momento, mas da minha
posição eu não conseguia saber qual era pois ele se sentava mais à frente,
exatamente duas fileiras de carteira após a minha.
— Caio!? — Bento leu meu nome e me olhou confuso. Eu também fiquei
confuso.
— Você votou em si mesmo? — Gabriel perguntou, ao meu lado, me
cutucando.
— Claro que não, né? — respondi, ríspido.
Eu realmente não tinha escrito meu próprio nome no papel. Não queria
correr o risco de ser escolhido, mesmo que fosse impossível de acontecer e
eu não tivesse achado totalmente certo votar no Thales. Deve ter sido o
próprio Gabriel que tinha escrito; adorava me pregar umas peças e depois
agir com cinismo.
— Você é muito dissimulado — falei, batendo com o cotovelo no braço
dele.
— Não fui eu, cê tá louco? — disse ele, rindo. Não tinha como acreditar
na palavra desse maldito.
Bento leu mais uns três papéis e estava finalizada a apuração dos votos.
Eu só estava louco para ir para casa.
— Sem sombra de dúvidas, o novo líder é o Thales — decretou o
professor, chamando o felizardo para ir à frente.
O Thales se posicionou ao lado do professor, mostrando ser mais alto do
que ele. Agora pude observar o seu rosto, que não aparentava estar surpreso,
na verdade, estava com um sorriso fechado e observando a todos.
— Vocês escolheram o aluno mais recente da turma como líder, ele deve
ter cativado vocês com tão pouco, hein — disse o professor, batendo nas
costas do Thales.
Alguns meninos riram novamente, pois era totalmente o contrário do que
o professor pensou. De verdade, o pessoal nem teve tempo de formar alguma
opinião sobre ele ainda. O próprio Thales também riu mais abertamente. Eu
não entendia como ele estava conseguindo lidar tão bem com essa situação.
Ele poderia ter negado a liderança, já que não havia demonstrado
interesse, mas, ao invés disso, aceitou sem fazer objeções.
— Como primeira coisa a fazer, entregue essas atividades a cada um de
seus amigos — ordenou o professor, passando os papéis para as mãos dele.
— Vocês terão um fim de semana livre para responder. Façam bom uso.
Eu sabia desde o início que eram atividades.
O novo líder da turma começou a passar, cadeira por cadeira, entregando
as atividades. Fiquei observando, enquanto ele sorria para cada um, mesmo
para os que nem olhavam para ele.
Ao chegar na minha carteira, me concentrei em olhar para a cabeça de
grama do Nicholas na minha frente enquanto ele parou ao lado e jogou uma
folha na frente do Gabriel, mas a minha, ele ficou segurando.
Por alguns segundos, fiquei esperando que ele jogasse, mas ele sacudiu o
papel para que eu mesmo pegasse. Por acaso ele não percebeu que eu estava
com os braços cruzados?
Levantei a cabeça e o encarei, estendendo a minha mão, pegando o papel.
Com um sorriso torto no rosto e suas grossas sobrancelhas arqueadas, ele
murmurou:
— Eu que votei em você.
Após isso, ele saiu e continuou a entregar o restante dos papéis.
Fiquei com a cabeça parada por alguns instantes, fixando o vazio que
antes ele estava. Eu não tinha entendido direito. Ele realmente falou o que eu
achava que tinha ouvido?
Depois disso, fomos dispensados pelo professor e ficamos livres para
curtir nosso fim de semana estudando.
***
Avisei para a minha namorada que eu não poderia passar a tarde com ela
hoje e ela ficou com raiva, pois tinha feito planos para nós dois. Achei
melhor adiar para o sábado, ou domingo. Eu não estava com bom humor,
nem energia para fazer qualquer coisa, por isso fui correndo para casa.
Jogado em minha cama, com a cabeça apoiada nas mãos, e olhando para o
teto azul do meu quarto, que por vezes parecia se aproximar de mim, estava
eu. Pensei que iria pegar em um sono profundo assim que chegasse em casa
e deitasse, tanto que não me dei ao trabalho de tirar o uniforme.
Fazia pouco mais de uma hora que eu tinha chegado e ainda me
encontrava de olhos abertos, com alguns pensamentos me perturbando.
Um rosto em especial estava voando na minha frente, o do Thales. Ainda
estava sem entender o porquê de ele ter votado em mim, mas não apenas
isso, o modo como ele falou e me olhou.
Se ele estava querendo fuder com a minha cabeça por eu ter quase batido
nele e ter o ofendido no shopping, ele estava conseguindo.
Capítulo 6
Em mais um dia, a manhã passou tão rápida que nem percebi. Meu corpo
estava começando a pegar novamente o ritmo de ter que acordar cedo para
vir ao colégio.
Nas férias, eu acordava bem tarde da manhã e a readaptação parecia
impossível, mas algumas semanas já haviam se passado e o sono estava
deixando de ser meu inimigo, ou um deles.
Neste momento meu estômago estava pedindo por socorro, algo lá dentro
parecia incontrolável. Eu estava na fila do almoço do refeitório, mas andava
tão devagar que só de ficar observando a comida na minha frente, minha
fome se reforçava. Basicamente como aquele momento em que ficamos
muito apertados para ir ao banheiro, e quanto mais perto dele chegamos,
mais a vontade se intensifica.
Eu não costumava passar a tarde na escola, até preferia não ficar além do
necessário, mas neste dia teria treino de futsal com o professor de Educação
Física dali a pouco mais de uma hora. Seria até bom para meu corpo. Estava
bastante enferrujado, fazia tempo que eu não treinava.
Um tempo depois, pude começar a colocar comida no meu prato. Pus
arroz, salada, frango e umas frutas. Fui tentando escolher as comidas mais
leves que achei, senão eu colocaria tudo para fora quando fosse jogar. Algo
que havia acontecido uma vez.
Alice estava logo atrás de mim, então fiquei esperando-a colocar a sua
comida para irmos escolher um lugar para sentar.
Notei que ela só havia escolhido salada. Ela devia estar de dieta. Na
verdade, ela sempre estava, pois tinha medo de engordar. Eu não tinha
problemas com isso.
— Seu treino é de que horas? — perguntou ela, enquanto estávamos
andando.
— Em uma hora — respondi, após olhar para o relógio no meu pulso.
— E acaba de que horas?
— Olha, Alice, eu não tô obrigando você a ficar pra me ver treinar —
respondi, um pouco irritado.
— Não é isso, Caio. Eu só queria saber mesmo — disse e saiu andando
apressada na frente.
Eu sabia que ela não tinha paciência para me ver jogando, ela já me falou
isso uma vez, então não tinha necessidade de ficar.
Ela estava indo em direção a uma mesa que alguns amigos meus e amigas
dela estavam almoçando. Ela sentou do lado de uma amiga sem deixar
espaço para mim. Tinha ficado chateada comigo.
Cheguei e sentei ao lado do Gabriel, de frente para ela, mas ela nem se
preocupou em olhar para mim. Pensei em me desculpar, mas as desculpas
ficaram só no pensamento.
— O que é que vocês têm, hein? — perguntou Laura, notando nosso
estranhamento.
— Nada — respondeu Alice. Simples e direta. Não tinha como ser nada.
Ela realmente estava com raiva. Fixou o olhar no prato, mas nem tinha
começado a comer. Admirando as folhas eu sei que ela não estava.
— Você fez o quê pra ela? — Gabriel praticamente cuspiu um grão de
arroz na minha cara ao falar.
— Que nojo — respondi, dando um leve empurrão nele. — Não fiz nada.
Eu não queria ver a minha namorada com raiva de mim por besteira, então
resolvi fazer algo. Levantei da cadeira, fui até ela, e por trás dei um beijo em
sua nuca. Ela não se moveu. Fiz de novo e pude perceber que ela cedeu,
rindo. Foi mais fácil do que imaginei.
— Vá comer, eu não estou mais com raiva — ordenou ela, me
empurrando pela barriga.
Voltei a me sentar e o mundo parecia ter voltado a sua normalidade.
Ninguém estava mais com raiva de ninguém. E Gabriel continuava falando
de boca cheia.
Terminei meu prato, mas tive que esperar por Alice. Incrivelmente, ela
ainda não tinha acabado de comer aquele monte de folhas. Olhei mais além,
por cima da cabeça dela, e vi Thales almoçando com a garota dele.
Ele percebeu que alguém o observava e olhou diretamente para mim. Não
sei porquê, mas meu corpo estremeceu de um modo único, ao mesmo tempo
que senti meu estômago embrulhar. Pensei que fosse colocar tudo que comi
para fora. Mesmo assim continuei a encará-lo, instintivamente.
Eu já não tinha mais controle sobre mim, e mesmo querendo desviar o
olhar, não conseguia, até que Alice ergueu a cabeça e bloqueou a minha
visão.
— Caio?!
Eu estava vendo-a, mas ao mesmo tempo ela não era o foco da minha
atenção. Ela levantou a mão e acenou na frente do meu rosto para que eu a
respondesse e assim pude voltar ao Planeta Terra.
— Caio, já terminei. Você está passando mal? Seu rosto tá tão vermelho
— perguntou ela, com a testa enrugada.
— Tá certo, tá certo. Tá calor aqui, né? — falei, tocando meu rosto e
levantando um pouco a camiseta.
Depois disso não falei mais nada e fingi normalidade.
Após alguns amigos já terem saído da mesa, levantei junto com a Alice e
fomos deixar nossos pratos no local apropriado. Enquanto andava, olhei para
a mesa do Thales e ele já tinha ido embora com a namorada também.
Mais uma vez me encontrava perdido em meus pensamentos, tentando
entender porquê que me senti tão estranho quando o vi agora há pouco. E
também, porque não consegui desviar o olhar. Foi quase como se eu tivesse
ficado apavorado. Mas eu não tinha medo dele.
***
***
***
Era bem cedo quando o alarme tocou no meu celular. Revirei toda a cama
para encontrá-lo e conseguir desligá-lo. Normalmente eu o colocava na
mesinha de cabeceira antes de dormir, mas ontem eu nem lembrava como
tinha dormido. Só sei que apaguei, envolvido em um milhão de
pensamentos. De certa forma, essa caça ao celular acabou me ajudando a
despertar.
Sentei na cama, espreguiçando-me e recordando um pouco da noite
passada. Eu ainda estava me sentindo para baixo e pensei em desistir de ir
para a escola, mas quando lembrei que minha mãe poderia me chatear
novamente, optei por ir assim mesmo.
No espelho do banheiro, pude ver meu rosto inchado, além do normal para
quem acabara de acordar. Não era algo bonito de se apreciar, e por isso
mesmo fui correndo para debaixo do chuveiro. Um banho longo com certeza
me ajudaria a me sentir melhor. E também porque eu não tinha tomado
banho desde ontem quando cheguei.
Acabei saindo rápido do banheiro e não demorando tanto quanto planejei.
Nem ao menos eu quis me aliviar, como fazia toda manhã. Fiquei sem
vontade até de fazer isso.
Sequei meu corpo e meu cabelo, que estava grande demais, bem
lentamente. Desse jeito eu não podia nem mais reclamar do comprimento do
cabelo do Henrique.
Mandei mensagem para a Alice avisando que estava bem, e vivo. Ela
havia me ligado várias vezes, e deve ter ficado um pouco preocupada.
Embora às vezes acontecesse de eu adormecer sem falar com ela por estar
muito cansado.
Também havia mensagens do Gabriel, mas eu não as respondi. Com ele eu
falaria quando chegasse no colégio, até porque ele sabia do que tinha
acontecido.
Peguei a minha mochila, desci a escada, e no último degrau vi que minha
mãe estava me esperando. Eu não estava a fim de falar com ela, então o
plano era ir direto para a escola.
— Não vou tomar café, comerei qualquer coisa na escola — falei, sem
olhar para ela.
Ela pegou no meu braço, não de uma forma rude, fazendo-me virar para
ela.
— Não tenha pressa, por favor. Seu pai e eu queremos conversar com
você.
— O pai ainda não foi pro trabalho? — perguntei, impressionado.
Normalmente ele saía bem antes de mim.
Segui ela para a cozinha, onde com certeza iria começar mais uma
segunda rodada de reclamações. Meus pais juntos, falando comigo, era um
evento raro, e sempre era para me advertir sobre algo ou me dar sermões.
Ele estava sentado junto à mesa tomando café. Usava um terno preto,
pronto para ir para o trabalho. Ele sorriu para mim, revelando algumas rugas
e pediu para que eu sentasse, com um gesto, em uma cadeira do outro lado
da mesa. Minha mãe sentou logo em seguida ao lado dele.
De cabeça baixa, me mantive calado. Não queria demorar ali, então nem
toquei na comida. Eu estava me sentindo como no banco dos réus, prestes a
receber uma sentença de morte do juiz. Nesse caso, era meu pai.
— Você estava chorando, filho? — perguntou a minha mãe.
Neguei com a cabeça, mas ela sabia que eu estava. Se tem alguém que
conhecia bem um filho, era a minha mãe.
Percebi que meu pai tocou a mão da minha mãe, como se estivesse
incentivando-a a falar algo.
— Caio — continuou ela —, quero me desculpar pelo modo que falei
ontem, ainda mais na frente do seu amigo.
Murmurei um “tudo bem” sem olhá-la, embora achasse que ela que estava
sendo sincera. Ela quase nunca me pedia desculpas.
— Filho — era a hora do meu pai falar —, você sabe que o amamos muito
e que ninguém no mundo quer ver sua felicidade mais do que seus pais, e...
Eu poderia estar revirando os olhos para tudo que eles estavam dizendo,
mas dessa vez eles mudaram o tom da conversa, deixando-me confortável.
Meus pais seguiram falando por mais um tempo, e por incrível que
parecesse, não era para me criticar. Eles devem ter conversado bastante
ontem à noite sobre mim. Queriam me aconselhar e me incentivar a voltar
com os bons resultados na escola, sem me fazer sentir pressionado. Meu pai
até me prometeu restabelecer minha mesada como antes, o que me deixou
muito feliz e mais obstinado.
Esse ar de paz era algo que eu não sentia há algum tempo. Com isso, me
comprometi com eles a melhorar meu rendimento e agir com mais
responsabilidade. Eles voltaram a sentir confiança em mim.
Acabei participando do café da manhã com os dois e meu pai quis me
deixar na escola antes de ir para o seu escritório.
O dia estava muito anormal, mas eu estava gostando. Não tinha nenhuma
garantia que seria sempre assim, mas era melhor do que nada.
Minha namorada estava me esperando na entrada da escola quando meu
pai parou na frente. Ela tinha acabado de chegar também e cumprimentou
meu pai de longe antes de ele seguir em frente para o seu trabalho.
— Caio, vamos sair mais tarde. Preciso comprar umas coisas — ela nem
perguntou se eu poderia ir, só avisou.
Até pensei que ela fosse perguntar se eu estava bem, ou o que tinha
acontecido ontem à noite, mas ela só estava preocupada em fazer compras.
Pode ser que ela tivesse esquecido. Não era algo que iria me fazer surtar.
Meus problemas estavam resolvidos, então não tinha porque encher ela com
isso. Tê-la ao meu lado já era de grande apoio.
Ficamos conversando por um tempo na grama perto do ginásio, esperando
o sinal tocar. Coloquei a minha cabeça em seu colo e quase adormeci com
ela passando as mãos em meu cabelo. Não havia sensação melhor no mundo
do que ter alguém que você gosta fazendo cafuné em você.
Olhando para cima pude apreciar todo o encanto dessa garota que resolvi
amar e chamar de namorada. Seu cabelo liso, sua pequena boca vermelha,
seu rosto delicado e toda essa beleza que me encantou desde a primeira vez
que a vi.
Ela podia não ser a melhor garota desse mundo, mas me fazia muito feliz.
Quando o sinal tocou, fui deixá-la em seu bloco de aulas e fui para a
minha aula, que iria ser de Língua Portuguesa, se eu bem recordava.
Entrei na sala e o professor ainda não tinha chegado. Os garotos estavam
todos dispersos conversando ou jogando no celular. Bati na cabeça do Bento
para não perder o costume e sentei na minha carteira, ao lado do Gabriel.
— Como você, tá? — perguntou ele.
Olhei para ele revirando os olhos, sem dar corda para o que ele tinha
falado.
— Tô brincando, Caião — falou, rindo. — Mas sério agora, como você
tá?
— Estou bem — respondi, abrindo um largo sorriso para mostrar que
realmente estava bem. — Ah, e desculpa por ontem, tá? Minha mãe meio
que se descontrolou. Só que hoje a gente se resolveu e ela pediu pra que eu
me desculpasse contigo, que você não deixasse de ir lá em casa, e mais um
monte de coisas, enfim...
Ele sorriu e me puxou para um abraço, enquanto eu tentava me afastar,
sem sucesso. Não havia necessidade disso. Nossos amigos viram e uivaram,
insinuando algo entre mim e ele. Malditos!
O professor entrou e todos correram para seus assentos enquanto eu
arrumava meu cabelo.
— Bom dia, pessoal! — disse ele. Todos responderam de volta. — Antes
de começar a aula, há uma pessoa que quer ter uma palavrinha com vocês.
Ele chamou alguém que estava esperando lá fora só esperando o comando
do professor. Era o Erick, um aluno do terceiro ano, e que todos conheciam
por ser o atual presidente do grêmio estudantil do colégio. Eu até tinha
votado na chapa dele quando teve a eleição. Ele me parecia bem legal e
descolado, só que ao mesmo tempo era um cara que gostava de arrumar
confusão por causa de garotas.
— Bom dia, rapazes. Eu não vou tomar muito o tempo de vocês —
começou ele. — Muitos já devem me conhecer, eu me chamo Erick, sou o
presidente do grêmio, e é justamente sobre o grêmio que vim falar.
Ele continuou, falando dos feitos do grêmio neste ano de mandato que ele
esteve à frente, e que a liderança dele estava prestes a acabar. Também nos
deixou saber que era hora de outros alunos substituírem os membros atuais,
mas que, diferente do ano passado, não se formariam chapas concorrentes.
— Entramos em consenso com a administração do colégio, e foi decidido
que cada turma do segundo ano teria um representante no grêmio. Não sei se
vocês sabem, mas alunos do terceiro ano não podem estar no grêmio, já que
nesse ano nosso foco é exclusivo em entrar na universidade.
— Então, no caso, o nosso representante seria o líder da turma? —
perguntou alguém, ao fundo. O Erick nem tinha aberto espaço para
perguntas ainda.
— Não — respondeu ele —, e falando nisso, o líder não pode se
candidatar ao grêmio, terá que ser qualquer um outro.
Houve um pequeno burburinho. Se ninguém queria ser o líder, imagine
fazer parte do grêmio.
— Silêncio, gente! — pediu o professor.
— Eu estou com uma lista aqui, vou passar pra vocês e, a quem se
interessar, é só se inscrever — acrescentou o presidente do grêmio, dando a
lista para um aluno da frente. — Uma coisa: houve casos em algumas turmas
que apenas uma pessoa se inscreveu, então, automaticamente essa pessoa já
entra para o grêmio. Mas, se houver mais inscritos, vocês fazem uma
votação normal e pronto.
Ele se despediu e pediu para que no final entregássemos a lista para o líder
da turma. Ele quem ficaria encarregado de devolvê-la. A lista foi passando
de mão em mão e eu não vi ninguém assinar. Chegando no Gabriel, ele
repassou logo para mim.
— Vai ficar olhando? Passa logo — disse ele, me vendo parado, olhando
para a lista. Não havia nenhum nome inscrito.
Fiquei observando-a mais um pouco e me veio à mente a conversa que
tive com meus pais. Eles me pediram por mais comprometimento no
colégio, e vi na minha frente a oportunidade para mostrar que eu poderia
assumir a responsabilidade por alguma coisa importante.
Eu não quis me comprometer com a liderança da turma pois não havia
pensado nisso antes. Na verdade, nunca na vida fiquei à frente de alguma
coisa, mas para tudo havia uma primeira vez, e eu tinha capacidade para
isso. Eu sei que eu tinha.
— Eu vou assinar — falei ao Gabriel, escrevendo meu nome na primeira
linha e repassando para os meninos de trás.
— Coragem, seu nome é coragem, cara — ele ironizou, batendo nas
minhas costas, como um incentivo.
O professor deu início à aula, enquanto a lista rodava. Fiquei atento a ela,
e quando a última pessoa foi entregar para o Thales, eu levantei e fui até ele.
— Só você assinou — disse ele, percebendo que eu estava ao seu lado
para ver a lista. — Parabéns, você faz parte do grêmio.
— Vá para o seu lugar — ordenou o professor, quando Thales ia apertar a
minha mão.
Voltei ao meu lugar, me sentindo estranho. Ouvir que eu faria parte do
grêmio me deu calafrios, pensei até em voltar lá e retirar meu nome da lista,
mas eu estaria sendo covarde se fizesse isso, dessa vez eu não iria fugir.
Capítulo 9
A manhã estava bastante chuvosa e o frio tão cedo do dia começava a ficar
incômodo. Forcei minhas mandíbulas para não ouvir meus dentes batendo
uns nos outros. Eu sabia que deveria ter me agasalhado mais antes de sair de
casa. Esta calça do uniforme não ajudava em nada no quesito me manter
aquecido para não pegar um resfriado.
Assim que passei no portão da entrada do colégio, alguém gritou o meu
nome. Eu tinha acabado de chegar e estava andando rápido para me abrigar
em algum lugar. Não olhei de imediato para ver quem era, mas a pessoa
devia estar achando que eu estava a ignorando, já que continuava chamando
por mim.
Cheguei em um lugar coberto e parei, dando uma leve escorregada no piso
de cerâmica molhado, e por pouco não consegui me segurar em um pilar
para não cair. Algumas meninas que estavam passando riram. Não me
importei.
Quando me virei, vi a pessoa que gritava meu nome e ela estava correndo
em minha direção. Chegando mais próximo, reconheci o rosto do Thales
dentro do capuz de seu moletom. Assim que pisou no piso de cerâmica, ele
escorregou, assim como eu, mas rapidamente o segurei, senão ele iria cair
para trás feito uma batata.
Fiquei com ele em meus braços, cara a cara, ao passo que ele parecia
assustado. Suas bochechas estavam rosadas de tanto frio e seus lábios quase
roxos. Quando me dei conta da situação em que estava, levantei-o
rapidamente, afastando-o de mim, fazendo ele quase cair de novo, só que ele
conseguiu se equilibrar. Meus batimentos tinham se acelerado.
Olhei em volta e algumas pessoas tinham parado para observar a cena. Se
antes eu não estava com as bochechas rosadas por causa do frio, agora
definitivamente estava. Achei melhor fingir que nada tinha acontecido e
ignorar totalmente.
— Obrigado, Caio — Thales me agradeceu, tocando meu ombro. Ele
poderia colaborar comigo e não me tocar nesse momento. — Eu ia morrendo
agora.
— Não foi nada demais — falei brincando, mas realmente poderia ter
acontecido algum acidente com ele.
— Você não estava me ouvindo chamar?
— Ouvi, mas eu não queria ficar na chuva, por isso vim parar aqui antes
de ver quem era — expliquei.
— Tudo bem, sem problemas. Eu só queria informar que o pessoal do
grêmio veio falar comigo e pediu pra dizer que vão oficializar os nomes dos
novos integrantes fixando um papel no corredor e também que o Erick vai
postar na página da Comunidade Virtual do colégio no Facebook.
— Eu fui realmente escolhido? — perguntei.
Eu sabia que seria escolhido, mas alguns dias tinham se passado desde o
dia em que pus meu nome naquela lista e eu já nem lembrava mais.
— Sim, sim. Da nossa turma só você se candidatou. E mais, terá uma
reunião nesta tarde com os antigos e os novos membros na sala deles, que eu
não sei onde fica. Mas não perca.
Thales me contou mais algumas coisas que lhe foram ditas. Ele disse que
na reunião seria decidido qual função cada um teria, quais os deveres de
cada um, e que também haveria uma pequena cerimônia de posse na sexta-
feira.
Não sei se eu estava tremendo de frio, ou de tensão, por tudo isso que me
esperava daqui para frente. Uma parte de mim dizia que eu daria conta, mas
a outra estava em plena dúvida. Não contei para meus pais ainda, nem para
minha namorada.
— Caio, você poderia me passar seu número? — perguntou ele, me dando
o seu celular para que eu digitasse.
Fiquei olhando para o celular dele tentando entender para quê ele queria o
meu número. Ele percebeu minha demora e disse:
— Agora que você faz parte do grêmio, e eu sou o líder da nossa turma,
pode ser que eu precise me comunicar com você mais vezes.
— Ah sim, tudo bem — digitei meu número e devolvi o celular dele.
Pude ver ele salvando o contato com meu nome. No mesmo instante meu
celular tocou. Coloquei a mão no bolso e ele colocou a sua mão na minha,
me impedindo de tirar o celular. Seus dedos estavam muito frios, e acabei
sentindo um leve formigamento, como uma troca de impulsos elétricos.
— Não precisa atender, sou eu ligando. Só pra ter certeza que você não
me enganou e passou o número errado.
— Por que eu faria isso?
— Tô brincando, relaxa — respondeu ele, tocando meu ombro novamente
e sorrindo. — Agora você pode salvar o meu número na sua lista.
Retribui com outro sorriso.
Ele foi muito esperto, de certa forma, me forçando a ter o seu número.
Talvez eu nunca precisasse ligar para ele, mas seria bom ter, em caso de
necessidade. Eu ainda continuava considerando-o apenas um colega de
classe, mas não descartei uma possível futura amizade.
A namorada dele, Mel, vinha chegando e parou ao nosso lado. Ela estava
toda agasalhada com seu moletom rosa, bem chamativo.
— Oi, Caio. Bom dia, Thales.
Acho que não sou digno de receber um bom dia também.
Fiquei os olhando por um momento, atento a como eles se tratavam. Eles
se abraçaram, mas não se beijaram, como eu faria com Alice. Cada casal
com suas manias.
Bem em tempo, vi Alice entrando na escola e gritei. Ela não tinha me
visto, mas quando percebeu, se alegrou e apressou o passo. Peguei na mão
dela para que não ocorresse de mais uma pessoa escorregar e eu precisar ser
o herói do dia. Minha cota já tinha sido alcançada por hoje.
— A gente já vai, Caio — despediu-se o Thales, saindo logo em seguida
com a Mel.
— O trânsito estava horrível com essa chuva toda — resmungou Alice,
chacoalhando os braços.
Envolvi ela em um abraço bem forte. Eu não estava querendo imitar a Mel
com o Thales, só queria sentir a minha namorada. Ela estava incrivelmente
quente, mesmo com esse tempo. Senti como se estivesse no paraíso, e não
queria mais soltá-la.
— Que saudade é essa? — perguntou, talvez impressionada.
— Não é saudade, só quero roubar um pouco do seu calor — respondi
brincando, mas ela me empurrou para longe dela.
Ela ficou com uma cara emburrada, embora ela soubesse que não era por
isso, eu realmente gostava do abraço dela. Abracei-a novamente e a arrastei
para os corredores, pois tínhamos que ir para a sala.
Enquanto íamos para nossas aulas, resolvi contar a ela sobre a minha
decisão de me inscrever para o grêmio da escola e que eu tinha sido aceito.
Ela me falou que algumas meninas da sala dela também tinham se inscrito,
mas não sabia quem tinha sido escolhida.
Ela ficou, tudo de uma só vez, entusiasmada, impressionada e preocupada.
Entusiasmou-se porque sentiu que eu realmente queria fazer parte disso, e
que agora ela teria um namorado que fazia parte do grêmio. Ficou
impressionada porque não esperaria isso de mim, já que eu nunca tinha
demonstrado interesse em ser cabeça de algo, em me comprometer com
alguma coisa. Levei isso como um elogio, mas não me pareceu muito que
fosse. E, por último, ficou preocupada, no sentido de que isso poderia afetar
o nosso relacionamento, porque eu teria menos tempo para ela.
Tentei tranquilizá-la dizendo que isso não afetaria em nada, que seria algo
bom para meu amadurecimento, e até para melhorar minha imagem com
meus pais. Eles veriam que eu estava engajado em algo. Estava fazendo isso
tanto por mim, quanto por eles.
Acho que, como um todo, ela compreendeu, mesmo tendo ficado um
pouco chateada porque eu teria que estar naquela tarde para a primeira
reunião dos membros, e não com ela.
***
***
Fiquei com Alice até às 4h00 da tarde, quando ela teve que ir embora para
casa. Ela tinha que sair com os seus pais antes do anoitecer, portanto nem
iria me ver na posse de novos membros do grêmio.
A cerimônia iria acontecer em menos de uma hora no auditório do
colégio, e eu teria que estar pronto logo. O Erick pediu para que usássemos
uma roupa mais legal, que não fosse o uniforme da escola, apenas para
parecermos diferentes do resto do colégio naquele momento, então eu trouxe
algumas roupas de casa na minha mochila.
Fui correndo para o banheiro perto das salas de administração, onde era
menos movimentado. Porém, chegando lá, dei de cara com Thales, bem na
hora que ele estava jogando água no rosto. Seu olhar me perseguiu no
reflexo do espelho assim que passei pela porta. Uma parte do seu cabelo
estava molhado e colado na sua testa.
— A cerimônia é já, já — disse ele, talvez pensando que eu tivesse
esquecido.
— Eu sei, vim só me trocar — falei, enquanto ele ficava de frente para
mim. — Ah, você nem me falou ontem que a Mel é do grêmio.
— Você não perguntou.
Revirei os olhos. Como eu iria supor isso?
Enquanto ele falava que ela estava muito contente em fazer parte disso, eu
pus a minha mochila na bancada e comecei a me despir, começando pela
camiseta e depois pelo short azul. Ele parou do nada de falar e ficou me
encarando, estupefato.
— O que foi? — perguntei, enquanto tirava uma calça jeans e uma camisa
roxa da mochila.
— Você está tirando a sua roupa na minha frente — respondeu ele,
virando de costas para mim.
Eu estava usando apenas uma boxer listrada quando ele disse isso, eu não
estava nu. Não entendi o espanto.
— Qual o problema? Você é meu colega, e é homem — respondi, sem ver
nenhum problema nisso.
Eu e ele éramos dois caras, o que havia de estranho nisso? Se eu estivesse
tirando minhas roupas na frente das garotas, isso sim seria estranho e
desrespeitoso, mas não era o caso.
— Você nunca se trocou ou tomou banho com os rapazes do seu time de
basquete?
Eu estava acostumado a tomar banho, e pelado, com os meus amigos do
time de futsal após os jogos, e ninguém se importava.
— Não e não — respondeu ele, ainda de costas para mim.
— Já pode me olhar, estou totalmente vestido.
— Não precisa, vejo você no auditório. Estarei na plateia o observando.
Até mais.
Dito isso, ele saiu em direção à porta do banheiro e foi embora.
Observei no espelho se eu realmente estava bem vestido e recolhi minha
mochila. Não havia mais o que fazer, a não ser esperar mais alguns instantes
para ser oficializado como Diretor de Esportes do grêmio.
Capítulo 11
— Caio, agora que você está mais envolvido com esse lance de esportes,
deveria adiantar um campeonato pra nós, não acha?
Ainda faltavam alguns minutos para o início da aula, mas como cheguei
mais cedo no colégio, fui direto para a minha sala. Alice me avisou que
chegaria mais tarde, então eu não tinha que ficar esperando por ela na
portaria.
Não havia muita gente na sala ainda, só o Nicholas e mais alguns garotos
que eu não falava tanto. Ele estava me cobrando um campeonato de futsal,
como se apenas o fato de eu fazer parte do grêmio me desse este poder.
Quem dera fosse tão fácil assim.
— Tem que falar isso com o professor de Educação Física, não comigo —
respondi.
— Mas no ano passado foi o pessoal do grêmio que organizou o
campeonato… junto ao professor — replicou ele.
Era verdade, eu lembrava que no ano passado houve um campeonato entre
as turmas dos meninos, e que havia sido idealizado pelo grêmio.
Não foi um bom campeonato, diga-se de passagem, ainda mais que meu
time perdeu. Mas não deixou de ser emocionante. Tinha nos dado uma
melhor preparação para a disputa entre escolas que acontecia todo fim de
ano, apesar de que nosso colégio também perdeu nessa disputa.
Eu daria essa ideia para o pessoal do grêmio, e caso eles apoiassem, eu
falaria com o professor. Fazia mais de três semanas que eu estava no grêmio
e praticamente não tinha feito nada relacionado à minha função, a não ser
umas pesquisas de opinião idiotas e ficar tirando cópias para os alunos. Isso
era o que mais fazíamos naquele grêmio.
Eu ficava só duas vezes por semana, à tarde, na sala do grêmio. Como
tínhamos muitos membros, dava para revezar os dias. Inclusive, hoje era dia
para mim. Durante toda a tarde eu costumava ficar na frente do computador,
nas redes sociais ou estudando, parava só para fazer as benditas cópias dos
outros alunos. Por enquanto era isso o que alimentava o caixa do grêmio.
— Vocês estão com essa cara porquê? — Gabriel chegou perguntando.
Ele veio junto com o Bento e o Henrique.
— A minha é de sono mesmo — respondi, deitando minha cabeça na
mesa da carteira.
— Eu estava dando uma ideia aqui pro Caio de que ele deveria arrumar
um campeonato pra gente, já que ele tá na coordenação de esportes do
grêmio e tal... — contou Nicholas.
— Verdade, Caio. Agiliza isso aí — Henrique disse, batendo nas minhas
costas.
— Tá certo — murmurei, desejando que eles me deixassem dar um
cochilo. — Eu vou jogar a ideia para o resto do pessoal lá.
Nicholas passou o resto da manhã me importunando com esse assunto.
Fiquei com vontade de arrancar aquele cabelo verde desbotado dele. Se
totalmente verde já era feio, imagine agora que a cor original, preta, estava
bem aparente.
***
***
***
***
***
***
Passei várias horas falando ao telefone com a Alice, e já era tarde da noite
quando desliguei e lembrei de mandar mensagem para o Thales. Agradeci a
ele pela ajuda, e falei que agora eu estava me sentindo mais aliviado e
confiante para recuperar os pontos da prova.
Assim que enviei, ele leu a mensagem. Fiquei esperando por uma
resposta, mas ele não retornou, apenas leu. Poderia pelo menos ter me
mandado um legal, ou um emoji sorrindo, mas me deixou no vácuo.
Capítulo 14
— Ei, ei.
Puxei o Thales pela mochila enquanto ele estava andando no corredor do
colégio com a Mel. Eu tinha acabado de me despedir da Alice quando os vi
passarem e fui correndo falar com ele. Seu cabelo estava um pouco
bagunçado, além do normal.
— E aí, Mel? Thales? — os dois olharam para mim, mas sem esboçar
nenhuma reação amigável. — Estão vendo um fantasma?
— Oi! — disseram os dois.
Eles não pareciam muito felizes em me ver. Não sei se era porque eles
tinham acabado de discutir, e por isso estavam mal-humorados, ou porque
simplesmente era de manhã cedo. E de manhã cedo ninguém está de bom
humor.
— Você saiu com pressa ontem lá de casa, tinha algum compromisso? —
perguntei ao Thales.
— Hã? — ele olhou para a Mel e depois para mim. — Ah, sim, eu
realmente tinha um compromisso. Estava atrasado pra ir na casa dela, não
era?
— Sim, sim, sim — respondeu ela, repetidamente. — Fiquei esperando
por ele no shopping.
— Não era na sua casa?
— Sim, não... — Thales se enrolou. — Eu iria pegá-la em sua casa, mas
como me atrasei, ela foi diretamente para o shopping, daí fui encontrar ela
lá. Foi isso.
Esses dois faziam confusão com pouca coisa, mas ele tinha sido claro.
— Ah, e você nem respondeu minha mensagem — falei, empurrando o
peito dele com o dedo.
— Não respondi? Eu devo ter esquecido. Não foi a minha intenção, sério
— justificou.
— Thales, vamos? — pediu Mel.
— Encontro você na sala, Caio. Tenho que ir com ela.
Ele deu uns tapinhas no meu ombro e saiu com ela.
Corri para a minha sala, pois as primeiras aulas estavam prestes a
começar. E como sempre, o professor ainda não havia chegado. Só estavam
os meus amigos na sala, sentados em cima das mesas.
Cutuquei a cintura do Henrique e ele se contorceu todo, dando um tapa na
minha barriga em resposta.
— Cacete! — xingou ele, enquanto eu sentava ao lado do Lucas, em cima
de outra mesa.
— Eu vi você conversando com o líder da sala há alguns minutos — disse
Nicholas.
Gabriel o chutou na perna por baixo da carteira, como se eu fosse
perceber.
— E? — não entendi o que havia demais nisso.
Eu estava impressionado como agora insistiam em implicar comigo,
relacionando sempre com o Thales. Eles ficaram com raiva porque não
consegui ajeitar o campeonato e resolveram encher a minha paciência pelo
resto da vida.
— E aí que você está virando amigo dele. Um cara aqui estava
reclamando e sentindo sua falta — Henrique respondeu, apontando por
debaixo do queixo para o Gabriel.
Gabriel levantou da cadeira e pegou ele pelo pescoço, esmurrando a sua
cabeça diversas vezes.
O professor entrou bem na hora. Thales vinha logo atrás.
— Parem a bagunça! E mesa não é lugar para sentar — o professor
advertiu.
Fiz contato visual com o Thales, mas ele virou o rosto, me ignorando e
sentando em seu lugar. Se eu não tivesse falado com ele antes, eu pensaria
que ele estava com raiva.
— Eu não reclamei de nada, não — disse Gabriel, ao meu lado. — Você
sabe como ele é idiota.
Eu sabia que ele não tinha falado nada. Se houvesse algo que estivesse
incomodando-o, ele diria diretamente a mim. E não havia nada com o que se
incomodar. Eu apenas estava fazendo uma nova amizade, assim como eu
tinha com esses outros babacas ao meu lado, mas o Gabriel continuaria
sendo o meu melhor amigo.
***
***
***
***
— Caio!
Dei conta de que consegui adormecer quando acordei com alguém
chamando pelo meu nome. Abri os olhos lentamente e comecei a ouvir mais
forte minha mãe batendo na porta. Foi quando despertei.
— Oi, mãe! — gritei, em tom de reclamação. — Por que tá me
acordando? Não lembra do que falei de manhã?
— Você já dormiu demais, garoto — ela falou, não muito alto, pois o som
estava sendo cortado pela porta. — E tem um amigo seu aqui.
Tentei ver a hora no celular, mas ele estava desligado desde ontem. Acabei
sendo obrigado a me levantar.
— Tô indo.
Só podia ser o Gabriel. Ele deve ter tentado me ligar para avisar que viria,
mas eu estava incomunicável.
Abri a porta e minha boca aberta de sono se fechou subitamente, quase me
fazendo morder a língua ao ver minha mãe ao lado do Thales.
Não sei como eu estava aparentando para eles, mas meu rosto devia estar
oscilando entre surpreso e indignado, nada próximo a estar feliz ou algo do
tipo.
— Eu já vinha lhe acordar quando o seu amigo tocou a campainha. Ele
disse que você tinha o chamado — contou ela.
Eu não consegui acreditar que ele teve a coragem de vir até a minha casa
mesmo após o que tinha feito. E ainda mentiu para a minha mãe.
Estava me segurando para não o expulsar daqui. Mas minha mãe ainda
permaneceu ao seu lado, então tive que me controlar.
— Ah... foi — confirmei, olhando para o Thales, pensando no que fazer
com ele.
Minha mãe não deve ter percebido o clima de ódio que estava no ar.
Abri mais a porta para que ele pudesse entrar no meu quarto, e minha mãe
também entrou, indo diretamente para as janelas abrir as cortinas.
Coloquei as mãos nos olhos quando toda aquela claridade entrou de uma
só vez. A luz estava forte, o que indicava que estava no meio da tarde.
Respirei fundo tentando me situar. Ainda não sabia se estava sonhando ou
se aquilo realmente estava acontecendo.
— Você está melhor, Caio? — perguntou a minha mãe.
— Sim, mãe.
Thales estava parado perto da Torre Eiffel que ele viu há uns dias, me
olhando. Percebi que eu estava apenas de cueca samba-canção e fiquei
constrangido, além de todos os sentimentos ruins que estava tentando
segurar.
— Vou preparar algumas coisas pra vocês lá embaixo, fiquem aí — ela
saiu, fechando a porta. Deixando nós dois sozinhos no quarto.
Ela realmente não percebeu que eu estava incomodado com a presença do
Thales.
— Você estava doente, Caio?
Ele só podia estar sendo irônico.
Eu parei por um momento, de costas para ele, e fechei meus olhos,
sorrindo involuntariamente.
Ouvi os passos dele vindo até mim e antes que ele se aproximasse o
bastante me virei e o arrastei até a parede com meu braço no pescoço dele.
— O que... você... está... fazendo... aqui? — falei, cuspindo, bem próximo
ao rosto dele, enquanto o apertava com força.
— Eu só vim... — ele tentou falar, enquanto suas mãos em meu braço
forçavam para que eu o soltasse.
Soltei ele quando percebi que seu rosto estava ficando muito vermelho e
suas veias quase explodindo.
Ele desceu pela parede, até ficar sentado no chão, passando as mãos em
seu pescoço e respirando ofegantemente.
Fiquei o observando, enquanto ele me encarava de baixo, tentando se
recuperar.
Vi uma lágrima descendo no seu rosto, e me dei conta de que no ápice da
minha raiva eu quase o esganei.
Comecei a ficar nervoso, me sentindo culpado. Minha adrenalina estava a
mil, meu coração muito acelerado, como se eu tivesse presenciado algo
horrível, mas algo horrível que eu mesmo havia causado.
Corri para levantá-lo, e ele não recusou, apoiando o seu braço em meu
ombro. Levei ele até a minha cama e o deixei sentado.
— Eu só vim... pedir desculpas — disse ele, em meio a soluços de choro.
Eu nunca tinha visto um cara chorando, nem eu jamais havia chorado
daquele jeito.
Corri para trancar a porta na chave para que a minha mãe não pudesse
aparecer de surpresa e ver o que aconteceu.
Peguei uns lenços no banheiro e dei para que ele pudesse se recompor.
— Você não atendeu às minhas ligações, e nem respondeu às minhas
mensagens — continuou ele, passando um lenço no rosto e se acalmando.
— Eu estava com raiva de você — falei, tentando não gritar.
Antes eu estava com raiva, mas agora estava me sentindo culpado. Apesar
de tudo, ele não merecia o modo como o recebi.
Sentei ao lado dele na cama, pois eu precisava sentar também, ou então a
minha cabeça iria explodir de tanta tensão.
— Você acha que também não estou me sentindo mal pelo que fiz ontem à
noite? — perguntou ele, apontando para o próprio peito. Ainda com lágrimas
escorrendo. — Eu errei, eu agi sem pensar, mas eu me arrependi.
Ele se calou, ficou cabisbaixo novamente, olhando para os próprios pés.
Pus a mão em seu ombro e ele voltou a olhar para mim. Foi quando peguei
um lenço na caixinha de lenços e passei em seu rosto. Queria que ele
pudesse se acalmar.
E deu certo, ele continuou me olhando com os olhos brilhantes, mas suas
lágrimas pararam de descer.
Sua feição assustada, com olhar baixo, fez afastar de mim qualquer
sentimento ruim que eu sentia por ele desde ontem, mas eu não podia
esquecer ainda o que aconteceu.
— Eu desculpo o que você fez — comecei, ainda com a mão sobre os
ombros dele —, mas eu não quero mais ser seu amigo.
Senti meu coração ser esmagado ao dizer isso, mas era o certo. Continuar
com ele perto de mim só iria me fazer ficar remoendo aquele beijo.
Mesmo que eu continuasse vendo-o na escola, não ter mais qualquer outro
contato faria com que eu não me sentisse mais culpado. Ele errou, mas eu
também errei.
— Mas... — pedi silêncio, antes que ele continuasse a falar.
— É melhor você voltar pra sua casa agora. Não me ligue de novo. Não
fale comigo quando você me ver na escola. Invente qualquer coisa para a sua
namorada... — ele tentou me interromper, mas eu o impedi novamente. — E
lá embaixo, fale para a minha mãe que você não está se sentindo bem.
Vi mais uma lágrima descer em seu rosto enquanto ele olhava para trás,
abrindo a porta do meu quarto e saindo.
Capítulo 17
Tudo o que eu queria era ter acordado e me dado conta de que os últimos
dias não passaram de um grande pesadelo. Que eu entraria no banheiro,
tomaria um banho, e com o cair da água sob meu corpo as lembranças em
minha mente desceriam pelo ralo assim como qualquer sujeira. Mas, só de
ter aberto os olhos nessa manhã, o choque de realidade tinha vindo com tudo
em mim.
Desejava também poder me olhar no espelho e enxergar a mesma pessoa
de antes, olhar para os outros com os mesmos olhos de sempre, mas seria
algo difícil agora.
Quando beijei uma garota pela primeira vez, eu tinha uns onze anos.
Fiquei tão feliz que saí contando para todo mundo, mas agora foi diferente,
eu não podia contar para ninguém que fui beijado pela primeira vez por um
garoto. Esse teria que ser um segredo.
***
***
***
Entrei no Uber indo para o colégio ainda pensando no que minha mãe
havia me falado. Ela disse que eu não deixasse que isso ficasse me
perturbando, mas era exatamente o que eu vinha sentindo nos últimos dias.
O primeiro passo eu havia dado, já tinha perdoado o Thales, mas não sei
se meu coração era tão bom quanto o dela, a ponto de voltar a ser amigo
dele.
Quando eu era mais novo, e brigava com meus amigos, principalmente o
Gabriel, passávamos dias sem nos falarmos, mas a amizade sempre gritava
mais alto e no fim a gente voltava ao normal. Mas, dessa vez, eu não tinha
uma amizade tão sólida com o Thales, e não sei se valeria a pena insistir em
algo que mal tinha começado.
Talvez eu não estivesse sentindo tanto se eu tivesse optado por recomeçar
a amizade, deixando de lado o que aconteceu.
Fiquei o caminho todo pensando nele. Sempre trazendo à memória aquele
beijo. Se meu intuito era esquecer, por que eu ficava remoendo isso? Não
fiquei com raiva dele porque foi ele quem me beijou, mas sim porque fez
isso sabendo que eu tinha uma namorada, e ele tinha a Mel.
— Garoto, não é aqui que você vai descer? — o motorista me arrancou
dos meus devaneios quando o carro já estava parado na frente do colégio.
Retirei o dinheiro da carteira e paguei a corrida ao moço, que me olhou
sorrindo pelo espelho retrovisor interno.
Depois de entrar na escola, reconheci, um pouco a minha frente, a mochila
azul e verde nas costas do Gabriel. Ele estava andando lado a lado com o
Eduardo.
Corri até eles e passei a mão bem entre as nádegas do Gabriel. Ele virou,
sem surpresa, tendo certeza quem era e chutou o ar, quase acertando meu
joelho, se eu não tivesse desviado.
— Vocês dois estão tão próximos — brinquei, juntando-me a eles.
— E daí? — Gabriel retrucou, estufando o peito e tentando parecer maior
do que eu.
— Ok, não está mais aqui quem falou — fingi medo.
De repente, senti um peso nas minhas costas que me fez dar um pequeno
impulso para frente. Era a Alice. Percebi quando vi a sua mão com nosso
anel ao colocar os braços em volta do meu pescoço para se segurar.
— Desce, amor — pedi.
Ela desceu tão rápido que quase me levou para trás.
— Bom dia, Caio. Bom dia, meninos — disse ela, ficando ao meu lado e
entrelaçando seus dedos aos meus.
O Gabriel e o Eduardo acenaram para ela em resposta, enquanto dei um
selinho nela.
— Você nem me esperou ali na frente — reclamou ela.
— Você não respondeu minha mensagem se já estava aqui ou não —
justifiquei.
— Eu não vi, desculpa.
Ela soltou a minha mão para conter a saia dela, quando uma brisa forte
passou fazendo-a levantar um pouco.
— Oops — soltou ela.
— Vamos no grêmio comigo pegar uns papéis que deixei lá ontem?
Antes que ela respondesse, eu já estava arrastando-a comigo. Deixei o
Gabriel para trás com o vizinho dele.
— TCHAU PRA VOCÊS TAMBÉM — gritou Gabriel, acenando.
***
Entrei na sala junto com o professor, e ele nem percebeu que eu estava
atrás dele, o que me fez não ser advertido por chegar atrasado.
Agora sim as fichas de inscrição do basquete estavam comigo para passar
nas turmas durante as aulas.
Queria entregar para o Thales preencher a ficha do time dele, mas da
minha carteira vi que ele não estava na sala, de novo.
— Gabriel, você viu o Thales por aí hoje? — sussurrei para que o
professor não ouvisse.
— Não, por quê?
— Preciso que ele assine isso para o time de basquete — respondi,
balançando os papéis na frente dele.
— Aquele cara lá — ele apontou para um menino no outro lado da sala
—, o Bruno, faz parte do time do Thales, pede para ele assinar.
— Ah, sim, eu tinha esquecido — baixei os ombros, descontente.
A verdade era que eu não queria que outra pessoa do time dele assinasse,
eu queria ver ele, saber se ele estava melhor. Ainda mais agora que ele não
tinha vindo para a aula pelo segundo dia consecutivo.
Não era possível que ainda não tivesse se recuperado, ele só tinha passado
mal, até onde eu sabia.
Mandei uma mensagem para a Mel marcando de encontrar ela no fim da
manhã. Ela disse que me esperaria perto do ginásio. A desculpa que inventei
foi que queria tratar de assuntos do grêmio para que ela não pensasse que eu
estava preocupado com o seu namorado, e fosse contar a ele. Porque eu sei
que ela iria fazer isso.
***
Cheguei em casa e quando olhei para a minha mão, dei conta de que estava
faltando alguma coisa. Meu anel. Eu tinha perdido o meu anel de
compromisso. Fiquei desesperado, porque a Alice me mataria.
Revirei meus bolsos, a minha mochila, jogando tudo no chão, mas não o
encontrei. Procurei nas frestas do piso de madeira, mas nada.
Meu celular começou a tocar no chão do meu quarto, porque eu o tinha
derrubado enquanto procurava o bendito anel. Não reconheci o número
exibido na tela, então deixei tocar. Estava preocupado com algo mais
importante. Eu só podia ter perdido na escola.
O celular tocou de novo, então decidi apanhá-lo do chão e atender.
— Alô?
— Caio, é o Thales. Você já chegou em casa?
— Sim. Qual o problema?
— Por acaso um anel, com o nome Alice gravado, é seu?
— Sim, sim — abri um sorriso de orelha a orelha. — Eu estava louco
procurando agora.
— Você esqueceu aqui.
Levei minhas mãos aos céus em agradecimento. Minha pele estava salva.
Esqueci totalmente que tinha deixado na casa do Thales antes de… de
nada. E novamente fui tomado por um sentimento de culpa que parecia me
agarrar pelo pescoço, quase me sufocando.
— Cara, eu tava procurando por todo lugar aqui, não lembrava que tinha
deixado aí. Se eu tivesse lembrado no meio do caminho eu teria voltado para
pegar.
Não, eu não teria voltado, para evitar que pudesse acontecer mais alguma
coisa. Já não tinha mais certeza se eu conseguia agir com a razão ao invés do
coração.
— Você esqueceu outra coisa também, lembra? — fiquei matutando sobre
o que mais eu teria esquecido. — A sua cueca usada no meu banheiro.
— Isso é algo que eu não quero que você me devolva, pode jogar no lixo.
Mas, não esqueça de levar o anel amanhã para a escola, por favor. Vamos
nos encontrar antes de eu ver a minha… a Alice.
— Como quiser — ele tossiu do outro lado da linha —, e salve meu
número novamente, percebi que você não sabia quem era.
— Certo — desliguei. E não salvei.
Aquela cueca era uma das minhas favoritas, mas não podia correr o risco
de que ele me devolvesse na escola e alguém pudesse ver, muito menos
queria ter que ir na casa dele pegar, e nem que ele viesse até a minha.
Estava exausto e acabei deixando a bagunça que fiz pelo quarto para
arrumar depois, a vontade era só de deitar e dormir até tirar esse sentimento
estranho que me perturbava. Se possível, dormir até o dia seguinte.
***
Os dias foram se passando e eu não estava falando tanto com o Thales. Até o
vi algumas vezes, mas sempre tentava evitá-lo, e ele também não parecia
fazer nenhum esforço para me ver. Pelo menos era o que eu estava
percebendo.
Eu tinha acabado de colar pelos corredores do colégio uma lista com os
times de basquete que iriam participar do campeonato. Dentre eles, sairia o
time que iria representar a escola em competições externas, então era
importante se destacar.
Não preciso nem dizer que estava torcendo pelo time do Thales, mas eu
não queria me envolver muito nisso, então não podia sair falando isso para
ninguém.
Voltei logo para a sala do grêmio, onde teria que passar a tarde com a Mel.
Aliás, ela ainda não tinha chegado.
Estava tentando desviar meu foco para outras coisas, mas minha mente
estava pensando no que o Thales iria me contar quando aparecesse. Ao
mesmo tempo que eu não queria que ele aparecesse para me contar coisa
alguma.
Uma parte da história eu já sabia. Ele e a Mel não eram um casal de
verdade, mas eu sentia que havia muito mais por trás disso.
A porta se abriu e a Mel entrou com o Thales, e já que eles estavam aqui,
talvez esse fosse o melhor momento para conversarmos.
— Põe a plaquinha aí — falei para a Mel, apontando para um papel que eu
havia imprimido, em cima da mesa.
Em dias de reunião dos integrantes do grêmio, sempre colocávamos na
porta um aviso de que estaríamos fechados por no máximo uma hora,
embora dessa vez não fosse haver uma reunião do grêmio. Mas ninguém
precisava saber.
— Oi — dei a mão para o Thales e pedi para que ele sentasse em uma
cadeira na minha frente. Ele abriu um meio sorriso, mesmo não aparentando
estar tão contente.
A Mel puxou uma outra cadeira para sentar e também se posicionou na
minha frente.
— O negócio aqui vai ser tenso — disse ela.
Eu já estava me sentindo incomodado e impaciente mesmo sem a
conversa ter começado, e ela ainda colocou mais pilha.
Ficamos calados por uns segundos, sem ninguém falar nada um com o
outro, apenas trocando olhares. Era o momento em que ninguém sabia por
onde começar.
— Caio — Thales deu a partida, inclinando-se mais para a frente na
cadeira —, vou falar novamente, dessa vez na frente da Mel — ele
posicionou a mão no joelho dela —, eu e ela não somos namorados, nós
somos melhores amigos, apenas.
Ela confirmou para mim com a cabeça, pousando a mão em cima da mão
dele.
— Ok, disso já sei — se eles eram melhores amigos, então eles deviam
contar tudo um para o outro, logo... — Ela sabe de tudo que aconteceu entre
a gente?
A resposta que ele me deu não me relaxou, pois ele disse que sim com a
cabeça.
— Não se preocupe quanto a isso — ela fez um gesto de zíper fechando
na sua boca —, mas, acrescentando ao que ele estava falando, nós já
namoramos uma vez — contou ela. Então, eu não estava tão errado no que
pensava então. Era por isso que eles se comportavam como tal, ou pelo
menos um dos motivos para isso —, mas acabou que não durou mais do que
um mês esse relacionamento. E antes disso, nós já éramos melhores amigos.
E após isso, ainda continuamos sendo melhores amigos. Dessa vez mais
como uma aliada.
— Caio, eu vou ser bem direto em um ponto, eu sou gay — Thales
revelou. Ele fechou os olhos por uns segundos, e depois continuou —, mas o
modo como as pessoas vieram a saber disso foi a pior experiência da minha
vida.
Ele não conseguiu se conter por muito tempo e começou a chorar,
enquanto a Mel o acolhia em seus braços. Eu fiquei sem reação, me sentindo
mal. Só de tentar imaginar o que poderia ter acontecido com ele, meu
coração se apertava.
Eu não fiquei surpreso, nem chocado, em saber que ele era gay, embora eu
nunca tivesse pensado que ele poderia ser gay. Não antes de ele ter me
beijado a primeira vez, claro.
Eu ainda não havia me questionado quanto a isso também. Nenhuma vez
antes de ficar com ele eu cheguei a pensar em ter algo com algum outro cara,
fosse um amigo ou desconhecido, nunca tinha sentido esse tipo de atração.
— Se não quiser falar mais, não tem problema — falei, me inclinando e
pondo a mão em suas costas.
— Não, eu vou contar o resto. Eu não me incomodo em falar, apenas me
dói um pouco lembrar — insistiu ele, enxugando as lágrimas em seus olhos.
— Quando eu comecei a namorar com a Mel, e eu nunca tinha namorado
ninguém antes, eu pude perceber algo que já passava pela minha mente, que
era o fato de eu não gostar de garotas. Eu sentia que eu estava me
descobrindo com aquela experiência, mas eu não queria contar a ela para não
a desapontar. Foi um dos meus grandes erros.
Ele olhou para ela como se estivesse pedindo permissão para continuar a
falar, algo que eu já tinha visto eles fazendo uma vez.
— A verdade é que eu traí ela com um outro garoto da minha antiga
escola. Ele era gay assumido, mas eu não era — continuou ele, em tom de
desabafo —, e, por um descuido meu e desse garoto, a escola inteira ficou
sabendo.
— E eu fui uma das últimas pessoas a saber, inclusive — a Mel tentou
forçar um sorriso, mas ainda não parecia fácil para ela ouvir aquilo.
— Eu virei chacota da escola, sabe? Todos me olhavam torto, como se eu
fosse alguém anormal, e eu estava me sentindo mais mal por ter feito isso
com a Mel, ela também estava sofrendo — mais lágrimas escorriam pelo seu
rosto de olhos avermelhados. — Daí nós terminamos, claro, mas ela me
perdoou. E ao invés de se afastar de mim, ela continuou ao meu lado, porque
ela é minha melhor amiga.
— E por isso vocês se mudaram para outra escola? — perguntei.
— Sim — respondeu ela —, foi ideia minha, na verdade. Não dava mais
pra continuar na mesma escola. Daí eu fiz um trato com ele, de que nesta
nova escola nós nos trataríamos como namorados, pelo menos até irmos para
a universidade, para que ele não viesse a sofrer como sofreu lá.
Eu nunca conseguiria entender o que ele passou para chegar até aquele
momento e ter tido coragem de se abrir para mim, mas eu via neles quão
forte podia ser uma amizade.
Fiquei admirado que apesar de ter sido traída, a Mel não saiu do lado dele,
e ainda permanecia até agora. Não sei se meus amigos continuariam sendo
meus amigos se eu dissesse a eles que gostava de garotos.
— Eu nem sei o que falar diante de tudo isso, eu não esperava ouvir essas
coisas.
— Não precisa falar nada, Caio — disse o Thales, colocando a mão em
meu ombro —, eu só achei que você tinha o direito de saber. Eu percebi que
você estava ficando muito confuso, e eu queria deixar a minha parte
esclarecida. Não estou querendo lhe forçar a nada, eu tenho minha parcela de
culpa no que aconteceu entre nós dois, mas o resto agora é com você.
— Eu preciso de um tempo pra pensar — falei.
— Tome o tempo que precisar.
Passei a mão no rosto dele para enxugar as últimas lágrimas que haviam
escorrido, e não pude deixar de notar quão bonito ele era. Seus olhos
brilhantes como esmeralda, seus lábios rosados não muito grandes, tudo era
simétrico em seu rosto de pele macia.
Tinha esquecido totalmente da presença da Mel quando notei que ela
estava nos olhando, sorrindo. Dessa vez um sorriso de verdade. Retirei
minha mão rapidamente do rosto dele e tentei disfarçar.
— Realmente, você precisa resolver isso logo, Caio. E você sabe de quem
eu estou falando — foi o que ela disse, lembrando da bomba que estava em
minhas mãos.
***
Nesse mesmo dia, à noite, tentei todas as posições na cama, mas não
conseguia dormir. A madrugada chegara, trazendo com ela um silêncio
quase total no meu bairro, se não fosse pela minha respiração um tanto
desregulada.
Tudo que eu tinha ouvido na conversa com o Thales e a Mel me deixou
com medo. Medo de que pudesse acontecer comigo o que aconteceu com o
Thales.
Talvez eu estivesse sendo egoísta, mas não podia continuar envolvido
nisso. Não dava mais para brincar com a sorte. E do mesmo jeito que o
Thales havia cometido um deslize, eu também poderia cometer. Eu não
suportaria ter a minha vida exposta dessa maneira, e tinha certeza que ele
também não. Novamente. Tentei pensar tanto em mim, quanto nele.
Capítulo 22
***
Minha mãe tinha vindo me ver quando eu não levantei para tomar café. Ela
achou estranho. Ao tocar a minha testa, constatou que eu estava com febre.
Trinta e oito graus, para ser mais exato.
Suei a noite toda, eu acho. Meu pijama estava colando no meu corpo de
tão molhado. O lençol da cama também estava ensopado.
Parecia que um caminhão havia passado por cima da minha cabeça e para
não ter dúvidas de que morri, deu ré para passar de novo.
— Tente se acomodar na cama, levante um pouco — disse minha mãe,
erguendo-me pelas costas.
Tentei ficar sentado na cama e senti minha cabeça rodar, ela me ajudou
para que eu não tombasse.
Mal consegui abrir os olhos, mas vi que ela estava ao meu lado com um
copo de vidro com água em uma mão e alguns comprimidos na outra.
— Tome isso.
— O que é isso, mãe? — perguntei, cambaleando nas palavras.
— Ai, Caio. Sem perguntas. Tome, é um remédio — ela me deu primeiro
os comprimidos para eu pôr na boca, e depois a água.
Senti eles descendo rasgando pela minha garganta. Isso era uma indicação
de que poderia estar inflamada, e eu odiava tomar remédio.
— Você só se mete em confusão, Caio — disse ela, me encarando e
levando a mão até a minha testa.
— E eu tenho culpa de ficar doente? — falei alto demais, fazendo a dor de
cabeça se acentuar.
— Não, mas... já liguei para o colégio avisando que você não iria hoje.
Ainda bem que não vai perder aula, só um campeonato lá. Eu nem sabia que
você ia entrar de recesso.
— Mãe, que horas são? — perguntei, espantado.
Tentei sair da cama, mas ela me segurou pelos braços. Não sabia se ela
tinha apertado com muita força ou era eu que estava com o corpo todo
dolorido.
— Ai, mãe!
— Você pensa que vai pra onde?
— Eu preciso estar na escola agora, vai começar o campeonato que eu
organizei — falei, sem olhar para ela, tentando sair do seu aperto.
— Desse jeito? Você não vai mesmo! Pode ir tomar um banho e voltar a
dormir. Seu pai disse que, se necessário, eu levasse você ao hospital.
Meu deus, quanto exagero!
Ela fez um som estranho com a boca, negando com a cabeça, e falando
com tanta autoridade e um olhar tão expressivo que me senti intimidado,
dando conta de que eu não iria conseguir sair de modo algum. Ela se fez uma
muralha.
— Ok, mãe — acatei, relaxando os ombros.
— Vá para o banheiro e tome um banho enquanto eu vou trocar os lençóis
da sua cama.
Quando pus os pés no chão, tentando me levantar, senti as paredes se
movendo e o quarto rodar aos meus olhos. Minha mãe me segurou para que
eu não caísse.
— Acho melhor eu dar banho em você.
— Não! — gritei, em resposta à ideia.
Claro que não deixaria minha mãe dar banho em mim. Eu tinha dezesseis
anos, não era mais uma criança desinibida. Queria nem imaginar minha mãe
me vendo totalmente sem roupa. Que vergonha. Eu já estava em uma idade
que algumas coisas não poderiam ser vistas pelos meus pais.
— Não precisa mãe, foi só uma tontura por eu ter levantado rápido demais
— argumentei, começando a andar normalmente e indo em direção ao
banheiro.
Ela não me repreendeu, mas me seguiu com o olhar até que eu entrasse no
banheiro. Com certeza ela ficou tentando me escutar pela porta, achando que
eu poderia desmaiar e cair. Como até eu estava apreensivo com essa
possibilidade, não tranquei a porta totalmente. Alguém precisaria me
socorrer caso isso acontecesse.
Após alguns minutos, saí do banho usando roupas limpas e me sentindo
um pouco melhor, mas ainda com bastante dor de cabeça e com o corpo
quente.
— Descanse mais um pouco para os remédios fazerem efeito. Mais tarde
venho acordá-lo pra você se alimentar — disse ela, apalpando o travesseiro
em cima da minha cama.
Tentei secar vagarosamente o meu cabelo para não piorar a minha dor e
entreguei a toalha ensopada para ela. Pensei em usar um secador, mas o
barulho iria me incomodar.
— Vou deixar esse copo de água aqui — ela colocou em cima da mesinha
de cabeceira ao lado da cama —, e também, uns comprimidos pra você
tomar depois. Estarei aqui de hora em hora para checar se você está
melhorando.
Ela era sempre muito atenciosa quando eu ficava doente. Mesmo eu já
sendo mais grandinho, a sua preocupação com minha melhora continuava a
mesma de quando eu adoecia na infância.
— Mãe — fui até ela e a abracei —, obrigado por cuidar de mim, tá?
— Que nada, Caio. É meu dever de mãe lhe dar remédios para que você
melhore — ela retribuiu, passando a mão em meu cabelo úmido.
— Não estou falando só disso, mãe — olhei para o seu rosto, e ela sorriu
para mim —, falo também por ter cuidado de mim ontem e ter me ouvido e
me deixado chorar em seu colo.
Seus olhos brilharam e ela me beijou na testa. Pediu para que eu fosse
descansar e saiu apagando a luz e fechando a porta do meu quarto, deixando
o ambiente escuro pelas janelas estarem fechadas, apesar da luz do sol estar
querendo entrar.
Antes de descansar, peguei meu celular para ver se tinha alguma
mensagem da Alice. Mandei centenas de mensagens para ela ontem pedindo
perdão, mas ela só visualizou e não respondeu.
Avisei que estava doente, na esperança de que talvez ela se preocupasse
em responder e viesse me visitar, mas nenhuma resposta.
A Mel me enviou várias mensagens ontem e hoje, dizendo estar
preocupada comigo, que as coisas ficariam bem, e que estava esperando a
minha chegada na escola.
Eu estava me sentindo péssimo, não só por estar doente, mas por ter sido
forçado a abandonar meus companheiros justamente nesse dia, quando eles
mais necessitavam de mim. E também por minha ex-namorada estar me
ignorando.
***
Para quem achava que iria se recuperar logo, eu passei três dias de cama, e
não pude sair de casa em momento algum, o que me fez perder todo o
campeonato de basquete. Não me senti tão distante de todo mundo assim,
pois assisti algumas partidas por lives no Facebook quando eu conseguia
ficar acordado. Deu para torcer um pouco e ver que tudo tinha dado certo
mesmo sem eu estar lá.
Apenas o Gabriel tinha vindo me visitar nesses três últimos dias. Não que
eu me preocupasse que as pessoas viessem me ver doente, até preferia que
não viessem, pois meu rosto estava péssimo, um verdadeiro zumbi, mas eu
queria pelo menos que uma pessoa em especial tivesse vindo, a Alice. Mas
ela não veio.
Gabriel contou que no dia da minha briga com a Alice, alguém havia
gravado e compartilhado um vídeo da nossa discussão na Comunidade
Virtual do colégio, e que tinha gerado muitos comentários maldosos. Mas,
ele tinha conseguido derrubar o vídeo a tempo da situação tomar maiores
proporções, e muito provavelmente todo mundo da escola já havia esquecido
porque já havia outra fofoca rolando sobre outros alunos.
Eu tinha passado as três noites que fiquei doente chorando. Chorei de dia
também, lembrando dos bons momentos juntos com a Alice. Lembrei
também de todo o carinho que tínhamos um pelo outro, de todos os seus
sorrisos, das suas declarações, dos seus presentes, dos seus beijos, e de que
tudo isso tinha valido muito a pena. Porém, tudo isso não significava mais
nada.
Eu podia ter feito o que fiz para ela, ou o que ela achava que eu tinha
feito, mas o amor dela foi embora tão rápido assim? A ponto de me ignorar
todo esse tempo e nem ao menos ter vindo me visitar? Se eu tivesse morrido,
ela nem ao menos teria ido para meu velório. Certeza.
Apesar de tudo, desde ontem resolvi não lutar mais pela atenção dela.
Havia um limite para tudo, e minha insistência já devia estar incomodando-
a. A gente se amava, mas eu sabia que o amor nem tudo suporta.
Afinal, eu não podia continuar cobrando dela mais do que eu podia dar,
nem exigir dela que me perdoasse. Eu queria muito poder voltar para ela e
fingir que nada tinha acontecido, mas não estaria sendo honesto com ela e
nem comigo mesmo. Era hora de assumir os meus atos e aceitar as
consequências.
Depois de todos esses dias, toda a dor que senti dentro de mim, o meu
coração despedaçado, a minha raiva, estavam indo embora, e meu coração
estava mais descansado, mais leve e menos triste.
Aquela história de que só o tempo curava a dor estava se fazendo
verdadeira em mim, mesmo que não tivesse se passado tanto tempo assim.
Eu sabia que em vários momentos eu sentiria um vazio, um aperto no
peito, uma certa angústia ao lembrar dela, principalmente ao encará-la na
escola, pois não dava para esquecer, de uma hora para a outra, alguém que
fez parte de sua vida por bastante tempo, mas eu estava me preparando para
superar.
Desde o início do relacionamento eu tinha em mim que seria eterno
enquanto durasse, e fiz disso algo que realmente valesse, nunca deixei de
aproveitar nenhum momento com ela, nunca deixei de lhe dar carinho,
sempre estive ao lado dela, mas era hora de se conformar que havia acabado.
O anel que ainda continuava em meu dedo poderia contrariar tudo o que
eu falei, mas eu estava falando de coração. Ele permanecia porque, além de
tudo, eu o achava bonito, mas agora havia se tornando apenas mais um
acessório.
Capítulo 25
— Você vai?
A Mel acabou de me contar que o pessoal do grêmio, junto com o time de
basquete que venceu, tinha planejado ir para um resort que ficava localizado
na saída da cidade, bem ao litoral, em comemoração ao sucesso do
campeonato e também para aproveitar alguns dias do recesso.
— Vamos, Caio — pediu o Thales, me balançando pelo braço.
— Eu não sei se minha mãe vai deixar, eu acabei de me recuperar — eu
queria ir, mas tinha esse talvez, se a minha mãe iria deixar.
— Você já está melhor. Não vai ficar doente de novo, além do mais, você
merece, fez tanto esforço e agora precisa curtir com todo mundo — disse a
Mel. Ela estava certa.
— A gente ajuda você a convencer ela. Não é, Mel?
Eles estavam realmente decididos a me ajudar para que isso acontecesse.
Fiquei feliz com a animação deles, e agora mais do que nunca eu queria
participar disso, seria uma injeção de ânimo para eu esquecer algumas
coisas.
— E você pode chamar mais algumas pessoas — ela acrescentou.
Eu já estava pensando em perguntar se eu poderia chamar o Gabriel,
obviamente ele desejaria ir. Fazia muitos anos que tínhamos ido nesse
mesmo resort pela última vez. Quando éramos crianças, nossos pais, que se
conhecem, costumavam nos levar no mínimo umas duas vezes ao ano. Mas
aí acabou que ficamos maiores e eles mais ocupados, e esse programa foi
sumindo da agenda de nossas famílias.
— Ok, vamos tentar — falei, e eles se empolgaram mais ainda. — Vamos
lá pra baixo.
Desci da cama e fui em direção a porta com o Thales. Minha mãe tinha
nos chamado para comer alguma coisa.
— Vem, Mel.
Ela estava parada na frente de um espelho de corpo no centro do meu
guarda roupa, arrumando seu cabelo preto volumoso em um coque.
Ela se virou e veio correndo.
Chegando na cozinha, a minha mãe estava cortando habilmente, em uma
tábua de vidro, uns legumes e os despejando dentro de uma panela.
Ela estava tão concentrada que não sentiu nossa presença, e por isso eu
cheguei com cautela nela, ainda mais que ela estava com uma faca na mão e
poderia se assustar e me machucar.
— Oi, meninos — ela se virou, com a faca na mão —, vocês demoraram a
descer.
— Mãe, abaixa isso — eu mesmo abaixei a mão dela que estava com a
faca. Ela não tinha percebido que estava apontando para mim.
— Vocês vão ficar para almoçar? — perguntou ela, ao Thales e a Mel.
Eles estavam parados na entrada da cozinha e se entreolharam, franzindo a
testa, e se viraram novamente para mim e para a minha mãe.
— Infelizmente nós vamos ter que recusar — Mel disse.
— Ah, por quê? Fiquem, por favor — implorei, fazendo beicinho para
convencê-los.
— Seria ótimo, mas a gente tem um compromisso com a minha mãe daqui
há pouco, Caio — desculpou-se o Thales.
Ficamos alguns segundos olhando uns para os outros com aparente
desapontamento, até que minha mãe falou:
— Ai, meninos — saí de perto dela. Ela estava gesticulando com a faca na
mão —, não vamos ficar assim, haverá outras oportunidades. Mas, vocês não
vão sair daqui sem comer nada, por isso preparei uns lanchinhos, vão lá.
Minha mãe era essa pessoa acolhedora. Embora ela fosse chata comigo
uma grande parte do tempo, ela gostava de me ver com amigos, de ser
receptiva, e não tinha problemas com eles na nossa casa.
Eu só não podia dizer o mesmo com a minha namorada, ex-namorada, na
verdade. A Alice só havia vindo uma vez à minha casa, e minha mãe não
chegou a me falar nada, mas eu senti que ela não gostou dela. A primeira
impressão foi a que ficou.
Ela deve ter ficado feliz com o meu término, mesmo tendo demonstrado
solidariedade aos meus sentimentos. Obviamente ela não me falaria
diretamente que estava contente por eu não estar mais com a Alice, ainda
mais depois de ter visto quão mal eu fiquei.
— Mãe... — estávamos indo para a sala de jantar, quando lembrei de algo.
— Oi — ela se virou para nós.
— Eu queria pedir uma coisa — comecei, um pouco receoso de que ela
não fosse aceitar —, o pessoal da escola vai amanhã para aquele resort que
costumávamos ir, daí eles me chamaram — rangi os dentes, nervoso. — Eu
teria permissão pra ir?
Olhei para a Mel e para o Thales, e eles estavam de mãos juntas,
implorando também com o olhar, para a minha mãe. Achei que a ajuda deles
seria em falar algo para ela, e não em apelar desse jeito como quem apela
para o Divino. Isso não ajudaria muito.
— Olhe, Caio — quando ela começava assim eu sabia que não permitiria.
Logo baixei a cabeça e os ombros, descontente —, você lembra do que
aconteceu da última vez que estivemos lá?
Ela veio até mim e levantou o cabelo que cobria minha testa, revelando ao
Thales e a Mel uma cicatriz que eu tinha, mas que quase ninguém percebia,
porque meu cabelo sempre cobria.
— Mãe — reclamei, tirando a mão dela da minha testa. A Mel e o Thales
me olharam boquiabertos, não porque a cicatriz era grande, e de fato não era,
mas porque eles não sabiam desse detalhe.
— Ele ganhou isso quando era criança nesse resort que vocês querem ir.
— Mãe, eu era criança, tinha oito anos. Não tem nada a ver.
— Eu não falei que não vou deixar que você vá, eu só queria mostrar a
eles, porque eu sei que você não gosta.
Levantei meu rosto com um olhar saltitante e um sorriso de orelha a
orelha com o que ela acabara de dizer. A abracei em agradecimento.
— Mãe, você só cheira a cebola — ela deu um tapa na minha cabeça —,
mas obrigado.
— Tudo bem, agora vá lanchar com seus amigos — ela me deu mais um
tapinha, na bunda, e me expulsou da sua cozinha.
Sentei com a Mel e com o Thales na mesa da sala de jantar, onde minha
mãe havia colocado umas jarras de sucos e alguns biscoitos e frutas.
Eles ficaram felizes que minha mãe me deixou ir, e disseram que se não
fossem pelos olhares piedosos deles, isso não teria acontecido. Embora eu
ache que essa tática não tenha ajudado em nada.
Acabei contando para eles como exatamente consegui essa cicatriz de
Harry Potter na testa. Não tinha a forma de um raio nem nada, mas meus
amigos chamavam assim por ser na testa, igual à do menino bruxo.
Quando eu era criança, e criança tem mania de andar correndo, não via
perigo em passar sem preocupação por lugares molhados. Daí, na última vez
que fomos a esse resort, eu comecei a correr com o Gabriel em volta de uma
piscina enquanto nossos pais estavam tomando sol em umas
espreguiçadeiras, sem prestar atenção na gente. Quando pulei correndo, em
alta velocidade, e pousei no chão, não consegui me equilibrar e tombei para
frente, de cara no solo.
Eu devo ter ficado alguns minutos inconsciente, já que quando acordei
estava sendo carregado nos braços pelo meu pai, com minha mãe
desesperada ao meu lado, enquanto eles me levavam até o carro para irmos a
um hospital.
Quando entramos no carro, eu no banco de trás com a minha mãe,
enquanto meu pai dirigia em alta velocidade, eu sentia minha testa latejando,
como se algo estivesse perfurando a minha cabeça em um movimento
constante.
Eu sabia que estava sangrando, pois eu sentia aquele líquido escorrendo
pelo meu rosto e pingando no colo da minha mãe. Mas ela não falava nada,
só me olhava com um olhar lacrimejante, enquanto passava cuidadosamente
a mão em meu cabelo.
Eu não chorei, talvez porque não estivesse sentindo nenhuma dor naquele
momento, mas fiquei preocupado com ela e com meu pai, eu não queria vê-
los tão desesperados por minha causa.
No fim, tive que levar alguns pontos na testa e fui liberado no mesmo dia
para ir para casa, não sofri nenhuma lesão além da cicatriz e ficou tudo bem.
Esse não era exatamente o motivo de não termos ido mais para esse
resort, mas sim por falta de tempo dos meus pais mesmo. E eu não sentia
mais tanta falta por ter ficado um pouco traumatizado, já fazia tanto tempo
que eu não me importava mais. A cicatriz estava lá só para contar a história.
Capítulo 27
Eu tinha pedido para que ele se afastasse de mim após o nosso primeiro
beijo. Pedi para que ele me desse um tempo depois que fizemos algo em seu
quarto. Eu precisei pensar sobre o meu namoro, pensar sobre o que eu sentia
por ele para entender o que se passava dentro mim, e ele aceitou. Ele sabia
que precisava me deixar ir embora.
Eu não imaginava que ele sentia algo tão forte por mim, que realmente
estava gostando de mim. Mas agora, percebia o quão isso deve ter doído
nele, ter que observar de longe a pessoa que gosta, sem poder falar, sem
tocar.
Na última estrofe da música eu me aproximei mais dele, pousei a minha
cabeça em seu ombro e relaxei, voltando a dormir.
Subimos para os quartos para colocar umas roupas mais leves e depois
descemos para a área de lazer. Eu não tive nem tempo de ver as piscinas,
embora o Thales tenha dito que a varanda do quarto tinha a visão voltada
para elas. Mas eu queria mesmo era vê-las de perto, e senti-las.
Antes de descer, bati na porta do quarto do Gabriel para saber se ele iria e
ele já estava se trocando também para poder ir. Acabamos descendo todos
juntos.
— Caralho!
Foi o que saiu da minha boca quando chegamos no deck e eu pude ver as
piscinas. Havia uma pequena para crianças e outra ao lado, que era cem
vezes maior, para os adultos, em formato de algo que parecia um pingo
deformado e que se estendia até onde meu olhar não alcançava do ponto que
eu estava.
Um outro restaurante ficava em uma das bordas dela, com uma cascata
saindo do seu telhado, diretamente para as águas translúcidas da piscina. Era
quase como se eu estivesse diante de uma cachoeira.
Definitivamente, o resort estava diferente daquele que eu costumava
frequentar na infância.
— Vamos, vocês vão ficar só olhando? Tem muito sol pra aproveitar — a
Mel bateu com um frasco de protetor solar nas minhas costas e saiu andando
na frente, praticamente desfilando.
Saímos atrás dela, se não continuaríamos todos parados admirando a
piscina.
Havia bastante gente dentro da piscina maior, e a maioria eram os
meninos e as meninas do colégio. Tinha um ou outro hóspede desconhecido.
— Ei, ei — pus a mão na barriga nua do Gabriel para pará-lo. Ele estava
com a camisa jogada no ombro —, ele fica na piscina de crianças, não? —
perguntei, apontando para o Eduardo.
Os dois me encararam, sem ter achado nenhuma graça.
— Olha, Caio — Gabriel se posicionou na minha frente, pondo a mão em
meus ombros. Eu nem conseguia ver os olhos dele por causa dos seus óculos
escuros —, essa piada não colou. E antes de tudo, ele é só seis meses mais
novo que nós dois, e alguns centímetros menor que você, então pare de
implicar.
— Está bem — tirei as mãos dele de cima de mim —, eu falei brincando.
Não está mais aqui quem falou.
Dei uns tapinhas nas costas do Eduardo, sorrindo sem mostrar os dentes, e
saí andando. Eles devem ter achado que fiquei chateado, mas não fiquei. Eu
não tinha nem esse direito.
Fui em direção ao Thales e a Mel, que estavam sentados em uma
espreguiçadeira. Ela estava procurando alguma coisa em sua bolsa de praia.
— Vocês não vão pular na piscina? — perguntei, sentando em outra
espreguiçadeira ao lado deles.
— Eu vou — respondeu ela, levantando o olhar para mim —, mas só
depois que eu passar o protetor solar. Algum de vocês pode me ajudar?
Ela se levantou e virou de costas para nós, tirando por cima da cabeça um
vestido de renda branco, revelando totalmente o maiô colorido que usava, e
também as suas costas nuas.
Eu nunca tinha visto ela com tão pouca roupa, e nem tinha percebido as
curvas de seu corpo moreno.
— Ninguém vem passar, não? — ela continuou de costas, balançando o
protetor solar por cima dos ombros, esperando que alguém pegasse.
— Eu posso passar — levantei da cadeira e me posicionei atrás dela,
pegando o protetor de sua mão.
Abri a tampa e despejei um pouco em minha mão, enquanto ela levantava
o cabelo para tirar das costas. Eu nunca havia passado protetor em ninguém,
nem mesmo na Alice, mas não devia ser algo de outro mundo.
Percorri toda as costas dela e também seus braços. A pele dela era bem
macia.
— Você vai pular na piscina agora? — perguntei, quando acabei de deixá-
la protegida do sol que já ficava bem quente.
— Claro, esse protetor não sai na água, querido — ela virou-se para mim,
me dando um soco no peito, mas olhando para o Thales. — Você deveria
provar das mãos do Caio — e piscou para ele antes de sair e se atirar na
água.
Virei para o Thales me sentindo um pouco envergonhado, com uma mão
roçando na nuca e o protetor na outra. Ele estava me olhando com um olhar
malicioso.
— Se ela soubesse que eu já provei da maciez das suas mãos
massageando outra coisa, e até no meu traseiro...
— Poxa! — quase gritei, olhando para os lados para checar se alguém
tinha ouvido o que ele falou. — Sério, Thales?
— O que foi? — perguntou, achando graça.
— Tem hora e lugar pra falar esse tipo de coisa, e aqui definitivamente
não é o lugar, cacete!
Virei de costas para ele, emburrado e ainda checando as pessoas, mas
aparentemente todo mundo estava entretido demais para ficar prestando
atenção ao que a gente estava falando. Mesmo assim não dava para ele se
arriscar desse modo.
— Você dormiu no meu ombro durante toda a viagem pra cá. Não sei se
você se recorda.
— E daí? — questionei, ainda de costas para ele.
— Quer saber — ele se levantou —, eu vou pular na piscina também.
Ele retirou sua regata branca com estampa de ondinhas, e depois o seu
short de tecido fino, ficando apenas de sunga preta.
Tentei não prestar atenção, porque eu estava com raiva, mas eu nunca
tinha visto ele daquela maneira, pelo menos não assim, parado bem na minha
frente, com o sol batendo forte em sua pele branca e de músculos salientes.
Era verdade que aquele traseiro eu já tinha apalpado e até mais do que isso,
só que, definitivamente, não era momento para ter essa lembrança.
— Você não vai passar protetor? — perguntei, não conseguindo manter a
raiva por mais de dez segundos, ao mesmo tempo que tive que colocar a mão
na frente dos meus olhos para tapar a luz do sol que me impedia de ver ele
sem que meus olhos fossem queimados.
Ele virou a cabeça para mim, arqueando uma das sobrancelhas, como ele
sempre fazia, e com a mão na cintura, dizendo:
— Só se você passar em mim.
— Claro — aceitei sem hesitar —, senta aqui.
Acomodei melhor as minhas pernas na cadeira para dar espaço para que
ele sentasse na minha frente, de costas para mim.
Despejei um pouco do protetor em uma das minhas mãos, esfreguei uma
na outra e comecei a espalhar pelas costas dele. Era tão macia quanto a da
Mel, porém mais firme. Tentei não ficar olhando muito, porque a vontade
era de beijar o seu pescoço.
— Eu não vou passar na frente — avisei.
Ele mostrou a palma da mão por cima do ombro e eu despejei um pouco
do creme branco. Ele começou a passar na parte da frente do seu próprio
corpo, e também na face, enquanto eu percorria toda a parte de trás.
Quando eu acabei, ele se levantou e virou-se para mim:
— Quer que eu passe em você?
— Obrigado, pode deixar que eu mesmo passo — eu até queria, mas de
novo me bateu uma insegurança.
Ele saiu correndo e se jogou na água, próximo de onde a Mel estava
nadando. Seu pulo provocou várias ondas pequenas, espirrando bastante
água para fora da piscina.
Fiquei observando eles nadarem por alguns minutos e depois resolvi
também tirar meu short e minha camisa regata, ficando apenas com uma
sunga azul.
Passei protetor por todo o meu corpo e percebi alguns olhares do Thales
de vez em quando. Pulei na piscina em posição fetal, bem ao lado dele. Fui
parar bem fundo com a força do meu pulo.
Ele veio até mim, depois de submergir, com o cabelo escorrido no rosto e
tentou me afogar, empurrando minha cabeça para baixo da água.
Quando subi de volta, fiz o mesmo com ele, e ficamos repetindo isso por
algum tempo.
Apostamos quem chegaria na outra ponta da piscina primeiro junto com a
Mel e mais outros rapazes, mas praticamente ninguém conseguiu porque nos
cansávamos antes mesmo de chegarmos lá.
***
Assim que despertei no outro dia, corri para o banheiro e tomei um banho
bastante demorado enquanto o Thales continuava dormindo, recuperando-se
da noite passada. Assim que eu acabei de escovar os dentes, ouvi ele gritar
pelo meu nome do outro lado da parede.
Corri levando a toalha de rosto para enxugar o meu cabelo, e assim que
cheguei na porta, ele estava se acomodando, apoiando as costas na cabeceira
da cama. Ele tocava a cabeça como se tivesse levado uma pancada forte, e
mal conseguia abrir os olhos.
A luz do sol iluminava forte o quarto, o que não colaborava em nada com
a situação dele, mas eu não podia ajudar quanto a isso.
— O que você fez comigo? — perguntou ele, assim que me aproximei,
como se eu fosse o culpado pela ressaca dele.
Mostrei os meus dentes para ele, em um sorriso enorme, e subi na cama,
sentando ao lado dele. Ele não estava com um semblante nada bonito, mas
não era para menos, ele tinha acabado de acordar, e ainda estava com um
pequeno machucado roxo ao lado do seu olho esquerdo.
— Você se lembra de como ganhou isso? — tentei tocar, mas ele afastou a
minha mão, virando-se para se ver no espelho da cabeceira da cama.
— Eu não lembro de nada — respondeu, colocando a mão sobre os olhos
em uma tentativa falha de se poupar da luz.
— Nada que um banho frio não resolva — recomendei, passando a mão
no cabelo bagunçado dele. — Mas seja rápido, vamos partir daqui a pouco.
Tem aspirina lá no banheiro, tome também.
Ele se levantou da cama, um pouco assustado depois que se percebeu
quase pelado, e correu para o banheiro.
Enquanto isso, tentei resgatar comigo mesmo o que havia acontecido na
noite passada e algumas coisas pareciam ter sido sonho, ou fruto da minha
imaginação. O Thales tinha bebido muito pela segunda vez na vida, e isso
conferia, a julgar pelo seu estado agora. A Mel quase bateu em um cara por
insinuar que eu e ela tínhamos ficado, mas acabou não batendo. Isso também
conferia. O Gabriel beijando o Eduardo, essa parte eu ainda estava tentando
decidir se tinha acontecido de verdade ou não. O Thales vomitando na areia
da praia e sendo carregado por mim até o quarto. Isso também conferia. E eu
tirando as roupas dele até adormecermos juntos? Também conferia. Na
verdade, foi a última coisa que aconteceu na noite.
— Caio! — Thales já estava parado e me olhando, em pé, na frente da
cama. — Você tá sonhando acordado? Vamos ver se conseguimos comer
alguma coisa ainda. Perdemos o café da manhã, e provavelmente o almoço.
Minha barriga roncou ao ouvir a palavra almoço. Era melhor eu me
apressar antes de passar mal, ainda mais com essas lembranças. Aconteceu
muita coisa para eu recapitular tudo de uma vez só.
***
***
Os dias de recesso voaram tal qual os ventos frios e fortes que estavam
entrando pela janela do meu quarto escuro.
Eu provavelmente dormi metade do tempo, e na outra metade sentia sono
e vontade de dormir mais. Todos me abandonaram. Gabriel tinha ido para
uma casa de campo dos seus pais e levou o Eduardo. Eles até me
convidaram, mas preferi não ir dessa vez. Thales viajou para a casa da avó,
em um interior que tinha nome de santo, levando a Mel junto.
Pelo menos eu consegui zerar dois jogos no meu Xbox, e fiz maratona de
três séries da Netflix. Não tive dias tão imprestáveis assim, mas preferia estar
com todos meus amigos.
No outro dia tudo voltaria ao normal. As aulas, o grêmio, as babaquices
dos meus colegas, mesmo que nem tudo ao meu redor continuasse o mesmo.
Aquele Caio do primeiro dia de aula não era o mesmo de agora. Eu
costumava ter uma namorada, e agora não tinha mais. Eu odiava matemática,
e agora eu apenas não tinha muita simpatia, tanto que estava tirando notas
mais altas. Eu tinha problemas com meus pais, e agora eles me tratavam com
mais paciência. Meu melhor amigo que era solteiro, e que eu pensava que
era hétero, agora namorava um garoto mais novo do que nós dois. Eu
costumava gostar só de garotas, mas agora eu também tinha olhos para os
garotos, em especial um que se chamava Thales. Tudo isso em um curto
espaço de tempo.
Apaguei as luzes, programei o alarme no celular, arrumei o travesseiro,
deitei na cama, puxei o edredom e fechei os olhos com um sorriso perdido
no rosto. Eu não poderia estar me sentindo melhor.
***
Trouxe para a escola algo que precisava devolver para alguém, que eu
sentia que não me pertencia mais, e não tinha sido eu que tinha comprado: os
anéis de compromisso do meu namoro com a Alice.
Desde que discutimos, não tive mais nenhum contato com ela, porque ela
não queria. Bloqueou e me excluiu de todas as redes sociais, e também da
vida dela. Isso me doeu muito, mas, de certa forma, foi bom para eu não ter
que ficar me humilhando atrás dela.
Não me sentia no dever de esclarecer tudo para ela, não por enquanto,
mesmo que eu quisesse que ela aceitasse as minhas desculpas. Eu apenas
não estava pronto para assumir tudo isso. E creio que contar tudo deixaria
ela mais magoada.
Eu queria ao menos ter sabido como ela estava lidando com tudo isso.
Assim como passei dias tão nebulosos, envolto a tristeza, ela também deve
ter sentido algo assim.
Esperei por ela no portão do colégio antes de tocar o sinal para entrar, mas
ela não apareceu. A minha única esperança era encontrá-la no refeitório,
onde costumávamos ficar juntos.
Fiquei um pouco nervoso, confesso. Era como se eu estivesse prestes a
encarar algum desconhecido que pudesse me fazer algum mal, mas era
apenas a minha ex-namorada.
— Alice?
Ela estava virada de costas, na mesma mesa que sentávamos repetidas
vezes nos últimos meses, com as mesmas meninas que eram suas amigas,
mas dessa vez com outros garotos que não eram mais os meus amigos. Havia
também um cara com o braço em seu pescoço que não era eu.
Devo ter falado baixo demais o seu nome, já que ela não se virou para
mim, parado em pé, atrás dela.
— Alice! — chamei novamente. Uma das amigas dela, que estava do
outro lado da mesa, apontou para mim, com os olhos arregalados, como se
tivesse visto um fantasma.
Alice virou a cabeça, e todos da mesa que estavam de costas fizeram o
mesmo. Eu dei um passo para trás ao perceber que estava próximo demais
dela.
As conversas no refeitório cessaram um pouco e tive a certeza, mesmo
sem olhar para os lados, que eu estava agora chamando atenção. Até porque
ainda havia rumores sobre o fim do meu relacionamento rolando.
— Não tenho nada pra falar com você agora, por favor — ela disse isso, e
voltou a me ignorar. Embora os outros rostos ainda estivessem a me
observar.
Eu não tinha ido para conversar com ela, só queria devolver os anéis. E
não sairia dali enquanto ela não me desse bola.
— Alice — coloquei uma mão no ombro dela e desencadeei uma reação
que eu não queria.
— Não toque em mim! — berrou ela.
O rapaz que estava com os braços ao redor dela se levantou rapidamente e
se materializou na minha frente, cara a cara, com o punho cerrado,
apontando para meu rosto.
Era o Erick. O antigo presidente do grêmio. Fazia tempo que eu não o via.
Meu coração acelerou ao ver que ele estava prestes a me socar, fazendo eu
me curvar um pouco para trás, tentando não sentir a respiração bufante dele
em meu rosto.
— Não entendeu o que ela falou, idiota? — esbravejou ele, quase
cuspindo.
— Isso não tem nada a ver com você! — retruquei, tentando passar uma
ideia de que eu não estava com medo dele. Sendo que eu estava, e muito.
Quando ele levantou mais o braço, se preparando para me socar, Alice
interveio e se colocou entre nós dois, de frente para ele.
— Você tá louco? — gritou ela, empurrando-o para trás.
Nessa hora, meus amigos chegaram correndo por trás de mim, um pouco
atrasados se queriam impedir que eu apanhasse.
— Eu ia despachar esse babaca, Alice! — Erick estava se justificando
com ela, ainda com sangue nos olhos.
— Faça-me o favor, garoto! Como se eu precisasse da sua ajuda — disse
ela e se virou para mim, com fogo nos olhos. — E você — ela enterrou o
dedo no meu peito —, trataremos sobre o nosso assunto depois.
— Vamos, Caio! — Gabriel me pegou pelo braço, tentando me tirar dali,
mas eu insisti em ficar, não dando a mínima para ele.
— Eu só preciso de uns minutos, por favor! — pedi a ela.
Ela suspirou forte e me pegou pelo pulso, arrastando-me pelo meio do
refeitório, sob o olhar de todo mundo.
Ela não olhou para mim, nem falou nada todo o caminho em que me levou
para a fonte de água ao lado do ginásio.
Eu já estava cansado e com o pulso doendo quando paramos. Ela virou
para mim, com os olhos vermelhos e brilhantes.
— Você não tem o direito de fazer isso! — ela começou a estapear meu
peito histericamente.
Para impedir que continuasse, puxei ela para um abraço e a apertei forte
contra meu corpo. Ela ainda tentou se desvencilhar, mas cedeu e pareceu se
acalmar.
— Calma, Alice.
Passei a mão em seu cabelo para acalentá-la e quase chorei em seu ombro.
Sentia como se eu fosse a pessoa mais cruel nesse mundo por estar fazendo
ela sofrer e chorar.
Esperei que ela tornasse a si e a afastei de mim. Enxuguei com minhas
mãos as últimas lágrimas que desciam em suas bochechas, soltando um
sorrisinho, que eu não entendi se era sarcástico ou sincero.
— Alice — comecei, com a garganta seca —, eu sinto muito pelo que fiz
você passar, por fazer você ver tudo que a gente viveu ir embora como se
nada tivesse sido verdadeiro — Seus lábios tremeram e seus olhos se
encheram novamente —, mas eu posso dizer, do fundo do meu coração, que
eu te amei todo esse tempo, que tudo que a gente viveu foi real, foi por amor,
e que a única pessoa que errou foi eu. Você não tem que sentir culpa por
nada, apenas eu vacilei.
— Caio — ela me interrompeu pondo o dedo na minha boca —, você está
falando como se a gente tivesse terminado.
Encarei ela, confuso, e me afastei um pouco.
— Como assim? Você terminou comigo.
— Eu não terminei com você. Eu dei um tempo. Eu precisava absorver as
coisas.
— Mas… Mas você não falou comigo desde aquele dia.
— Exato. Eu dei um tempo para que você também pensasse no que fez.
Você pensou?
Para alguém que aparentava estar sofrendo, o semblante dela havia
mudado bem rápido. Ela estava me deixando preocupado.
— Eu não pensei. Eu achei que você já tinha decidido por nós dois —
respondi, apoiando minhas costas em uma coluna de ferro do ginásio,
tentando entender o que estava acontecendo.
— Então, responda agora.
— Responder o quê, Alice?
— Você quer voltar?
— Hã? Eu não quero voltar. Eu… Eu...
— Não precisa falar mais nada. Você já fez a sua escolha. E esses anéis
que você está nas mãos — ela apontou para meu pulso fechado e suado, que
agora estavam quase fundindo os anéis —, pode jogar no lixo. Você acabou
de fazer isso com o nosso relacionamento.
Ela não esperou eu dizer mais nada e virou as costas para ir embora. Tudo
que ela deixou foi uma confusão enorme na minha cabeça.
Quando voltei para a sala, entrei atrasado alguns minutos, para variar, mas
a professora não reclamou, só fez cara feia e baixou os seus óculos para
dizer que estava de olho em mim.
— O que aconteceu? — perguntou Gabriel, assim que sentei ao lado dele.
— Seu pescoço tá bem vermelho.
— Acho que foi a Alice — respondi, passando a mão em meu pescoço
para conferir. Senti uma trilha ardente, devia ter sido das unhas dela quando
estavam me batendo.
— Vocês brigaram? — insistiu ele, enquanto eu olhava para a frente, caso
a professora virasse e nos pegasse conversando.
— Mais ou menos — sussurrei, ainda passando a mão no pescoço.
— Mais ou menos?
— Ela que surtou por um momento, mas resolvi com ela já — contei,
virando a cabeça para ele. — Você acredita que ela disse que tinha só dado
um tempo do nosso namoro? E pediu pra voltar….
— Vocês voltaram? — ele falou alto demais e todo mundo se virou em
nossa direção.
Coloquei a mão na boca dele, enquanto corei de vergonha.
— Fiquem calados, vocês dois! — a professora gritou lá da frente,
ameaçando jogar em nossa direção o lápis que ela estava usando para
escrever no quadro branco.
— Sinto muito, professora — desculpamo-nos.
Todo mundo voltou a encarar o quadro, inclusive nós dois, que não
falamos mais nada um para o outro.
O visor do meu celular piscou e tremeu em cima da mesa com a chegada
de uma mensagem. Era do Thales, ele dizia que queria falar comigo quando
a aula acabasse. Não olhei para ele quando entrei, mas agora vi a parte de
trás de sua cabeça lá na frente.
***
— O que foi?
Thales me encarava com raiva quando chegamos atrás do ginásio, mesmo
lugar que eu tinha me resolvido com a Alice. Segui ele da sala até aqui sem
dizer nada o caminho todo pois ele não parecia estar de bom humor.
— Vocês voltaram? Por que você não me falou antes que queria isso? —
cobrou ele, apoiando-se com uma mão na parede, acima do meu ombro.
— Quê? — perguntei, embora tivesse entendido agora o motivo de ele
estar assim. — Você ouviu o que o Gabriel falou na aula?
— Vocês voltaram ou não? Só quero saber disso.
— Você tá com ciúmes? — perguntei, sorrindo provocativamente.
Estávamos em um jogo de perguntas sem respostas onde eu queria apenas
brincar com a cara dele antes de falar a verdade, mas percebi que estava indo
longe demais quando os olhos dele brilharam, e seu nariz foi ficando
vermelho aos poucos.
— Thales — quase coloquei a mão no rosto dele para acalmá-lo e enxugar
as suas lágrimas, mas hesitei por estarmos no colégio —, eu sinto muito. Eu
e a Alice não voltamos e isso não vai acontecer. Eu já falei que estou
gostando de você, apenas de você.
Ele fungou um pouco e enxugou ele mesmo as suas lágrimas, mudando
rapidamente a expressão.
— Você é um idiota — disse ele, rindo. — Você acha que eu pensei
mesmo que vocês tinham voltado?
— Ah não — falei, tentando agarrar ele, mas ele se esquivava sempre. —
Eu aqui tentando enganar você, mas era eu quem estava sendo enganado.
Você me paga!!!
Ele correu mais para o fundo da escola, e quando consegui agarrar ele
pelos braços, acabamos caindo na grama. Um para cada lado.
— Vamos lá pra casa, tenho algo que quero fazer com você.
Ele virou de lado e estreitou os olhos.
— Não é isto que você tá pensando.
— Eu não tô pensando em nada — retrucou ele.
Ele se levantou da grama e saiu correndo novamente para ir embora. Eu
não corri porque já estava cansado demais e fiz ele me esperar no portão da
saída.
Capítulo 34
Tínhamos acabado de entrar e fechar a porta da casa, nem sabia onde minha
mãe estava, mas gritei por ela.
— Mãe, eu trouxe um amigo.
— Vem aqui na cozinha, querido! — gritou ela.
Ao me aproximar da cozinha, um cheiro bastante agradável entrou pelas
minhas narinas, atiçando a minha fome.
— A senhora tá preparando o quê? — ela estava enxugando as mãos em
um pano de prato pendurado em seu avental todo estampado de frutas
quando chegamos.
Ela abriu um sorriso largo, mas não foi para mim, foi para o Thales.
Ele ficou sem jeito e fez uma careta estranha quando ela o abraçou e
beijou a sua cabeça. Agora ele sabia de onde eu tinha pego essa mania de
beijar a cabeça dos outros.
— Thaaa… Thales, não é? — perguntou, afastando-se dele. Ele assentiu,
com a bochecha corada de vergonha. — Eu não esqueceria nunca do seu
nome, ainda mais com este rosto lindo.
Até parece. Ela estava em dúvidas se era esse mesmo o nome dele.
— Mãe — tentei trazer a atenção para mim, que era filho dela —, a
senhora não me respondeu sobre o que estava fazendo.
— E por acaso você não está sentindo o cheiro? — perguntou ela, com a
mão na cintura, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. Eu estava
sentindo, mas não estava identificando ao certo.
— É bolo de laranja? — Thales palpitou.
Fiz uma cara de ameaça para ele, pois provavelmente era isso mesmo.
— Isso — ela apertou a bochecha dele —, coloquei agora há pouco no
forno. Vocês vão lá pra cima? Mais tarde levo pra vocês quando esfriar.
— Sim.
Puxei o Thales pela mochila para irmos em direção a escada que subia
para meu quarto, mas minha mãe nos parou.
— Meu filho — ela colocou as mãos no cabelo do Thales —, obrigado
por ajudar o Caio a se recuperar na escola — e o abraçou.
— Mãe, Jesus Cristo! — revirei os olhos.
Arranquei o Thales dos braços dela e o fiz subir a escada correndo, antes
que ela voltasse de novo, querendo me trocar por ele.
Não o traria mais tantas vezes em casa para evitar essa babação toda.
Tudo bem que ele me ajudou no colégio, mas não foi algo tão heroico assim,
eu não era tão burro, só estava desinteressado.
— Não fique se achando para cima da minha mãe, não — avisei para ele
quando entramos no quarto, segurando-o pela gola da camisa.
— Mas eu não fiz nada, ué.
— Você, com essa carinha... — fiz um biquinho de peixe na boca dele
com a minha mão e o beijei sem avisar. — Conquista todo mundo.
Comecei a encurralar ele, o fazendo andar de costas até que topasse na
minha cama e tombasse para trás. Aproveitei para me jogar em cima dele.
— O que você tá fazendo? — perguntou ele. — Achei que tivesse me
chamado para outra coisa.
Ouvimos alguém bater na porta e nos levantamos da cama em um pulo
rápido e com o coração saindo pela boca.
A porta se abriu e a minha mãe entrou. Ainda bem que ela bateu antes de
entrar, pois quase fomos pegos no flagra. Quero nem pensar no que teria
acontecido.
— Oi, mãe — eu estava de pé ao lado do Thales, tentando parecer normal.
— Está aqui o que você tinha pedido mais cedo — ela estava segurando
uma caixa grande e amarela nas mãos.
— Ah, obrigado — fui até ela e peguei a caixa, um pouco pesada, e a
coloquei no chão, em cima do tapete ao lado da minha cama. — Mais
alguma coisa, mãe? — ela estava parada, me olhando com certa estranheza.
— Oi? Não, você nem me disse obrigado.
— Eu disse sim — eu lembrava do que tinha dito.
Ela coçou a cabeça, pensando em falar mais alguma coisa, mas desistiu e
saiu fechando a porta.
— Não entendi nada — comentei com o Thales, sentado na minha cama.
— Nem eu, mas o que é isso? — ele apontou para a caixa no chão.
Peguei a caixa de volta, agachando-me, e coloquei em cima da cama. Abri
ela e surgiu um amontoado de pequenas peças para montar.
O Thales enfiou a cabeça dentro e pegou uma peça qualquer.
— Lembra da minha Torre Eiffel?
— Mentira, né? É isso aqui? — ele colocou os olhos de volta no interior
da caixa e começou a revirar as peças, examinando algumas delas.
— Sim — confirmei, alegremente —, eu achei que ela tinha se destruído,
mas só tinha se desmontado.
Pensei que a minha mãe tivesse dado um fim nela, mas ela recolheu todas
as peças e guardou em uma caixa para que um dia, quem sabe, eu quisesse
montar novamente. Mas acontece que ela esqueceu de me falar, e só lembrou
ontem, senão eu já tinha montado de volta há mais tempo.
Tive a ideia de chamar o Thales para me ajudar nessa tarefa, já que ele
havia gostado da torre quando a viu pela primeira vez.
Eu havia montado ela pela primeira vez quando tinha uns dez anos. Na
verdade, foi meu pai quem montou, eu só ficava dando as peças para ele, que
pacientemente juntava uma por uma.
— Você quer montar comigo? — perguntei, sabendo que ele não negaria.
— Claro, vai ser legal! — seu rosto se iluminou com entusiasmo, como
criança quando recebe brinquedo novo.
— Eu vou pegar o manual de instruções aqui — eu ainda o guardava em
uma gaveta, talvez prevendo que um dia fosse precisar novamente. Seria
quase impossível montar sem ele. — Coloca a caixa no chão de volta, vamos
montar aí.
Peguei o manual e sentamos no chão, ao lado das peças. De um volume
bem pequeno e compacto, ele se revelou uma folha bem grande, estirado na
extensão da abertura dos meus braços.
Havia figuras de todas as peças enumeradas de acordo com a ordem e
posição de montagem.
***
— Ei.
Era o Gabriel, enrolando seu braço no meu pescoço na saída da sala. Uma
aula de matemática havia acabado e estava todo mundo saindo.
— Solta, cacete!
— Você não vai ficar se esquivando para sempre dessa conversa, não.
Venha cá.
— Para, Gabriel — tentei tirar ele de cima de mim, mas ele afrouxou mais
o aperto e eu não pude fazer nada.
— Você também — consegui ver apenas um tênis All Star preto e
panturrilhas volumosas se aproximando e indo para o outro lado do Gabriel.
Era o Thales. — Quero falar com vocês dois.
— O que é isso, Caio? — Thales me perguntou, quando o Gabriel
começou a andar, levando nós dois forçadamente em baixo de seus braços.
— Eu não sei — respondi. — Sério, Gabriel? Eu tenho que ir para o
grêmio daqui a pouco. Para onde você tá nos levando?
— Você ainda tem uma hora para estar no grêmio, e o Thales tem tempo
de sobra. Só quero conversar com vocês.
Ele nos soltou depois de nos arrastar até o bosque do colégio, fazendo a
gente sentar nos bancos de concreto.
— Você não sabe ser gentil, não? — soquei o braço dele por estar
sentindo uma dor no meu pescoço. O pescoço do Thales estava
incrivelmente avermelhado, tamanha a força que o Gabriel tinha feito para
nos manter em suas garras.
— Relaxa — ele sentou entre mim e o Thales —, vocês lembram daquele
assunto?
— Qual assunto? — eu sabia qual era o assunto, e ele sabia disso, mas eu
não estava a fim de tratar disso com ele, mesmo que ele tivesse sido franco e
esclarecido a parte dele para mim.
Ele apontou para mim e depois para o Thales, confirmando que era sobre
nós dois. Ele realmente queria tratar daquele assunto.
— Eu vou começar, então, já que você está querendo não falar novamente
— ele disse para mim, e depois se voltou para o Thales. — Ele já contou
sobre mim e o Eduardo, né?
— Sim, fiquei sabendo — Thales respondeu. Eu tinha contado para ele no
dia após a volta da viagem.
— Eu não estava tão sóbrio naquela noite, e foi por causa do seu amigo —
ele pôs o dedo no peito do Thales —, aquele do basquete, que acabei
beijando o Edu na frente de todo mundo sem pensar, embora eu ache que
ninguém mais lembra ou se importe. Pelo menos não saiu na Comunidade
Virtual.
— Você bebeu porque quis. E beijou o Eduardo porque quis também —
respondeu o Thales, também enfiando o dedo no peito dele. — Mas, uma
coisa eu aconselho a você: tome mais cuidado e seja mais discreto.
— Não se preocupe comigo, vou tomar cuidado e tentar não pisar na bola
quando estiver com o Edu — disse, não levando tão a sério o conselho do
Thales. — Ninguém desconfia de que eu sou gay.
— Vou acreditar em você, hein. Mas não é fácil, seja você um dos caras
mais macho do colégio ou não, isso não importa. Você vai sofrer bullying de
qualquer forma.
— Calma, Thales. Eu estou brincando — ele tentou diminuir a tensão da
situação, vendo o Thales se irritar um pouco. — E eu não vim falar de mim.
Eu quero saber de vocês dois — continuou ele, apertando os nossos joelhos.
— O que tem eu e o Thales? — perguntei.
— O que tem? É isso que quero saber, cara — ele percebeu a minha
contínua resistência e achou melhor tratar com o Thales. — O que rola entre
vocês?
O Thales olhou para mim franzindo as sobrancelhas, sem saber o que
falar, ou se deveria falar alguma coisa.
— Vire pra mim — fiz Gabriel se voltar para mim, com um sorriso
provocativo. Ele estava nos encurralando, então era melhor ceder de uma
vez —, eu vou falar, você é meu melhor amigo e tem todo o direito de saber.
— Agora você lembra que sou seu melhor amigo, né?
— Ah, sem drama, hein! Eu e o Thales... — olhei para o Thales e ele
estava aparentemente tão apreensivo quanto eu, mas deu o aval para que eu
prosseguisse — estamos nos conhecendo melhor.
Os olhos do Gabriel dispararam, e ele fingiu levantar o seu queixo caído,
sendo o idiota que ele era sempre.
— Eu não vou dizer que eu já sabia sobre vocês, mas confesso que eu já
suspeitava dessa aproximação repentina. No início o Caio odiava você — ele
disse, olhando para o Thales —, e de repente vocês se tornaram amigos
quase inseparáveis.
— Você me odiava? — Thales me perguntou, surpreso.
— Odiar é uma palavra muito forte — mostrei o punho fechado para o
Gabriel. — Eu apenas não gostava dele. E você sabe disso, Thales — ele
abaixou os ombros em alívio.
— Você sabe que a Alice já superou você, né? — perguntou o Gabriel. —
Ela até estava por aí com aquele cara do 3º ano.
— E daí? — perguntei, sem saber aonde ele queria chegar com isso. E eu
não tinha mais tanta certeza se ela já tinha seguido em frente como ele
pensava.
— Tô querendo dizer que vocês dois não precisam esperar muito para
começar a namorar.
— Ah, para, cara. Eu acabei de falar que a gente está se conhecendo. Eu
preciso de um pouco de tempo antes de iniciar um outro relacionamento.
Você entende, não é, Thales?
Thales abriu um sorriso para mim e eu entendi que ele compreendia.
— Tudo bem, então. Tô só querendo ajudar. Não tá mais aqui quem falou.
— A gente não precisa de cupido, meu amigo. Acho que o cupido nem
trabalha para casais gays — brinquei.
— Então você também é gay? — Gabriel perguntou.
— Eu não sei.
De verdade, eu não sabia. Eu sempre ficava com meninas e gostava.
Nunca havia pensado em ficar com meninos antes do Thales surgir. Então,
talvez gay não fosse a palavra que me definisse totalmente.
— Eu acho que sou bissexual. Eu ainda gosto de garotas. Não agora,
claro. Neste momento não estou gostando de nenhuma garota — esclareci,
um pouco nervoso, antes que o Thales me entendesse mal.
— Hm — Gabriel coçou o queixo —, eu já acho que sou gay totalmente.
— Não existe gay pela metade, Gabriel. Ou 70% gay — rebateu o Thales.
— Eu tô aprendendo ainda, cara — disse ele, revirando os olhos para o
Thales. — Eu nunca gostei tanto de ficar com meninas, eu só ficava mesmo
por pressão dos nossos colegas. Inclusive sua, Caio.
— Eu? Mas eu não sabia. Desculpa, sério.
— Tá desculpado. Sinto muito não ter falado isso pra você antes, eu tinha
medo que você se afastasse de mim. E outra coisa, eu só vim ter certeza
sobre isso recentemente.
— Só não me diga que você já gostou de mim.
Não sei porque pensei isso, mas veio à minha mente e era melhor deixar
esclarecido, já que estávamos nesse momento de contar tudo.
— Claro que não, seu idiota! — ele me pegou novamente pelo pescoço e
fez cafuné na minha cabeça. — Você é como um irmão para mim.
— Da próxima vez, não me pega pelo pescoço assim, ok? Se não... —
ameacei, com raiva de verdade, pois ainda estava doendo.
Capítulo 36
— Alguém me ajuda!
Virei em minha cadeira e vi a Júlia, Diretora Social do grêmio,
desesperada, tentando pegar no ar uns papéis que a impressora estava
cuspindo sem parar no chão da sala.
Corri até ela e apertei o botão de desligar da impressora, mas ela não
cessava, acabei puxando o cabo de energia, não era possível que continuasse
funcionando.
— Obrigado, Caio! — ela me agradeceu, enquanto outros meninos na sala
riam. — Calem a boca, seus idiotas. Não foi minha culpa. Affs.
Ela começou a recolher todos os papéis no chão e eu a ajudei com isso.
— O que é isso? — perguntei.
Estava escrito em uma folha quase toda preta, com figuras de rosas,
espadas, adagas e pingos de sangue:
Inscrevam-se!
Assinem abaixo
____________________________
— O professor de Artes e Teatro pediu para eu imprimir e fixar nos
murais — explicou ela, tomando o último papel da minha mão.
— Que tosco — comentei.
— O quê? — perguntou ela, ficando em pé e colocando os papéis em
cima da mesa dela.
— O nome da peça — respondi, rindo.
— Eu lembro que você fez parte da peça dele no ano passado — apontou
ela.
— Não precisa me lembrar disso — encerrei a conversa e voltei para a
minha cadeira.
Ano passado eu tinha sido convencido pela Alice a tentar um papel na
peça de fim de ano. Era uma representação de A Bela e a Fera. E por mais
desacreditado que eu tivesse ido para a audição, e até rezando para não ser
escolhido, acabei conseguindo o papel da Fera, e ela, convenientemente, o
da Bela, justamente os papéis principais.
Foi a coisa mais vergonhosa que já fiz na vida, principalmente que eu tive
que me vestir com um figurino bem apertado, que marcava praticamente
todo meu corpo, em especial as partes de baixo. Sem contar o pelo sintético
que tive que colocar no rosto para ficar mais parecido com uma fera, mas
que me fez suar tanto que fiquei parecendo mais um gato escaldado.
Felizmente esse ano não tinha Alice para me obrigar a fazer peça
nenhuma.
***
— Olha, Caio!
A Mel entrou saltitante e alegre na sala do grêmio, sacudindo uma folha
na mão. Parecia que tinha ganhado na loteria.
— O que é isso? — tentei pegar da mão dela, mas ela puxou. E eu estava
com preguiça de me levantar da cadeira para tentar roubar dela.
— É o resultado da audição da peça.
Não era algo que eu estava tão interessado em saber. Ontem o Thales
quase não falou comigo depois dessa bendita audição, e até chegou a dizer
que não queria mais participar da peça, mas hoje de manhã ele tinha mudado
totalmente de humor e opinião, estava ansioso para saber o resultado. Difícil
de entender.
Acho que ele só estava de cabeça quente quando saímos do teatro. Ainda
bem que não entrei no humor dele, senão teríamos discutido por nada.
— Você quer que eu fale? — perguntou ela, escondendo o papel por trás.
— Claro, ora. Fala logo! — bati com força a mão na mesa sem querer e
ela se assustou. — Eita, desculpa.
— Esquentadinho, veja você mesmo.
Ela me entregou o papel e meu queixo caiu com o que os meus olhos
viram.
Eu fui escalado para ser o Romeu, e a Alice... bem, Julieta. O nome do
Thales vinha logo abaixo do nosso, ele seria um tal de Páris, ou seria Paris?
— O Thales vai matá-lo, só acho — Mel comentou.
— Eu sei — voltei a olhar para ela e devolvi o papel.
Já estava me sentindo um cara morto. Eu teria que contracenar com a
minha ex, fazendo um par romântico com ela, e ainda teria um beijo no final.
O colégio bem que poderia ter proibido todos os beijos.
Isso era muita ironia do destino. O Diretor não poderia ter me metido em
uma enrascada maior do que essa.
— Ele ainda não viu — recebi um tapa na cabeça, vindo da Mel. — Ei,
estou falando com você. O Thales está em uma reunião do conselho de
classes e ainda não viu. Ele vai sair já. Se prepare.
— Eu acho que vou pra casa — tentei me levantar, mas ela me abaixou
pelos ombros.
— Pare com o drama, ele não vai fazer nada, eu só estou colocando pilha.
Até porque foi ele quem nos obrigou a fazer isso.
— Falei a mesma coisa pra ele ontem. Mas, enfim, você conseguiu
alguma coisa?
— Sim — ela revirou os olhos —, vou ajudar com os figurinos.
— Vamos trocar — pedi, tentando me safar.
— Por acaso eu tenho cara de Romeu? E de quem gosta de beijar
meninas? — perguntou, apontando para si mesma.
— Não e sim — respondi, brincando.
Levei outro tapa na cabeça. Se a Mel estava me batendo assim, de graça,
imagine quando o Thales soubesse que eu seria o Romeu e ele não seria a
minha Julieta.
Um toque de notificação soou do bolso da Mel e ela retirou o celular para
ver o que era.
— Acho que o Thales já sabe — disse ela, olhando para o seu celular. —
Ele pediu para encontrá-lo atrás do ginásio. E ainda finalizou com uns
emojis de choro.
— E depois o dramático sou eu — falei.
— Eu volto já, trago ele...
— Não, eu vou com você. A Júlia fica aqui cuidando do grêmio, certo? —
falei alto para que a garota sentada no fundo da sala escutasse, e ela
respondeu com um tudo bem sem tirar os olhos do seu celular.
Saímos apressados ao encontro do Thales por trás do ginásio, e chegando
lá, ele estava cabisbaixo, sentado na grama, com o rosto afundado em seus
joelhos e nem percebeu quando nos aproximamos.
— Thales — gritou a Mel, tocando nos braços dele.
Ele levantou a cabeça, assustado, e seu rosto se revelou avermelhado,
abatido e chorando. Fiquei apavorado ao vê-lo daquele jeito. Isso não podia
ser por causa da peça. Algo a mais tinha acontecido.
A Mel se ajoelhou na grama e o abraçou.
— O que aconteceu, Thales? — perguntou, virando o rosto para mim,
confusa.
Ele começou a chorar mais ainda, e mais alto, apertando o abraço com a
Mel.
— O que aconteceu, Thales? — repeti a pergunta dela, já muito
preocupado com ele.
— Eles já sabem... — respondeu ele, com uma voz embargada, sem
conseguir terminar a frase.
— Quem sabe o quê? — perguntou a Mel.
Ela se afastou dele, e ele levantou a cabeça, tirou o celular do bolso e deu
para que ela visse o que estava na tela.
Sentei ao lado dele, colocando a mão em sua cabeça, entristecido por ele
estar daquele jeito, enquanto a Mel via alguma coisa.
— De novo isso? Esses babacas! — indignou-se ela, passando o celular
para mim.
“Mais novo casal gay do colégio!!!”, era isso que estava escrito no título
de um post da Comunidade Virtual.
Meu coração disparou e eu fiquei alguns segundos apenas olhando para
aquela frase com medo de descer a tela, mas eu desci. Havia uma foto. Uma
foto minha e do Thales. Eu e ele estávamos sentados um do lado do outro,
comigo deitado no ombro dele enquanto dormíamos. Eu reconheci a foto
imediatamente. Ela havia sido tirada por alguém na volta da viagem de
ônibus que havíamos feito no recesso.
E o post não acabava por aí. Havia prints de alguma conversa no
WhatsApp sobre o que tinha acontecido na última escola que ele havia
estudado. Eu não aguentei ler tudo, ainda mais que eu já conhecia a história
por inteiro.
Infelizmente alguém tinha descoberto tudo sobre o Thales, e ainda juntou
meu caso com ele para fazer uma espécie de exposed de nós dois. Eu estava
prestes a começar a chorar, mas eu olhei novamente para o Thales, e ver ele
daquele jeito só me fez pensar que eu deveria apoiá-lo e permanecer forte
para fazer isso.
Ao mesmo tempo, um ódio tão forte tomou conta de mim naquele
momento que a minha vontade era de sair dali e bater em todos que estavam
falando mal dele nos comentários do post.
— Olhe para mim — fiquei de cócoras na frente dele e fiz ele me encarar,
mesmo ainda em lágrimas —, você tem a mim. Você tem eu e a Mel ao seu
lado. Não se preocupe com isso. Você está me entendendo, Thales?
— Levante daí, vamos tomar uma água — disse a Mel.
Ajudamos ele a se levantar e o levamos para a sala do grêmio. Ele se
acalmou ao nosso lado, mas estava tremendo e com medo. Era estranho ver
um cara como ele transbordando toda a sua vulnerabilidade, acanhado e
temeroso.
Ficamos no grêmio até que ele se acalmasse totalmente e fomos para casa.
Eu pensei em deixá-lo em sua casa, mas ele quis ir sozinho.
Capítulo 39
***
Apertei a campainha da casa dele duas vezes, até que a porta se abriu.
— Você?
— Sim, eu mesmo.
Passei pela porta sem esperar que o Thales permitisse a minha entrada.
Claramente ele não esperava pela minha visita.
Ele estava usando apenas uma bermuda moletom preta, mostrando o
elástico cinza de sua Calvin Klein, chinelos, e nada cobrindo seu peito.
— É assim que você recebe as pessoas? — perguntei, quando ele trancou
a porta.
— Eu não sabia que você viria — respondeu, coçando o pescoço.
— Claro, você não me responde no celular — aproveitei a deixa para
reclamar —, mas eu estou falando de como você está vestindo. Você recebe
as pessoas assim?
— Ah — ele tocou seu corpo, dando conta de como se vestia —, eu estava
na sala assistindo e vim diretamente atender quando a campainha soou.
Ainda bem que era você. Entra.
Entramos na casa dele, e a sua mãe estava sentada em uma poltrona, na
frente da TV.
Ela se levantou assim que me viu e veio até mim, contente, com uma
xícara grande na mão. Pelo cheiro inconfundível, ela estava tomando café.
— Oi, Caio! Eu não sabia que você viria, o Thales não me avisou nada...
— ela fez cara de desaprovação para o filho. — De novo.
— Eu... — pisei no pé dele discretamente e ele parou de falar.
— E olha que mandei ele avisar — contei. Ele arregalou os olhos ao ver a
minha fácil capacidade em mentir para a mãe dele. Melhor ele ser mal visto
pela mãe, do que eu, alguém não tão íntimo.
— Não tem problemas, você será sempre bem-vindo aqui — Já podia
considerar a mãe dele como a minha terceira mãe. A segunda era a do
Gabriel, e a primeira, era a primeira mesmo. — Vem assistir aqui com a
gente — convidou ela.
— Não, mãe. Eu vou subir com ele para o quarto.
— E você não vai terminar o episódio que estamos vendo?
Olhei para a TV e a tela estava paralisada em uma imagem de alguém com
o estômago aberto em uma mesa de cirurgia. Não era algo bonito de se ver.
— Depois, mãe. Tchau.
— Tudo bem, eu vou terminar aqui então, sozinha… sozinha — ela
dramatizou essa última palavra, tentando fazer chantagem emocional, mas o
Thales nem se importou. — Se cuidem.
Antes que ela terminasse de falar, ele me puxou pelo bolso do meu short
do colégio.
Subimos as escadas e entramos no quarto dele.
— Você não parece estar doente — cutuquei ele, sentando em sua cama
bagunçada.
— Doente? Ah, sim — ele se sentou ao meu lado. Pensava que eu não
sabia da história do atestado. — Eu não estou doente, eu só...
— Você vai ficar fugindo até quando? — interrompi, mas depois repensei
que falei besteira.
Ele baixou a cabeça e pôs a mão em meu joelho.
— Você não entende, Caio. Eu estou passando por isso de novo.
— Olhe pra mim, quero olhar nos seus olhos — levantei o queixo dele e
ele se direcionou a mim —, eu posso não estar sofrendo como você, porque
eu resolvi lidar dessa forma com esse nosso exposed, mas eu entendo muito
bem que fugir do problema não significa resolver o problema. Eu mesmo
fazia isso sempre, mas não adiantava — suspirei. — Uma hora ou outra
temos que encarar e enfrentar.
— Como eu vou encarar isso, Caio? Me fale — o olhar dele inundou-se
de tristeza.
— Como eu disse, o primeiro passo é não fugir do problema. Você
consegue fazer isso? Mostrar para as pessoas a sua fraqueza é só mais uma
arma para elas continuarem te atacando.
Ele me abraçou e uma lágrima desceu em meus olhos.
Eu estava falando aquelas coisas de coração, não só para ele, mas para
mim mesmo. Já passou o tempo em que eu me trancava no quarto ou saía de
casa para esquecer dos problemas, como se isso fosse dar um fim neles.
— Você lembra do que falei ontem? — perguntei, acariciando a sua
cabeça. Não sei se ele estava chorando. — Eu vou estar ao seu lado. Eu vou
te proteger.
Ele me apertou em seus braços e ficamos ali por alguns minutos, sem falar
nada, sentindo o calor um do outro, e nos enchendo de força.
— Você pode dormir aqui hoje? — perguntou ele, voltando a me olhar,
com o nariz escorrendo.
— Eu não sei se minha mãe deixaria — era tudo que eu queria, passar a
noite com ele em meus braços. — E nem sei se sua mãe concordaria.
— Não teria problemas com a minha mãe — ele passou a mão no nariz e
fungou —, e eu posso pedir pra ela ligar pra sua. Se quiser, claro.
— Vamos tentar. Mas eu não trouxe nenhuma roupa.
— Isso é o menor dos seus problemas, tenho um guarda-roupa repleto.
Seus olhos agora brilhavam, mas de alegria. Seu rosto tinha se acendido
como o sol que nasce ao amanhecer.
Fiquei muito feliz que ele pudesse confiar em mim, que ele visse em mim
não só alguém que ele gostava, mas que também gostava dele, e que estava
disposto a se transformar em um escudo para protegê-lo.
— Vamos lá embaixo pedir para a minha mãe ligar para a sua.
Saímos do quarto e descemos as escadas bem devagar e silenciosamente,
o Thales queria assustar a mãe dele. Não foi minha ideia.
— Mãe! — ele gritou quando nos aproximamos do sofá.
Ela pulou assustada, com o controle remoto na mão, em posição de
ataque.
Não sei como ela iria nos matar com essa arma altamente perigosa, mas eu
e o Thales começamos a rir e ela pôs a mão no coração para sentir se ainda
batia.
Tentei parar a gargalhada, mas eu não consegui. A risada tosca do Thales
me fazia rir mais ainda.
— Seus loucos, quase me matam! — reclamou ela. — Quer ficar sem
mãe, Thales?
Paramos de rir um tempo depois, quando nossas barrigas começaram a
doer de tanto se contorcer.
— Desculpa, mãe.
— Foi ideia dele! — acusei, prontamente.
— Só pode ter sido ideia desse moleque, ele sempre faz isso. Mas, o que
vocês querem?
— Mãe, o Caio pode dormir aqui hoje? — Thales perguntou.
Ela me olhou, tentando entender qual era o motivo disso e perguntou:
— Você está metido em algum problema, Caio? Fugiu de casa? Fez...
— Mãe...
— Não, senhora… Sara. Foi o Thales que me pediu.
Ela pensou mais um pouco no caso e concordou.
Eu a entendi, só estava preocupada, e não queria criar problemas para
ninguém.
— Seus pais sabem?
— É...
— Mãe, ligue para a mãe dele e peça. A gente não sabe se ela vai deixar,
mas tente, por favor — Thales implorou, tentando ganhar a mãe dele com
sua cara de cachorro pidão.
— Filhinhos, vocês só metem as suas mães em enrascadas. Tudo bem, eu
vou ligar — disse ela, fazendo biquinho e me pedindo o telefone.
Disquei o número em meu telefone, fiz a chamada e passei para a mão
dela.
— Esperem aqui — ela colocou o telefone no ouvido e saiu para algum
outro cômodo da casa. Acho que ela queria falar com a minha mãe a sós.
Papo de mães.
— Você vai ver, ela vai conseguir. Minha mãe tem um alto poder de
persuasão — ele piscou um olho para mim, e me puxou para o seu lado.
— Tomara — cruzei os dedos.
A mãe dele voltou uns dois minutos depois e me passou o celular.
— Ela quer falar com você — a feição dela não era das melhores.
— Oi, mãe — falei, temeroso, esperando pela proibição.
Abri um sorriso quando ela começou a falar. Ela só queria dizer que eu me
cuidasse e que tivesse modos na casa dos outros. E assim nos despedimos.
— Obrigado, mãe!
O Thales me abraçou e eu fiquei sem jeito olhando para a mãe dele. Ela
pareceu não se importar e sorriu para mim.
— Mãe, você é o máximo! — bradou ele, agradecendo-a, porém ainda me
abraçando.
Ele percebeu que eu estava tentando me soltar dele e não me deixou sair.
A mãe dele acabou nos deixando sós e indo para algum outro lugar da
casa.
— Você é louco! — dei um soco no ombro dele quando me soltou. —
Quase quebrou minhas costelas — esse não era o real motivo de eu ter
reclamado.
— Você tem muitos músculos para se proteger — retrucou ele, passando a
mão em meu peito.
— Para! Sua mãe pode aparecer a qualquer momento.
— E daí?
Não insisti na discussão. Subi as escadas correndo e ele veio atrás de mim.
Acho que esses não eram os modos que a minha mãe pediu para eu ter na
casa dos outros.
***
***
Uma pequena fresta de luz passou pela janela do quarto do Thales e veio
diretamente iluminar o meu rosto, fazendo-me despertar.
Abri os olhos vagarosamente e a primeira coisa que vi foi ele ao meu lado.
Ele tinha retornado para o seu travesseiro e estava dormindo de lado, com o
rosto voltado para mim e as mãos embaixo da cabeça.
Um meio sorriso se revelava nele, acho que ele estava sonhando, e só
podia ser comigo.
Eu também estava sorrindo para ele, mas não era em sonho, era a mais
pura realidade. Significava muito para mim tê-lo ao meu lado. Pensei em
tocar no rosto macio dele, ou em seu cabelo bagunçado, mas fiquei com
receio de acordá-lo.
Levantei cuidadosamente da cama, tirei o pijama que ele tinha me dado e
deixei jogado no chão.
Vesti meu uniforme da escola que eu tinha deixado no banheiro dele, lavei
meu rosto e tentei dar uma arrumada no meu cabelo, bem mais bagunçado
que o dele. Tudo isso fazendo o menor barulho possível. Nem as luzes
acendi.
Como eu não queria arrancá-lo do seu sonho gostoso, peguei um post-it
amarelo na minha bolsa e escrevi um recado para ele, deixando colado na
mesa de cabeceira, ao lado de sua cama.
Quando ele acordasse, não me veria, mas receberia o meu carinhoso bom
dia escrito. Até coraçõezinhos eu desenhei.
Abri a porta do quarto e parei para observá-lo na penumbra por mais
alguns segundos. Mas já era hora de partir.
Desci devagar as escadas, rezando para ter alguém acordado na casa.
Senão, como eu iria sair?
Escutei um barulho quando cheguei no último degrau e segui o som,
segurando meu sapato na mão e a minha mochila nas costas.
— Oi, Caio — a mãe do Thales estava com uma xícara nas mãos, na
cozinha, novamente. — Já acordou? — perguntou, olhando para o relógio no
seu pulso. Ainda era bem cedo.
— Bom dia. Já sim, eu tenho que ir em casa ainda antes de ir para o
colégio — expliquei, bocejando.
— Ah, sim. O Thales já acordou? — perguntou, dando um último gole no
seu café, e depois colocando a xícara na pia.
— Não, achei melhor deixá-lo dormindo.
— Tudo bem — disse ela, aproximando-se de mim —, ele inventou esse
atestado só para faltar às aulas. Ele sempre tem esses momentos.
Fiquei pensando se o Thales contava para os pais dele a verdade sobre
esses momentos.
— Mas eu já avisei a ele que vai ter que repor todas as aulas perdidas.
— Pois é — concordei.
— Vamos, eu levo você em casa.
— Não, não precisa, eu chamo aqui pelo app — recusei, não querendo dar
trabalho.
— Não será incômodo, eu estou indo para o hospital. Tenho um tempinho
ainda até a hora do meu turno.
— Tudo bem, então.
Ela pegou a chave do carro dela pendurada na parede da cozinha e me
guiou para fora.
***
***
***
Eu ainda não havia tido tempo de organizar meus pensamentos até estar
sentado na sala do Diretor do colégio, junto ao Thales e aos outros dois.
Estávamos sendo fuzilados com o olhar do professor, segurando uma
compressa de gelo em seu rosto, e do Diretor, com cara de cão raivoso na
nossa frente, no outro lado do seu gabinete.
— Eu liguei para os pais de todos vocês e eles já estão a caminho —
esbravejou, batendo com força em sua mesa, nos assustando. — Vocês não
têm nada nessas cabeças? Qual a necessidade dessa confusão? Olhem o
estado em que vocês se encontram, moleques.
Eu olhei para o Thales e ele se mantinha cabisbaixo, com uma bochecha
avermelhada e o cabelo todo bagunçado.
Toquei no meu rosto e senti um inchaço e dor próximo aos meus olhos. A
dormência pela explosão de adrenalina na hora da briga estava passando e as
dores no resto do corpo atingido começavam a se manifestar.
Passei a mão na parte de trás da minha cabeça para sentir se estava
sangrando, mas não vi nada na palma da minha mão. Identifiquei apenas um
inchaço na região.
— Quem começou essa baderna? — perguntou o diretor.
— Ele! — os dois caras me acusaram.
Olhei para eles, irado. Aquele que eu tinha socado duas vezes segurava
um pano em seu rosto, enquanto sua camisa estava repleta com pingos de
sangue.
— Eles que provocaram! — retruquei.
O Diretor bateu na mesa de novo, com sangue nos olhos.
— Nada justifica! Se eles provocaram ou não, não lhe dá o direito de bater
neles!
— O senhor não sabe o que eles fizeram — argumentei em vão —, e eles
também nos bateram.
— E que provocação foi essa que fez você partir para cima deles? —
questionou o diretor.
O Thales colocou a mão em meu pulso e apertou. Olhei para ele e ele
pediu para eu não falar mais nada, mas eu não me contive.
— Eles estavam praticando bullying com o meu amigo e ainda o
assediaram — contei.
O Diretor fechou os olhos e soltou todo o ar de seus pulmões, voltando a
nos fixar.
— Vocês sabem que temos uma política de tolerância zero com o bullying
e qualquer outro tipo de agressão, principalmente a física. Antes de tomar
qualquer atitude impensada, devemos ser comunicados — ele falou
diretamente para mim, como se a culpa fosse toda minha. — Nós podemos
resolver o problema!
A porta da diretoria se abriu e entraram a minha mãe e a mãe do Thales.
— Ai, meu Deus, o que aconteceu? — perguntou a minha mãe, tocando
meu rosto, delicadamente.
— Thales, o que foi isso? — indagou a mãe dele, preocupada.
Mais duas mulheres entraram na sala e deviam ser as mães dos outros dois
caras. Parecia que os pais homens não gostavam de tratar dos assuntos de
seus filhos.
As duas se juntaram aos garotos, analisando os estragos feitos, mas não
aparentavam muita surpresa.
— Bom, já estão todos aqui — disse o Diretor, pondo-se de pé. — O que
aconteceu é que seus filhos se envolveram em uma grande confusão e esse é
o resultado. Inclusive, o seu filho — ele apontou para a minha mãe —,
acertou esse professor.
O professor de Educação Física estava sentado em um canto da sala,
recuperando-se.
— Não foi porque eu quis — falei, quando minha mãe me deu um tapinha
no braço.
— O que eu posso fazer com você, filho? Você estava indo tão bem —
minha mãe me olhou triste e desapontada.
Ela ainda não entendia que eu não havia provocado aquilo, e que eu só
estava querendo proteger o Thales.
— Como punição pelo que fizeram, os quatro serão suspensos das aulas
por cinco dias — decretou o diretor —, e serão encaminhados para o nosso
psicólogo.
— Está feliz? — perguntou a mãe de um dos dois garotos, acertando um
tapa forte na cabeça dele.
— Senhora, não precisa fazer isso aqui — condenou o Diretor. — E
cuidem melhor dos seus filhos, não é a primeira, nem a segunda vez, que
eles vêm parar na diretoria por causarem confusão. Na próxima, eles serão
expulsos.
Ele falou isso para as duas mães dos encrenqueiros. Elas ficaram caladas.
— E você — ele apontou para mim novamente —, tem sorte que o seu
professor optou por não levar pra frente a sua agressão, mas você está
proibido de participar do campeonato de futsal e de qualquer outro esporte
esse ano. E tudo isso vai ficar manchado no seu histórico.
Mesmo com tantas punições a mim, o mais atingido com certeza foi o
Thales. Ter que passar por problemas relacionados a bullying novamente não
estava sendo fácil para ele. Eu sentia muito por ter agido de forma errada,
mas eu não suportei assistir ele sendo ridicularizado na minha frente.
— Por enquanto é só isso — concluiu o Diretor. — Assinem esses papéis
aqui e estejam todos liberados.
Após isso, saímos todos da sala do Diretor, e foi ali que a minha mãe
conheceu a mãe do Thales pessoalmente. Não era o melhor momento, mas a
vida não escolhia lugar nem hora para que coisas assim acontecessem.
Elas pediram para mim e o Thales esperarmos um pouco, enquanto elas se
distanciaram para conversar.
— Como você tá? — perguntei ao Thales, olhando para seu rosto ficando
roxo.
— Estou melhor do que você, eu acho — ele riu e isso acalmou meus
pensamentos. Ao menos ele estava tirando sarro da situação. — Você não
deveria ter partido pra cima deles.
— Mas eles estavam brincando com você — aleguei —, eu falei para você
que iria protegê-lo.
— Mas eu não achei que seria assim — retrucou ele.
— Eu faria o que fosse necessário para que ninguém tirasse sarro de você
— falei, batendo na camisa dele, toda suja. — E agora ninguém se atreverá a
mexer contigo, já sabem do que eu sou capaz — tentei soar
ameaçadoramente, mas a verdade era que eu não queria ter que chegar
àquele ponto novamente. Foi a primeira vez que me envolvi em uma briga
daquele nível.
Olhei para as nossas mães e elas estavam nos observando, de braços
cruzados, mas aí viraram a cabeça e começaram a conversar novamente. Eu
não conseguia escutar sobre o que elas estavam tratando, só via os lábios
delas se mexerem. Eu acho que elas haviam sacado que algo estava rolando
entre os filhos delas.
— Meninos — a Mel chegou correndo, nos tocando, tentando sentir se
tinha algo quebrado ou fora do lugar —, como vocês estão? Eu fiquei
desesperada.
— Estamos bem — respondi, mesmo sentindo o meu corpo meio
deslocado.
— Ai, Thales, olha seu rosto — ela tocou o rosto dele e ele se afastou
fazendo uma careta. — E o seu também, Caio — segurei as mãos dela antes
que me tocasse.
— Estamos doloridos, Mel — reclamei.
— Ah, desculpa — ela murchou. — Vocês foram punidos ou algo assim?
— Deixa eu listar — falei, apontando nos dedos: — fui expulso do time
de futsal, de qualquer outro esporte esse ano também, e peguei cinco dias de
suspensão. Para o Thales foram só cinco dias de suspensão, coisa pouca —
brinquei.
Tentei rir, mas minha face estava dolorida demais para se mover.
— Vamos, é hora de ir pra casa — disse minha mãe, se aproximando com
a mãe do Thales.
— Vamos, Thales — disse a mãe dele, massageando o seu ombro. — Oi,
Mel! Esses meninos só nos dão trabalho.
— Demais, a senhora nem imagina o quanto — ironizou ela, como se
tivesse que estar sempre cuidando para que não saíssemos dos trilhos.
Deixamos a escola sob olhares de desconfiança e desaprovação de alguns
alunos que passeavam pelos corredores. Era horário de intervalo. O assunto
do dia, ou da semana, seria essa confusão. Quem sabe já não estava na
Comunidade Virtual.
Capítulo 43
Minha mãe me proibiu de sair de casa durante os dias em que fui suspenso
enquanto eu não tivesse me recuperado totalmente, e tivesse repensado tudo
que fiz para não repetir nunca mais.
Eu já tinha concordado comigo mesmo que não faria mais aquilo, mas que
não deixaria, de modo algum, de ajudar o Thales sempre que ele precisasse.
Eu falei tanto para ele não se importar com os comentários maldosos e
simplesmente ouvir de cabeça erguida, dando de ombros, mas eu mesmo
acabei partindo para cima de quem o julgava, sem pensar nas consequências.
É aquele ditado, né? Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço.
***
***
Devoramos tudo que ele tinha trazido em pouco mais de uma hora.
Conversávamos e observávamos algumas pessoas passarem, alguns pássaros
pousarem cantando nos galhos das árvores e uma dezena de folhas caírem e
se juntarem ao cemitério natural no chão.
Recolhemos tudo que estava na mesa e guardamos de volta na mochila
dele, com cuidado para não esquecer nada jogado no chão.
Caminhamos um pouco pela superfície de pedra, e quanto mais nos
aproximávamos da torre, mais ela se revelava alta e imponente.
Subimos por uma rampa que nos conduzia até uma parte mais elevada da
torre, e que nos levava até um elevador.
Ao chegar no topo, havia uma enorme parede de vidro, em um dos lados,
que nos dava a visão do lugar em que morávamos.
Era algo impressionante, e extremamente alto. Quase senti uma vertigem,
mas toda aquela beleza me prendeu mais.
A visão era privilegiada da imensidão do verde que agora estava aos
nossos pés, e também de toda a cidade e seus arranha-céus, casas e pontes.
Virei para o Thales ao meu lado, com a mão no vidro, tão extasiado
quanto eu, e levantei a minha mão para ver o anel em meu dedo. O que ele
simbolizava era tão infinito quanto o horizonte que estava na nossa frente.
Capítulo 44
***
***
Fizemos o nosso último ensaio geral com o Diretor faltando uma semana
para a apresentação, vestindo as roupas que usaríamos no grande dia. A Mel
conseguiu cuidar dessa parte em tempo.
— Você está bonito — falei para o Thales.
— É o mínimo que eu poderia estar. Eu só vou usar essa roupa durante
toda a peça. Já você, tem umas três.
— Serão duas — rebati —, sendo uma para o baile e outra para o restante
da peça.
— Engraçado que eu também vou estar no baile e em outras partes da
peça, mas só tenho essa roupa — constatou ele, coçando sua barriga.
Devia ser porque eu era o protagonista masculino, e não ele. Porém fiquei
calado para não o contrariar.
Vendo-o nessa roupa, eu poderia defini-lo como um nobre príncipe
palhaço com uma espada embainhada na cintura. Todas as espadas haviam
tido suas lâminas de madeira pintadas de prata, e os seus cabos de dourado,
para dar um aspecto mais realista. Ensaiamos muito com elas até as brigas
parecerem mais como passos de dança do que disputas em si.
Já sobre as roupas, o Diretor tinha chamado de "uma espécie de traje
Dândi mais leve". Palavras dele, e eu nem sabia o que significava isso. Eu
mesmo chamei de traje da antiguidade que coçava pra caramba e fazia calor.
Eu também estava vestido como o Thales, só mudavam as cores das nossas
peças, assim como o resto dos rapazes. Exceto o personagem do Frei
Lourenço, que usava um hábito marrom com capuz.
Nossas roupas consistiam basicamente de um fraque, um colete, uma
camisa por dentro com uns babados, uma calça colada quase fundindo-se às
nossas pernas e uns sapatos masculinos de saltos. Estávamos um tanto
ridículos.
— Vocês estão lindos — disse a Mel, dando uns últimos retoques em meu
fraque. Eu suspeito que ela estava sendo irônica e debochando da gente.
Estas roupas nem de longe eram bonitas.
Além das roupas, o cenário também estava montado no palco. Era a
primeira vez que o víamos por completo. Nos ensaios havia apenas a
varanda, não tão alta, na qual eu e a Julieta trocaríamos juras de amor. Agora
víamos também paredes que pareciam de um castelo e um lustre pendurado
acima de minha cabeça, para a cena do baile de máscaras.
Estava tudo muito bonito. E eu me senti orgulhoso de fazer parte daquilo,
mesmo que no início eu não quisesse ter participado.
Estar com o Thales o tempo todo nessa produção me deu um impulso
maior, ele me fez sentir mais confiante e a incorporar melhor o Romeu.
Capítulo 46
Estava começando a ficar com vergonha por estar sentado há mais de meia
hora na mesa de um bar quase cheio e ter pedido apenas uma Coca-Cola,
que por sinal já esquentou e eu não tomei nada.
Thales não atendia ao telefone, mas eu sabia que ele estava tramando algo.
Eu só queria ir para casa após um dia exaustivo na faculdade de Arquitetura.
A ideia de vir para esse lugar foi somente dele.
E como se não bastasse o garçom no outro lado do balcão me olhando de
vez em quando, porque eu não pedia mais nada, havia um outro cara em uma
mesa há uns dez metros de distância da minha, encarando a mim. E olha que
ele estava com outro homem, que parecia ser o namorado dele, pois ambos
estavam de mãos dadas em cima da mesa.
Era um bar gay. As únicas duas mulheres que estavam aqui eram
provavelmente lésbicas ou bissexuais. Não era a primeira vez que eu tinha
vindo. Na verdade, vim muitas vezes. Eu gostava do ambiente. A música era
calma, não era para dançar. Era para bater um papo e rir depois de um dia
cansativo de trabalho, ou faculdade.
Quem descobriu esse lugar foi o Thales ao mudarmos para esta cidade, e
para este bairro, há dois anos, quando passamos a morar juntos. Um lugar
entre mil na maior capital do país.
Ele se materializou na minha frente bem na hora que eu ia levantar para ir
embora. O seu corpo agora impedia a visão incômoda do cara
comprometido.
— Desculpa a demora — disse ele, sentando e retirando por cima da
cabeça a sua bolsa preta, daquelas no estilo mala que jogadores de futebol
costumam usar.
Todo mundo que olha para o Thales pensa que ele acabou de voltar de
uma academia. Suas roupas, seu tênis, sua bolsa, tudo muito específico, mas
ele usava essas coisas porque era estudante de Educação Física. Embora eu
ache estranho que estudantes do seu curso tenham que se vestir assim o
tempo todo. E as pessoas ainda reclamam de estudantes de Medicina que
usam jaleco para onde quer que vão.
— Esperou muito? — perguntou, abrindo um sorriso enorme e bonito,
mas que mesmo assim não me contagiou.
— O que você acha? — respondi, cruzando os braços, e indiferente.
— Desculpa, sério. Eu tinha que passar no shopping antes de vir pra cá, e
não deu pra avisar porque a bateria do celular descarregou — explicou.
— O que você foi fazer no shopping?
Ele abriu mais um largo sorriso e começou a procurar por algo em sua
bolsa. Não demorou muito para que ele retirasse uma caixa pequena e
quadrada e colocasse em cima da mesa.
— Lá vem você de novo — falei.
— Não seja chato, por favor. Ainda mais hoje.
— Hoje? — perguntei, confuso.
— Eu poderia dizer a falácia de que “homens são esquecidos”, mas aí, eu
também sou homem, e não sou esquecido.
— Aham, sei — bufei.
— Então, a verdade é que existem homens românticos, que guardam datas
especiais, e existem os que não são românticos.
— No caso, EU sou o romântico, né?
— Claro que não!
— E quem foi que lhe presenteou com um buquê de flores no ano
passado? Com uma cesta enorme de chocolates, TODOS BRANCOS, no
ano retrasado?
— Ah, realmente foi você. Mas então, porque você não lembrou do nosso
aniversário de 3 anos de namoro dessa vez? — perguntou, deslizando o dedo
em espiral na mesa.
— Eu passei dias estudando para uma prova que fiz hoje. E você sabe o
quanto eu estava quebrando a cabeça por causa disso. Eu nem dormi direito
ontem — reclamei, quase deitando na mesa para descansar.
Ele levantou de sua cadeira, veio até mim e me beijou. Foi um beijo
demorado, que fez eu recobrar quase todas as minhas energias. E voltou a
sentar no seu lugar.
— Sente-se bem agora? — perguntou. Ele sabia que um beijo dele era
sempre a cura para qualquer problema meu.
Sorri para ele, envergonhado, ao mesmo tempo bastante comovido,
porque ter o Thales ao meu lado por mais de três anos tem sido a coisa mais
importante da minha vida. A gente passou por tantas coisas até chegar aonde
estamos, e saber que nosso amor ainda resistia era a coisa mais gratificante
que eu poderia viver.
— Você não vai me dar isso? — perguntei, apontando para a caixinha que
ele tinha deixado em cima da mesma. Ele estava tão fixado em meu olhar
que parecia não se importar com mais nada.
— Ah sim, desculpa — pediu, pegando a caixinha.
— Estou contando quantas vezes você vai me pedir desculpas hoje.
— Ai, descul… Para, Caio! Não me teste — disse, batendo na minha mão
em cima da mesa.
Comecei a rir e quase não consegui parar, enquanto ele me olhava
emburrado. Mas parei.
Ele abriu a caixinha na minha frente e era um relógio. Um relógio
prateado, muito bonito.
— Outro relógio? — perguntei.
— Outro relógio, Caio? Aquele seu relógio de estimação parou de
funcionar há dois meses.
Era verdade. Eu usava o mesmo relógio há três anos, e só deixei de usar
porque ele parou de vez, sem chance de conserto. Acontece que eu gostava
muito dele. O Thales havia me dado no nosso primeiro Natal em família
juntos.
Peguei o relógio da mão dele e coloquei no meu pulso. Encaixou-se
perfeitamente.
— Ficou lindo — disse, debruçando-se por cima da mesa para alisar o
meu braço. — Caio?
Fiquei tão emocionado com o presente que comecei a chorar, e não
consegui disfarçar, mesmo com a cabeça baixa para ele não perceber.
— Desculpa — pedi, olhando para ele. — Eu não lembrei de comprar
algo para você também.
— Caio, pelo amor de Deus. O meu maior presente é você.
— Que clichê — falei, em um misto de lágrimas com riso.
— Eu sou um clichê gay.
E assim terminamos a noite. Bebemos alguns drinks. Mais ele do que eu.
Até que resolvemos voltar para casa andando no meio da noite, porque ainda
não era fim de semana, e não podíamos nos dar ao luxo de passar a
madrugada em claro.
Extras (Conto Natalino)
POV Caio
Eu não sei quem estava mais tenso nesse momento. Se era eu, porque meus
pais, em especial o meu pai, estava prestes a conhecer os pais do meu
namorado, e também, o próprio Caio. Ou se era a minha mãe, sentada no
banco do passageiro do carro, ao lado do meu pai, batendo os pés
freneticamente no assoalho, enquanto estávamos os três parados em um
engarrafamento em plena noite de véspera de Natal há mais de 15 minutos.
Eu estava rezando para que tudo ocorresse bem.
— Não dá para ir mais rápido, querido? — perguntou a minha mãe.
Meu pai, na maior tranquilidade do mundo, que eu não sei como ele
conseguia ter, virou-se para ela e falou:
— Amor, não tem como eu passar por cima dos outros carros.
— A não ser que fôssemos um tanque de guerra — comentei, tentando
fazer graça, mas falhando.
Minha mãe virou o rosto para mim, sentado no centro do banco traseiro,
em um esforço meticuloso e calculado, porque ela não queria amassar o
vestido dela, e depois virou-se novamente para a frente do carro. Ela não
tinha achado a menor graça. Ainda não estávamos no espírito natalino.
A única vez em que meu pai tinha visto o Caio, e não fazia muito tempo,
foi no dia embaraçoso em que eu tive a brilhante ideia de colocar uma
peruca loira e protagonizar aquele beijo no palco do teatro do colégio. Foi
um completo desastre.
Após isso, eu e o Caio, em conjunto com nossos pais, decidimos sair do
Colégio Santa Inês. Embora o Diretor já tivesse alertado que seríamos
expulsos de qualquer modo. Meus pais não confiavam nas políticas no
combate ao bullying e à homofobia dessa escola.
A Mel, o Gabriel e o namorado dele também resolveram trocar de colégio.
Eu não tinha problemas em trocar de escola, estava acostumado até.
— Thales, você colocou no carro as coisas que eu pedi? — perguntou a
minha mãe.
— Eita, mãe! — falei, colocando as mãos na cabeça em desespero.
Ela virou para trás com seus olhos verdes arregalados, como se eu tivesse
cometido um crime.
— Não acredito, Thales! — disse, pausadamente.
Eu estava fingindo que tinha esquecido e achei melhor não fingir por mais
tempo para não acabar estragando a noite feliz que já não estava tão feliz
assim.
— Eu trouxe mãe, fique calma.
— Ah, Thales, não brinca comigo assim. Você sabe que eu não gosto
dessas coisas.
— Thales, não brinque com a sua mãe — reclamou meu pai, em uma
tentativa de parecer uma bronca, mas ele falava tão calmo que nunca parecia
uma bronca de verdade.
As coisas às quais minha mãe se referiu eram três presentes que ela fez
questão de comprar para o Caio e para os pais dele. Ela me pediu até para
escolher o presente do meu namorado, embora não fosse a coisa mais fácil
do mundo, pois ele não gostava de receber presentes.
Pelo espelho retrovisor externo do carro vi que o semblante da minha mãe
passou, em um milésimo de segundo, de séria à uma completa felicidade
quando o carro, enfim, começou a se movimentar.
— Sério que esse engarrafamento todo era por causa de um bendito
semáforo? Meu Deus! — disse meu pai, pensando alto.
A hora na tela do meu celular não passava das 9:00hs da noite. Isso
indicava que chegaríamos bem cedo na casa dos pais do Caio. E já
estávamos próximo, se eu estivesse certo sobre onde a gente estava.
A cidade estava bastante iluminada por causa da decoração natalina,
principalmente nas grandes avenidas. Eu não acharia ruim se continuasse
assim o ano inteiro.
Quando meu pai fez uma certa curva à direita, eu me dei conta de que era
a rua que o Caio morava. Até porque, já tinha vindo aqui algumas vezes, e
estava familiarizado.
Subitamente, me senti nervoso e meu coração acelerou de uma maneira
incomum.
— Thales? Thales!
Minha alma voltou ao corpo quando minha mãe apertou meu joelho em
uma tentativa de atrair minha atenção.
— Oi, mãe.
— Eu estou lhe perguntando se é nesta rua a casa dos pais do Caio.
— Ah, desculpa. É sim, acho que sim — respondi, ainda um pouco
desatento.
— Paaaai — reclamei, afastando-me da janela que ele tinha aberto —, por
que você abriu? Bagunçou meu cabelo.
Uma rajada de vento havia entrado no carro pela janela ao meu lado, o
que me fez tomar um susto pensando que meu penteado estava destruído.
— Pra você olhar e ter certeza se é essa a rua.
— É essa sim. Já pode fechar o vidro, tá? Affs!
Minha mãe virou-se para trás mais uma vez e estreitou os olhos,
analisando-me.
— Não está nada bagunçado, Thales. Está igualzinho como deixei —
disse a minha mãe.
Ela mesma tinha arrumado meu cabelo, sendo que ela nunca fazia isso
desde... desde meus 10 anos de idade.
— Pai, quando você chegar na frente da casa é só buzinar que alguém vai
abrir o portão da garagem — avisei.
Esse era a última mensagem que o Caio havia me enviado antes de sumir
há mais de uma hora do WhatsApp.
Na rua do Caio só havia uma casa decorada para o Natal, justamente a
dele. E parecia que os seus pais tinham roubado a decorações da cidade
inteira para eles.
— Pai, é aqui, para! — apontei.
Era tanta luz que eu mal estava conseguindo enxergar além delas. As
quatro árvores enfileiradas na calçada, que da última vez que eu tinha os
visitado não tinham forma alguma, apenas formato de árvore, agora estavam
geometricamente quadradas, com luzes coloridas ao redor, e grandes laços
em cima de cada uma, dando a impressão de que elas eram caixas de
presente.
Eu nem ouvi meu pai buzinar, mas sabia que ele tinha buzinado porque o
portão automático na frente da casa estava se abrindo.
De fora já dava para ver que a fachada da casa de dois andares também
estava decorada com luzes LED e outros tipos de iluminação natalina, mas
só ao entrar foi que tivemos uma noção mais clara de como tudo aqui parecia
a própria transfiguração do Natal.
Desci do carro primeiro e fui abrir a porta para a minha mãe descer. Ela
demorou a destravar o cinto de segurança, e eu tive que ajudá-la.
— Estou com vergonha — disse ela ao colocar-se de pé fora do carro.
— Porquê? — perguntei.
— Vergonha da nossa casa ter apenas umas luzes na varanda, e a casa dos
pais do Caio estar tão linda — disse, em uma risada nervosa.
Eu não sei se eu gostaria que a minha casa estivesse tão decorada como
essa. Não era como se eu quisesse vencer o concurso de casa mais bem
iluminada da cidade para o Natal.
Dei apenas alguns passos com a minha mãe apoiando as suas mãos em
meu ombro, porque ela estava usando um salto alto fino que provavelmente
estava afundando na grama, até que a mãe do Caio apareceu.
— Boa noite! — disse ela, cumprimentando a minha mãe com um beijo
no rosto, e depois cumprimentando-me, igualmente. — É um prazer receber
vocês aqui na minha humilde casa pouco iluminada, como já devem ter
percebido.
Nós três rimos, porque claramente ela estava sendo irônica.
— Você está lindo, Thales — elogiou ela, passando a mão suavemente
pelo meu rosto.
— Obrigado, você… — olhei para a minha mãe temendo ser repreendido
pela falta de educação — desculpa, a senhora está deslumbrante.
Foi a mesma coisa que eu disse para a minha mãe quando saímos.
Enquanto a ela tinha escolhido para a ocasião usar um vestido vermelho de
ombros cobertos, com a saia mais curta na frente, a mãe do Thales, por sua
vez, estava com um vestido verde ajustado ao corpo esbelto dela, que parecia
ser coberto por pequenas pedras espaçadas como esmeraldas, além das
mangas em transparência que iam até a metade do antebraço. As duas
estavam perfeitas, e eu não podia escolher entre elas quem estava mais bem
vestida.
Meu pai demorou a sair do carro e veio nos acompanhando alguns passos
atrás em direção a entrada da casa. Ele também parecia impressionado com
tantas luzes. O sorriso no rosto dele era como sorriso de criança.
Na parte do solo, todo o percurso do jardim até a porta de entrada era
repleto de pequenos anjos de barro iluminados de dentro para fora, e que
pareciam nos guiar até a casa.
Espalhadas pelos cantos, havia algumas renas iluminadas. Umas pareciam
estar olhando para os visitantes, outras pareciam estar comendo o jardim.
Havia uma outra até deitada.
A parte externa da casa do Caio era tão grande que, além de tudo, ainda
havia um presépio de luzes trançadas na palha com os personagens bíblicos
em tamanho real, incluindo o Menino Jesus que piscava loucamente.
Minha mãe e a mãe do Caio foram as primeiras a alcançar a porta de
entrada, e elas ficaram paradas nos esperando, porque eu e meu pai
estávamos andando demasiadamente lentos analisando cada detalhe da
decoração, e mesmo assim não deu para ver tudo.
A porta branca da entrada estava decorada com três grandes guirlandas
dispostas verticalmente, onde na do meio estava escrito “Feliz Natal” em
inglês.
Quem abriu a porta para nos receber foi o pai do Caio. Eu só tinha visto
ele pessoalmente uma vez, e foi bem rápido, no dia da peça. Sempre que eu
vinha aqui na casa do Caio ele estava em seu escritório.
Não sei porque, mas eu achei que fosse encontrar ele usando um terno. Só
que ele não estava usando um traje social. Ele usava calça jeans justa, blazer
e camisa em gola “v” não muito acentuada. O pai do Caio estava muito em
forma para a idade dele. Embora eu não soubesse a idade dele.
Não daria para dizer que o Caio era filho de outro pai, senão desse pai.
Eles eram muito parecidos.
— É um prazer ter a sua família em nossa casa — disse ele ao
cumprimentar a minha mãe em um abraço acanhado.
Em seguida, ele abraçou o meu pai, com mais segurança, e veio em minha
direção, pousando suas mãos pesadas em meus ombros.
— Então quer dizer que você é o rapaz que travou uma batalha pelo meu
filho com uma garota e acabou angariando o coração dele?
A tensão se instaurou no ar depois disso. Eu fiquei sem reação. Eu nem
sabia o que responder, nem se ele estava falando sério. Apesar da sua feição
extremamente séria.
— Maurício, por favor, né? Olha a cara do menino.
A mãe do Caio veio em minha direção me tirar de uma enrascada e
apertou o meu ombro em uma tentativa de me fazer relaxar.
— Eu estou brincando com você, Thales. Não se sinta intimidado.
Ele me deu um abraço forte e demorado que dissipou toda a minha tensão.
Eu tinha ficado parado igual pedra.
— Pai, eu ouvi o que você falou. Não foi desse jeito que as coisas
aconteceram, não — disse o Caio, brotando por trás do pai dele. — Assim
você o assusta.
Todo mundo riu e eu percebi naquele momento que eu estava em um lugar
seguro, e que aquela família era a família que eu realmente queria estar e
fazer parte.
— Vamos entrar — convidou a todos, o pai do Caio.
— Mãe — falei, pegando no braço dela —, eu esqueci as coisas lá no
carro.
Meu pai ouviu e colocou as chaves do carro na minha mão para que eu
fosse pegar.
Os adultos entraram na casa, enquanto eu fiquei do lado de fora com o
Caio, que me olhava com os olhos apertados. Ele estava tão lindo que eu não
conseguia me aguentar para não pular em cima dele.
— Peço desculpas pelo meu pai. Tenho certeza que ele planejou falar isso
antecipadamente.
— Sem problemas. Eu só fiquei com vontade de correr para bem longe e
nunca mais voltar.
— Só se você fosse me levar junto — propôs, acariciando a minha
bochecha.
— Com toda certeza.
— Então — ele se afastou de mim para poder me olhar dos pés à cabeça
—, você decidiu me fazer se apaixonar por você novamente hoje?
Eu, estava usando por cima de uma camiseta vinho, uma jaqueta de couro
preta, além de uma calça jeans bem apertada.
— O que você acha? — perguntei, dando uma volta.
Ele deu um passo para frente e aproximou seu rosto do meu ouvido,
falando baixinho:
— Eu gosto de um badboy assim.
A respiração dele em meu pescoço me fez arrepiar.
— Para, Caio! — falei, afastando-o de mim.
— Não tenho culpa se você está tão bonito — disse, com olhos ardentes
para cima de mim.
— Não mais do que você — rebati.
Ele realmente estava muito lindo. Eu falaria isso mesmo se ele não fosse
meu namorado. Coincidência ou não, ele estava usando uma camisa de
manga longa colada ao corpo também na cor vinho, porém seu jeans era
branco, além de um tênis Vanz.
— Vamos ali no carro do meu pai — convidei, e saímos andando lado a
lado pelo caminho de anjinhos de barro brilhantes.
— Você já deve ter percebido que a minha mãe é a louca do Natal.
— Eu não diria que a minha sogra, a Cecília, é a “louca do Natal”, e
você... — parei de andar e apertei a bochecha dele fazendo biquinho de
peixe. — Não deveria falar assim da sua mãe.
Dei um beijo rápido no biquinho de peixe dele e soltei as suas bochechas.
— Se for pra ganhar um beijo toda vez que eu chamar a minha mãe de
louca, esse não foi o melhor incentivo para que eu parasse.
— Não me faça apertar sua bochecha de novo.
Tentei pegar o rosto dele, mas ele se esquivou e saiu correndo. Eu
comecei a correr quando ele já estava ao lado do carro do meu pai.
Apertei um botão no controle e o carro fez um barulho do porta-malas se
abrindo.
— Quer que eu pegue? — perguntou o Caio, oferecendo-se.
— Não, eu mesmo pego — respondi, colocando três caixas de presente de
tamanhos iguais empilhadas em meu braço.
— Hmm, três caixas de presente. Suponho que uma seja para mim. Você
sabe que…
Coloquei meu dedo na boca dele para que ele se calasse, enquanto fazia
um esforço de malabarista para manter os presentes empilhados no outro
braço.
— Caio, por favor. Pelo menos uma vez. É Natal!
— Tá certo, desculpa. Agora me deixe ajudar, porque eu estou só
pensando na hora que você vai derrubar tudo isso.
Ele pegou dois dos presentes e deixou um comigo, justamente o que eu
tinha escolhido para ele.
Começamos a andar de volta para a casa, até que ele parou do nada.
— Deveríamos mandar uma foto nossa para a Mel.
Ele se agachou, colocou seus presentes no chão e tomou o outro da minha
mão, deixando-os lado a lado.
— Ah, claro. Ela está em Paris. Deve estar sentindo muita falta da gente
— brinquei.
— Deixa de ser bobo, claro que tá. Deve estar até sentindo falta do
grêmio. Me dá seu telefone. O meu não tá aqui.
Ele enfiou a mão no bolso de trás da minha calça e puxou meu celular em
um esforço quase miraculoso.
Não foi difícil para ele desbloquear o aparelho, já que tanto no meu
quanto no dele estavam gravadas as nossas impressões digitais.
Ele ativou a câmera, encostou o rosto dele no meu e tiramos uma selfie
sorrindo, com uma rena nos olhando ao fundo.
— Pronto, enviei — disse, mostrando a tela do celular para mim.
— E ela já visualizou, inclusive — falei.
Ele virou o celular para si, e eu corri para o lado dele. Na tela eu vi que a
Mel estava escrevendo algo.
— Vaca! — falei, após ver o que ela tinha escrito.
Na mensagem ela dizia “vejo três veados lindos”, seguido de um emoji de
cabeça de rena.
Ela também tinha enviado uma foto. Também era uma selfie dela com um
garoto de óculos.
— Quem é esse? — perguntou o Caio.
— É um francês que ela conheceu ontem na cidade. Eles estão se
pegando.
— Sério? — perguntou. — Preciso aprender com ela.
Virei para ele quase espumando, e ele disse, rindo:
— Não mais, né? Eu precisava aprender ANTES, foi isso que eu quis
dizer.
POV Caio