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Angie - Prólogo
Marilyn - 18 anos antes
Angie
Marilyn
Angie
Marilyn
Angie
Marilyn
Angie
Marilyn
Angie
Marilyn - Epílogo
Agradecimentos
Por trás de cada homem vivo há hoje trinta fantasmas, já
que é nessa proporção que os mortos superam os vivos.
Arthur C. Clarke, 2001: Uma odisseia no espaço
OS VIVOS ESTÃO ALCANÇANDO OS MORTOS. Quando Arthur C. Clarke escreveu
a respeito, em 1968, eles nos superavam numa proporção de trinta para um.
Mas nos multiplicamos tão rápido que agora só há quinze fantasmas para
cada um de nós. Angie sabe a estatística: há mais de sete bilhões de pessoas
na Terra, enquanto outras cento e sete bilhões já passaram por ela.
O pai de Angie é um dos mortos, ou pelo menos era o que ela achava. Com
frequência o havia imaginado ao seu lado, liderando sua pequena tribo de
fantasmas, todos os quinze. Imaginava-o como na fotografia com sua mãe.
Na imagem, ele parece ter a mesma idade de Angie: dezessete. O sorriso
amplo e reluzente, a pele escura e os dentes brancos, o corpo alto e
musculoso. Ele usa um boné virado para trás, como um nerd dos anos 90,
Angie pensa. Na foto, o pai e a mãe, Marilyn, estão no calçadão da praia. A
mãe está usando um macacão jeans por cima do biquíni, os brincos de argola
cintilando, o cabelo dourado comprido caindo sobre o rosto pálido. Ela se
apoia nele como se aquele fosse seu lugar, a cabeça jogada para trás numa
risada, o braço dele envolvendo seus ombros. Toda aquela água azul no
fundo, estendendo-se até encontrar o céu.
Faz um ano que Angie descobriu a foto, enquanto se arrumava para o
jantar de aniversário de dezesseis anos de Sam Stone. Revirava as gavetas da
mãe, que estava no trabalho, em busca de um batom, e em algum momento a
busca evoluiu para outro nível. Ela se viu à procura, embora não soubesse
exatamente do quê. Então, no fundo da gaveta de calcinhas, encontrou uma
caixa de madeira. Dentro havia um envelope de papel pardo cheio e lacrado.
Embaixo, a foto.
Angie olhou para o garoto negro sorridente que a encarava. Embora nunca
o tivesse visto antes, soube instantaneamente que era seu pai. Por uma fração
de segundo, se perguntou com quem ele estava. Então se deu conta de que a
garota era sua mãe, claro. Marilyn parecia tão despreocupada. Jovem. Com
um mundo de possibilidades à frente. Feliz.
De repente Angie sentiu um aperto no peito. Queria arrancar o garoto da
foto. Fazer com que se tornasse um homem, seu pai. Que fizesse sua mãe
sorrir daquele jeito de novo.
Em vez disso, ela tentou se incluir na foto — imaginar como seria estar lá
com eles, qual seria a sensação do sol, o cheiro do mar. E, embora nunca
tivesse ido à praia, quase podia ouvir o som distante das ondas sob as risadas
felizes.
Angie tem mais um ano de ensino médio pela frente, depois vem o Futuro.
Não tem ideia do que quer “fazer da vida”, de qual é seu lugar ou de como
vai compensar todo o sacrifício que sua mãe fez por ela. Quando tem
dificuldade para respirar, com o peito apertado, a ansiedade inominável e
incerta, Angie pensa nos sete bilhões de pessoas (e contando) que vivem na
Terra. O número descomunal alivia o pânico, e ela se sente mais leve, com
aquela tontura de quem riu demais, ficou acordado até tarde, ou ambos. Ela é
menor que uma gota no oceano. Que importância tem o que uma garota —
Angela Miller — faz com a própria vida?
Ela se considera mediana, discreta: gosta de história e ciências
(principalmente biologia), correr, sanduíche de queijo com as bordas
queimadas, futebol, café com chantili de leite de soja, LPs, escutar hip-hop no
último volume na privacidade de seus fones de ouvido. Anda armada com
listas como essa, que serão usadas sempre que necessário, com a intenção de
dar uma descrição predefinida e tênue de “si mesma”, quem quer que seja.
Angie aprendeu diligentemente a controlar o sentimento que espreita dentro
dela, ameaçando vir à tona. Mas hoje tudo vai mudar.
Agora Angie segura a foto dos pais enquanto ouve Janet Jackson cantar “I
Get Lonely” em um walkman que encontrou num brechó por dois dólares e
noventa e nove. É uma fita gravada, com a inscrição PARA A SRTA. MARI MACK,
COM AMOR, JAMES em caneta azul desbotada. O sol da manhã já está ficando
forte demais, penetrante, obrigando Angie a ir para a parte sombreada da
varanda. Fios de algodão flutuam no ar quente, acumulando-se nas calhas
como uma neve de verão. À frente dela há uma mala com camisetas, meias,
calcinhas, sutiãs e seus dois vestidos favoritos, cuidadosamente dobrados,
assim como o envelope que achou na gaveta da mãe e os contatos de todos os
Justin Bell entre os vinte e quatro e os trinta e cinco anos, ou de idade
desconhecida, e que moram em Los Angeles. Faz quase uma hora que
Marilyn saiu para trabalhar. Quando voltar, vai descobrir que a filha foi
embora.
Angie mora nessa casa desde o dia em que a mãe a pegou na escola,
quando estava no quinto ano, e disse que tinha uma surpresa.
— O que é? — Angie perguntou quando Marilyn não entregou nenhum
dos presentinhos recorrentes: chocolate, balas, um livro ou uma nova caixa de
lápis de cor.
— Você vai ver — a mãe respondeu. — É a melhor surpresa de todas.
Ela pegou a estrada e dirigiu até o centro velho de Albuquerque, uma parte
da cidade que só tinham visitado quando Angie quis ir no museu de história
natural. Iriam lá de novo? Não, Marilyn continuou dirigindo pelas ruas com
choupos enormes e casas cobertas de hera. Então, quando chegaram aos
limites do bairro e as casas começaram a ficar menores — de adobe, com
jardins bem cuidados —, ela estacionou numa garagem. A casa em questão
era baixa e larga, com telhado azul.
Angie virou para a mãe.
— Vem! — Marilyn encorajou, animada como uma criança.
Angie seguiu a mãe, que se atrapalhava com as chaves, até a porta da
frente. De quem era aquela casa?
Quando a fechadura abriu, Marilyn olhou para a filha e disse:
— Vai, entra! É nossa.
Angie só tinha dez anos, mas compreendeu que sua mãe estava lhe dando
algo que ela própria nunca havia tido: uma casa onde crescer. As duas a
pintaram juntas: azul na sala, amarelo na cozinha, verde-água no quarto de
Angie.
Ela sempre amou as paredes grossas que mantinham o frescor dos
cômodos nas manhãs de verão, as arcadas, o velho sofá estampado onde
ficavam vendo comédias românticas até tarde no fim de semana, comendo
pipoca com parmesão ou chupando picolés.
Quando pequena, Angie acreditava que tinha o tipo de mãe que as outras
crianças deveriam invejar — Marilyn mandava os melhores lanches, com
sanduíches cuidadosamente cortados em triângulos, e fazia os melhores
brownies para as feiras da escola. Nas manhãs em que Angie não queria sair
da cama, Marilyn colocava “Dancing in the Street” no último volume e as
duas corriam pela casa de pijama, rindo. A mãe decorava a casa para
qualquer feriado, incluindo Ano-Novo e Halloween. No Quatro de Julho,
fazia cachorros-quentes e cupcakes com as cores da bandeira americana,
comprava estrelinhas e, quando ficava escuro, as duas as acendiam no jardim
e escreviam seus nomes no ar. Na época, Angie não achava estranho que
fossem só as duas. Que não fossem convidadas para churrascos. Que quando
Marilyn a deixava na casa de outras crianças nunca entrava para socializar
com as mães, que às vezes falavam com ela num tom condescendente. Que
nas reuniões de pais da escola Montezuma Marilyn era de longe a mais nova
e, embora Angie notasse que alguns pais tentavam se aproximar, sua mãe
sempre se afastava para procurá-la. Quando Marilyn terminou com Manny —
o primeiro (e único) homem a ir jantar na casa delas —, Angie aprendeu a
aceitar a perda.
Desde que Angie era pequena, Marilyn dizia que a filha era seu amor, sua
luz, sua razão de viver. Seu anjinho precioso. Mas, às vezes, quando achava
que Angie estava distraída com um livro de colorir ou com a televisão, a
menina a via olhando pela janela, com lágrimas escorrendo pelo rosto.
Um carro buzina para Sylvie. Ela está segurando o trânsito para virar à
esquerda no Washington Boulevard. Marilyn absorve as ruas queimadas pelo
sol, o cheiro de carne da barraquinha de tacos misturado ao leve cheiro de
mar, as flores coloridas crescendo pela cerca.
Sylvie ignora a buzina e entra com o Buick na South Gramercy Place.
Marilyn reconhece vagamente a rua residencial cheia de prédios em ruínas.
PREÇO NEGOCIÁVEL, anuncia uma placa. Ela nota uma floreira vermelha em
uma janela, um varal com as roupas balançando como bandeiras. Um homem
está recostado no prédio abaixo, fumando.
— Olha, Marilyn. Dá pra ver o letreiro daqui.
O carro sai da pista enquanto Sylvie vira para apontar para as letras
brancas na montanha ao longe, H-O-L-L-Y-W-O-O-D, imponentes através da
névoa que vem com o calor do verão.
— Hum-hum.
Marilyn faz o melhor que pode para ignorar o terror crescendo no peito
enquanto avançam pela rua e param no número 1814 — um prédio de
esquina de dois andares, com o reboco rosa se desfazendo e um jardim
malcuidado, onde algumas laranjeiras sobrevivem bravamente.
***
O tio não parece feliz em vê-las quando chega uma hora depois e encontra
Marilyn desembalando os pratos e Sylvie pedindo pizza. Woody é um
homem pequeno, com cabelo grisalho comprido preso num rabo de cavalo e
uma barriguinha.
— Oi — ele diz, seco. — Bem-vindas de volta.
Sylvie desliga o telefone e vira para ele.
— Obrigada por receber a gente — ela diz, sua voz no tom mais agradável
possível.
— Você era mulher do meu irmão — ele diz, sem dar muita importância.
Sylvie disfarça bem seu incômodo, mas não consegue enganar Marilyn.
Para dar a Woody algum crédito, ele tinha cedido seu quarto a Sylvie e se
disposto a dormir no sofá. O quartinho de Marilyn aparentemente servia
como depósito, e as caixas tiradas de lá agora lotavam o corredor.
— Como falei — Sylvie acrescenta depressa —, é por pouco tempo. E,
enquanto isso, seremos ótima companhia. Vamos deixar este lugar brilhando.
Você não vai precisar se preocupar com nada.
— Bom, eu adoro seu purê gratinado — Woody comenta.
— Vou fazer amanhã. Mas pedi pizza hoje. É o aniversário de dezessete
anos da sua sobrinha.
Woody olha bem para Marilyn, avaliando seu tamanho. Desde que se
mudaram, ela o viu poucas vezes, a última há dois Natais, quando ele chegou
em Orange County com um fardo de cerveja e desmaiou no sofá.
— Você realmente cresceu desde a última vez que esteve aqui — ele diz.
— E desde a última vez que a gente se viu. Pode me pegar uma cerveja,
gracinha?
Marilyn pega uma cerveja barata na geladeira, encostando brevemente a
garrafa gelada na bochecha. Sente-se um pouco febril. Embora tenha esfriado
lá fora, o apartamento de Woody parece manter o calor do dia.
— Pode pegar uma pra você também. Afinal, é seu aniversário — ele diz.
Marilyn não pega.
Quando a pizza chega, Sylvie insiste em colocar velinhas em cima, que
conseguiu encontrar em uma das caixas. Marilyn se inclina sobre as chamas e
nota que gotas de cera rosa começam a cair no queijo. Desejo que no ano que
vem eu esteja longe daqui, estudando em Nova York, começando minha
própria vida. Mas quando ela fecha os olhos para assoprar, é James que vê, e
sua imagem a envolve como a ressaca do mar.
Marilyn passa por Woody na ponta dos pés, que está exatamente como o
deixou. Ela passa o resto do dia limpando e desempacotando suas coisas.
Ainda com a foto de James na cabeça, ela varre as camadas de pó das soleiras
e esfrega o chão encardido. Lava o banheiro com cândida e fica satisfeita que
o cheiro do produto químico apague o da casa, como se criasse uma página
em branco. Marilyn guarda as roupas da mãe nas gavetas e então termina de
guardar as suas. Organiza os livros em fileiras únicas encostadas na parede e
prende com durex nas paredes as cópias de suas fotos preferidas, feitas na
máquina de xerox da biblioteca.
Do fundo da última caixa, tira um leãozinho de pelúcia com a juba toda
emaranhada segurando um coração vermelho e quase se desfazendo. Embora
não se lembre de tê-lo ganhado, sabe que Coração Valente (nome que lhe deu
muito tempo atrás) foi um presente do pai. Marilyn tenta recordar o rosto
dele, como faz às vezes, e sente a vertigem de sempre. Não consegue vê-lo de
fato, é como um caleidoscópio, um barco se afastando no mar. Suas
memórias mais antigas são todas assim — vagas e fugazes, como se
lembrasse de uma infância que não é sua.
Quando pensa na morte do pai, é o grito de Sylvie que escuta. Ele teve um
ataque cardíaco no trabalho. Nas semanas seguintes — ou meses, Marilyn
não sabia —, os sons baixos da TV e o cheiro dos cigarros de Sylvie foram
tomando conta da pequena casa, as coisas delas foram negociadas em vendas
de garagem e vizinhos com um sorriso tenso no rosto passavam para se
despedir. Um pavor silencioso se arrastou até o peito de Marilyn e se alojou
ali enquanto ela olhava pela janela do carro em movimento para a vasta
paisagem desértica tomada pelo sol, uma terra sem fronteiras. No segundo dia
de viagem, ela pegou no sono ao lado das caixas e acordou à noite, com o
carro subindo por uma estrada escura, revelando um mar de luzinhas
espalhadas à distância. Por um momento, mal desperta, achou que estivesse
vendo as estrelas. Estavam de cabeça para baixo? O céu tinha caído no chão?
Então sentiu a mão da mãe apertando a sua.
— Olha, querida. Chegamos. A Cidade dos Anjos.
***
***
Quando elas voltam, encontram Woody bêbado. Marilyn sabe disso pelo
modo que a olha ao entrar. E pelas inúmeras garrafas de cerveja à sua volta.
Ele está jogado no sofá, limpando as unhas com o canivete.
— Ondecêstavam?
Sylvie ignora a fala enrolada.
— Tínhamos um compromisso.
— Que tipo de compromisso?
Marilyn sabe que a mãe não vai falar da casa para ele.
— Sua sobrinha teve uma ótima reunião em uma das maiores agências de
talentos da cidade na semana passada — Sylvie diz. — Está a poucos passos
de se tornar uma modelo fotográfica famosa. Estaremos fora do seu caminho
antes que perceba.
Woody ergue as sobrancelhas.
— É mesmo? — ele pergunta enquanto Sylvie recolhe as garrafas vazias.
— Pega mais uma pra mim?
Marilyn vai para o quarto e fecha a porta. Acostumou-se depressa a ler os
sinais de Woody: quando está assim, é porque perdeu dinheiro no jogo.
Momentos depois, a gritaria começa.
— O ralo está entupido, merda! É por causa da porra do cabelo dela!
Marilyn sai do quarto, porque não quer deixar a mãe sozinha para lidar
com a bagunça do banheiro e especialmente com Woody. Mas no momento
em que a vê, Sylvie a dispensa.
Marilyn pega o walkman pra ouvir, numa tentativa de não escutar os
passos pesados do tio, tentando não antecipar seu próximo surto. Ela coloca a
fita que ganhou do cara na rua. “Can’t afford to lose myself”, ele canta num
belo falsete, e ela se esforça ao máximo para focar no livro de história. Lê
sobre um navio holandês que chegou à costa da Virgínia e vendeu os
primeiros escravos à colônia em 1619. Quando um parlamento foi
estabelecido na região, o governo representativo nasceu “no mesmo berço
que a escravidão, e no mesmo ano”. O livro menciona isso com um
distanciamento frio que a deixa furiosa. Marilyn tenta avançar pelas frases
curtas, mas até as dez horas só conseguiu ler vinte páginas do capítulo de
quarenta. Quando vai virar a fita, ouve a porta abrindo e fechando lá
embaixo. Os passos característicos e o chacoalhar das chaves de James.
Marilyn dá uma olhada na sala e vê Woody dormindo no sofá e a porta do
quarto da mãe fechada. Torce para que ela também esteja dormindo e, antes
que possa se segurar, corre para a rua.
— James!
Ele já está no meio do quarteirão, abrindo a porta do Dodge vermelho
amassado. Quando vira para olhá-la, Marilyn se sente tola de repente. Ela
acena de um jeito que lhe parece idiota, só agora percebendo que está de
moletom.
James fica olhando para Marilyn, como se tentasse descobrir o que ela vai
fazer.
Finalmente, vai até ele.
— Aonde você vai? — ela pergunta.
— No mercado.
— Posso ir junto?
Ele dá de ombros e vai destrancar a porta do passageiro para ela.
O silêncio recai sobre eles enquanto James dá a partida. Marilyn olha pela
janela enquanto avançam pelo quarteirão e pegam a Washington em direção à
Vermont. O rádio toca Soul for Real, “You Are On My Mind”. James muda a
estação, passando por fragmentos inquietos de música que entram e saem de
frequência.
— Desculpa. Eu precisava sair de casa — Marilyn diz finalmente.
— Tudo bem — James responde. — Seu tio parece um cara difícil de
conviver — acrescenta um tempo depois.
— É.
James estaciona no Vons, o supermercado mais próximo.
— Enfim, eu entendo essa necessidade de sair. Às vezes o apartamento
parece tão pequeno que literalmente me falta ar.
Como se eu não conseguisse encher os pulmões, não importa quão
profundamente inspire, Marilyn pensa, mas não diz em voz alta.
— Esse carro é seu? — ela pergunta.
— É. Bom, na verdade era da minha mãe. Minha avó usou por um tempo,
mas parou de dirigir. Então acho que é meu agora.
— É ridículo, mas não sei dirigir ainda — Marilyn diz. — Quer dizer, tive
aulas no ano passado, fiz aquela coisa toda de desviar dos cones. Mas a única
vez que peguei o carro com a minha mãe foi um desastre. Acho que ela nem
quer que eu tente. Prefere me levar pra lá e pra cá em todas essas reuniões
idiotas.
James estaciona.
— E você? — ele pergunta. — Quer aprender?
Marilyn dá de ombros.
— Quero. Mas vou para a faculdade no ano que vem, então não importa
muito.
— Onde?
— Meu sonho é Nova York, Columbia. Mas é quase impossível. A NYU
não oferece muitas bolsas ou financiamento estudantil, e preciso disso.
Talvez tente Barnard ou Sarah Lawrence, mas quero algo grande o bastante
para que não me sinta vigiada. Também consigo me ver na Universidade de
Chicago, na Universidade de Boston, na Emerson…
— Então você é inteligente.
Marilyn dá de ombros.
— E pesquisou bastante.
— Meio que decorei o guia de universidades.
— Você tem um?
— Usei o da biblioteca perto da minha antiga casa. — Marilyn faz uma
pausa. — A gente podia ir um dia, se quiser. Quer dizer, a uma biblioteca por
aqui.
— Topo — ele diz, e os dois entram no mercado gelado graças ao ar-
condicionado. James pega uma cesta e vai para a seção de hortifrúti, onde
pega três maçãs.
— Você nem conferiu — Marilyn diz.
— Oi?
— Você precisa testar antes.
Marilyn pega uma maçã, coloca perto do ouvido e pressiona gentilmente a
casca com o dedão.
— Se ouvir um estalo, é porque está crocante. Se parecer mais um ruído
surdo, vai estar uma droga.
Ele ri, mas aperta também.
Marilyn levanta as mãos para tirar uma foto de James ouvindo a maçã no
corredor de hortifrúti. Ela pisca no exato momento em que ele vira em sua
direção.
— Acho que esta está boa — James diz. Então acrescenta: — Você é
bizarra pra caramba, mas eu gosto.
Marilyn sorri.
Na volta, James coloca uma fita. Otis Redding está no meio de uma
música: “burning, from wanting you…”. Quando ele para no farol, joga a
cabeça para trás, o rosto suavizando, como se para permitir que a música
entrasse. Depois de tantas noites ouvindo o que ele ouvia flutuar até ela, vê-lo
assim desarma Marilyn completamente.
— Não quero ir para casa ainda — ela diz baixo, enquanto estacionam em
frente ao prédio.
James hesita por um momento, então sai do carro. Marilyn também sai,
mas percebe que ele ainda está segurando a porta do motorista aberta.
— Vamos ver como você se sai — ele diz.
— Sério?
— Entra!
Marilyn dá uma olhada no apartamento de Woody e nota que a luz do
quarto da mãe felizmente continua apagada. Entra no carro e puxa o assento
para a frente, ajustando os retrovisores como aprendeu na aula. Ela olha para
James, que a observa parecendo achar graça. Ele a lembra de onde colocar o
pé — na embreagem e no freio —, e Marilyn sai com o carro, devagar e
titubeando um pouco a princípio. Ela para muitos metros antes da placa PARE.
James ri. Mas depois de algumas voltas no quarteirão, parece pegar o jeito e
precisa se segurar para não pisar no acelerador até o fim, porque quer voar.
Depois que estaciona com cuidado no meio-fio e desliga o motor, ela vira
para James. E de repente as mãos dele estão no cabelo de Marilyn, seus olhos
escuros queimando. Ela sente o coração batendo na garganta quando ele
prende seu longo cabelo num rabo de cavalo, que puxa gentilmente para
trazer seu rosto mais perto. Agora a boca dele está na dela, e não é um beijo
seguro, educado. É um beijo voraz, cheio de uma necessidade profunda.
James a solta de repente e passa os dedos no rosto dela.
— Merda.
Marilyn respira afobada, desejando que volte a tocá-la.
— Você é minha vizinha… — ele diz. — Não é uma boa ideia.
Sem pensar, Marilyn se inclina para a frente, encostando sua boca na dele,
apoiando a mão em seu peito. James segura sua cintura e a puxa para mais
perto. Ele a vira para que suas costas fiquem apoiadas no assento,
pressionando-a com seu corpo.
— Você tem gosto de mar — James diz.
Marilyn sorri.
— De sal?
— Não exatamente. Tem o gosto da aparência do mar.
Ela o encara. Ele se afasta, apoiando-se contra o próprio assento.
— Não estou atrás de nada sério, tá? Preciso focar no que tenho que fazer,
manter as notas altas, fazer as inscrições pra faculdade e tal.
Marilyn ignora a parte dela que parece estar se afogando e precisa se
segurar desesperadamente em James.
— É, eu também — ela diz. — Estou contando os dias para ir embora.
Ele desce e abre a porta para ela antes de pegar as compras. Os dois andam
em silêncio até os degraus que levam para o apartamento de Woody.
— Boa noite, srta. Mari Mack — ele diz, e o estômago dela se revira.
Marilyn vai para a cama com o corpo ainda dormente. Fica esperando que
James ligue a música, e eventualmente ouve os primeiros acordes de “Ready
or Not”, dos Fugees. Imagina que ele colocou a música só para ela, que ele
pode visualizar seu cabelo esparramado pelo travesseiro enquanto olha para a
noite lá fora, ainda queimando com seu toque. Um helicóptero circula por ali.
Ela levanta para conferir se a porta do quarto está trancada.
Enquanto Lauryn Hill canta “make you want me”, ela volta para debaixo
dos lençóis e deixa a mão escorregar pelo elástico do short, sentindo o
algodão macio da calcinha. James parecia tão seguro de seus movimentos,
como se pudesse ler seu desejo e realizá-lo à perfeição. Marilyn ainda sente
sua boca, suas mãos… Mas, acima de tudo, sente a coisa que acordou dentro
dela, seu corpo vivo, fora de controle, inegavelmente seu. Como se Marilyn
estivesse de fato lá, consciente pela primeira vez de sua própria presença.
Conforme as últimas notas da música tocam, ela arqueja de prazer e, aos
poucos, volta ao mundo real — ouve o som de um cachorro latindo, o
barulho do helicóptero sobrevoando, sente o calor do dia abrandado pela
noite, entrando pela janela e tocando sua pele.
MARILYN ACORDA NA MANHÃ DE SÁBADO ao som de batidas na porta da frente.
Ela rola na cama e pega o short jogado ao seu lado no chão, tirando o cabelo
suado do rosto.
— Ah! — ela exclama, quando abre a porta e vê James à sua frente.
— Então você é dorminhoca? — ele pergunta, com um sorriso.
Marilyn dá uma olhada no relógio e vê que já são onze horas.
— Estou com inveja. Acordei às sete. Quer ir à biblioteca?
Ela olha para ele, distraída com a proximidade de seus corpos.
— À biblioteca? Claro.
— A gente ia dar uma pesquisada em faculdades, lembra?
— Ah, é! Vou só… me deixa só botar uma roupa.
— Tá. Te espero lá embaixo.
Marilyn mal havia notado Woody, plantado em frente ao computador, mas,
quando fecha a porta e vira, percebe que a está observando, com a testa
franzida.
— Desculpa — ela diz baixo, lembrando sua advertência para não
atrapalhar. Como sua mãe já está no trabalho, Marilyn se arruma e sai.
Eles voltam para casa ouvindo música — os Roots cantando “You Got
Me” —, com o vento quente entrando pelas janelas, a cidade emoldurada
pelo céu do poente. Passam por lojas de bebidas, padarias, manicures, jovens
andando de bicicleta, crianças de mãos dadas com a mãe, homens com
chapéu de caubói fumando, mulheres com brinco de argola e salto alto saindo
com cuidado do carro.
— Ela é cortante — James diz de repente. — O jeito como escreve. Essa é
a palavra certa.
— Exato! — Marilyn concorda. — É esse tipo de foto que quero tirar, a
mesma imagem das pessoas que ela cria com as palavras. Nada exagerado ou
bonito demais. Quero que minhas fotos capturem o modo como algo é bonito
porque é humano, mesmo que esteja tudo uma bagunça.
James para no farol e olha para Marilyn.
— Ela consegue manter a frieza mesmo no ardor do momento. É como se a
gente estivesse em boas mãos. Como se pudesse confiar nela.
Marilyn sente a ponta dos dedos formigando — literalmente — de desejo
de tocá-lo. Ela enfia as mãos debaixo das coxas, para evitar a tentação,
enquanto James estaciona na Gramercy Place. Ele para o carro na frente do
1814, mas não desliga o motor.
— Acho que fiquei com a UCLA na cabeça porque minha mãe me levou
para visitar o campus quando eu estava no primeiro ano — ele acaba dizendo.
— Ela disse que eu iria para a faculdade quando ficasse mais velho e poderia
ser o que quisesse… É esquisito que finalmente tenha chegado a hora. Me faz
querer que ela estivesse aqui para ver.
Marilyn sente o peso das palavras, o jeito como mudam o clima.
— Quando me olhava, parecia que ela via algo incrível. Às vezes sinto que
ainda me agarro à imagem que ela tinha de mim, mas é tudo tão confuso
agora. Quanto mais distante minha mãe fica, mais longe fica essa imagem, e
eu mesmo.
Ele vira, olhando pela janela para a árvore com flores roxas do outro lado
da rua.
— Lembro de uma vez que me meti numa confusão na escola. Ela me
disse: “Você não pode cometer erros, James. Algumas pessoas herdam um
futuro, mas você vai ter que fazer o seu”. Mesmo na época, ainda pequeno,
eu sabia o que queria dizer… Por isso tento ser bom e fazer tudo certo, para
que, se de alguma forma minha mãe estiver me vendo, possa ficar orgulhosa.
— Ela está muito orgulhosa, James. Tem que estar.
Ele assente, e é como se estivesse botando para dentro a onda de emoções
que deixou escapar. Ele abre a porta para sair do carro, então vira de novo
para Marilyn.
— Obrigado — ele diz. — Por ouvir.
Aos ouvidos dela, aquilo é música.
— Vamos estudar juntos de novo no próximo fim de semana? — ele
pergunta.
— Claro. — Ela sorri, torcendo para que o próximo sábado chegue logo.
O dia dos exames para a faculdade, 24 de outubro, traz o alívio de uma das
primeiras manhãs nubladas da estação. As nuvens baixas e o ar fresco
acalmam os nervos enquanto Marilyn e James dirigem para a escola dela,
com lápis número dois apontados na mochila, “Can’t Nobody Hold Me
Down” tocando no rádio para dar ânimo e duas bananas na mão de Marilyn
(ela leu que faziam bem para o cérebro). Antes que assumam seus lugares na
sala, James aperta a mão dela. Para Marilyn, é como um choque elétrico. Seu
corpo ainda está formigando quando encontra sua mesa, agradecida pelo fato
de James estar sentado atrás, porque assim ela não corre o risco de se pegar
olhando para sua nuca perfeita (ela ama a curva entre sua cabeça e seus
ombros, a pele exposta onde o cabelo termina). Em vez disso, Marilyn usa a
energia do toque dele, ainda quente dentro dela, para focar; sente-se aguçada.
Quando sai, quatro horas depois, Marilyn encontra James esperando na
porta.
— Como foi? — ela pergunta.
— Não sei, meu cérebro derreteu.
Mas, pela expressão dele, Marilyn sabe que está confiante. Ela sorri.
— Quer comer alguma coisa? — James pergunta.
Ela quer. (Iria a qualquer lugar com ele.)
As nuvens se dispersaram enquanto faziam a prova, revelando o céu azul
bem californiano e a luz dourada. Quando entram no estacionamento cheio
do In-N-Out, Marilyn sente pistas do outono no leve toque do sol em sua
pele, no cheiro de folhas misturado à carne grelhada. O lugar está lotado, com
gente apinhada nas mesas externas. James vai comprar hambúrgueres
enquanto Marilyn guarda os últimos lugares livres. Ela levanta as mãos para
tirar uma foto mental de uma mulher num hijab azul com estampa de luas e
estrelas segurando uma porção de batata frita, ao lado de um garoto de olhos
arregalados olhando para o céu. Grupos de adolescentes sonhadores e suados
estão sentados no gramado do parque do outro lado da rua, comendo seus
hambúrgueres sob as palmeiras parecidas com as desenhadas em seus copos
descartáveis. Marilyn tira outra foto mental, agora de uma garota de trança
girando sozinha, envolvida nos próprios braços. Ela pensa consigo mesma
que o título da foto poderia ser “Abraçando a si mesmo e aprendendo a
dançar”.
— Queria poder ver as fotos na sua cabeça, Mari Mack — James diz,
aparecendo ao lado dela com a comida.
— Um dia — ela diz, e sorri.
Quando Angie finalmente levantou e foi para casa, Marilyn já estava lá, de
volta do turno de sábado.
— Onde você estava? — ela perguntou.
— Jogando futebol no parque. Com Sam.
Angie se lembrou do olhar de Marilyn quando depilara as pernas e decidiu
não contar sobre o beijo.
Mais tarde, quando Angie estava deitada sobre as cobertas repassando
mentalmente os detalhes daquela tarde — o gosto dele, de ar limpo da
floresta, seu hálito quente em sua bochecha —, Marilyn bateu na porta,
entrou e sentou na cama.
— Você gosta desse Sam? — ela perguntou.
— Gosto.
Angie ficou surpresa, como se de alguma forma a mãe conseguisse
enxergar dentro dela.
— E do que você gosta nele?
Ela pensou a respeito.
— Nós combinamos.
Marilyn olhou para ela, com as sobrancelhas erguidas em curiosidade.
— Temos a mesma altura. Somos rápidos — Angie explicou.
Ela sabia que era mais que aquilo, mas não conseguia encontrar as palavras
certas. Finalmente, contou para a mãe:
— A gente se beijou. — E depois de uma pausa: — Nossos lábios se
encaixam.
Marilyn pareceu arrasada.
— Te amo tanto — ela disse.
Angie ficou com medo de que a mãe chorasse, mas ela abriu um sorriso.
— Temos que comemorar. Seu primeiro beijo!
Angie pulou da cama e as duas foram correndo tomar sorvete, porque
estava perto da hora de fechar. Ela pegou uma casquinha com sorvete de
chiclete rosa, seu favorito desde pequena, e a mãe escolheu menta com
chocolate. Comeram juntas no carro, trocando colheradas. Deixaram o ar
ligado e abriram as janelas. Embora fosse outono, o cheiro era de grama
fresca. Foi uma noite perfeita.
Com duas horas de viagem, uma onda de ar quente atinge Angie quando
Sam abre a janela, levanta os óculos escuros e esfrega os olhos. Ela observa
os picos vermelhos que se erguem à distância e lembra que foi procurar Sam
no parque depois do primeiro beijo. Eles não tinham o número de telefone
um do outro, então Angie passara inúmeros sábados sentada no balanço, com
o nariz cada vez mais gelado, esperando que aparecesse.
Semanas depois, ela finalmente o encontrou aninhado atrás de uma árvore
com uma garota que parecia mais velha, a julgar pelo corpo desenvolvido
visível mesmo por baixo do moletom, com o cabelo macio caindo sobre os
ombros. Sam ergueu os olhos; Angie achou que ele a viu do outro lado do
campo antes que ela virasse e saísse correndo.
Para, ela disse para si mesma, enxugando as lágrimas. Para. E ela parou.
Não chorou mais. Aos treze, já era versada na arte do autocontrole, colocando
as emoções indesejadas em caixinhas e escondendo-as bem fundo, onde não
podia alcançar.
***
Sam não reapareceu em sua vida até o inverno do nono ano. Na superfície,
a transição de Angie para uma nova escola tinha sido tranquila: ela tinha
entrado para o time de futebol e se aproximado de duas outras novatas no
time — Mia Padilla, uma morena muito bonita, filha do vice-prefeito, e Lana
McPherson, lésbica e destemida (como ela mesma se apresentava, tal qual
uma super-heroína), com pele alva e cheia de sardas. Angie fazia festas do
pijama com elas aos sábados, terminava a lição de casa nas tardes de
domingo e ia para a escola na segunda de manhã com uma roupa
cuidadosamente escolhida e um sorriso no rosto. Ela era uma das poucas
alunas negras da escola (a população de Albuquerque se dividia entre
hispânica e caucasiana), mas se encaixava bem e podia até ser considerada
popular. Então não sabia dizer por que sentia o peito apertar e a respiração
acelerar com tanta frequência.
Angie e suas amigas tinham conseguido convites para uma festa dos alunos
mais velhos na noite de Ano-Novo, organizada por uma das goleiras. Em
determinado momento, Lana estava ficando com Sandy Houston no banco de
trás do carro (sem que o namorado de Sandy soubesse) e Mia estava
brincando de acertar uma bolinha em copos de cerveja. Angie tinha
participado do jogo por um tempo, mas não queria acabar bêbada — tinha
prometido à mãe que não ia tomar nada, então cada gole a fazia sentir uma
pontada de culpa. Meio tonta, ela saiu na noite fria de janeiro, agradecida
pelo casaco vermelho quentinho que usava sempre, como uma armadura.
No canto do jardim, havia um choupo antigo. Na infância, Angie era ótima
em subir em árvores. Ela se pendurou e foi o mais alto que conseguiu. Ficou
observando a própria respiração condensando no ar, as poucas folhas secas e
marrons nos galhos, o velho balanço reluzindo ao luar. Ficou pensando nas
pessoas que haviam construído aquele lugar — era uma dessas casas
históricas de adobe que deviam ter mais de cem anos.
— Ei!
Angie olhou para baixo e encontrou um garoto alto e magro lá embaixo.
Ela levantou a mão para acenar, mas ele já estava subindo meio desajeitado
até o galho mais baixo.
— Lembra de mim?
Claro que ela lembrava. O rosto que a olhava era de Sam. Uma risada
surpresa escapou de seus lábios.
— Quer vir pra cá? — ele perguntou.
— Não.
— Tá. Acho que é agora que eu arrisco minha vida por você então.
Angie ficou só olhando enquanto ele subia até o galho logo abaixo dela.
— O que está fazendo aqui? — ela perguntou.
— A meia-irmã de um amigo está no seu time. Jana.
— Sei… Mas o que está fazendo aqui nesta árvore?
Sam deu de ombros.
— Vim ver você.
— Não está congelando?
Ele estava só com um moletom.
— Estou.
Sam subiu até o último galho, espremendo-se ao lado dela.
— Quer me aquecer?
Angie levantou as sobrancelhas, mas quando ele estendeu a mão ela a
pegou, esfregando-a.
— Você ainda joga futebol? — ela perguntou.
— Jogo. No El Dorado.
Angie assentiu. Ficaram em silêncio por um longo momento até que Sam
disse:
— Vamos jogar um jogo?
— Hum… tá.
— É o jogo dos opostos. Meu pai faz o tempo todo nas aulas de escrita
criativa.
— Certo.
— Diga alguma coisa. Qualquer coisa.
— Sei lá.
— Pode ser algo que esteja vendo.
— A lua.
— Tá, então eu tenho que falar algo que é o contrário da lua. Tipo um
pedregulho. Agora você fala o oposto de um pedregulho.
— Uma montanha?
— Isso. E o oposto de uma montanha é uma cratera — Sam diz.
— O oposto de uma cratera é um cometa — Angie continua.
— O oposto de um cometa é… o céu noturno, mas sem as estrelas. Só as
partes escuras no meio.
Angie riu.
— Tá. O oposto da parte escura da noite… tem que ser a luz do sol.
— O oposto da luz do sol é… o fundo do oceano.
— Boa. O oposto do fundo do oceano é a sujeira no chão.
— E o oposto da sujeira é chocolate.
— O oposto de chocolate é couve-de-bruxelas — Angie diz.
— O oposto de couve-de-bruxelas é… hum, algo gostoso. — Sam se
inclina na direção de Angie, tentando fazer seus lábios se tocarem, então
sussurra: — Um beijo.
— O oposto de couve-de-bruxelas não é um beijo. Isso nem faz sentido!
— Tem razão. Eu estava procurando uma desculpa.
Angie sorri.
— Chorei por sua causa, sabia? Quando vi você no parque com aquela
garota.
— Eu era um idiota.
— É melhor que não me magoe de novo — ela brincou, afastando-se.
— Não vou magoar.
Ele pareceu tão honesto que ela ficou surpresa, quase perdendo o equilíbrio
no galho.
*
Além de seu namorado, Sam se tornou seu melhor amigo. Angie descobriu
que todas as perguntas incômodas, logo abaixo da superfície, desapareciam
quando estava com ele. Sam dizia que ela era linda, perfeita, e adorava
dormir à tarde com as pernas enlaçando o corpo dela e a cabeça em seu
pescoço. Tocava os discos do pai para ela, lia trechos de Na estrada, poemas
de Pablo Neruda e John Ashbery. Contou sobre ver seu pai ler para plateias
escassas em saraus, sobre visitar o México com a mãe quando era pequeno,
sobre seu primo mais velho e descolado que morava em Los Angeles, sobre
como sofreu com o divórcio dos pais.
Quando ele perguntou, no começo do relacionamento, sobre o pai dela,
Angie disse a mesma coisa que dizia para todo mundo:
— Não tenho pai. Ele morreu num acidente de carro antes de eu nascer.
— Sinto muito — Sam dissera.
— Tudo bem — ela respondera. E estava. Na maior parte do tempo. Mais
ou menos. Talvez.
AGORA ANGIE ESTÁ A 333 QUILÔMETROS DA MÃE, o mais distante que já esteve
na vida. E continua seguindo em frente. Mal daria para adivinhar a população
enorme da Terra aqui no meio do deserto, com nada além de alguns carros
dispersos passando, um outdoor anunciando um posto de comércio indígena,
uma extensão de terra tão vasta e plana que parece que você poderia
simplesmente cair ao fim do horizonte, interrompido apenas pelas montanhas
ao longe, que mais parecem uma miragem.
Sam se inclina sobre Angie, pegando um CD do porta-luvas. Angie sente
um friozinho na barriga ao sentir seu cheiro — roupa limpa, desodorante Old
Spice e mais alguma coisa indefinível que o caracteriza.
Sam mexe no som. Em seguida, ela reconhece os acordes iniciais de
“Maps”, dos Yeah Yeah Yeahs. A música a faz voltar no tempo, ao
apartamento do pai de Sam, que mais parecia um corredor comprido e
apertado, com a tinta branca descascando e lanterninhas de papel. Angie
esquentando pizza congelada e revirando a geladeira em busca de
ingredientes inusitados; Sam rindo de uma de suas criações fracassadas:
framboesa com azeitona. Os dois seminus no sofá sob a manta turquesa vinda
do México, assistindo a Drive; enrolados no lençol azul-marinho da cama,
com a voz de Karen O ao fundo de suas descobertas. Não podia ser
coincidência. Ele devia ter feito de propósito. Ou tinha esquecido?
Angie vira para ele quando Karen O grita “Wait!”, mas Sam continua
escondido atrás das lentes, focado na estrada.
Angie tinha feito aquela pergunta pela última vez muito tempo antes,
quando estava no oitavo ano. Obtivera informações ligeiramente diferentes
daquela vez:
— Ele adorava música. Escrevia muito bem. A praia era como um
santuário para ele…
Então tinham vindo as lágrimas. Há um bom tempo Angie tinha concluído
que falar sobre o pai era doloroso para sua mãe. Não deveria ter tocado no
assunto, pensou consigo mesma.
Mas não conseguia parar de se perguntar por que a mãe nunca tinha lhe
mostrado a foto. Deitada na cama aquela noite, Angie se lembrou de um dia
na pré-escola, depois que Marilyn tinha acompanhado uma viagem a uma
fazenda de cabras.
— Você é adotada? Não parece com sua mãe — Jess, uma amiga,
perguntara.
Por um momento de pânico, Angie se perguntou se aquilo era verdade.
Antes que pudesse responder, Jess prosseguiu:
— De onde você é? Da África? Minha irmã tem uma amiga que veio da
Etiópia.
Jess apertou os lábios em seguida, como se sentisse orgulho de saber tudo
aquilo. Era uma garota precoce que usava roupas que lembravam os trajes da
própria mãe em miniatura.
— Não sou adotada — Angie disse afinal, controlando a vontade de puxar
o cabelo comprido de Jess.
Angie correu até a mãe assim que a aula terminou.
— Oi, querida! — Marilyn exclamou enquanto Angie pulava em seus
braços, apertando forte.
— Queria ser parecida com você — Angie disse, enquanto a mãe punha o
cinto de segurança nela.
Marilyn fez uma pausa antes de finalmente dizer:
— Você é.
Ela pegou um espelho na bolsa e disse à filha que imitasse um dinossauro,
fazendo o mesmo. Com a mandíbula inferior para a frente e os olhos
esbugalhados, elas pareciam mesmo idênticas. Angie morreu de rir.
— Além de sermos ótimos dinossauros — Marilyn disse em seguida —,
temos o mesmo formato dos olhos e o mesmo bico de viúva, esse V na linha
do cabelo. Mas você também é parecida com seu pai.
Naquele dia, Marilyn pegou na biblioteca pública os livros As nossas cores
e Negro, branco, tanto faz! para explicar que o pai de Angie era afro-
americano, o que significava que ela também era. Era algo lindo e especial,
Marilyn disse, de que ela devia se orgulhar. Na semana seguinte, comprou
uma Barbie negra para a filha — um presente raro, já que em geral não
tinham dinheiro para brinquedos novos.
Mas a pergunta de Jess ainda a deixava insegura. Diferente dos outros
medos, sobre os quais podia contar à mãe para que a acalmasse, aquilo era
algo que não conseguia botar em palavras — uma ansiedade que aprendeu a
guardar nos recantos mais profundos de si. Às vezes, deitada na cama ou
olhando pela janela no caminho para a escola, Angie tentava imaginar um pai
parecido com ela, mas não conseguia — ele ficava embaçado, entrando em
foco apenas quando assumia as feições do pai em seu programa favorito, As
visões da Raven.
Marilyn nunca falava sobre o assunto. Só dava a mesma explicação, de
novo e de novo: ele tinha morrido em um acidente de carro, amava Angie e
tinha orgulho dela, porque a observava do céu. (Então a mãe acreditava em
céu? Elas não iam à igreja.)
— Ele me deu você, o melhor presente de todos — Marilyn dizia, e Angie
aprendeu que aquela afirmação era como um laço num pacote que não podia
ser aberto.
Uma vez, Angie tentou falar com o pai, quando estava no primeiro ano do
fundamental e fora convidada a dormir na casa de sua amiga Megan, que era
viciada num daqueles tabuleiros usados para se comunicar com os mortos.
— Você tem que pensar em alguém que já morreu — Megan explicou. —
Fecha os olhos e pergunta alguma coisa.
— Pai? — Angie chamou, ainda que envergonhada diante da amiga. —
Você está aí?
Um calafrio percorreu seu corpo, quando a seta começou a se mover,
parando sobre o SIM.
— Uau! — Megan exclamou. — Pergunta mais alguma coisa.
Angie não sabia bem o que dizer.
— Hum… Você sente falta da mamãe?
— Não — Megan interrompeu. — Algo tipo… como ele morreu.
Angie franziu a testa, mas obedeceu.
— Como você morreu?
Ela olhou para o tabuleiro, sobre o qual a seta se movia em círculos. Seria
só Megan mexendo?
— Nossa! — Megan gritou. — Tem um espírito maligno tentando sair!
— Ele não é maligno — Angie exclamou. — Você está roubando!
Ela saiu correndo do quarto e pediu que a mãe de Megan ligasse para sua
casa. Queria ir embora.
Naquela noite, Angie implorou a Marilyn que comprasse um tabuleiro para
ela. Ela pediu e pediu, até que ganhou um de aniversário dois meses depois.
Então foi sozinha para o quarto, com o corpinho inclinado sobre o tabuleiro.
— Pai? — ela sussurrou. — Você está aí?
Angie esperou em silêncio, mas nada aconteceu.
— Pai? Fala comigo.
Pensando que talvez ele pudesse estar dormindo, Angie decidiu tentar no
dia seguinte. Mas, de novo, seu pai não apareceu. Ela acabou enfiando o
tabuleiro no fundo do armário, e se esforçou ao máximo para tirar o pai da
cabeça.
Mas por que minha mãe não me mostrou algo assim?, Angie se perguntou
de novo, deitada na cama olhando para a foto dos pais na praia. Teria
ajudado. Angie parecia de fato filha dos dois.
Ela abriu um relógio populacional na internet e ficou vendo o número de
pessoas no planeta crescer mais rápido que os segundos passando: 7 435 678
912… 7 435 678 914… Quando seus olhos começaram a fechar, o número
havia aumentado em mais de 10 345 — numa única hora que tinha ficado sob
o cobertor no quarto da Los Alamos Avenue.
Assim que a mãe saiu para o trabalho, Angie foi até a gaveta atrás do
envelope de papel pardo. Seu coração acelerou ao pegar a faca de manteiga
que tinha levado para o quarto e deslizá-la sob o lacre. A cola devia ter
sofrido a ação do tempo, porque ele abriu fácil.
Com cuidado, ela primeiro tirou de lá uma fita com uma etiqueta velha,
começando a descolar: PARA A SRTA. MARI MACK, COM AMOR, JAMES.
Depois pegou um maço de papéis e fotos, em cima do qual estava uma
folha tirada de um caderno, com “eu te amo” escrito a caneta numa letra de
menino, desbotando. Embaixo, havia um folheto gasto da Universidade
Columbia. A mãe tinha desejado estudar em Columbia? Angie não fazia
ideia.
Sob o folheto estava uma série de fotos — em branco e preto, de vinte
centímetros por vinte e cinco, que pareciam ter sido reveladas de forma
caseira. A primeira era do pai de pé em um píer. Tinha sido tirada de longe, e
ele estava com os braços esticados, parecendo pequeno em comparação ao
mar, como se suspenso no ar de alguma maneira.
Depois vinha a imagem de uma mulher mais velha mexendo em uma
panela no fogão, enquanto o pai de Angie observava do parapeito. Podia ser a
bisavó dela?
O pai deitado na cama, em meio a lençóis do Meu Querido Pônei.
Dormindo, ou era o que parecia. Uma luz fraca entrava pela janela, batendo
em seu rosto exposto.
Então um garoto, com onze ou doze anos. Parecia uma versão mais nova
do pai, ela pensou, com bochechas mais redondinhas. Ele tinha um irmão?
Onde estaria agora? Por que a mãe nunca havia falado a respeito? O garoto
estava sentado nos degraus de um predinho, segurando um picolé e sorrindo
para algo ou alguém à esquerda da câmera. Os degraus se estendiam atrás
dele numa linha perfeita, saindo de foco aos poucos. Apenas seu rosto bem
definido. Ela amou aquele rosto.
Na última foto, o pai estava deitado no sofá, sem camisa, com as pernas
magrelas saindo do short e os pés passando do descanso de braço. O mesmo
garoto — agora ela tinha certeza de que era o irmão dele — estava aos seus
pés, tentando tirar o tênis do mais velho. Os dois olhavam para a câmera,
como se surpreendidos por ela.
Embora Marilyn não aparecesse em nenhuma foto, Angie sentiu que estava
olhando para ela, através das lentes. As fotos eram a maneira como sua mãe
via o mundo, e Angie se apaixonou por aquela versão dela escondida atrás da
câmera.
Se não fosse por sua causa, Angie refletiu, a mãe teria se recuperado da
perda do pai? Talvez tivesse ido para Columbia. Talvez tivesse se tornado
fotógrafa, expondo suas fotos nas galerias de Los Angeles e Nova York. Ou
trabalhasse para revistas. Viajando pelo mundo, capturando momentos,
sentindo-se viva. Se não estivesse presa comigo, Angie pensou, talvez tivesse
se tornado quem deveria ser.
NUVENS SE ACUMULAM NO CÉU ABERTO, lançando sombras no chão. Quando
ouve os primeiros acordes de James Vincent McMorrow cantando
“Cavalier”, Angie olha para Sam, cuja pele brilha ao sol do meio-dia. Ela
quer esticar a mão e tocá-lo. Quer viajar no tempo e trazer de volta o garoto
que conhecia, voltar a ser a garota que era com ele.
— É o CD que eu te dei? — ela finalmente pergunta.
— É.
Por um momento, parece que a conversa vai terminar aí, mas Angie insiste.
— Por que colocou?
— Não sei. Quer que eu desligue?
— Não.
A música preenche o silêncio — “I remember my first love…”. Um trem de
carga passa nos trilhos que acompanham a estrada, tons suaves e
empoeirados de azul, vermelho e marrom balançando contra a paisagem. Ela
se sente perturbada.
— Sei que é esquisito, mas temos mais oito horas até Los Angeles, e
depois mais de uma semana se vai me deixar ficar no seu primo. Então…
acho que precisamos conversar.
Sam não desvia os olhos da estrada, mas finalmente fala, mordaz:
— Estou num carro com a única garota que já amei, um ano depois que ela
decidiu que não me amava mais. Desculpa se não sei o que dizer. Um tempão
atrás eu prometi que você poderia contar comigo, independente de qualquer
coisa. E mantenho minhas promessas, pro bem ou pro mal, então aqui
estamos. Mas se vai ter conversa, é por sua conta.
Ele está certo. Angie sabe disso. Ela quer que as palavras — quaisquer
palavras — quebrem o silêncio mais pesado que a distância, que as nuvens
escuras. Mas elas lhe escapam, deixando apenas o fôlego curto, a consciência
de sua imperfeição.
— Desculpa. Eu tenho problemas.
— Todo mundo tem, Angie. Isso não significa nada.
A estrada continua a se desenrolar à sua frente, esticando-se incerta. No
horizonte, gotas de chuva evaporam no ar do deserto antes de chegar ao chão.
Angie não quer pensar na última noite que passou no apartamento de Sam,
um ano atrás. Mas não consegue evitar.
Ela não sabia como sentir saudades do pai, mas a dor da falta de Sam,
presente quando ia para a cama à noite, tornou-se quase uma âncora. Quando
ia correr de manhãzinha, Angie às vezes acabava no parque em que tinham se
conhecido, com as mãos nos joelhos, sem fôlego, olhando para o apartamento
3D, tentando não imaginá-lo dormindo lá dentro, seu peito subindo e
descendo. Tinha pintado e repintado a memória dele tantas vezes que não
conseguia mais ver o que de fato havia lá. Só camadas grossas de sentimento,
uma por cima da outra, em cores indecifráveis.
Angie sobreviveu ao ano escolar. Suas notas continuaram altas. Ela evitava
as perguntas da mãe sobre faculdade. Refugiou-se em Mia, Lana e na nova
namorada dela, Abby. Passavam os sábados na casa de Mia, fazendo
máscaras de abacate, assando brownies, nadando peladas na piscina, vendo
filmes antigos — Dez coisas que eu odeio em você, Quase famosos, Romeu +
Julieta. Angie ria com elas; saíam para dançar; seguia o fluxo. Mas evitava
falar sobre o término: Acho que a gente só se distanciou com o tempo. E
nunca falava sobre o pai ou as fotografias que tinha devolvido à gaveta de
Marilyn.
Com frequência, Angie sentia o fantasma do pai ao seu lado, fora de
alcance, na sombra, sem se distinguir. Indagava-se sobre seus outros
fantasmas, mas, por mais que tentasse, não conseguia visualizar o rosto deles
— os ancestrais invisíveis continuavam embaçados, incertos, assombrando-a
com histórias que não conhecia.
A professora de inglês passou um trabalho sobre imigração depois que
leram Um fio de esperança, de Henry Roth. Tinham que entrevistar um
membro da família sobre como seus ancestrais tinham chegado à América e
depois recriar a jornada ficcionalmente. O primeiro pensamento de Angie foi
que não se podia chamar de “imigração” ser sequestrado e vendido como
escravo, como provavelmente tinha acontecido com os ancestrais de seu pai.
Desejou poder falar com o fantasma dele a respeito, mas é claro que era
impossível.
Angie não queria entrevistar a mãe, que ficava tensa à mera menção de sua
família. O pai dela tinha morrido quando era pequena, e Angie nunca havia
conhecido a avó, que era testemunha de Jeová. Ela morava com o marido
num complexo religioso na República Dominicana, seguindo a vontade de
Deus e fazendo trabalho missionário. Desde que podia lembrar, Angie
recebia um cartão de aniversário dela com uma nota de cinco dólares dentro.
E de vez em quando a mãe recebia uma carta com uma letra rebuscada.
Marilyn a separava, segurando o envelope pelas pontinhas, como se pudesse
queimar seus dedos. Uma vez, Angie surpreendera a mãe lendo uma daquelas
cartas; nunca tinha visto aquela expressão em seu rosto, como a de uma
criança abandonada.
A garota decidiu fazer uma pesquisa para o trabalho, chegando a acessar
um site que rastreava antepassados. Sabia que seu pai se chamava James Bell
e que a mãe dele, Angela, tinha morrido quando ainda era pequeno, mas não
era o suficiente para encontrar alguma coisa. Perguntou a Marilyn o nome do
avô, mas ela não sabia. Só que seus bisavós eram Rose e Alan Jones.
— Onde eles estão agora? — Angie perguntou.
— Não tenho ideia. — Ainda que Marilyn não estivesse chorando, o que
era raro quando se tratava daquele assunto, Angie sentia a tensão em sua voz,
via que segurava a faca que usava para cortar o coentro com mais força. —
Nem sei se estão vivos. Não mantivemos contato.
Quando Marilyn virou, a tigela com o ceviche quase pronto escorregou de
suas mãos e se estilhaçou no chão.
Angie ajudou a limpar a bagunça, então voltou para o quarto enquanto
Marilyn pedia uma pizza para substituir o jantar arruinado. Quando a garota
digitou o nome de Rose na árvore genealógica on-line, a resposta foi apenas:
“Ainda não há informações sobre Rose Jones. Para ampliar sua busca, tente
adicionar detalhes ao perfil”. O mesmo aconteceu com Alan. Por outro lado,
a parte da família da mãe meio que se completou sozinha. Angie inseriu o
nome de Marilyn, Sylvie e Patrick, que era seu avô, além das datas e locais
de nascimento. O site encontrou os registros de falecimento de Patrick e
indicou quem eram seus pais, também nascidos em Amarillo, Texas, e os pais
de seus pais — ele da Georgia e ela do Mississippi. Gerações de sulistas
brancos se revelaram até que ela chegou ao avô de seu tataravô, William
Isaac Cheney, um general do septuagésimo quarto regimento da milícia
georgiana durante a Guerra Civil americana. Angie sentiu-se tonta. De um
lado, ela quase certamente tinha antepassados que foram escravos; do outro,
antepassados que haviam lutado contra o fim da escravidão. Desligou o
computador e apoiou a cabeça nos joelhos.
Mais tarde, leu alguns artigos na Wikipédia sobre a chegada dos peregrinos
puritanos e escreveu qualquer bobagem sobre o Mayflower. Em geral era uma
boa aluna, mas recebeu uma nota mediana e um comentário da professora
branca: Vá mais fundo. Angie amassou o trabalho e jogou no lixo.
Ela corria. Amava correr. Amava como a permitia se transformar num
borrão. Ganhou competições, mas não importava. A única coisa que
importava era como se sentia quando punha o tênis e os fones de ouvido e
música alta — “Backseat Freestyle”, “Black Skinhead”, “16 Shots” —, a
batida tomando conta de seu corpo até que quase não fosse mais ela mesma.
Compreendia a raiva em seus músculos, em seus pulmões, mas nunca se
permitia senti-la fora do confinamento das músicas que a impulsionavam a ir
mais longe, mais rápido, com os pés batendo contra o pavimento.
Quando chegou ao fim do ano escolar, com dezessete anos, faltando só
mais um para se formar, era como se houvesse uma ladeira sob seus pés.
ANGIE VÊ A PLACA NA ESTRADA: WINSLOW, 37 KM.
— Olha — ela diz para Sam, tentando manter a trégua, então começa a
cantar “Take It Easy”, dos Eagles, totalmente fora de tom.
Ele dá um sorrisinho a contragosto.
— Vamos parar? — Angie pede.
Sam dá de ombros.
— Por favor!
— Tá bom, tá bom.
Sam pega a saída e logo estão dirigindo pelas ruas da cidadezinha. WISLOW,
ARIZONA está pintado na lateral de um prédio de tijolos. Ao lado da placa de
PARE há uma escultura de um homem apoiado contra um poste segurando um
cartaz que diz STANDING ON A CORNER, como a música.
— Acho que é aí — Sam diz, estacionando.
Angie sai do carro, se apoia no homem e faz o gesto de paz e amor.
— Segura aí — Sam diz antes de tirar uma foto com o celular.
— Agora você! — Angie insiste.
Sam faz que não com a cabeça.
— Uma juntos, então? — ela pergunta.
Sam revira os olhos, mas vai até o lado de Angie. Ela pega o celular dele e
tira uma foto dos dois, um de cada lado da escultura.
Eles vão até a lojinha do outro lado da rua. Enquanto esperam na fila,
Angie espia por cima do ombro de Sam e o pega olhando para a foto dos
dois. Ele compra uma garrafa de água e ela compra um postal da cidade —
SAUDAÇÕES DE WISLOW —, pensando em mandá-lo para a mãe.
Marilyn. O estômago de Angie se contorce ao pensar nela. Deve estar
chegando do trabalho agora para descobrir que a filha foi embora. Angie pega
o celular na mochila e olha para a tela preta. Desligou-o pela manhã, porque
não queria que a mãe ligasse, não queria ser encontrada.
Pensa em ligá-lo e telefonar para a mãe. Mas não pode. Sabe que não pode.
Não pode ouvir a voz embargada da mãe, a maneira como diria “Angie, onde
você está?”. E depois: “Fica aí, vou buscar você”. Angie sabe (sem nem
pensar a respeito) que, se ouvir a voz da mãe, não vai ser capaz de seguir em
frente.
Ela conseguiu suspender a realidade de sua decisão de partir, da separação
da mãe e da dor que vai causar. Permitiu-se pensar apenas na versão de
Marilyn da foto, na versão de Marilyn por quem se apaixonou, na versão de
Marilyn que está indo procurar — na versão de Marilyn que, no fundo, Angie
acredita que pode trazer de volta à vida.
NO PRIMEIRO DIA DAS FÉRIAS DE VERÃO, Marilyn quis levar a filha para jantar
fora, para comemorar o fim do ano letivo.
— Vamos à lanchonete — Angie sugeriu.
— Não quer ir num lugar diferente?
— Você disse que eu podia escolher! Sabia o que eu ia querer.
Sempre que havia motivo para comemorar — aniversários, competições,
boletins com notas altas — e Angie podia escolher o restaurante, iam à 66
Diner, cujo slogan era roubado da música gravada por Nat King Cole sobre a
Rota 66. Isso porque ela queria ver o gerente, Manny Martinez, e garantir que
sua mãe o visse também.
Ao atravessar as portas, foram recebidas pelo vento frio do ar-
condicionado, pelo cheiro de hambúrguer com batata frita e por Manny,
inclinado sobre o mapa de mesas.
— Minhas meninas! — ele cumprimentou, aludindo à música deles, “My
Girl”.
Angie sorriu.
— Oi, Manny.
— Você parece mais velha toda vez que te vejo. Precisam vir mais.
Marilyn ofereceu um sorriso conciliador, com a cabeça balançando como
acontecia quando estava nervosa e parecia uma menina. Angie pensou em
como parecia jovem naquele momento e, por um segundo, achou ter visto de
relance a garota que havia sido, aquela na foto com seu pai.
— Quase nada mudou por aqui, como podem ver — Manny disse. — Só
tenho um pouco mais disso — ele bateu na barriga, que não era grande — e
um pouco menos disso — concluiu, apontando para as leves entradas na
cabeça. Ele sempre fazia aquele mesmo comentário. Mas seu rosto bonito,
seus olhos castanhos bondosos e seu sorriso fácil se mantinham, além da
qualidade indefinível que fazia com que, quando criança, Angie desejasse
que a mãe se apaixonasse por ele.
Depois do primeiro “não encontro”, elas saíram com Manny por mais
algumas semanas — para ver um filme, passear de bonde, jogar boliche.
Angie via a mãe começando a se abrir, rindo, sendo boba e leviana — uma
versão dela que só aparecia quando estavam apenas as duas em casa. Então
Marilyn o convidou para jantar. Angie ajudou a mãe a ralar o queijo das
enchiladas, amassar o abacate, fazer a massa da torta de morango.
Ele chegou vinte minutos adiantado, com uma caixa de lápis de cor nova
para Angie, um buquê de lilases — as flores preferidas de Marilyn — e uma
garrafa de vinho tinto. Além de sua antiga babá, Gina, ou de alguns amigos
de Angie da escola, elas nunca recebiam visita. Enquanto Marilyn mostrava a
casa, seu corpo parecia tenso e sua voz, formal. Quando ele parou em frente à
foto do mar pendurada no corredor, ela pareceu desesperada para seguir em
frente, mexendo no cabelo como fazia quando estava nervosa. O céu na foto
estava cheio de nuvens cinzentas e carregadas. Havia um maiô infantil na
beira da água, prestes a ser levado pelas ondas. Um pássaro, quase saindo do
enquadramento, mergulhava na água. A foto sempre fizera Angie pensar em
fantasmas. Ela às vezes ficava à sua frente por um longo tempo, olhando para
o ponto em que a água encontrava o céu.
— Nossa — Manny disse. — É linda.
— Obrigada.
— Onde você comprou?
— Eu que tirei — Marilyn disse, mas a voz dela parecia diferente, como se
algo tivesse se fechado.
— Sabia que você era muitas coisas, mas não uma artista.
— Bom, não sou — ela disse depressa. — Foi um lance de sorte, muito
tempo atrás. Não fotografo mais.
— Que pena — Manny disse. Ele parecia um médico tocando gentilmente
uma ferida antiga para ver até onde ia.
— Só guardo essa para lembrar — Marilyn acabou dizendo.
— Do quê?
Ela encarou a foto como se pudesse entrar nela.
— De todas as gotas que formam o oceano.
Marilyn foi terminar o jantar e Angie levou Manny até seu quarto. Mostrou
os livros, os bichos de pelúcia e suas tintas, ansiosa para que tudo fosse
perfeito. Eles estavam no chão, envolvidos numa partida acirrada de damas,
quando Marilyn chamou para o jantar.
A comida foi meticulosamente disposta nos pratos. Manny a elogiou,
repetiu, serviu mais vinho a Marilyn, contou histórias divertidas. Ela
finalmente começou a se soltar.
Depois do jantar, Manny insistiu em ajudar a arrumar a cozinha. Quando
terminou de secar o último prato, tirou um DVD de Jerry Maguire do casaco,
com as sobrancelhas arqueadas.
— Trouxe um filme… Sei que você gosta desse.
Marilyn pareceu momentaneamente sem chão.
— Se estiver a fim, claro — ele disse. — Posso deixar com você e pegar
da próxima vez.
Marilyn olhou para o relógio, parecendo incerta.
— É que sempre lemos um pouco antes de dormir…
— Não tem problema — Angie disse depressa, forçando um bocejo. —
Não precisamos ler hoje. Estou cansada.
A mãe fez uma pausa.
— Então tá — ela disse, com um sorrisinho se formando no rosto. — Por
que não?
Angie deu um abraço de boa-noite em Manny e foi se preparar para
dormir. Marilyn entrou em seu quarto e a cobriu.
— Te amo mais que todo o universo — ela disse.
— Te amo mais que o infinito ao quadrado — Angie respondeu, seguindo
a rotina das duas desde que conseguia lembrar.
Marilyn beijou sua testa.
— Acha que Manny vai ser como meu pai? — Angie perguntou
bruscamente.
— Ah, querida. Eu não sei.
Angie sentiu a mãe escorregando ladeira abaixo, afastando-se dela, de
Manny, da noite. Não tinha como segurá-la.
— Seu pai era… Manny e eu… somos apenas amigos. Ele é um cara muito
legal, mas minha família é você.
De repente, Angie sentiu um peso esmagador no peito. Ela assentiu e
fechou os olhos, fingindo dormir.
Mas continuou acordada, esforçando-se para ouvir as vozes sussurradas
vindas da sala, esperando o som do filme, que nunca veio. Em vez disso, o
som da mãe chorando baixo — ao qual estava sempre atenta — chegou aos
seus ouvidos, e depois o da porta abrindo e fechando.
Nas semanas que se seguiram, Angie perguntou à mãe quando veriam
Manny de novo, recebendo sempre respostas vagas, como “Não este fim de
semana” ou “Ele está ocupado com o trabalho”. Em uma tentativa de mudar
de assunto, Marilyn dizia “Vamos ao Chuck E. Cheese’s! Só nós duas”.
Embora sua voz expressasse uma alegria forçada, a luz que Manny tinha
acendido em seus olhos havia desaparecido. Angie achava que, se a mãe
deixasse Manny voltar, ia brilhar de novo. Mas acabou concordando com o
Chuck E. Cheese’s e se perdera nos brinquedos, tentando esquecer Manny,
que sabia dançar salsa. Manny, com suas roupas de mocinho de filme e seu
sorriso largo.
ANGIE CONSEGUIU DAR UM TCHAUZINHO PRA SAM enquanto ela e Marilyn se
despediam de Manny. Elas saíram da 66 Diner e se depararam com o céu nas
cores típicas do Novo México — tons brilhantes de laranja se destacando
entre o azul-lavanda, as montanhas Sandia piscando vermelhas como a
melancia que lhes dava nome. Angie deixou que a mãe pegasse sua mão e a
apertasse como fazia quando a filha era pequena.
— É lindo, não acha? — Marilyn disse.
— É.
Angie sabia que sua mãe enxergava um significado mais profundo no
espetáculo de cores, algo que queria que ela também visse.
Nos poucos minutos que a viagem de carro para casa durou, o sol
finalmente se escondeu, deixando o céu escuro. O peso no estômago de
Angie reduziu ao entrar na segurança do lar. Nem todos tinham o que ela
tinha, fez questão de se lembrar — uma mãe amorosa, uma casa repleta de
marcas da própria infância.
Marilyn começou a acender suas velas assim que chegou. Desde que Angie
lembrava, a casa estava cheia delas — do tipo que se encontrava nas igrejas
católicas ou que se comprava em lojinhas de noventa e nove centavos.
Costumavam comprar novas toda semana, depois de Marilyn buscar Angie na
escola. Marilyn pegava papel higiênico, toalhas de papel, arroz, laranjas e
produtos de limpeza, enquanto Angie escolhia um presentinho, como um
chinelo, um cata-vento ou um pacote de borrachas coloridas. Então Marilyn
enchia o carrinho com velas brancas.
Marilyn dissera a Angie mais de uma vez que a noite era algo bom. De
uma escuridão clara, uma escuridão límpida. Mas era no momento antes da
noite chegar, quando você percebe que está perdendo a luz, que Marilyn
substituía o sol pelas chamas dentro de casa.
Ela deixava as velas queimarem em potes de vidro, dizendo que dava azar
apagá-las. Ainda pequena, Angie se acostumou a viver com a luz bruxuleante
e as sombras fantasmagóricas que a acompanhavam quando levantava no
meio da noite para ir ao banheiro, ou quando chegava tarde da casa de Sam e
a mãe já estava dormindo. O cheiro de cera era o cheiro do lar.
Naquela noite, enquanto a mãe acendia as velas, Angie fez pipoca com
manteiga e parmesão, como ela havia lhe ensinado, e as duas se
aconchegaram no sofá. Angie queria rever algo familiar, e escolheu
Bonequinha de luxo.
No meio do filme, Marilyn começou a roncar de leve. Normalmente era
Angie quem pegava no sono, e a mãe a carregava para a cama. Mas, nos
últimos tempos, era Marilyn quem se entregava antes dos créditos rolarem.
Com a cabeça no braço do sofá, os olhos pregados, ela parecia — como
Angie estava achando cada vez mais — muito jovem. Como se fosse uma
garotinha, e não a mãe que tomara conta de Angie desde seu nascimento, que
lutara para dar a ela aquela casa. Ela colocou o cobertor rosa favorito das
duas sobre a mãe e foi para o quarto na ponta dos pés.
Deitou, mas continuou acordada. A única luz no quarto escuro vinha da
tela do celular enquanto mexia nele. Quando se deu conta, estava vendo o
Instagram de Sam — a única rede social que ele usava e, portanto, o único
laço que restava com ele. A última foto, de uma semana antes, era de um
show ao ar livre no Festival de Blues, cheio de ciclistas e hipsters em geral.
Nela, o pai de Sam segurava um copo de cerveja de plástico. Ela passou pelo
resto das fotos — trens grafitados; astros de futebol latino-americanos; uma
cena de Boyhood e uma de Crepúsculo dos deuses; a placa de neon do motel
El Don, com um caubói com um laço de corda vermelha; a mãe dele fazendo
o jantar; a captura de tela de uma música tocando no Spotify, “Some
Dreamers”, dos Fly Boys, com a legenda: “sempre certeira”.
Angie nunca tinha ouvido falar da banda. Sam lia uma porção de blogs de
música e, embora tivesse uma queda pelo folk dos anos 60 que o pai ouvia,
sempre apresentava coisas novas a ela quando estavam juntos. Ela fez uma
busca no Google por “Some Dreamers” e clicou no clipe.
O som era melancólico, mas bonito — quase todo instrumental, com letra
esparsa. “An inch of moonlight, rattled green, quiet, quiet, the night is
coming, dream you’re rising, this is your own ragged sky…” O clipe
acompanhava um garoto mais ou menos da idade dela. Tinha pele morena e
olhos lindos e grandes, que pareciam tristes. A câmera o seguia numa festa na
piscina — um mar de adolescentes no quintal banhado pelo sol, bebendo e
passando baseados, de short e biquíni, corpos perfeitos como qualquer corpo
jovem. O garoto, nosso garoto, se mantinha afastado da multidão. Ele subiu
num trampolim alto. Olhou para cima e pulou, com os braços abertos, voando
no ar. Angie esperou pelo mergulho — mas, quando a câmera o seguiu, não
havia água; seu corpo bateu contra o concreto no fundo da piscina. Angie
perdeu o ar, horrorizada. Um fio de sangue escorria da sua nuca perfeita,
como uma mancha de tinta. O mundo se manteve suspenso por um longo
tempo, todos os outros adolescentes tendo desaparecido. Um helicóptero
solitário sobrevoava o local. Os fios elétricos se cruzavam. As palmeiras
balançavam com a brisa.
Então, do nada, o garoto levantou e começou a dançar. A princípio, era
como se fios invisíveis puxassem seus membros, levantando-o, fazendo seu
corpo se mover com o ritmo. Depois, devagar, ele começou a se soltar, num
movimento sem esforço, poderoso, cheio de alegria.
Angie viu o clipe três vezes, em transe. Era lindo, e parecia verdadeiro de
um jeito que a deixava sem palavras.
Foi só na quarta vez que leu o texto abaixo. “Clipe dirigido por Justin Bell,
com música dos Fly Boys.” Justin Bell. Justin Bell. O mesmo nome do irmão
do pai. O menino na foto. Podia não ser ele, claro. A mãe tinha dito que
morrera… Ainda assim, Angie tinha um pressentimento, do qual não
conseguia se livrar, de que era ele.
Pesquisou “Justin Bell Some Dreamers clipe” e encontrou uma variedade
de links. O primeiro texto que abriu era de um DJ para a KCRW, a rádio pública
de Los Angeles. Referia-se a Justin Bell como uma importante revelação do
mundo dos clipes, apresentando “certo brilhantismo”. O clipe havia ganhando
o prêmio de melhor curta escolhido pelo público no Festival de Cinema de
Los Angeles. Havia inúmeros outros textos de sites de música, mas nenhum
tinha foto. Um deles apontava que, apesar de sua relevância crescente, até o
Google achava Justin Bell discreto. Outro dizia que perguntas pessoais não
eram respondidas. Mas pelo menos registrava sua idade: vinte e nove. O
menino nas fotos parecia ter onze ou doze anos, então parecia bater.
Ela viu o clipe de novo, e tudo clareou. O nome não era coincidência, não
podia ser. O Justin Bell que morava em Los Angeles e tinha feito aquele clipe
que reverberava fundo em Angie era o mesmo Justin das fotos, o menino de
rosto redondo tomando picolé sentado nos degraus. Não estava morto, como
Marilyn havia dito. Era irmão de seu pai. Seu tio. E estava vivo.
Mas, se ele não estava morto como sua mãe havia dito — o coração de
Angie começou a pular no peito —, talvez seu pai tampouco estivesse.
Então ela fez o que sempre fazia quando sentia demais e precisava de
descanso. Calçou o tênis e saiu pela janela para correr na noite. Mal viu as
casas na vizinhança onde sempre morara passando por ela, mal viu a lua, as
árvores ou as janelas iluminadas, mal sentiu o calor do dia deixando o asfalto,
mal ouviu o barulho dos grilos. Em vez disso, ouviu a letra de “Some
Dreamers”, com os acordes já gravados na memória. Repassou o vídeo
mentalmente. A mãe tinha mentido para ela, e aquilo era tão surpreendente
quanto a esperança de encontrar Justin, a chance de seu pai estar vivo. Angie
ignorou a queimação nas pernas, a dor, os limites do corpo, até que soubesse
o que fazer.
Estava cheia de adrenalina, exausta, suada e sem fôlego quando pisou na
varanda do apartamento 3D, com a tinta branca descascando. Viu as luzes
acesas lá dentro e tocou a campainha.
Sam abriu a porta de calça e blusa de moletom. Seus olhos estavam
vermelhos. Passou um momento até que registrasse a presença dela ali.
— Angie?
— Oi.
Ela voltou a sentir o chão sob os pés, dando-se conta de como devia ser
estranho ter aparecido na casa dele daquele jeito, um ano depois do término.
— Está tudo bem? O que aconteceu?
— Eu… Desculpa. Por estar aqui. Tenho que falar com você. Posso…
posso entrar?
— Tá — Sam disse, o corpo tenso enquanto a deixava passar.
O apartamento estava quase idêntico à sua lembrança, uma espécie de
corredor estreito e comprido, com lanternas de papel penduradas. Havia um
espelho oval gigante apoiado precariamente perto da porta, refletindo as
reproduções de quadros nas paredes — Miró, Dalí, Marcel Duchamp.
Cheirava a maconha. Sempre cheirava, pelo menos vagamente, porque o
pai de Sam fumava no quarto, com a porta fechada e a janela aberta,
imaginando que assim ninguém saberia. Ela olhou para o baseado numa
xícara de café usada como cinzeiro e imaginou que Sam tivesse adquirido o
hábito do pai, de modo que nenhum dos dois precisava se esconder.
Sam se acomodou no sofá, colocando uma manta azul nas costas — a
mesma sob a qual ele e Angie deitavam juntos. Pegou uma cerveja aberta e
tentou descolar o rótulo.
— Seu pai está em casa? — Angie perguntou.
— Num encontro.
Não foi surpresa para ela. O sr. Stone sempre tinha encontros, o que
significava que ela e Sam tinham a casa só para eles com certa frequência.
— O que foi? — Sam perguntou, com a voz cortante.
Angie sentou na beirada do sofá. De repente sentia que estava caminhando
sobre gelo fino, sem saber se ia aguentar, sem ter certeza de que se
importava.
— Você… vai visitar seu primo em Los Angeles no verão?
— Semana que vem. Por quê?
— Sei que é um pouco esquisito, mas queria te pedir um favor enorme.
Quer dizer, não tem ninguém mais a quem posso pedir e… Bom, posso ir
junto? Você vai de carro, né?
Sam fez uma careta. Deu um gole na cerveja.
— Faz um ano que a gente não se fala, e agora você aparece na minha casa
à meia-noite pedindo uma carona até Los Angeles?
Angie respirou fundo. Queria contar tudo a Sam, queria que entendesse,
mas as perdas começaram a pesar — de Sam, de Manny, do talento
fotográfico da mãe, da infância —, abrindo um buraco enorme dentro dela.
Angie se voltou para o espaço vazio deixado pelo pai, que pelo menos tinha
forma.
— Acho que meu pai pode estar lá. Pode estar vivo.
— Quê?
— Sabe a música que você postou algumas semanas atrás? “Some
Dreamers”?
— Você estava fuçando meu Instagram?
— Estava. Mas a questão é: eu vi e… acho que foi meu tio que fez. O
clipe, não a música. O irmão do meu pai. Minha mãe tinha me dito que ele
estava morto, mas não é verdade.
Angie esperou a reação dele.
— Nossa… Isso… é maluquice — Sam disse afinal. — Entendo que
queira encontrar seu tio, mas não sei se é o caso de simplesmente ir para Los
Angeles. Quer dizer, como vai saber se é ele? Falou com a sua mãe?
Angie balançou a cabeça.
— Bom, e o que vai fazer quando chegar lá? Para onde vai? Como
pretende encontrar o cara? Devia pelo menos entrar em contato primeiro.
— Se eu conseguir, você me leva?
Sam ficou em silêncio.
— Por favor — Angie insistiu. Podia ouvir o desespero em sua própria
voz, e tentou engoli-lo. — Minha mãe mentiu sobre meu tio, o que quer dizer
que pode ter mentido sobre meu pai também. — Ela olhou para Sam. — Ele
pode estar vivo. Tenho que ir. Preciso descobrir.
Sam não olhava em seu rosto, só cutucava o rótulo da cerveja.
— Sei que você não tem motivo pra concordar — ela continuou. — Sei
que não precisa fazer isso. E não pediria se não… se não fosse… importante.
Mas eu… preciso de você.
Sam pegou o baseado da xícara e acendeu.
— Para com essa merda. — Ele soltou a fumaça do cigarro. — Pode ir
junto, mas não quero saber dessa história de “preciso de você”. Não finge que
é isso. Você só precisa da porra do meu carro. — Sam a encarou. — E sugiro
que bole um plano de verdade. Porque Los Angeles é uma cidade grande pra
caralho, então não vai dar pra ficar andando pela rua atrás desse cara. Não
vou me envolver. Mas minha recomendação, pro seu bem, é que não vá a
menos que esteja certa do que está fazendo. E que fale com sua mãe.
— Obrigada — Angie disse, sem saber bem como responder.
— Vou embora quinta. Pego você às dez.
Ele desviou o rosto, soltando a fumaça na direção das cortinas, que
balançavam com a brisa noturna.
— Tá. Obrigada de novo.
Sam assentiu e ela foi embora.
Ela pisou na sacada, com as roupas ainda molhadas de suor, tremendo no
ar frio da noite. Enquanto andava para casa, finalmente notando o som dos
grilos tão alto quanto motores, o farfalhar das folhas das árvores escuras, as
incontáveis estrelas no céu, pensou na última vez que tinha ido embora da
casa de Sam, tarde da noite, um ano antes. E, naquele momento, teve o
pressentimento de que, se conseguisse encontrar o pai, poderia se tornar a
garota capaz de dizer “eu te amo” de volta.
SAM E ANGIE PASSAM POR UMA CIDADE CHAMADA NEEDLES e seguem pela
estrada longa e vazia que atravessa o deserto de Mojave quando começa a
chover. Angie prende o fôlego diante da tempestade; o teto de metal do carro
faz sua própria música acelerada enquanto o rádio toca “Sound & Color”, do
Alabama Shakes. O limpador de para-brisa está no máximo, mas Angie não
consegue enxergar além de alguns passos à frente, e sabe que Sam, por mais
calmo que pareça estar atrás do volante, tampouco.
Sem perder a concentração, ele conduz o carro para o acostamento.
— Acho que vamos ter que esperar um pouco — Sam diz.
Angie fica contente que tenha se dirigido a ela com certa normalidade. Ele
se inclina para abrir o porta-luvas e pega uma latinha de bala. Tira um
baseado de dentro e acende. Angie observa o deserto inundando, os tons
suaves de marrom e amarelo se estendendo à frente, até onde a vista alcança.
“I Want a Little Sugar in My Bowl”, a última música do CD de aniversário
de Sam, começa. Angie olha para ele, que está recostado no assento de olhos
fechados. “Come on, save my soul…”, Nina Simone canta, como se estivesse
tirando as notas das profundezas do oceano.
Sam abre um olho e vê que ela o observa. Os dois trocam um olhar cheio
de um desejo incerto antes que ele o feche de novo. Angie o quer; consegue
sentir seu corpo insistindo na verdade desse fato. Ela imagina se também está
alta por tabela. Leu em algum lugar que era impossível, mas de repente sente
a cabeça mais leve.
— Como está seu pai? — Angie pergunta. É a única coisa em que
consegue pensar.
— Bem. Ótimo. Está namorando. De verdade. Faz quase seis meses que
estão juntos.
— Você gosta dela?
— Ela é legal. Jovem. E bonita, claro. Acho que a deixo nervosa. A voz
dela sobe umas duas oitavas sempre que fala comigo. — Ele parece distraído.
— É italiana. Cozinha bem. Às vezes fico olhando os dois juntos na cozinha,
picando coisas, ouvindo os discos velhos do meu pai, ele a girando, ela
virando o macarrão no escorredor. Não lembro de ter visto meus pais tão
felizes assim quando estavam juntos.
Sam parece vulnerável, o mesmo garoto que Angie conhecia. Ela tem o
desejo incontrolável de abraçá-lo.
Ele prende a fumaça antes de soltar.
— Quer?
— Não, obrigada — Angie diz.
Sam dá uma última puxada e apaga o baseado. Nina Simone continua
cantando. Outro caminhão passa, momentaneamente cegando os dois com a
poeira. Sam esfrega a janela embaçada e dá uma olhada na chuva.
— Algumas semanas antes de meus pais me dizerem que estavam se
divorciando — Sam diz —, minha mãe recebeu uns amigos para jantar. Ela
passou o dia inteiro preparando tudo, e meu pai só reclamava. Ele odiava
visitas. Minha mãe perdeu a paciência, dizendo que ele não gostava de nada
que ela fazia, que guardava o melhor dele para os alunos e não sobrava nada
em casa. Meu pai apontou para as enchiladas e o guacamole, para as jarras de
bebida e as flores nos vasos, e disse algo tipo: “Mas, Camila, isso não é pra
gente. Você está tentando, mas não por nós”. Ela estava arrumando a mesa e
correu da sala de jantar com tanto ódio que o prato escapou de sua mão.
Quando se abaixou para recolher os pedaços de porcelana, começou a chorar.
O prato tinha sido da mãe dela, e da avó dela antes disso. Foi um presente de
casamento, que ela havia trazido do México. Era pintado à mão, a imagem de
um homem com um burro. Eu queria que ela se sentisse melhor, então disse:
“Foi só um. Temos mais um monte”. Ela nem me olhou. Só falou: “Não é
mais o jogo completo. Sempre vai ter alguma coisa faltando”.
Sam vira para Angie, sem encará-la propriamente.
— Não sei por quê — ele diz —, mas tenho pensado muito nesse prato.
Parece a coisa mais triste do mundo.
Angie não comenta que ele já contou essa história, mas pensa em quando a
ouviu antes, na primeira vez que ficaram juntos na cama do quarto dele.
— Sabe, quando estávamos juntos — Sam continua —, costumava achar
que não precisávamos ser como eles… Achei que pudéssemos ser
diferentes…
Angie só o observa desembaçando o vidro. A chuva para tão
repentinamente quanto começou.
— Você ainda pode — ela diz. — Eu sei… sei que está bravo comigo. Sei
que tem todo o direito. Sei que fodi com tudo indo embora daquele jeito. Mas
não foi porque não te amava. Só não sabia como dizer. Acho que ainda não
sei…
Sam está olhando para ela agora, olhando de verdade, pela primeira vez
desde que entraram no carro.
— Eu poderia dizer que sinto muito, e sinto, mas também sei que isso não
ajudaria em nada. Então só posso agradecer por me deixar vir a Los Angeles
com você.
Sam assente.
— Não precisa agradecer — ele diz por fim, e parece um presente para
Angie. Sam abaixa o vidro, e ela o imita. A luz do sol rompe a barreira de
nuvens no céu, e eles põem a cabeça para fora, para o ar do deserto, ainda
elétrico por causa da chuva.
— Tá — Sam diz. — Acho que é hora de ir.
Ele deve estar alto, Angie pensa, preocupada.
— Não quer que eu dirija um pouco? Faz umas oito horas já.
— Estou acostumado — Sam diz. — Fiz essa viagem sozinho uma porção
de vezes.
— Deixa, vai. Estou com saudade da Mabel.
Mabel, o nome do jipe dele.
Sam a encara por um longo momento.
— Tá — concorda afinal —, você pode dirigir por algumas horas, mas
trocamos de novo quando nos aproximarmos da cidade. É um pouco
complicado lá.
Eles trocam de posição. Angie dá a partida enquanto Sam ajusta o assento
do passageiro.
— E aí, o que rolou com seu tio? Vocês se falaram? — ele pergunta.
Angie se concentra em voltar para a estrada, relutando em admitir a
verdade.
— Ainda não — ela confessa. — Mas deixei algumas mensagens. Na
verdade, talvez ele tenha ligado de volta. Meu celular está desligado.
Angie espera que, quando chegarem a Los Angeles à noite, vai ligá-lo e,
num passe de mágica, haverá uma mensagem de voz do irmão do pai dizendo
que mal pode esperar para vê-la.
Sam a estuda por um momento antes de perguntar:
— O que quer ouvir?
Ela sabe o quer ouvir; e quer que Sam ouça também.
— Trouxe uma fita velha que meu pai fez pra minha mãe. Pode ser?
— Cadê? — Sam pergunta.
Ele a pega na mala de Angie. Momentos depois, os Fugees estão cantando
“Ready or Not”. Sam sorri ao ouvir os primeiros acordes, Angie retribui e
eles começam a percorrer os últimos trezentos e quarenta quilômetros até a
Cidade dos Anjos.
UM DIA DEPOIS DE SAM CONCORDAR em levá-la para Los Angeles, Angie tinha
vasculhado a internet atrás de Justin. Ela tentou o Facebook sem sucesso,
tampouco encontrando perfis no Twitter ou no Instagram que podiam ser
dele. Aparentemente, seu tio era avesso às redes sociais. No site White Pages,
encontrou oito Justin Bells entre os vinte e quatro e os trinta e cinco anos, ou
de idade desconhecida, morando na região de Los Angeles. Ela usou o cartão
de crédito para pagar um e noventa e nove pelos contatos de cada um deles.
Só cinco tinham número de telefone listado, mas ela pegou o endereço de
todos.
Quando se preparava para ligar para o primeiro número, suas mãos
começaram a suar. E se ele atendesse? E se fosse realmente seu tio? O que ela
diria? Angie deixou o telefone de lado, decidindo que precisava treinar
primeiro. Depois de fazer isso algumas vezes, caminhando pelo quarto, ligou.
Caiu direto na caixa postal. Esse Justin Bell tinha sotaque britânico, então
Angie se sentiu segura o suficiente para cortá-lo da lista.
A próxima ligação também caiu direto na caixa, mas com uma gravação
automática. Ela gaguejou ao deixar um recado.
— Oi, meu nome é Angie e gostaria de falar com Justin Bell, para ver se
tem algum parentesco com meu pai, James Bell. Se for o caso, por favor, me
ligue.
Ela passou seu número e desligou em seguida.
Angie teve que deixar uma mensagem para o Justin seguinte também.
O quarto atendeu, com uma voz masculina profunda e desconfiada:
— Alô?
— Oi, eu, hum… Meu nome é Angie. Estou ligando para saber se você é
parente de James Bell?
— Hã? Não, você ligou para o número errado.
A esperança que tinha se espalhado pelo peito dela se desfez.
Ela teve uma conversa parecida com o quinto. Mas se reconfortou com o
fato de que tinha deixado mensagens para dois Justins que poderiam ser seu
tio, além dos três endereços sem número de telefone que precisaria visitar
quando estivesse em Los Angeles. Tinha que ser algum deles. Ela ia achá-lo.
Tinha que achar.
Por sorte, Angie tinha guardado bastante dinheiro trabalhando como babá
no verão anterior — mais que o suficiente para comer e contribuir com a
gasolina. Marilyn era sempre generosa, mas ela odiava ter que pedir dinheiro
para comprar roupa ou jantar com os amigos, considerando o quanto a mãe
trabalhava só para conseguir pagar as contas. Então Angie tinha passado a
primeira semana das férias de verão do ano anterior andando de bicicleta pelo
bairro para deixar seu currículo em restaurantes. Ela tinha usado sua roupa
mais profissional — calça preta e blazer —, mas só tinha recebido nãos e
indiferença de funcionários entediados.
— Você pode preencher uma ficha, se quiser.
Angie começou a se perguntar se as marcas de suor nas roupas, inevitáveis
quando se andava de bicicleta no calor de junho, eram o que a estava
atrapalhando. Por isso, quando sua mãe disse que alguém do banco estava
precisando contratar uma babá para o verão, Angie ligou de imediato e
marcou um horário para encontrar Linda Bennet.
Determinada a impressionar sua potencial empregadora, ela chegou quinze
minutos antes. Foi até a porta, passando por uma fonte de terracota para
pássaros curiosamente disposta no meio do gramado perfeito, fileiras de
amores-perfeitos plantados em floreiras de tijolo, e uma Range Rover branca.
Ela ajeitou o cardigã (mesmo às nove e quinze da manhã, estava morrendo de
calor) e tocou a campainha.
Uma mulher branca com um penteado loiro impecável abriu a porta.
— Desculpe, mas não podemos ajudar.
Angie ficou parada sobre o capacho em que se lia AQUI VIVE GENTE FELIZ
enquanto tentava encontrar sua voz.
— Eu disse — a mulher falou com uma voz mais afiada, penetrante — que
não podemos ajudar.
— Eu não…
— Por favor, saia da minha casa!
A voz da mulher mais parecia um ganido ao terminar a frase.
Angie sentiu lágrimas quentes se acumularem nos olhos.
— Vim para a entrevista de emprego — ela conseguiu dizer, afinal.
A mulher ficou tão vermelha quanto as flores.
— Ah. Sim, é claro. Eu… sinto muito. É só que, bom, eu não sabia que
você era… Quer dizer, sua mãe, você e sua mãe não…
— Somos parecidas — Angie completou para ela.
A mulher forçou sua expressão em um sorriso radiante.
— Certo. Muito bem! Vamos começar então. Sou a sra. Bennet. Entre, por
favor — disse, mas levou um momento para sair da frente da porta.
O hall era decorado com fotos de estúdio da família, almofadas florais
combinando e plaquinhas sobre muitos dos objetos, caso alguém esquecesse
para que serviam, Angie supôs. Estava escrito “chaves” em letra cursiva no
porta-chaves, “casacos” no mancebo e, estranhamente, “harmonia” sobre o
piano.
— Quer limonada? Estou tão chateada com… Angie, certo? Eu só… Você
tem que entender, sua mãe não me disse que você… Quer dizer, eu não
estava esperando…
A sra. Bennet foi salva pela garotinha que entrou aos pulos, vestindo um
pijama do Frozen.
— Quer ver meus pôneis? — ela perguntou para Angie, já pegando sua
mão.
Angie e a filha da sra. Bennet, Riley, se deram bem na hora. Quando
chegou a hora de ir embora, a menina deu um escândalo.
— Bom, parece que ela gosta de você! — a sra. Bennet disse, perguntando
em seguida quanto Angie cobrava.
— Vinte a hora — ela disse, depois de hesitar por um momento. Era
bastante dinheiro, certamente mais do que pediria se as circunstâncias fossem
outras. Imaginava que a sra. Bennet não fosse topar.
O rosto da mulher expressou certo alarme, mas ela consertou-o com um
sorriso.
— Ótimo, então! Está contratada!
Uma parte de Angie queria poder dispensar a sra. Bennet, mas vinte
dólares a hora era muito mais do que conseguiria fazendo qualquer outra
coisa naquele verão. Ela se lembrou da música da Beyoncé que dizia que a
melhor vingança era o dinheiro.
Quando chegou em casa e Marilyn perguntou como tinha sido, Angie só
respondeu:
— Ótimo. Consegui o emprego.
— Isso é ótimo, querida! — Marilyn exclamou, dando-lhe um abraço. —
Estou tão orgulhosa de você.
Angie se forçou a sorrir e não disse mais nada — talvez porque estivesse
com receio de que a mãe não entenderia. Talvez porque, apesar de Marilyn
sempre se esforçar para apontar as virtudes dos afro-americanos durante toda
a vida de Angie, ela evitava falar sobre racismo, e Angie instintivamente
acreditava que precisava proteger a mãe da realidade.
Mas Angie adorava Riley, que era muito curiosa e cheia de energia. A sra.
Bennet, por sua vez, era perfeitamente educada com ela — quase demais —,
e a chamara para ser babá de novo no verão seguinte. Angie deveria começar
na segunda.
Ela pegou o celular para mandar uma mensagem para Lana.
Me faz um favorzão? Preciso que alguém fique de babá no meu lugar
semana que vem.
Pq?, Lana respondeu.
Longa história. Conto depois.
Fala agora ou não te cubro.
Estou indo pra LA com Sam…
Tá zoando? O seu Sam?? Vocês voltaram?
Angie fez uma pausa, clicando fora da resposta para que não parecesse que
estava digitando. A verdade parecia informação demais. Não queria que Lana
avaliasse tudo, não queria ouvir sua lenga-lenga sobre seu tio, que ela sem
dúvida consideraria “o máximo” depois de ver o clipe. Não que não gostasse
de Lana, mas não achava que ia entender — Justin não era só “o máximo”,
era sua primeira chance de entender de onde tinha vindo, de encontrar seu
pai.
Ela finalmente respondeu: Sei lá. Topei com ele na 66 Diner e… meio que
rolou.
Ela voltou a deitar na cama e tentou focar na respiração.
Deixa comigo. Mas quero todos os detalhes depois!
Valeu, vc é demais.
A única questão, a grande questão, era como convencer a mãe a deixá-la ir.
Depois de Sam ter concordado em lhe dar carona, Angie levou três dias para
criar coragem para pedir. Quando Marilyn chegou em casa à noite, ela a
seguiu até o quarto. (A primeira coisa que a mãe sempre fazia quando punha
os pés dentro de casa era dar um beijo em Angie, e então ia imediatamente
para o quarto tirar a roupa do trabalho.)
— Como você está?
— Muito bem — Angie respondeu.
— Ah, é? Posso saber por quê? — Marilyn perguntou com um sorriso.
— Na verdade, passei o dia com Sam.
Era mentira. Mas precisava que a mãe acreditasse que eles tinham pelo
menos retomado a amizade, se esperava que acreditasse que só queria viajar
com ele.
— Sério? Isso é ótimo! Como foi?
— Foi legal. Só ficamos juntos e conversamos. Depois do jantar fiquei
pensando que a gente devia se reaproximar. Tentar ser amigos. Não sei.
Estava com saudade.
Marilyn vestiu uma camiseta velha da escola em que a filha estudara no
ensino fundamental, então virou para ela e abriu um sorriso suave.
— Que bom, querida. Estou muito orgulhosa de você.
Angie sentiu a vergonha de sempre ao ouvir aquelas palavras. Queria ser
mais digna do orgulho da mãe. Mas talvez agora pudesse ser. Talvez
estivesse prestes a fazer algo importante. E, ainda que deixasse sua mãe triste
de início, poderia acabar valendo a pena.
— Diga que ele pode vir comer queijo quente quando quiser — Marilyn
brincou.
— Na verdade, Sam vai pra Los Angeles semana que vem ver o primo. Ele
sempre faz isso no começo do verão, lembra? E me convidou para ir junto.
A expressão no rosto de Marilyn se transformou, tomada pela ansiedade.
— Ah, Angie, não acho que…
— Seriam só oito dias. Nunca saí do estado, e finalmente poderia ver o
mar!
— Angie, eu… não posso deixar que viaje sem um adulto ou… Onde
vocês ficariam?
— Na casa do primo. Você vive dizendo que preciso pensar na faculdade.
Ele poderia me mostrar algumas enquanto estiver lá.
— Não sabia que estava pensando em estudar em Los Angeles — Marilyn
disse, com a voz cuidadosa, como se tentasse esconder um grande medo.
— Bom, seria legal começar a olhar, pra ter uma ideia…
— Eu estava planejando isso para o outono. Achei que faríamos juntas.
— Tudo bem. Não vou olhar nenhuma faculdade então. Só vou fazer
coisas turísticas. Ir à praia e tal.
— Querida, eu… não sei se é uma boa ideia. Não posso permitir que você
simplesmente viaje assim… Seria diferente se tivesse um adulto envolvido
ou…
— O primo dele tem vinte e quatro. Conta como adulto.
— Los Angeles é uma cidade bem grande, Angie. Muita coisa pode
acontecer, coisas para as quais você talvez não esteja preparada.
Angie desviou o rosto.
— Olha, querida, ano que vem você vai fazer dezoito. Pode ir embora e
nunca mais voltar, se quiser… Vai para a faculdade sozinha e… Bom,
sempre estarei aqui pra você. Sempre farei tudo o que puder por você, não
importa o que aconteça. Você vai tomar suas próprias decisões logo mais.
Enquanto isso, sou sua mãe. É meu trabalho te proteger, e não posso fazer
isso se estiver… numa cidade grande, tão longe de mim…
— Não é tão longe — Angie murmurou. — Fica a tipo onze horas de
carro.
Marilyn fez uma pausa e virou para a filha, quase suplicando com o olhar.
— Você vai ter todo o verão para se reaproximar de Sam quando ele
voltar.
Havia tanta coisa que Angie queria dizer, mas, em vez disso, ela levantou e
saiu.
Por um breve momento, Angie havia pensado em contar a verdade à mãe:
Eu sei que o irmão do meu pai está vivo. Mas não queria ouvir nenhuma
explicação, porque não acreditaria nela. Sabia que precisava descobrir
sozinha. Marilyn mentira sua vida toda — por que Angie tinha que ser
honesta?
A mãe foi ao seu quarto mais tarde aquela noite. Angie estava preenchendo
as inscrições para a faculdade.
— Ainda está brava por causa de Los Angeles? — ela perguntou.
— Não — Angie respondeu. É por muito mais do que isso.
Mãe, estou indo para Los Angeles com o Sam. Sei que vai ficar
chateada e peço desculpas, porque não queria que isso acontecesse. Te
amo mais que todo o universo, como sempre dizemos. Sei que também
me ama, mas às vezes a melhor coisa a fazer é deixar que a outra
pessoa chegue às suas próprias conclusões. Volto em oito dias. Vou
tomar cuidado, não se preocupe.
Com amor,
Angie
ANGIE SENTE A MÃO DE SAM EM SUA PERNA, sacudindo gentilmente para
acordá-la.
— Você tem que ver isso — ele diz.
Ela abre os olhos, fora de foco na escuridão. Parecem estar na estrada, em
algum lugar no meio das montanhas. Os vidros estão abertos, deixando o ar
quente entrar. O cheiro do oceano é exatamente como sempre imaginou. “At
Your Best (You Are Love)”, sua música preferida da fita para a srta. Mari
Mack, toca no rádio.
Sam devia ter voltado a fita enquanto ela dormia.
O jipe continua subindo a colina, e de repente milhões de luzinhas
aparecem à distância, conjuradas do nada, como num truque de mágica.
— É lindo — Angie sussurra.
— É lindo — Sam concorda.
A voz de Aaliyah é doce, clara, leve como a luz: “Stay at your best,
baby…”. Sam vira para Angie e lentamente abre um sorriso.
— Bem-vinda a Los Angeles.
Angie chega nessa cidade de sete milhões de habitantes perseguindo um
único fantasma. Enquanto eles atravessam a noite em direção à cidade
infinita, ela pode sentir. Seu pai está aqui, escondido em algum lugar entre as
luzes.
— ELA É SUA NAMORADA? — Justin pergunta ao irmão. Está entre James e
Marilyn na sala de cinema escura. Os três já comeram metade do balde
gigante de pipoca antes mesmo dos trailers começarem.
Marilyn mastiga um piruá enquanto observa James, à espera da resposta.
— Não — ele diz, e ela sente um aperto no coração, como se uma mão
invisível o esmagasse. — Somos amigos.
Justin levanta as sobrancelhas.
— Mas vocês se beijaram?
James revira os olhos.
— Me passa o chocolate — ele diz para o irmão enquanto as luzes se
apagam.
Marilyn tenta se concentrar nas propagandas. Ela mesma teria respondido
do mesmo jeito, não teria? Mas desde o segundo beijo, três semanas antes, os
dois tiveram inúmeros outros, furtivos e ardentes. Começava a se familiarizar
com seu humor: como uma flor imprevisível, ele florescia e se fechava de
acordo com seu próprio ritmo, o qual Marilyn se esforçava muito para intuir.
Nas sessões de estudo aos sábados, às vezes ele mal levantava os olhos dos
livros, mas em outros dias só queria conversar — sobre história americana,
temas de redação, piadas que os amigos tinham contado.
Quando A máscara do Zorro começa com um Z flamejante, Marilyn olha
para Justin. Ele não nota, seus olhos estão grudados na tela. Quem retribui
seu olhar é James. Ele lhe dá um sorrisinho, o suficiente para tranquilizar seu
coração.
O filme é bom, mas o que Marilyn mais gosta é o quanto Justin o adora.
Enquanto os dois esperam James sair do banheiro, Justin movimenta uma
espada imaginária no ar.
— O único pecado seria negar o que seu coração realmente sente — ele diz
em seu melhor sotaque hispânico. Marilyn ri, então ele se inclina e pergunta:
— E aí, vocês se beijaram?
Ela assente em confirmação, sem conseguir evitar.
— Eu sabia! — Justin grita enquanto James se junta a eles.
— Sabia o quê? Estão com fome? — ele pergunta.
— Sim! — Justin responde, apesar do balde de pipoca e dos chocolates.
Eles param em uma barraquinha de tacos e dirigem até o Elysian Park, onde
comem sentados na grama.
Com a barriga cheia e o sol do começo de novembro no rosto, Marilyn
observa James e Justin jogando bola até Justin insistir para que entre na
brincadeira. Os três ficam ali enquanto o céu começa a escurecer, o prisma da
noite deixando-o rosa contra as montanhas. Quando passava de carro por
parques daquele tipo com a mãe, Marilyn sempre tinha certa inveja das
pessoas fazendo churrasco, comemorando aniversários, batendo em piñatas.
Mas agora, com James e Justin ao seu lado, suas risadas ressoando no sol do
outono, ela sente algo que não se lembra de já ter sentido, mas que de alguma
forma lhe é familiar. É a essência clara e pura da sensação de pertencimento;
é ser parte de uma família.
***
***
***
Passaram horas? Minutos? Marilyn olha pela janela e não consegue ver a
lua. Eventualmente suas pálpebras pesam o bastante para se manter fechadas,
e ela começa a afundar na areia movediça do sono.
Até que acorda assustada com uma batida no vidro. Ela senta abruptamente
e vê um tênis caindo do outro lado, perto de onde James está na calçada
olhando para ela, com um pé coberto apenas pela meia. Seus olhos escuros
parecem duas luas brilhantes, de repente visíveis por completo.
Marilyn se sente orbitando-as quando levanta da cama, ainda tomada pelo
sono. Ela se troca e abre a porta, xingando baixo quando range como sempre,
então vai para a sala. Woody ronca de leve no sofá, com as meias sujas
apoiadas no descanso de braço.
Ela passa pelo tapete na ponta dos pés, congelando quando o tio para de
roncar e deixa o braço cair.
Finalmente, o ronco recomeça. Marilyn prende o fôlego e se arrisca a abrir
a porta da frente, que costuma ranger ainda mais. Por sorte, o ronco continua.
Ela sai para a noite e olha para James, que ainda está ali, agora com os dois
pés calçados.
— Oi — ele sussurra quando Marilyn se aproxima.
— Oi.
— Não conseguia dormir, então fui correr. Vi sua luz acesa.
— Também não. Mas estava quase conseguindo, antes de você me acordar.
— Desculpa.
— Tudo bem.
— Não, digo, desculpa por ter sido um idiota.
Ela assente. Embora ainda sinta a dor de seu distanciamento, James está
bem à sua frente agora, e é o melhor remédio possível.
— Quero te levar num lugar…
Marilyn sente aquilo como uma pergunta, sabe que James está preocupado
que não vá aceitar.
Mas ela vai. Não pode resistir a ele; é algo magnético, quase científico.
***
***
***
Os dois vão para a rua na confusão do pôr do sol, em meio às buzinas dos
carros e ao cheiro de jantar sendo feito, passando por carrinhos de sorvete e
por comerciantes vendendo roupas no porta-malas de suas vans no caminho
para o MacArthur Park. Mesmo no meio da cidade, o cheiro é de noite de
verão e grama recém-cortada. Famílias dão comida aos patos na beira do
enorme lago, crianças andam de patinete, homens jogam futebol no gramado
enquanto outros observam em cadeiras esparramadas sob as palmeiras. Angie
e Sam acham um pedaço livre de grama, usando árvores para delimitar o gol.
Eles se perdem no jogo, correndo, chutando, suando, como se dançassem.
Angie nota que Sam tosse e para com frequência para recuperar o fôlego — é
a maconha, ela pensa. Mas ele sempre se ergue e volta a acompanhá-la.
O primeiro a marcar dez ganha, e está nove a nove. Sam chuta. Angie
corre, dá um carrinho e tira a bola antes que entre no “gol”. Ela recupera a
bola e sai driblando. Sam corre atrás, mas Angie chuta antes que ele a alcance
e a bola passa por cima da cabeça dele.
Sam sorri.
— Esqueci como você é boa.
Angie ri. Sam deita, e ela o acompanha, a grama molhada ensopando a
camiseta deles, os sons da cidade como um coro distante, pontinhos esparsos
aparecendo no céu.
— Sabia que a terra tem quatro bilhões e meio de anos? — ela pergunta.
Sam olha para Angie e lança a bola no ar.
— Faz só vinte mil que os humanos apareceram — ela continua. — Somos
pequenos demais para figurar numa linha do tempo do planeta.
A bola faz barulho ao voltar para as mãos dele.
— É tudo uma questão de perspectiva, né? — Sam diz. — Deitado aqui,
parece que somos enormes.
— E somos — Angie retruca num sussurro. As palavras parecem a solução
de uma equação que ainda está tentando resolver. O olhar dos dois cruza. E
então…
Angie o faz porque há gaivotas circulando no céu noturno, porque as
palmeiras fazem barulho na brisa quente, porque a lua imensa está quase
cheia entre os prédios à frente. Ela o faz porque acabou de vencê-lo no
futebol, porque Sam ainda é o melhor amigo que já teve, porque sente o
sangue correndo nas veias. Ela o faz porque uma pena paira no ar e aterrissa
no cabelo dele, porque, em meio a toda a insegurança, o cheiro dele é certo.
Ela o faz porque, quando lhe mostrou a foto de seus pais, Sam compreendeu.
Porque não se sente tão sozinha com ele. Porque está tentando superar o
medo de que nunca vai conseguir seguir em frente sabendo da felicidade do
passado dos pais. Angie o faz sem pensar. Ela só o beija.
Tem o mesmo gosto de sempre e mais: como o primeiro beijo, como se
houvesse algo novo e estrangeiro escondido sob sua língua. Almíscar doce,
uma gota de limão, uma lágrima. Salgado. Limpo. É o gosto da lembrança e
de um começo.
Sam a puxa para mais perto e os dois se agarram, com ferocidade e
delicadeza ao mesmo tempo. Ela enfia a mão por baixo da camiseta dele,
passando-a em sua cintura fina, nos músculos da barriga. Sam estremece.
Eles se desvendam no gramado à noite, com a cidade ao seu redor em
polvorosa.
***
Quando voltam para o apartamento de Miguel, o encontram pegando
cervejas na cozinha, ainda com a bermuda de praia, enquanto Cherry está
deitada no sofá. Angie pensa que ela está ainda mais bonita com o rosto
ligeiramente queimado e o cabelo cheio de ondas emaranhadas.
— Primo! — Cherry cumprimenta.
— E aí, Cerejinha?
— Sentimos falta de vocês — Miguel diz.
— Desculpa — Angie responde. — Foi minha culpa.
— Encontrou seu tio? — Miguel pergunta.
— Ainda não.
Angie olha para Sam, sentindo-se sem chão de repente.
— Cherry, você já ouviu falar de um cara chamado Justin Bell? Ele é
diretor de clipes. Fez aquele último dos Fly Boys, sabe? — Sam pergunta.
— Acho que não — ela diz. — Por quê?
Angie vai sentar ao seu lado na beirada do sofá.
— Ele é meu tio. Acho. Quer ver o clipe? Vai que você lembra alguma
coisa…
Cherry se endireita e olha para Angie.
— Você acha? Não tem certeza?
Angie conta a ela e a Miguel que pensava que o tio e o pai tivessem
morrido, mas agora acredita que Justin está vivo e mora em Los Angeles,
então talvez também seja o caso de seu pai. Ela não é do tipo que se abre,
mas algo no jeito como eles agem, como se o projeto “encontrar o fantasma
do meu pai” fosse completamente normal, a deixa à vontade.
Pouco depois de Angie colocar o clipe, Cherry diz:
— Ah meu Deus, claro! Esse clipe. Bom, eu trabalho como assistente de
produção para o Malcolm às vezes, e lembro que ele me mostrou o vídeo
quando lançou.
— Você acha que ele pode ter o telefone ou o e-mail de Justin, ou qualquer
outra forma de contato?
— Posso perguntar amanhã no trabalho. De repente alguém o conhece. O
contato dele também pode estar na nossa agenda, se já foi entrevistado —
Cherry diz.
— Seria incrível!
Angie quase pode sentir a Terra girando — quão rápido e estranhamente
tudo gira. Faz só um dia que está em Los Angeles, mas já sente como se
tivesse dado mil voltas em torno do sol.
*
***
“I’m kissing you…”, Des’ree canta, enquanto Claire Danes pisca para seu
Romeu, do outro lado do tanque com peixinhos azuis, as asas de anjo se
abrindo às suas costas. James beija a nuca de Marilyn no exato momento em
que fogos de artifício explodem na tela. Marilyn se sente tão apaixonada
quanto Julieta. Foi ela quem escolheu o filme — queria ver Romeu + Julieta
quando estava no cinema, dois anos antes, mas na tarde em que suas amigas
foram ela tinha um teste para um comercial da Neutrogena. Quando mostrou
a James a caixa no corredor da Blockbuster — depois de terem comido torta,
tomado café e de os outros terem ido dormir —, ele grunhiu, mas acabou
concordando.
Na cena final — com os amantes mortos nos braços um do outro, banhados
pela luz das velas —, lágrimas começam a rolar pelo rosto de Marilyn.
Quando James se inclina para enxugá-las com o dedão, ela nota que ele
também está chorando. Ela ouve alguém fungando logo atrás, e ao virar
depara com Justin de pijama, escondido num canto.
— O que está fazendo aí? — James sussurra. — Deveria estar dormindo.
Justin enxuga os olhos.
— Por que ele não esperou mais um pouco? — ele pergunta. — Aí ela
teria acordado. Por que não conferiu se ela estava respirando? Ou ouviu seu
coração?
— Vem aqui — Marilyn diz. Justin levanta e se aconchega entre os dois no
sofá.
Marilyn faz cafuné nele, como sua mãe fazia quando era pequena e ficava
doente, o que adorava. Minutos depois, Justin está dormindo em seu colo.
Ali, sonhando, parece um bebê.
James levanta e pega o irmão no colo para levá-lo para a cama.
— É melhor eu ir — Marilyn sussurra quando ele volta.
— Não. Fica.
Ela sorri.
— Não posso!
Marilyn sabe que está abusando da sorte ao ficar fora de casa até tão tarde.
Faz horas que Rose e Alan foram deitar, e ela só pode torcer para que Sylvie
também.
— Fica — James insiste, deitando no colo dela, parecendo tão pequeno
quanto o irmão. — Quero dormir do seu lado.
— Vou botar você na cama — ela sussurra em meio a risadinhas.
Marilyn tenta levantar, mas James se agarra a ela, puxando-a de volta.
— James!
Ela sorri e põe as mãos em seus ombros, tentando afastá-lo. Ele deixa o
corpo pesar, de modo que Marilyn não pode fazer nada contra seus mais de
um metro e oitenta e oitenta quilos. Eles ficam nessa brincadeira — ela
tentando sair, ele permitindo que quase consiga e então a puxando de volta
para o sofá — até que James finalmente desiste e a deixa levantá-lo. Marilyn
o segue até o fim do corredor, onde há uma porta com JAMES escrito em letras
de madeira.
— Não tira sarro — ele diz. — Minha mãe colocou quando eu era
pequeno.
Marilyn sorri, louca para ver o quarto em que o imaginou tantas vezes
enquanto ouvia a música que escapava pela janela.
É pequeno como o dela, com uma cama de solteiro encostada na janela,
uma manta xadrez esticada em cima. Luzes brancas de Natal penduradas
iluminam o espaço. A escrivaninha, com uma variedade de livros escolares
em cima, é antiga e feita de madeira lixada de leve, revelando seus veios. Na
parede oposta, há um enorme retângulo preto perfeitamente pintado, com
uma prateleirinha para o giz (tem dois pedaços ali). Está escrito: “A cada
noite escura, se segue um dia claro — 2Pac”. E abaixo: “Continuo
comprometida com a ideia de que a habilidade de pensar por si mesmo
depende do domínio da linguagem — Joan Didion”. Sobre um criado-mudo
pequeno, há um suporte de incenso e um copo de água pela metade. Marilyn
sente vontade de passar os dedos na borda do copo. Quando levanta os olhos,
vê uma constelação de estrelinhas pretas pintadas no céu branco.
No lugar em que James vive com ele mesmo, Marilyn sente como se
tivesse percorrido a distância entre eles, ou pelo menos dado um passo que
nunca havia sido permitido antes. Ele tira os sapatos e deita. Ela levanta as
mãos e tira uma foto mental de seu corpo preenchendo a cama de solteiro
perfeitamente arrumada.
— Vem aqui — ele chama, e Marilyn deita ao seu lado, apoiada no
cotovelo, tomada por seu cheiro impresso nos lençóis, os anos de sonhos que
não podem ser lavados na máquina. James descansa a cabeça no peito dela,
que se inclina contra o travesseiro, reconfortada pelo peso dele. A expressão
em seu rosto a lembra da foto de James quando menino, descansando no
ombro da mãe. Ela acaricia seu cabelo, forçando os olhos a se manterem
abertos enquanto a respiração dele fica mais lenta e profunda. Quando James
solta um ronco leve, ela quase deixa escapar uma risada. Seus olhos se
movimentam de leve sob as pálpebras fechadas. Marilyn estuda sua pele
delicada, que fica mais escura perto dos cílios, as sobrancelhas formando uma
sombra leve, o modo como seus músculos se contraem como se segurasse
firme o que está escondido sob eles. Ela traça as tatuagens em seu braço, o
nome da mãe, Angela, em cursiva.
Quando Marilyn tem certeza de que James está dormindo profundamente,
se solta com todo o cuidado, coloca o travesseiro debaixo da cabeça dele e
enterra o rosto em seu pescoço, sentindo seu cheiro antes de sair na ponta dos
pés. Ele grunhe de leve, ajeitando o corpo. Marilyn fecha a porta e vai
embora.
Ela treme com o ar noturno e sobe os degraus para o apartamento de
Woody. Destranca a porta e encontra Sylvie sozinha no escuro, olhando para
a lua através da janela, com uma taça de vinho na mão. Ela vira para a filha.
— Vejo que aproveitou o Dia de Ação de Graças.
Não é um comentário, é uma acusação.
— Não sabia que ainda estava acordada — Marilyn diz baixo.
— Não estou — Sylvie responde. — Estou em outro lugar. Bem longe
desta sala.
Intrigada, Marilyn beija a testa da mãe. Sem resposta, vai tomar um banho,
deita e mergulha tão profundamente nos sonhos que nem se lembra deles ao
acordar.
MARILYN ACORDA COM O BARULHO DE CHUVA. Ela levanta da cama na ponta
dos pés para dar uma olhada na casa. Está vazia. Woody ainda deve estar no
cassino, e Sylvie vai trabalhar o dia todo, porque é Black Friday. Ela vai para
a cozinha fazer café, então liga para James. É Rose quem atende, com sua
animação juvenil.
— Oi, é a Marilyn. James está? — Quando ele atende, ela diz num
sussurro urgente: — Sou eu. Vem aqui, ficar na cama comigo. Estou sozinha.
Pouco depois, enquanto serve duas xícaras de café (com creme em ambas e
muito açúcar na dele), Marilyn ouve a batida na porta e corre para atender.
James está de calção e uma camiseta levemente molhada de chuva, assim
como o cabelo.
— Bom dia, srta. Mack — James diz, com a voz baixa e grave e um sorriso
juvenil no rosto. Ele a pega no colo do nada, literalmente fazendo-a perder o
chão. — Pra onde? — James pergunta, em meio às risadinhas de Marilyn.
Ele a leva pelo corredor até o quarto, que fica bem em cima do seu. James
a deixa na cama e deita por cima dela. Ele beija sua barriga. Tira a blusa dela.
Marilyn estremece. A chuva fica mais forte. James leva as mãos e depois a
boca aos seus seios. O corpo dela está tão desperto que Marilyn se pergunta
se não vai explodir. Ela tira a camiseta dele, passando as mãos pelos
músculos de suas costas, arranhando-o de leve. Quando beija seu pescoço,
James solta um gemido suave. A mão dele a penetra, fazendo o que os dedos
de Marilyn fizeram quando estava deitada na cama pensando nele. E, então,
ela se entrega ao prazer.
James afasta os cabelos da testa dela e beija sua têmpora. Ela o abraça.
— O que eu faço para que sinta a mesma coisa? — Marilyn pergunta num
sussurro.
James ri.
— Posso mostrar, se quiser.
James mostra. Testemunhar seu prazer sabendo que é a causa dele quase
faz com que Marilyn perca o controle de novo.
Os dois ficam quietos, ela descansando a cabeça no peito dele, as mãos
dele no cabelo dela, a chuva em seu ritmo constante, o doce calor da pele dele
contra a dela. Marilyn pega no sono. Nunca se sentiu tão completamente
contida em um único momento.
— Bom dia — James diz para a mulher enquanto destranca a porta da loja.
— Você está atrasado — ela retruca, olhando para o relógio no pulso. —
Achei que abrissem às nove. São nove e cinco.
James sorri.
— Desculpe — ele diz.
Ela o segue loja adentro e coloca uma aliança de noivado no balcão, um
anel de ouro simples com um diamante.
Sem dizer nada, a mulher observa James avaliando a aliança com a lupa,
como seu primo lhe ensinou a fazer. Ela muda o peso de um pé para o outro,
mantendo os ombros abertos. Marilyn de repente lembra de olhar para o
balcão de uma loja igualzinha àquela, provavelmente assim que chegou a Los
Angeles pela primeira vez, e de Sylvie entregando a própria aliança. Agora
visualiza isso com perfeição. Era de prata, com pequenos diamantes
espalhados e uma pedra azul grande — talvez uma safira — no centro. Ela se
lembra vagamente de segurar a mão da mãe, girando a pedra azul no dedo
dela; de como amava seu brilho escuro, de como refletia a luz fraca do
quarto.
Mas, acima de tudo, ela se lembra da expressão vazia no rosto da mãe
quando pegou o dinheiro que o homem barbudo do outro lado do balcão
ofereceu.
— Não deu certo? — o homem perguntou.
— Ele morreu — Sylvie respondeu, direta.
O homem lhe entregou seu cartão.
— Vamos sair um dia desses.
Sylvie aceitou o cartão com um sorriso educado, mas assim que saíram
para o estacionamento do shopping, tomado pelo sol, lágrimas silenciosas
começaram a rolar por seu rosto, deixando marcas na maquiagem. Ela jogou
o cartão no lixo. Marilyn sentiu lágrimas quentes nas próprias bochechas.
Quando voltaram para o Buick, Sylvie ligou o motor e virou para ela,
enxugando os olhos e depois os da filha.
— Não chore, querida. Coisas melhores nos aguardam. Um dia, vamos
poder ter centenas de anéis bonitos, se quiser.
— Posso pagar duzentos — James diz para a mulher.
Ela fica em silêncio por um momento, depois assente. Ele abre o caixa e
conta o dinheiro antes de entregá-lo. Ela o pega e vai embora, fazendo o sino
da porta tocar.
O resto da manhã é tranquilo, e eles podem se concentrar nas inscrições
para as universidades. Marilyn ainda não está satisfeita com sua redação. Só
consegue pensar em escrever sobre por que quer ir para a faculdade, mas,
toda vez que relê suas próprias palavras, só consegue ver uma garota
desesperada por uma fuga. Marilyn sabe que a faculdade significa mais que
isso para ela, mas não consegue expressar.
— Não precisa ficar ansiosa — James aconselha, como já fez diversas
vezes. — Ou não vai conseguir pensar direito.
Então ela pega Slouching Towards Bethlehem e começa a reler, em busca
de inspiração. Um homem entra e compra uma furadeira. Marilyn sai para
comprar tacos para o almoço, e eles comem dentro da loja, onde a
temperatura é mais amena. O primo de James, Eric, chega, balançando os
quadris de forma exagerada ao som de “Si Te Vas” no rádio. Marilyn não
consegue conter o riso.
— E aí? — Eric diz em cumprimento.
— E aí? — James responde.
Eric vira para Marilyn.
— Você deve ser a fotógrafa que conquistou meu primo.
Ele levanta as sobrancelhas para ela.
— Estou tentando — ela diz, tímida. — Muito obrigada pela câmera…
— Não precisa agradecer. Seu garoto está pagando por ela.
Ele vira para James e pisca.
James conta a Eric como foi a manhã, então o primo diz:
— Os pombinhos podem ir. Vejo você na semana que vem.
Eles saem da loja para o sol da tarde de sábado.
***
Assim que James estaciona, Marilyn pula do carro e corre para pegar seu
negativo. Ela se recompõe antes de entregar três dólares e vinte e cinco
centavos ao homem com sotaque francês do outro lado do balcão e pegar o
cilindro com o filme.
— Tudo certo? — James pergunta quando ela volta.
— Sim!
Marilyn sorri, e ele sai com o carro. Sem fôlego, ela abre o cilindro e
segura o negativo contra a luz, observando cada quadradinho translúcido com
uma foto estampada. Vê um a um atentamente, tentando adivinhar como vão
ficar impressas, quais vai escolher. Parece mágico que os momentos daqueles
dias fugazes tenham se tornado permanentes.
Eles já pensaram onde Marilyn pode imprimir as fotos, já que quer fazer
isso ela própria: a escola de James tem uma câmara escura que de fato
funciona, e seu amigo Noah vai ajudá-lo a botá-la para dentro sem que
ninguém saiba. Como faz aula de fotografia, Noah pode usar a câmara escura
nos fins de semana.
Quando eles estacionam, o garoto já está esperando, apoiado contra uma
caminhonete que parece nova. Ele é negro e baixo, tem cabelo enrolado, usa
tênis Adidas verde sem amarrar e uma camisa xadrez colorida.
— E aí? — ele cumprimenta quando os dois se aproximam.
Noah e James trocam um aperto de mão e ele vira para Marilyn.
— Você roubou meu amigo — ele diz com um sorriso no rosto —, mas
acho que te perdoo. — Marilyn fica surpresa quando Noah a abraça. — Que
cheiro gostoso.
Ele faz graça, cheirando o cabelo dela e fingindo estar interessado. Marilyn
ri.
— Obrigada.
— Ela é bonita — ele diz para James por cima do ombro de Marilyn. —
Branquela, mas bonita.
— Já chega vocês dois. — James dá um soco de brincadeira em Noah. —
Larga ela.
— A gente costumava sair juntos atrás de garotas todo fim de semana, mas
agora esse aí anda todo “Vou ficar com a Mari” — Noah reclama enquanto
passam pelos bonitos prédios antigos de tijolos, pelo amplo gramado
verdejante e pelas palmeiras.
Eles entram na câmara escura, e é ainda melhor que a de Orange County.
Noah mostra onde estão os produtos e diz que ela pode usar o papel
fotográfico dele.
— Muito, muito obrigada.
— Sem problemas. Em troca, você só tem que me emprestar James um
pouco. Vamos dar uma volta no shopping.
— Só não deixa que ele conheça nenhuma garota pra me substituir — ela
brinca.
— Não se preocupe, vou só dar uma mão pro Noah — James diz, sorrindo.
Eles vão embora e Marilyn começa a trabalhar, preparando as soluções e
cortando os negativos em tiras de seis quadradinhos. Depois de um teste com
uma tira, ela monta uma folha de contato. Espera, profunda e vorazmente,
encontrar pelo menos uma imagem que pareça com suas fotos mentais, que
haja pelo menos uma que deixe James orgulhoso, que seja o bastante para
satisfazer o que quer que ele tenha imaginado quando disse que queria ver
pelos olhos dela. Marilyn deixa os negativos em exposição por nove
segundos, depois leva a folha de contato para revelar, observando as marcas
deixadas pelos quadradinhos translúcidos. Seu coração quase para ao ver as
miniaturas cheias de James, a textura de sua vida juntos. Depois da fixação e
da lavagem, ela pendura a folha para secar e então marca com uma caneta as
fotos que vai imprimir.
Marilyn fica obcecada com o tempo de exposição e o enquadramento,
tentando deixar cada foto o mais cortante possível. Ela coloca a fita que
James lhe deu para tocar no som que alguém deixou ali e ouve cada lado de
novo e de novo, sabe-se lá quantas vezes. Erykah Badu está cantando “You
know that you got me…” quando James entra.
— E aí, Mari Mack?
— Que susto!
— Você está aqui há quatro horas.
— Sério? Não tinha ideia! — Marilyn diz enquanto tira uma foto da
solução.
— Noah teve que ir. Só pediu pra gente trancar quando sair.
James olha por cima do ombro dela. Vê a si mesmo na foto, no fim do píer,
flutuando entre a água e o céu, quase como se pudesse caminhar no
horizonte.
— Não olha ainda! — ela diz, mergulhando o papel na solução de
interrupção.
— Não aguento esperar! — James brinca.
Ela empurra seu corpo contra a parede e o beija. A luz infravermelha
ilumina seus rostos.
— Bom, sem muitas expectativas. Ainda estou aprendendo — ela diz,
nervosa.
Marilyn leva o papel para a fixação, mergulhando-o na solução. Depois do
enxágue, ela o coloca para secar com os outros.
Tem algo nas fotografias, ou pelo menos nas que importam — elas
parecem preservar a memória, não de um único momento, mas de todos os
momentos invisíveis que levaram àquilo. Marilyn olha para seu trabalho.
James no píer. Justin chupando um picolé. James deitado no sofá, com os
braços cruzados sobre o peito nu enquanto Justin mexe em seu tênis, com um
olhar travesso para a câmera. A silhueta de James, parecendo engolir o sol se
pondo sobre a água. A fachada do prédio: a laranjeira, a tinta rosa
descascando, as pétalas espalhadas no chão, uma figura turva, impossível de
identificar, atrás de uma janela do segundo andar.
— Certo — ela sussurra. — Pode olhar.
James se aproxima por trás dela e observa as fotos.
— O que acha? — Marilyn pergunta depois do que parece um silêncio
épico.
— Acho que são lindas.
— Sério?
— Sério. — Ele vira para ela com um sorriso. — Quer dizer que sou
assim?
— Sim e não.
— Por que não?
— Porque fotos são imóveis. E você está sempre em movimento.
— Mas é isso que eu amo nas suas fotos. Quer dizer, é uma das coisas que
eu amo. Elas não parecem congeladas. Dá pra sentir o movimento, ou o que
está por vir.
Marilyn sorri. Embora a versão tangível do filme seja imperfeita em
comparação aos momentos que congelava mentalmente, pelo menos aquilo
ela pode compartilhar. Aquilo existe.
— Só falta uma — Marilyn diz. — Então podemos ir.
***
Seis horas depois, mais de meia-noite, ela relê suas palavras, escritas e
reescritas à mão, detalhando como sua experiência como atriz de comerciais e
modelo a inspirou a ir para trás das câmeras. A princípio, Marilyn explica,
tirar fotos lhe dava uma sensação inédita de ser o sujeito da ação, de estar no
controle (como James havia dito na praia tanto tempo atrás).
Ela menciona suas inúmeras fotos mentais, descrevendo a imagem das
palmeiras enfileiradas como soldados do outro lado da janela de seu quarto
apertado; a dor no rosto da mãe, olhando para sua casa dos sonhos decorada
para o Natal por outra família; o vizinho pendurando um bebedouro para os
beija-flores, com uma tatuagem do pássaro no ombro e um beija-flor real
parado no ar logo acima. Quando seus olhos se encontraram e Marilyn
“tirou” a foto, foi sua própria versão de amor à primeira vista.
Ela escreve sobre como acredita que todas aquelas fotos invisíveis
começaram a mudar a maneira como via — estar atrás da lente, mesmo que
imaginária, pareceu trazer o mundo ao seu alcance. Agora que tem uma
câmera, fica grata por saber como traduzir isso em algo concreto, tangível.
Sempre penso que fotografar, ela escreve, é como agarrar uma imagem das
mãos do tempo, antes que seja perdida. Uma foto pode ser guardada,
compartilhada, presenteada. Pode se renovar aos olhos de cada um que a vê.
Marilyn não sabe se é a redação perfeita ou se será a chave para seu futuro.
Mas sabe que é o que quer dizer.
NA VÉSPERA DO ANO-NOVO, Marilyn e James estão na biblioteca com uma
pilha de envelopes de papel pardo e uma pilha de papéis à sua frente. Eles
revisam cuidadosamente cada inscrição, procurando erros. Marilyn gosta de
ver a caligrafia infantil de James em linhas retas, suas ideias sobre a
importância da música e da corrida, as responsabilidades que tem como
irmão mais velho. Ele encontra um erro de grafia em uma das respostas de
Marilyn, então ela paga dez centavos para usar a máquina de xerox da
biblioteca e tira cópias da página corrigida.
Juntos, eles colocam o destinatário nos dez envelopes. Marilyn insiste que
guardem o melhor para o final, quando finalmente escrevem: Universidade
Columbia, Escritório de Admissões, Hamilton Hall 212, caixa postal 2807,
Amsterdam Avenue 1130, Nova York, NY, 10027.
Marilyn olha para James, que larga a caneta e a encara do outro lado da
mesa.
— Então… Tudo pronto? — ele pergunta.
— Sim.
***
O sol se põe à distância sobre o oceano, deixando traços de uma leve luz
rosada no céu enquanto Marilyn e James sobem o Runyon Canyon,
carregando hambúrgueres do In-N-Out e um pacote de cerveja que Marilyn
roubou da geladeira de casa, com a intenção de repor no dia seguinte. Não era
champanhe, “mas pelo menos tem bolhinhas!”, ela disse a James.
Quando chegam ao topo, o céu já está quase escuro, e a cidade abaixo
desperta numa onda de luzes. Os dois parecem flutuar — acima das
preocupações dos pedestres, das esquinas, dos prédios, dos carros buzinando,
das mansões espalhadas, das estrelas.
James abre duas cervejas em uma pedra. Eles brindam.
— A você — Marilyn diz.
— A você — ele retruca.
— A 1999 — ela acrescenta. E depois: — A Nova York.
— A Nova York — James repete, e os dois riem, continuando com a
brincadeira. — Às suas fotos.
— A câmeras penhoradas e fotos do mar.
Ele a encara.
— À cor dos seus olhos.
— Ao seu sorriso perfeito.
— Ao melhor presente de Natal do mundo — James diz com um sorriso
malicioso, e ela fica vermelha.
— A James Brown.
— A Joan Didion.
— Ao nosso auge.
— Ao amor.
— Ao amor.
Fogos de artifício estouram à distância, como se só estivessem esperando
para celebrar a escuridão no céu. Então mais e mais aparecem, espalhados
pela cidade.
— Não vou te deixar — ela diz.
— Como assim?
— No ano que vem. Não importa o que aconteça, a gente vai ficar junto.
James pega as mãos dela.
— Vamos esperar para ver, Mari. Não quero que desista de tudo pelo que
tem trabalhado.
— E eu não quero desistir de você — ela insiste, levantando a voz.
— Tá bom, calma — ele diz, envolvendo-a com os braços. — Estamos
juntos nessa. Não importa o que aconteça, vamos dar um jeito.
Ela olha bem em seus olhos.
— Promete?
— Prometo.
James pega os hambúrgueres e acende uma vela branca que trouxe na
mochila.
Marilyn sorri.
— Um piquenique romântico.
A chama sutil queima entre os dois enquanto comem, olhando para a
explosão de luzes no horizonte, abrindo mais cervejas.
— Aos milagres humanos.
— Às conchinhas coloridas.
— Às bibliotecas.
— Aos picolés da pantera cor-de-rosa.
— A Romeu e Julieta.
— A garrafas quebradas.
Eles continuam brindando, celebrando os momentos, os objetos e os
sentimentos que marcaram seus meses juntos.
— À noite em que me beijou pela primeira vez — Marilyn diz.
— Acho que foi você quem me beijou — ele diz, sorrindo.
— Acho que não, mas um brinde mesmo assim. — Ela ri.
Os dois bebem, e Marilyn começa a sentir a cabeça se enchendo de bolhas.
Seu desejo aumenta de imediato; é algo que quase pode sentir latente, como o
ar antes de uma tempestade. Ela encosta os lábios nos dele e sabe que vai ser
aquela noite. Que aquilo é certo.
Pega a bolsa e tira uma única camisinha de dentro, que comprou na lojinha
de conveniência, imaginando que aquele momento chegaria. Então a oferece
a ele.
James a pega e levanta a sobrancelha para Marilyn, com um sorrisinho se
abrindo em seu rosto.
Marilyn está de pé, apoiada contra a grade, vendo a Cidade dos Anjos aos
seus pés, o calor do corpo de James atrás do seu. Sente o toque no ombro,
puxando-a para mais perto, a mão dele apoiada delicadamente no pescoço
dela.
— Você quer? — ele sussurra.
— Quero.
Marilyn abre os braços como se fossem asas, para senti-lo, aos poucos,
depois tudo de uma vez. Ela se sente projetada para o horizonte, e dói. Seu
corpo dói. Dói tanto quanto se envolver, se abrir para alguém.
— Tudo bem? — ele pergunta.
— Preciso ver seu rosto — Marilyn diz. E realmente precisa, com
urgência. Ele a vira, pressionando suas costas contra a grade. Ela arfa quando
James começa de novo, ouve um gemido do fundo da garganta dele, vê uma
expressão que nunca viu em seu rosto, lúcida e concentrada, com as estrelas
de pano de fundo. James olha para ela, olha para dentro dela.
Marilyn passa as mãos pelos músculos das costas deles, seus ombros,
puxando seu corpo para mais perto, mais para dentro. O diamante em sua
mente se multiplicou em milhares, e todos pertencem a ela e a James. O
futuro não é mais uma única fonte de luz, mas o céu inteiro. Esparramado e
disperso.
— Te amo.
— Te amo.
Pelo resto da vida, ela nunca vai ter uma história que não seja dele
também.
— ME DÁ UM ABRAÇO DE URSO — James pede, e ela o aperta com toda a força.
— Me dá um abraço de leão — Marilyn sussurra de volta, e ele obedece,
com seus braços firmes em volta do corpo dela.
— Grrr — James rosna.
— Grrr — ela retribui, passando a mão em seu peito.
— Agora um abraço de tiranossauro — James diz.
Marilyn ri.
— Tiranossauros têm bracinhos minúsculos!
— Que nem você!
— Meus braços não são minúsculos!
A luz do dia entra pela janela, batendo no cabelo de Marilyn, nas maçãs do
rosto e nos olhos agora risonhos de James. Woody ainda não voltou do
cassino e Sylvie está trabalhando. Quando acordou, ao meio-dia, Marilyn
ligou para James e ele correu para o seu quarto, ainda ensonado.
Ele pega o bíceps dela.
— Rar — James avança, com o rosto numa careta brincalhona a
centímetros do dela, então envolve sua cintura.
— Rar — Marilyn repete, em meio a risadinhas.
— Pelo menos é destemida. — James sorri.
Ela morde seu pescoço com delicadeza e ele fecha os olhos, deixando um
gemido escapar da garganta, e a deita de costas. James dá beijinhos rápidos e
brincalhões em sua barriga, parando quando chega à calcinha de algodão com
estampa de cereja, um tanto velha. Ele olha para ela, e tudo parece ficar
imóvel no quarto, o sol agora batendo no coração de Marilyn.
Ele descansa a cabeça na barriga dela, que ronca.
— Tem alguém aí? — James pergunta, rindo.
— Só minha fome.
— Então vamos alimentar você.
A barriga dela ronca de novo. James pega Coração Valente, o leão de
pelúcia dela, e mexe sua cabeça como se falasse com a barriga de Marilyn.
— Rar! — James avança, com a voz alta.
Marilyn ri e olha para ele. Estar apaixonada por James Alan Bell no
primeiro dia de 1999 é assim.
— Espera um segundo. Não se mexe — ela diz, levantando para pegar a
câmera. Ela enquadra seu corpo envolto nos lençóis do Meu Querido Pônei,
com o rosto levantando e a luz do sol brincando sobre sua pele.
Clique.
Então vem outro som. A porta da frente abrindo. O coração de Marilyn
dispara em pânico. São os passos de Woody.
— Espera aqui — ela sussurra para James enquanto se veste rápido. Ele
tenta pegar sua mão, mas Marilyn se solta e sai do quarto. Woody está na
cozinha. Ela sabe por sua cara que a ida ao cassino não foi boa. Um leve
cheiro de bebida emana de seu corpo quando ele se movimenta.
— Oi — ela diz.
— Acabou a cerveja.
Merda. Totalmente envolvida por James, ela se esqueceu de repor o pacote
que pegou na noite anterior.
— Quer que eu vá comprar?
— Cadê o pacote que estava aqui? — ele pergunta, mas parece uma
acusação.
— Não sei.
Woody dá um tapa no rosto dela. É tão repentino que seu cérebro demora
para processar o que aconteceu.
— Não mente pra mim.
Marilyn leva a mão ao rosto, começando a sentir a dor.
— Você não paga aluguel e agora acha que pode pegar o que não é seu e
ainda mentir? Você e sua mãe nunca vieram me visitar nesses oito anos, até
que precisaram de um lugar para ficar. Se conseguirem comprar uma
daquelas casas finas que ela quer, acha que vão me convidar? Vão
desaparecer de novo, como se eu não fosse nada, ninguém. Vocês não gostam
de mim. Não gostam. Não estão nem aí para mim, e agora vem mentir sobre
roubar a porra da minha cerveja…
James entra correndo.
— Que porra é essa? — Woody explode. — O que está fazendo na minha
casa?
James põe a mão no ombro de Marilyn para puxá-la para fora.
— Eu já estava saindo — ele diz, tranquilo, embora Marilyn consiga sentir
o calor que emana de seu corpo.
— Se seu pai visse a vagabunda que você se tornou…
É a última coisa que Marilyn ouve antes de James fechar a porta.
Ele mantém o braço nos ombros dela, continua andando. Não vai deixar
que desabe. James a guia escada abaixo. A laranjeira está carregada. O
reflexo do sol na calçada a lembra do vidro ao luar, na noite das garrafas
quebradas. Ele abre a porta do passageiro do Dodge estacionado ali em
frente. Marilyn entra e sente o cheiro de couro, o aroma suave do corpo dele.
Vê as gotas de chuva impressas no para-brisa sujo, um folheto de uma
empresa que limpa carpete. Um copo descartável do In-N-Out, a caixinha da
fita Hard Knock Life. Tenta focar nessas coisas, em cada uma delas.
James dá a partida, com o corpo ainda tenso, sua energia toda voltada para
o autocontrole. Ele sai com o carro e leva Marilyn para longe dali.
***
***
Eles chegam à praia, e Marilyn tenta deixar o barulho das ondas acalmá-la,
mas não consegue se livrar da velha sensação de que está em outro lugar, e
não ali. Ela procura focar nos fatos: a água indo e voltando, os fragmentos
iridescentes de conchas, os emaranhados de algas na areia, como se fossem
corpos. Ao seu lado, James encara o horizonte, com as mãos cerradas.
Quando o céu começa a escurecer, ela levanta e leva James até debaixo do
píer. Cercados pelo cheiro de madeira velha das tábuas e do sal marinho,
Marilyn encosta seu corpo no dele.
— Não tenho nada comigo — James diz.
— Você pode tirar… — ela sugere num sussurro, já passando as mãos
pelas costas dele.
Na escuridão salgada das cinco da tarde do dia de Ano-Novo, o sexo
parece uma fogueira quente o bastante para transformar a raiva dela, a raiva
dele, em outra coisa, algo quente também, mas limpo, sagrado. É a
absolvição. A resposta.
— VOCÊ NÃO PODE SUBIR SOZINHA — James diz quando eles voltam para casa.
— Janta com a gente. Pode passar a noite se quiser. Tenho certeza de que
meus avós não vão se incomodar se você dormir no sofá. Ou pelo menos
espera até sua mãe voltar.
Marilyn segue James até a porta dele. Ao ver o carro de Woody
estacionado, ela se pergunta se ele está observando pela janela. O tapa deixou
uma marca vermelha em sua bochecha, que Rose nota assim que eles entram.
— Querida, o que aconteceu com seu rosto? Está tudo bem?
— Estou bem — Marilyn diz, então olha de relance para James. — Peguei
no sono na praia. Deve ter queimado.
Rose franze a testa, mas, talvez por causa de Justin, só assente. Pouco
depois, ela pega a manta que cobre o sofá — macia e com franjas — e coloca
nos ombros de Marilyn. O cheiro de rosas a lembra de quando era pequena e
esmagava pétalas para fazer “perfume”.
Ela senta à mesa da cozinha e começa a aparar as vagens, sentindo o cheiro
de arroz e de frango que toma conta do lugar. Alan assiste ao seu programa
de perguntas na televisão e fica gritando as respostas e batendo na própria
perna sempre que acerta. James deita no sofá em silêncio, perto do avô,
dando as respostas só quando Alan não sabe. Justin fica roubando comida na
cozinha antes que Rose o impeça. Ele senta ao lado de Marilyn para contar
sobre seu professor de matemática, que tem uma prótese no lugar da perna e
dá balas para os alunos que acertam as perguntas. Ele corre para o quarto e
volta carregando uma porção de pacotinhos na camiseta, exibindo-os com
orgulho.
— E você ainda não comeu nenhum? — ela pergunta.
Justin sorri.
— Não.
— Estou impressionada.
Quando sentam à mesa para jantar, Marilyn ouve passos no apartamento de
cima — da mãe, conclui, ao ouvir os saltos. Ela tenta se concentrar na
comida, que está deliciosa. O clima na casa dos Bell é tão reconfortante, tão
pleno, que ela só quer ficar ali com eles.
Então alguém bate na porta. Depressa e com insistência. James levanta
para atender e depara com Sylvie, ainda com os saltos do trabalho, o cabelo
escapando do coque e caindo sobre a nuca. Alan o segue até a porta.
— Oi, sra. Miller — James diz, educado, sem demonstrar qualquer
emoção.
— Oi. Imagino que minha filha esteja aqui — ela comenta apertando os
lábios, olhando de James para Alan e para o que pode ver do apartamento.
Marilyn levanta devagar.
— Oi, mãe.
— Vamos, amanhã as aulas voltam. Precisa do seu sono de beleza —
Sylvie diz, forçando animação.
— Já subo — Marilyn responde.
Mas Sylvie não se move. Só fica esperando na porta.
— Estamos jantando — Alan diz. — Quer se juntar a nós?
— Ah, não. Precisamos ir.
Marilyn levanta para que as coisas não piorem mais ainda.
— Obrigada pelo jantar — ela diz para Rose, dando-lhe um abraço de boa-
noite.
— Pelo menos leve um pouco de comida, querida — Rose diz, levantando
abruptamente e lançando um olhar cortante para Sylvie antes de ir para a
cozinha. Ela volta com um pote, e todos esperam em silêncio enquanto
guarda a comida do prato quase cheio de Marilyn.
— Obrigada — a garota diz baixo, dando um beijo na bochecha dela.
Marilyn sente os olhos de James nela. Não quer que a toque na frente da
mãe, mas ele a encara como se tentasse dizer: “Te amo. Vai ficar tudo bem”.
— A gente se vê amanhã? — ela pergunta.
Ele assente, então Sylvie fecha a porta.
***
***
O comercial da Levi’s sai. Chove por dias a fio. O sol da Califórnia se
esconde e as enchentes tomam conta das ruas. Na escola, os dias parecem
sombrios, mas as tardes de janeiro se tornam lindas quando Marilyn está com
James, o cinza do céu fazendo todas as cores da cidade parecerem saturadas:
o verde das árvores mais profundo, o roxo das flores mais intenso. As gotas
de chuva batendo de forma ritmada na janela deixam o apartamento dele
ainda mais confortável. Ela com frequência janta lá. Já pensa na família dele
como sua, sentindo que pertence àquele lugar.
O tempo melhora bem a tempo do aniversário de Justin, e os três passam o
primeiro domingo de fevereiro na praia. As tempestades limparam o céu,
deixando a luz da manhã mais incisiva. Justin quer tirar fotos coloridas, então
Marilyn e James o observam do píer enquanto posiciona a câmera com todo o
cuidado. Ele fotografa uma menininha na ponta dos pés diante do tubarão
sorridente de madeira que determina quem é alto o bastante para ir na roda-
gigante; um homem dormindo na areia; um garoto cujo sorvete acabou de
cair da casquinha.
James compra salsichas e batatas para o almoço e eles cantam parabéns
para Justin, sentados sobre as tábuas de madeira na beirada do píer, com os
pés acima da água. Marilyn balança as pernas no ritmo da música, e um de
seus mocassins marrons voa para o mar.
— Merda!
Justin morre de rir. É contagiante, e logo os três estão gargalhando. Justin
insiste que ela não pode andar descalça.
— Vai entrar uma farpa — ele avisa. — Entrou uma no meu pé quando era
bebê…
— Você já tinha quatro anos — James interrompe.
— Entrou tão fundo que tive que ir no médico tirar. Fiquei sem andar por
um mês.
— Alguns dias — James corrige, mas Justin vence a discussão de qualquer
jeito, e Marilyn pula num único pé, com um braço no ombro de cada um
deles. ( Justin já está quase com a altura dela. Como é possível? É como se
tivesse crescido mais de trinta centímetros nos seis meses desde que o
conheceu.) Os três vão rindo até a barraquinha que vende óculos escuros e
chinelos com palmeiras e LOS ANGELES estampados. Marilyn pede a opinião
de Justin quanto à cor e acaba levando um par vermelho. James paga
enquanto ela experimenta óculos escuros gigantes.
— Fica parecendo a Joan Didion com eles — James diz. Ela sorri e
devolve os óculos, mas pouco depois James aparece atrás dela e o coloca em
seu rosto.
— Você comprou?
— Foi feito pra você. Não podia deixar.
Marilyn vira e o beija.
— Te amo — ela sussurra em seu ouvido.
Ele sorri, e Marilyn sorri de volta.
— Por aqui — Justin diz. Eles viram e se deparam com a câmera apontada
em sua direção. Clique.
Marilyn pensa que devem parecer felizes na foto. Porque estão. E é só o
começo: no ano seguinte, estarão juntos num terraço de Nova York, com a
cidade se estendendo aos seus pés. Quando Justin for visitá-los, vão mostrar
os neons da Times Square e os museus de arte. Os dois vão ficar até tarde
estudando na biblioteca; vão ver as folhas amarelarem no Central Park; irão a
bares ouvir música. Vão se formar, parecendo orgulhosos em suas becas.
James vai escrever ensaios; ela vai tirar fotos; eles vão viajar e ver o mundo
juntos. E, Marilyn espera, um dia terão uma filha chamada Angela.
ANGIE ACORDA SOZINHA NUMA CAMA que não reconhece, com a cabeça
latejando e a luz forte demais. Ela olha para o mural de Cherry e aos poucos
se lembra de onde está. Bem-vinda a Los Angeles.
Ela abre a mão e vê escrito na palma: 179 Sycamore.
Hoje é o dia em que vai bater na porta de Justin. Ela vai encontrar o tio,
que vai lhe dizer onde seu pai está. Então por que sente como se algo dentro
dela tivesse se perdido? O molde de seu corpo, sua própria forma lhe
parecem retorcidos. Sua cabeça dói, e muito. Ela tenta repassar os eventos da
noite anterior, mas é tudo um grande borrão. Tenta se lembrar do rosto de
Justin, mas não consegue.
— Oi, dorminhoca. Acordou?
Ela rola devagar e vê Sam sentado na cama com uma caneca de café,
lendo.
— O que é isso? — Angie pergunta.
Sam fecha o livro para mostrar a capa: Citizen: An American Lyric, de
Claudia Rankine. Há uma foto de um capuz preto, sem o restante da blusa.
— É poesia. Meu pai vai usar na aula dele ano que vem.
— Ah.
— Ela escreve sobre racismo, tipo as microagressões que vão se somando.
— Ah.
— É bem bom, olha só. “O mundo está errado. Não se pode deixar o
passado para trás. Está enterrado em você; transformou sua pele em seu
armário…”
Angie assente.
— É bom mesmo.
— Como está se sentindo?
— Bem — ela diz, tentando reprimir a vergonha que sente e se transforma
rapidamente em náusea. — Que horas são?
— Uma e meia.
— Cadê o Miguel e a Cherry?
— Pegaram um Uber para a casa da Cherry depois da festa.
— Ah.
— Quer café?
— Acho que um pouco de água.
Sam levanta e volta com um copo.
— A gente precisa conversar — ele diz quando Angie senta e dá um gole.
Então ela nota, em pânico, que está só de calcinha e camiseta.
— A gente…?
— Não. Nada aconteceu. Você só… Só tirou a roupa da festa antes de
deitar. Não tive nada a ver com isso.
— Ah.
— Mas você sabe que me beijou no outro dia, né?
— Sam, eu…
— Espera. Me deixa falar. Sem essa de “Sam, eu”.
Angie olha para ele, com o coração batendo insistente contra o peito, como
um visitante impaciente.
— Angie, você me ama? É verdade o que você disse?
— Quê? Eu… — O coração dela bate tão forte agora que poderia derrubar
a porta. — Eu não… não consigo falar disso agora. Vai ficar tudo bem. Tudo
vai melhorar.
Tudo vai melhorar. Ela vai conhecer Justin. Vai descobrir a verdade sobre
o pai. O pai, que Angie espera que preencha a lacuna entre ela e o mundo.
Angie nota que o rosto de Sam se fecha, a esperança substituída pela
desolação.
— O que eu sou pra você? — ele pergunta depois de um tempo, com a voz
cortante.
— Você é… alguém com quem me importo. Meu amigo.
— Seu amigo? Porque às vezes parece que você não está nem aí pra mim.
Como se achasse que pode entrar no meu coração quando for conveniente,
sempre que precisar de alguma coisa. Mas não é assim que funciona, Angie.
Você não é a única no mundo com problemas.
— Eu sei! Sei que não sou a única pessoa com problemas, sei que no
esquema geral das coisas não importo…
— Não é nada disso! Talvez, se entrasse na sua cabeça que você importa,
começasse a agir com os outros como se eles importassem também.
— Olha, sinto muito se não estou pronta para… para falar sobre nosso
relacionamento agora, mas, Sam, estou tão perto, mais perto do que nunca
estive de encontrar meu pai e…
— Tá. Vai.
Sam levanta e pega a chave do carro no bolso da jaqueta, jogando-a para
Angie.
Ela cai no chão, e Angie a pega. Veste o jeans. Vai até o banheiro e joga
água no rosto. Suplica a seu coração que pare de bater tão forte contra o
peito. Não vai abrir a porta e deixar que saia, não vai deixar que escape. Ela
vai inteira encontrar seu pai.
ANGIE SAI PARA O DIA CLARO DEMAIS, com a chave de Sam na mão. Um carro
buzina. Uma sirene à distância. Uma mulher empurrando um carrinho de
bebê passa por ela na calçada. Angie não tem nenhuma lembrança de onde
estacionaram na noite anterior e começa a vasculhar o quarteirão, mas só
consegue dar alguns passos antes de se inclinar e vomitar na sarjeta. Duas
crianças de skate passam por ela. Angie fecha os olhos e respira fundo.
Recomponha-se, diz a si mesma.
Ela levanta e continua andando até encontrar o Jeep estacionado na
esquina, em frente a uma casinha de estuque. Enquanto se dirige à porta, vê
um beija-flor pousando na trepadeira que cresce sobre a cerca, e de repente
está perdida em suas memórias.
Ela e a mãe estão desempacotando na cozinha da casa nova, quando
Marilyn tem um sobressalto.
— Angie, vem aqui! — ela sussurra, olhando pela janela.
É um beija-flor, batendo as asas um milhão de vezes por minuto, olhando-
as de volta. Marilyn aperta a mão da filha e diz:
— É um sinal. Estamos em casa.
Angie não sabe dizer se a mãe está triste, feliz ou uma mistura dos dois,
mas Marilyn insiste em largar as caixas e ir até a loja de artigos para casa. Ela
deixa Angie escolher um bebedouro de vidro azul decorado com flores
vermelhas.
Recomponha-se, Angie repete agora para si mesma, abrindo a porta do
carro. Ela pega o celular na bolsa e vê que só tem dez por cento de bateria.
Argh. É claro que não o colocou para carregar na noite anterior. Ela digita o
endereço de Justin no Google Maps: dezessete minutos de carro. Mas não
pode ir assim.
O GPS a leva até a farmácia mais próxima, onde compra uma garrafa de
água, escova e pasta de dente. Ela pede para usar o banheiro, espera pela
chave e escova os dentes lá dentro.
Quando termina a garrafa, compra outra, além de gloss e rímel. De volta ao
Jeep, ela se maquia usando o espelho do retrovisor, esperando que pareça
melhor do que se sente. Ela segue as instruções até a Sycamore número 179,
dirigindo com cuidado pelas ruas da cidade, fazendo seu melhor para não se
assustar com os carros buzinando em volta dela. A fita dos pais toca no rádio.
Ela adianta até “At Your Best”, esperando que a voz de Aaliyah a acalme. No
farol, olha para as folhas das palmeiras balançando ao vento, um outdoor em
branco, o céu azul sem nuvens. Angie tenta imaginar sua mãe — a mãe da
foto, a mãe com o sorriso brilhante — ouvindo essa música no carro com o
pai. “Stay at your best, baby…”
Ela entra na Sycamore, estaciona e vai até a casa. Uma família de judeus
ortodoxos com três crianças atravessa a rua, duas garotas negras com roupas
de marca entram num Prius, um cara branco passa correndo por elas. Há um
enorme eucalipto ao lado do número de Justin, suas raízes perfurando o
cimento.
Angie bate na porta em que Justin entrou na noite anterior.
Ela espera. E espera.
Então bate de novo.
Angie olha para a janela no segundo andar, mas não consegue ver nada
através da cortina.
Ela espera.
Mas ele não aparece.
Tudo bem, ela diz para si mesma. Ele só saiu. Só não está em casa agora.
Vai voltar.
Angie volta para o Jeep, com as mãos tremendo. Ela bota a música para
tocar desde o começo e fecha os olhos.
ANGIE ABRE OS OLHOS E VÊ O ÚLTIMO RAIO DE SOL deixando o céu. Merda. Por
quanto tempo dormiu? Sua boca está seca. Ela vasculha o chão do Jeep e
encontra uma garrafa de Gatorade roxo pela metade. Sam adora Gatorade
roxo. Sam.
Ela o afasta da cabeça, virando a bebida. Então vê o Mustang preto de
Justin estacionado do outro lado da rua. Angie sai e vai rapidamente até a
porta do apartamento dele, ajeitando o jeans, enrolando os cachos, sentindo o
cheiro de jasmim no ar morno da noite. A janela do segundo andar está
aberta. A cortina continua fechada, mas a luz está acesa. A música escapa lá
de dentro: “I tried to dance it away…”.
“Cranes in the Sky”, de Solange. Angie ama essa música. Só pode ser um
sinal — um fio já a liga a Justin. Ao se aproximar da porta, consegue ouvir
vozes lá dentro. Angie bate antes de poder pensar muito. É uma boa batida,
forte. Ela expira, sem perceber que estava segurando o fôlego.
***
Acho que é uma boa ideia ficar em bons termos com a pessoa que
costumávamos ser, quer a consideremos boa companhia ou não. Caso
contrário, ela aparece sem avisar e nos pega de surpresa, batendo na porta
da mente às quatro da manhã de uma noite ruim exigindo saber quem a
abandonou, quem a traiu, quem vai ressarci-la.
Sentada atrás do volante na estrada que costumava pegar para ir para a
praia com James, Marilyn se lembra da citação do livro de Joan Didion que
adorava. Na época, essas palavras a levaram a abrir as portas para si mesma
e, eventualmente, a deixá-lo entrar.
A garota de dezessete anos, a garota que se apaixonou por James Alan
Bell, que tirava fotos com a câmera dada por ele, que perdeu a virgindade no
topo do Runyon Canyon, que planejou um futuro juntos, está batendo na
porta de seu coração desde que a deixou em Los Angeles e saiu dirigindo
pelo deserto.
Marilyn olha para o rosto da filha e pela primeira vez a vê nele — a garota
que deixou para trás. Pela primeira vez, enxerga que, para compreender
Angie, precisa compreender a si mesma. Marilyn vai ter que deixar aquela
garota entrar, seu próprio eu aos dezessete anos, ainda que destroçada pela
dor, afogada na culpa; vai ter que reaprender a amar aquela garota da mesma
maneira que ama sua filha, ou perderá Angie com ela.
Então ela começa a falar. E conta a Angie a história que nunca contou a
ninguém, desde a noite que a destruiu tantos anos atrás.
JAMES E JUSTIN CANTAM “ROSA PARKS”, que está tocando no rádio, quando
viram na Gramercy Place, no caminho de volta da praia. A música é
contagiante, e Marilyn começa a mover o corpo junto com eles, soltando-se,
iluminando-se, quase levitando. Mas, quando estacionam, ela vê Woody
saindo da caminhonete do outro lado da rua e afunda de novo. James põe a
mão em sua perna e olha em seus olhos. Está tudo bem, ele diz, sem recorrer
a palavras. Justin salta do carro sem nem perceber que tem algo errado.
Marilyn se lembra de que não importa o que Woody pensa. Ela só tem
mais uns meses ali, de qualquer maneira. O que ele pode fazer? Ela pega a
câmera, com algumas poucas fotos sobrando depois dos cliques de Justin, e
segue James até a porta da casa dele.
— Aonde você pensa que vai?
Woody surge atrás de Marilyn e segura seu braço, o rosto vermelho de
fúria, embriaguez ou provavelmente ambos. Ela odeia o fato de que não
consegue responder.
— Vamos jantar. É aniversário do meu irmão — James diz. Marilyn vê os
músculos dele se tensionando, a briga juntando forças em seu corpo. Por
sorte, Justin já entrou.
— Quero que limpe o apartamento — Woody diz para a sobrinha. —
Vamos.
— Ela não vai agora. — James dá um passo à frente. — E, se bater nela de
novo — ele diz, baixando a voz —, não vai viver pra contar.
Marilyn vê uma fúria selvagem brilhando nos olhos de Woody, mas se
refugia na assertividade da voz de James. Ele importa; o amor deles importa;
Woody não importa. Antes que o tio possa responder, Marilyn puxa o braço e
segue James apartamento adentro.
Ela se força a respirar, prometendo a si mesma que não vai deixar o
incidente atrapalhar o aniversário de Justin. James mantém a mão em suas
costas, guiando-a até o sofá, depois vai buscar um copo d’água. Ela sente o
cheiro do bolo de chocolate recém-saído do forno. Eles comem macarrão com
queijo, o prato preferido de Justin. Cantam “Parabéns pra você” e ele apaga
as velas e abre os presentes. Marilyn fez um álbum especialmente para ele,
com cópias de suas fotos favoritas e espaço para que Justin acrescente as
dele. Ela ouve os passos da mãe no apartamento de cima e conclui que voltou
do trabalho. Mas sabe que Sylvie não vai buscá-la, não mais. Ela tem agido
como se Marilyn fosse apenas uma sombra, uma dublê que está ali apenas
para lembrá-la da filha perdida. Quando é hora de ir para casa, James
pergunta se pode acompanhá-la, mas Marilyn não quer irritar Woody ainda
mais, ou ouvir o que Sylvie tenha a dizer a respeito, com os dentes cerrados.
De qualquer maneira, ela tem esperanças de que os dois estejam dormindo de
tanto beber.
O apartamento está escuro, sem nenhuma luz acesa. Marilyn espera os
olhos se ajustarem, alívio a percorrendo enquanto caminha até o quarto. É só
depois que está debaixo das cobertas, quase pegando no sono, que ouve a
porta abrir. E lá está Woody, indo — não, cambaleando — em sua direção.
— Como ousa me envergonhar desse jeito, depois de tudo o que fiz pra
você?
Marilyn tenta levantar, mas o tio a empurra com força, o que ela não estava
esperando. É a expressão em seu rosto que mais a assusta: como se, de
alguma forma, tudo o que ele era incapaz de controlar tivesse se concentrado
no corpo dela.
— Mãe! — Marilyn grita, sem obter resposta. — Mãe! — ela grita mais
alto. Sylvie não aparece. Por que não? Está bêbada demais, dormindo muito
profundamente para acordar, ou talvez tenha saído de novo, como anda
fazendo. Talvez nem esteja lá.
— James! — ela grita para a noite escura, pela janela fechada, o tipo de
grito que abre o peito, antes que Woody pressione o travesseiro com a fronha
do Meu Querido Pônei contra seu rosto. Ela tenta dar uma joelhada, mas é em
vão. Então enfia as unhas na pele do tio, pronta para arrancar sangue.
— Você não vai sair dessa. A farra acabou. Vou disciplinar você eu
mesmo.
Ele solta o travesseiro e Marilyn consegue respirar rapidamente antes que
ele o force de novo contra seu rosto. Ela se obriga a ficar dentro do próprio
corpo, mas está à deriva, sumindo na noite.
A batida na porta da frente a puxa de volta. Ela ouve a voz de James
gritando:
— Mari!
Marilyn finalmente consegue dar uma joelhada em Woody. Quando ele cai
para trás, ela levanta, corre para a porta e abre.
— Está tudo bem? — ele pergunta, puxando-a para perto.
Mas Woody já está ao lado dela, agarrando seu cabelo.
James dá um soco no rosto dele, fazendo com que largue Marilyn. Ela
corre para o telefone e liga para a polícia. É puro instinto; a única atitude que
uma pessoa consegue tomar diante do desastre, marcada pelo treinamento da
infância. Ela fala depressa:
— Gramercy, 1814, número 2, andar de cima. Por favor, venham o mais
rápido que puderem.
Quando desliga e vira, vê James lutando para segurar Woody e depois o
prendendo num mata-leão. Com a mão livre, Woody tira um canivete do
bolso e o enfia na barriga de James.
— Solta ele! — Marilyn grita, correndo na direção deles.
— Você se deu mal, garoto — Woody diz para James, cortante. — Esta
casa é minha.
James o solta e o empurra para longe, tirando a faca do próprio corpo.
Woody parte para cima de Marilyn.
James o impede, jogando-o no chão. Ele tenta segurar Woody, que sacode
o canivete no ar, numa tentativa desesperada de recuperar o controle. Marilyn
ouve sirenes à distância. Rápido, ela reza.
James finalmente consegue tirar o canivete das mãos de Woody.
Então os policiais, dois deles, entram pela porta, com armas na mão.
Marilyn vira para James — o suor em seu rosto perfeito brilhando à meia-luz,
a respiração irregular, a raiva, a adrenalina ainda no sangue, o canivete em
suas mãos.
Ele nem chega a registrar a presença deles.
O som do tiro parte o mundo, e parte de novo. Marilyn se joga sobre o
corpo de James, caído no chão. Ela o abraça e o puxa mais para perto. James
não se ergue. Não faz nenhum som. Seu corpo é como o peso morto que,
brincando, ele fazia ela tentar tirar do sofá.
— James!
Ela grita alto demais, mas não alto o bastante. Ele morreu.
ANGIE SENTE O PÂNICO DA MÃE, o medo que a destrói, a sensação de não ser
capaz de puxar ar o suficiente. Ela vê Marilyn jogar o corpo para a frente,
apoiando a cabeça no volante, com a respiração rápida e superficial.
— Mãe — Angie diz, soando como uma criança. Ela segura a mão de
Marilyn, enlaça seus dedos, desesperada para segurá-la, para trazê-la de volta.
Marilyn puxa o ar de novo, dessa vez por mais tempo. Então o solta, e
Angie sente sua pegada apertar.
— Sinto tanto, Angie. Tanto, tanto. Não acredito que chamei a polícia.
O peso do que a mãe contou cai sobre Angie como uma pedra que não
cede, insistindo na gravidade absoluta.
— Mãe — Angie repete, sem saber o que mais dizer.
Do outro lado da rua, um homem abastece uma Range Rover verde no
posto. Há uma fila de carros no drive-thru do Carl’s Jr. Um homem na
esquina segura um cartão que diz: SEM-TETO E FAMINTO. QUALQUER COISA
AJUDA. DEUS ABENÇOE.
Saber a verdade sobre a morte do pai não muda o fato de que Angie nunca
vai conhecer a sensação da barba dele em seu rosto, ir a um restaurante
chinês com ele, correr ao seu lado, sentir sua mão na dele, reconhecer o
formato de seus próprios olhos ao encará-lo. Ouvi-lo dizer “te amo”.
Os fatos continuam os mesmos. Ele está morto.
E Angie continua sem saber como a história começou. Começou com os
antepassados invisíveis, com os fantasmas que não consegue ver? Com uma
história de amor em Los Angeles, entre o garoto e a garota na fotografia?
Com um assassinato. Com uma mãe solteira, trabalhando mais horas do que
humanamente possível, cantando até a filha adormecer. Com um gesto, um
sonho, um sussurro.
Angie pensa no poema que Sam leu — o que dizia? Não se pode deixar o
passado para trás. Está enterrado em você; transformou sua pele em seu
armário…
É a verdade, não é? A vida do pai, a história que leva à morte dele — está
guardada dentro dela.
É um lugar para começar. Com raiva, devastada, com o coração partido.
Mas pelo menos é real.
SEU CORPO COMPREENDE ANTES DE SEU CÉREBRO. Ela se sente enjoada, tonta,
fraca, mas tenta ouvir a música dele, espera que volte para casa. Não importa
se está numa cama de hotel e os únicos sons que ouve são dos carros na
estrada ou da máquina de gelo. Faz três semanas.
Sylvie tinha recolhido as coisas delas e ido para o Motel 6, em Orange
County, como se pudessem voltar no tempo, simplesmente apagando os sete
meses desde que tinham deixado a cidade. Trata Marilyn como se fosse de
porcelana, como se pudesse se estilhaçar (mas ela já se estilhaçou, será que a
mãe não vê?), dando-lhe travesseiros, passando a mão em seu rosto,
deixando-a sozinha apenas quando vai trabalhar ou, nos dias de folga,
procurar um apartamento. Quando volta, conta animada sobre os lugares que
viu, descrevendo a piscina, as paredes amarelo-claro, a ilha na cozinha.
Nem Sylvie nem Marilyn pensam na possibilidade de que ela volte para a
escola; embora faltem apenas três meses de aula, a formatura parece
irrelevante. Marilyn queria ter morrido com James. O luto é insuportável; não
há palavras para a dor.
Ela deu seu depoimento aos investigadores em meio às lágrimas:
— James não estava fazendo nada. Só tinha o canivete na mão porque
estava tentando me proteger do meu tio. Não era uma ameaça.
Mas o policial que atirou nele só recebeu três semanas de suspensão e
voltou à ativa. Woody tinha sido acusado de violência doméstica, até onde
ela sabia; estava proibido de se aproximar dela ou entrar em contato. Sylvie
não tinha ligado para os Bell para perguntar sobre o enterro; nem Marilyn,
porque não se sentia capaz de encará-los. A culpa pesa mais do que ela; não
consegue se manter à tona.
Durante o dia, o som das novelas de sua infância passando na televisão
preenche o silêncio no quarto à meia-luz. Talvez Sylvie espere que seja um
antídoto para o desespero da filha, como tinha sido para ela própria. Mas
Marilyn só encara as imagens, sem compreender.
Ela vomita pela manhã, à tarde, à noite. O som da voz de James está em
toda parte, já distante, como um eco que esvanece e se abranda, retornando
diferente. Ela não nota quando a menstruação não vem, pelo menos não de
imediato, mas, algumas semanas depois, tem uma intuição. Quando a mãe sai
para trabalhar, ela se veste e sai do quarto.
O sol está claro demais, o que a deixa furiosa. Por que deveria brilhar,
indiferente, como se nada tivesse acontecido? Ela atravessa dois
estacionamentos até encontrar uma farmácia, onde compra um teste de
gravidez, sem se importar com os olhares das outras pessoas na fila.
— Sete e oitenta e cinco — o caixa diz.
Marilyn tem vontade de chorar. Ele morreu.
O caixa olha para ela.
— Querida?
Marilyn entrega o dinheiro sem dizer nada e volta para o hotel com o teste
nas mãos.
O resultado é positivo.
Ela não tinha considerado se queria que desse positivo ou negativo, mas a
visão da segunda listra desperta uma fagulha em seu peito — como a luz
perfurando uma nuvem densa.
Quando Sylvie volta à noite, Marilyn comunica sem pestanejar:
— Estou grávida.
A mãe fica imóvel por um momento — com os lábios entreabertos, os
olhos arregalados. Marilyn espera que grite, mas ela se recompõe, senta ao
lado da filha na cama e passa a mão em seu cabelo.
— Tudo bem, querida. Vamos cuidar disso. Vai ficar tudo bem.
A mandíbula de Marilyn se cerra. Pela primeira vez desde a morte de
James, o desejo de brigar volta ao seu corpo; agora ela tem algo a proteger.
Sylvie nota a expressão em seu rosto.
— Ah, Marilyn, você não pode estar… Não pode ter esse bebê, querida.
Não pode. Sei que está magoada, mas vai deixar tudo isso para trás. Não é
tarde demais.
— Quero ter o bebê, mãe.
Os olhos de Sylvie se movimentam freneticamente.
— Marilyn, meu bem, não queria dizer até que estivesse se sentindo
melhor, mas falei com Ellen e estão todos muito empolgados com você,
depois do comercial da Levi’s. Um monte de oportunidades surgiu. Você é
jovem, tem a vida toda pela frente. O futuro que sempre quisemos está bem
aqui. Você vai ficar bem.
Marilyn vira e deita no travesseiro.
— Se você tivesse me escutado… — Sylvie diz. — Se tivesse me ouvido e
ficado longe… tudo isso poderia ter sido evitado. Mas me ouça agora,
querida. Você não está em condições de fazer esse tipo de escolha agora.
Marilyn fecha os olhos e permite que sua mente, a mil por hora, deixe o
quarto. O que vai fazer? Para onde vai? Não pode ficar com a mãe, isso está
claro. Não, não pode ficar em nenhum lugar na cidade. Vai ter que começar
de novo. Com o bebê.
***
No dia seguinte, quando Sylvie vai trabalhar, Marilyn coloca todas as suas
coisas no Dodge branco em meio à névoa da manhãzinha. Ela deixa o cheque
sobre a penteadeira com um bilhete: Sinto muito, mas não posso ficar. Por
favor, deixe seu endereço na recepção quando encontrar um lugar para
morar. Vou ligar. Vou escrever. Te amo. Marilyn.
Marilyn pega a estrada e dirige na direção dos apartamentos na Gramercy,
com a luz do sol perfurando a camada de nuvens. Ela pega uma saída e vira à
esquerda na Washington. Alguém buzina. Sua mão começa a tremer. Ela vira
no quarteirão deles. Mas como as ruas, a cidade, o céu podem ser os mesmos
sem ele?
Marilyn apoia a mão na barriga para se lembrar de seu propósito. Ela corre
até a porta dos Bell com um pacote contendo a câmera, as fotos de Justin e
um bilhete.
Justin, nem sei como dizer o quanto sinto. A câmera é sua agora —
continue tirando fotos, por favor. Tenho que ir, e sinto muito por isso
também. Talvez um dia eu veja suas fotos em alguma revista, ou leia a
seu respeito em alguma exposição. Vou ficar muito orgulhosa. Já estou.
Sei que seu irmão também está.
Com amor,
Marilyn
Ela deixa tudo embaixo da caixa de correio. E é então que ela vê, quase
caindo para fora. Um envelope da Columbia. Grande, grosso. Do tipo que
significa que a pessoa foi aceita. Ele entrou. Marilyn sente o coração batendo
na cabeça, e corre para a caixa de Woody, onde tem o equivalente a semanas
de correspondência empilhada, e encontra um envelope parecido no nome
dela. Marilyn o toca — a passagem para o futuro que pertencia aos dois. O
futuro que teriam vivido juntos.
A devastação toma conta dela. Ela volta correndo para o carro, dá a partida
e vai embora. Ela atravessa o labirinto da cidade, passando pelos shoppings e
pelas palmeiras, pela extensão do deserto partido de sua infância.
JUSTIN ABRE A PORTA PARA ANGIE E MARILYN.
— Parece que tiveram uma tarde difícil.
Elas só assentem.
— Você contou? — ele pergunta a Marilyn, que confirma com a cabeça.
— Estão com fome? Estava pensando em preparar alguma coisa.
A voz dele parece mais rouca que o normal.
— Seria ótimo, muito obrigada — Marilyn diz, quase num sussurro. Angie
segue a mãe, que sobe cuidadosamente os degraus para o apartamento,
andando na ponta dos pés no piso de madeira rangente, como se não tivesse
peso, como se não quisesse atrapalhar.
Elas não chegaram a ir aonde quer que Marilyn pretendia levá-la. Em vez
disso, Angie tinha mandado uma mensagem a Justin dizendo que precisava
de ajuda e perguntando se a mãe podia passar a noite com eles.
As duas sentam à mesa de madeira enquanto Justin tira bifes, cebolas,
pimentões e batatas-doces da geladeira. Pouco depois, Marilyn vai até ele,
ainda pisando de leve. Ela toca seu ombro.
— Posso ajudar?
— Claro. — Ele abre espaço, deixando-a com os legumes e a tábua, e vai
para outro cômodo. Quando volta, a voz de James Brown o segue. Marilyn
levanta o rosto e olha pela janela, além do pequeno cacto no parapeito, além
dos fios se intercruzando, para o letreiro de Hollywood, à distância, nas
montanhas de Santa Monica. Justin acende o fogão, pega outra tábua para
Angie e pede que corte as batatas. O ar começa a esquentar, saturado pelo
cheiro de comida e pela música: “Try me, try me…”. Angie reconhece a
música da fita; ela olha para a mãe, que ainda está em outro lugar.
***
De onde está agora, de pé na cozinha de Justin, com lágrimas nos olhos por
causa das cebolas, Marilyn mal consegue se lembrar do Motel 6, onde ela e a
mãe ficaram, do supermercado, do casal que lhe vendeu o Dodge branco. O
que ela recorda, clara como a água, é a sensação da criança dentro de si, que
nunca teria um pai.
Então pensa no jeito como Sylvie havia dito “Se você tivesse me
escutado”, como se a culpa fosse dela. Ela se lembra de como essas palavras
ficaram na cabeça dela enquanto atravessava o deserto. Lembra de pensar
que, se James não a tivesse conhecido, seus avós ainda teriam dois netos,
Justin ainda teria um irmão. Ele ainda estaria vivo.
Marilyn se lembra de como o peso da injustiça, da culpa e da dor se tornou
algo que acreditava ter de suportar sozinha.
***
***
Uma hora depois, os quatro estão sentados na varanda, vendo o filho dos
vizinhos circular o gramado em seu triciclo enquanto Rose conta como
conheceu Alan na adolescência. Ele trabalhava como caixa numa mercearia e
costumava acrescentar balas em suas compras toda semana.
— Olha! — Angie exclama de repente. Um beija-flor se aproxima do
bebedouro, parecendo observá-los, as asas batendo tão rápido que se tornam
um borrão. O rosto de Marilyn se ilumina quando o pássaro voa até eles,
inclina a cabeça e desaparece no céu.
ANGIE ACORDA NO SOFÁ DE JUSTIN e vê que o colchão de ar da mãe já foi
esvaziado. Ela sente o cheiro de ovos e café vindo da cozinha e ouve as vozes
dela e do tio. Quando vai até eles, vê Justin entregando uma câmera de trinta
e cinco milímetros para Marilyn.
A mãe a leva ao rosto devagar e olha através das lentes.
— Foi um presente de Natal — ela explica para Angie. — Do seu pai.
— Sua mãe deixou comigo anos atrás — Justin acrescenta. Ele estuda
Marilyn por um momento, então prossegue: — Só fui usar seis anos depois.
Fiquei furioso com a morte de James por muito tempo. Com você, por ter me
deixado. Com seu tio e com o policial que atirou num garoto inocente. Tinha
tanta raiva que poderia ter me engolido. Quase engoliu.
Marilyn olha bem em seus olhos e assente.
— Passei por maus bocados. Quase larguei a escola. Uma parte de mim
pensava que, se James não pôde fazer faculdade, eu tampouco deveria. No
meu aniversário de dezoito anos, estava deprimido pra caralho na casa da
minha vó. Pensei no último aniversário que me lembrava de ter estado feliz,
todos aqueles anos antes. O dia na praia com você e James, só tirando fotos.
Então, do nada, olhei embaixo da cama, além das camisetas velhas, e
encontrei a câmera. Assim que olhei através das lentes senti… como se
pudesse respirar de novo. Comecei a fotografar tanto quanto podia e a visitar
museus todos os dias. Me inscrevi para estudar artes no ano seguinte e entrei
em Rhode Island.
— Eu me lembro de ficar observando você no píer, com tanto orgulho. E
agora, olha só… Vi seu clipe. É lindo, Jus. Tão bom quanto eu esperava.
Melhor ainda, na verdade.
— Ainda tenho muito o que aprender. Mas o negócio é que, mesmo que
aquele menino de doze anos que ficou bravo com você por ter ido embora
ainda seja parte de mim, a câmera salvou minha vida, e sou grato por isso.
Mas estou pronto para devolver a você. E a garota que eu conhecia, aquela
que estava sempre tirando fotos imaginárias, aquela que conseguia ver tanta
coisa… tenho certeza que ainda está aí dentro, esperando para sair.
— Obrigada — Marilyn diz. Angie observa a mãe guardar a câmera com
cuidado na mochila e tenta ver a garota que Justin vê.
— Vai se trocar — Marilyn diz a ela. — Temos um dia cheio pela frente.
***
Enquanto sobem o Runyon Canyon, Angie pensa na viagem que fez com a
mãe quando estava no primeiro ano — aquela em que enfiou a cabeça pela
janela e cantou a plenos pulmões com o CD de músicas infantis. Elas tinham
passado os dias explorando a floresta e as noites dormindo ao ar livre,
fazendo um desejo a cada estrela cadente. Agora ela lembra que não voltaram
ao apartamento depois da viagem, tendo se mudado para um lugar menor.
Recorda que Marilyn havia dito que iam iniciar uma aventura, com o carro
tão lotado que a mãe brincara que tinham tudo de que poderiam precisar para
sobreviver na natureza.
— Lembra aquela vez que fomos para Sangre de Cristos? — Angie
pergunta agora.
— Lembro.
— Foi porque a gente precisava sair do apartamento?
— Foi.
— Eu não sabia. Quer dizer, só percebi agora.
— Foi Manny quem encontrou o apartamento novo quando voltamos. Um
amigo dele era dono do prédio. Eu não tinha ideia do que íamos fazer.
— Você deve ter sentido tanto medo… e eu nem percebi. Lembro dessa
viagem como um momento feliz — Angie diz.
— Eu estava mesmo com medo — Marilyn diz. — Mas, de alguma
maneira, também guardo como uma coisa boa. Você era tão animada. Tão
maravilhada. Era contagioso.
— Você já… — Angie começa, então faz uma pausa. — Já desejou não ter
tido uma filha?
— Não, Angie! Por que pensaria isso? Ter tido você é a única decisão de
que nunca vou me arrepender.
— Mas você nunca pôde ir para a Columbia, se tornar fotógrafa ou
conhecer alguém. Não pôde fazer nada do que deveria fazer.
— Bom, ainda tenho tempo. — Marilyn sorri. — E não trocaria você por
nada nesse universo. Nem pela vida inteira na Columbia, por minhas
fotografias em um milhão de galerias, por Idris Elba na minha cama.
Angie ri.
— Afe, mãe!
Marilyn para no meio da trilha e vira para a filha.
— Havia uma parte de mim, uma parte importante, que não acreditava que
eu merecia viver depois que seu pai morreu. Acho que, de alguma maneira,
sobrevivi por você, pela nossa menina. E não é… Acho que só agora entendi
como isso foi um fardo pesado pra você. Sinto muito.
Angie assente. A tensão familiar no peito parece se abrandar.
Elas chegam ao topo bem a tempo de ver o pôr do sol. Angie vai até a
beirada e estende os braços, abrindo-se para a cidade abaixo. Ela se lembra da
primeira vez que viu Los Angeles, no carro com Sam, e do sentimento de
esperança que a invadiu. Talvez seu pai estivesse ali o tempo todo, escondido
sob as luzes, como ela havia imaginado.
Quando vira, depara com a mãe com a câmera no rosto.
Clique.
— É como se você estivesse se preparando para voar — Marilyn diz,
baixo. Ela brilha sob o céu rosado da noite. — Houve noites aqui em que eu
senti que também podia…
Angie olha para a Cidade dos Anjos e se recorda do que Sam lhe disse. Se
seu pai estivesse aqui, quer dizer, se pudesse falar com você, não acha que
diria que o amor vale a pena, não importa quanto dure? Agora Angie
acredita que sim, ele diria isso.
Marilyn vai para o seu lado e as duas ficam assim, juntas, cada uma no seu
próprio limite.
MARILYN E JUSTIN SEGUEM ANGIE ATÉ A CASA DE MIGUEL. O carro de Justin
está lotado de coisas para um dia na praia. Os dois dizem que vão esperá-la
no parque, então Angie bate sozinha na porta.
Pouco depois, Cherry aparece.
— Oi — Angie diz. — Aqui está sua chave. Muito obrigada por ter
oferecido sua casa.
— Imagina.
— Sam está?
— Está, mas… não acho que queira ver você, pra ser honesta.
— Eu só… — Angie gagueja. — Preciso me desculpar com ele,
pessoalmente. Você… pode pedir que venha?
Sam não respondeu a nenhuma das muitas mensagens que ela mandou nos
últimos três dias.
Cherry parece pensar por um momento.
— Claro — ela diz, então desaparece dentro da casa.
Angie senta nos degraus enquanto espera. Parece que faz séculos que
chegou àquela rua com Sam, em sua primeira noite em Los Angeles, apesar
de apenas uma semana ter passado. Ela conta as palmeiras que aparecem por
entre as construções para distrair o coração ansioso.
— E aí? — Sam diz ao abrir a porta.
Angie levanta para encará-lo.
— Trouxe seu carro de volta. Muito obrigada por me deixar usar. Minha
mãe está aqui. Ela precisa voltar ao trabalho, então vamos para Albuquerque
amanhã.
— Tá.
— Sinto muito, Sam.
— Tudo bem — ele diz, seco, e vira para ir embora.
— Espera — Angie diz. — Eu estava pensando… o que está fazendo
agora? Quer dizer, não quer ir pra praia com a gente? Venice? Minha mãe e
Justin vão também.
— Hum… acho que não.
Angie respira fundo. Até agora, a conversa não parece em nada com a que
tinha planejado.
— Sam, sei que… que tenho sido muito egoísta. Aconteceu alguma coisa
na noite em que encontrei a foto dos meus pais. De repente, foi como se ele
fosse real, e queria muito saber dele. Sentia tanta saudade dessa pessoa que
nunca conheceria, parecia que havia um buraco dentro de mim. E isso
levantou uma série de questões. Eu mesma não me entendia, então não tinha
como compartilhar nada daquilo com você, o que me fez fugir, acho. Eu tinha
a sensação de que tinha algo errado, de que alguma coisa horrível estava me
esperando ali na esquina. Mas agora que sei o que é, ainda que seja pior do
que eu imaginava, pelo menos posso começar a entender como olhar para
isso… Conhecer Justin ajudou. E falar com a minha mãe, mais ainda. Ela me
contou. Meu pai levou um tiro de policiais que apareceram em meio a uma
briga com meu tio. Eles nem perguntaram o que estava acontecendo.
Simplesmente o mataram.
— Nossa, Angie. Sinto muito.
— Ainda tem muita coisa que não entendo. Mas você é o melhor amigo
que eu já tive. E a verdade é que te amo. Eu te amo — ela repete —, mas não
sabia como dizer isso.
Sam a encara por um longo momento.
— Vem aqui — ele finalmente diz, e a puxa num abraço. Angie não tem
certeza de quanto tempo ficam assim, nos braços um do outro, com os carros
buzinando, as sirenes à distância, o som dos rádios passando.
— Espera um segundo — Sam diz. — Vou me trocar. E ver se Miguel e
Cherry querem ir também.
Quando ele desaparece lá dentro, Angie sente como se tivesse mergulhado
numa piscina gelada num dia quente de verão — em parte em choque e
tremendo, mas desperta, viva, confiando no sol para aquecê-la.
O MUSTANG DE JUSTIN SEGUE PARA O OESTE. Quando ele pega a saída e começa
a descer a colina, a extensão infinita de água azul aparece, brilhando. Angie
sai do carro e é atingida pelo cheiro do mar e o som das ondas, que com tanta
frequência imaginava ao olhar para a foto dos pais.
Ela observa a mãe, tentando identificar a garota sorridente com cabelos
dourados. Marilyn respira fundo e olha para o horizonte. No calçadão
paralelo à água, uma menininha anda de patinete à frente do pai, que a segue
com um carrinho. Alguém passa de bicicleta, ouvindo “Ultralight Beam”.
Angie ouve um trecho da música: “Deliver us loving…”. Duas senhoras estão
sentadas num banco, fazendo exercícios para os braços enquanto observam a
água.
Angie vê a mãe se inclinar para tirar as sapatilhas velhas. Um buraco está
prestes a se formar na ponta do dedão. Os sapatos são uma coisa tão familiar
— Angie fica momentaneamente surpresa ao vê-los nesse contexto, atingida
por uma onda de ternura por eles. Ela desamarra o tênis e os três vão para a
areia.
Angie finalmente está aqui, na praia onde seus pais ficaram juntos tantos
anos atrás.
Em apoio à luta constante pela justiça racial, uma parte dos rendimentos da
autora com este livro será doada diretamente para o Fundo Educacional e de
Defesa Legal da Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor
(NAACP, da sigla em inglês).
TOM DELLAIRA
Publicado mediante acordo com Farrar Straus Giroux Books for Young Readers, um selo do Macmillan
Publishing Group, LLC. Todos os direitos reservados.
Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, que entrou em vigor
no Brasil em 2009.
Tudo começou com um projeto para a aula de inglês: escrever uma carta para
alguém que já morreu. Logo o caderno de Laurel está repleto de cartas a
pessoas como Kurt Cobain, Janis Joplin e Heath Ledger. Ela escreve sobre
seu primeiro ano no Ensino Médio e os problemas de sua família,
despedaçada depois da morte de sua irmã. Prestes a começar o ensino médio,
Laurel decide mudar de escola para não ter que encarar as pessoas
comentando sobre a morte de sua irmã mais velha, May. A rotina no novo
colégio não está fácil, e, para completar, a professora de inglês passa uma
tarefa nada usual: escrever uma carta para alguém que já morreu. Laurel
começa a escrever em seu caderno várias mensagens para Kurt Cobain, Janis
Joplin, Amy Winehouse, Elizabeth Bishop… sem nunca entregá-las à
professora.Nessas cartas, ela analisa a história de cada uma dessas
personalidades e tenta desvendar os mistérios que envolvem suas mortes. Ao
mesmo tempo, conta sua própria vida, como as amizades no novo colégio e
seu primeiro amor: um garoto misterioso chamado Sky.Mas Laurel não pode
escapar de seu passado. Só quando ela escrever a verdade sobre o que se
passou com ela e com a irmã é que poderá aceitar o que aconteceu e perdoar
May e a si mesma. E só quando enxergar a irmã como realmente era -
encantadora e incrível, mas imperfeita como qualquer um - é que poderá
seguir em frente e descobrir seu próprio caminho.