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Série Selena
O que Selena mais queria era achar um cantinho silencioso para ler a
carta de Paul. Assim que pôs na secadora os dois primeiros cobertores,
recordou-se de que tinha de ir dar uma olhada na avó. Amava muito sua
avozinha, apesar de a senhora muitas vezes ficar meio confusa mentalmente.
Teria de esperar um pouco mais para ler as palavras do rapaz. Precisava
subir para verificar como Vó May estava.
Se todos nós, que não temos nada, estamos nos sentindo estressados,
pensou, como será que Vó May está se dando com toda essa agitação?
A imensa mansão vitoriana onde residiam, na verdade, pertencia à
avó. Ela morava ali desde que havia se casado. Todos os seus nove filhos
haviam nascido e se criado ali. O pai de Selena era o mais velho; Emma, a
mais nova. O segundo chamava-se Paul, e morrera na guerra do Vietnã. Os
outros todos estavam vivos, e três deles - Frida, Matthew e Emma - estariam
ali para o feriado do Dia de Ação de Graças.
Mais ou menos um ano atrás, a família de Selena viera morar com a
avó, que não estava mais podendo ficar sozinha. Sua condição mental
variava bastante. Às vezes se encontrava lúcida e tranquila. Em outras,
sofria confusões mentais, e a família tinha de vigiá-la constantemente para
evitar algum perigo.
A garota bateu de leve a porta da avó. Não ouvindo resposta disse:
- Vó May, posso entrar?
Abriu-a devagar e deu uma espiada lá dentro. A avó estava sentada,
dormindo na confortável cadeira de balanço que ficava perto da janela. Do
rádio, vinham os sons suaves de uma música clássica. Selena foi andando pé
ante pé, procurando não pisar nos colchonetes que se achavam espalhados
pelo chão. Pegou uma colcha em cima da cama e cobriu a avó.
A chuva tamborilava na vidraça das janelas, que datavam de 1915. A
garota puxou as persianas e fechou as pesadas cortinas. O quarto ficou mais
silencioso e protegido do frio. Virou-se e deu alguns passos para sair dali,
mas aí parou. Avistou suas roupas e outros objetos pessoais que se achavam
junto à parede, perto do colchonete em que iria dormir. A mãe mandara que
Selena e os irmãos arrumassem seus quartos com muito capricho. Depois,
deveriam tirar os pertences de que precisariam para o final de semana e
levá-los para o lugar onde ficariam. Tudo isso para não incomodar os
hóspedes que ficassem nos aposentos deles.
Junto com seus objetos estava um presente que ganhara em seu
aniversário, aliás, o de que mais gostava. Sem fazer barulho, foi até lá e
pegou-o. Era um porta-retratos com moldura de metal. Assim que tocou
nele, deu um sorriso. Aproximou-o do rosto e ficou a olhá-lo em meio à
semi-escuridão do quarto silencioso. Do rádio, vinha o som doce de um
violino e um violoncelo. Selena se pôs a contemplar a imagem da foto: Paul.
O rapaz estava vestido com uma roupa esportiva, de fazer caminhada.
O cenário era um ponto qualquer do planalto escocês. O vento atrapalhara
seu cabelo escuro, que caíra sobre a testa. O frio deixara seu rosto corado,
com um brilho saudável. Ao que parecia, ele estivera conversando no
momento em que virou o rosto para a pessoa que bateu a foto. Tinha-se a
impressão de que ele caíra na risada. Selena fitou os olhos. Ele erguera
ligeiramente uma das sobrancelhas. Os olhos azul-acinzentados quase
reluziam, parecendo espelhar os reflexos de algum lago tranquilo que
houvesse ali perto.
Paul estava de pé sobre uma ponta de penhasco, e a paisagem ao
fundo perdia-se de vista. Era um cenário tremendamente romântico: um céu
muito azul e colinas verdes de aparência aveludada, pontilhadas de touceiras
de florzinhas rosadas.
Para ela, aquilo não era apenas um retrato, uma simples foto. O que
tinha nas mãos naquele instante era uma janelinha uma moldura de metal
reluzente. Por ela, Selena, de seu cantinho do mundo, avistava toda a vida
de Paul.
Desde junho, quando o rapaz viajara para a Escócia, onde fora estudar
e morar com a avó que enviuvara recentemente, Selena ficara a se indagar
como seria a vida dele ali. A garota começara a orar por ele - que se tornara
uma pessoa muito importante para ela - desde Janeiro. Ela o conhecera por
acaso, nessa ocasião, no Aeroporto de Heathrow, em Londres.
Depois, Tânia, sua irmã, se mudara para a Califórnia e começara a
namorar o Jeremy, irmão de Paul. Assim os caminhos de Selena e Paul
voltaram a se cruzar. Mais tarde, na escola, ela recebera a tarefa de prestar
serviço voluntário na Highland House, uma instituição que dava abrigo para
os “sem-teto”. Ali descobriu que o diretor da casa era um tio de Paul, de
nome Mac. O próprio rapaz estava trabalhando lá na época em que Selena ia
ali.
Entretanto, apesar de todas essas ligações com ela e dessas
coincidências estranhas, ele não demonstrara nenhum interece por Selena.
Aliás, certa vez tinham ido a uma encantadora lanchonete chamada Carla’s
Café, no centro de Portland. Naquela noite, ele perguntara a Selena se era
verdade que ela estava curtindo uma paixãozinha por ele. Isso a deixou
muito sem graça.
E, ao que parecia, ele ficara espantado com a resposta dela. A garota
dissera que achava que, quando Deus colocava duas pessoas em contato, ele
sempre tinha um objetivo definido em vista. Em seguida, explicou que
acreditava que os dois haviam se conhecido para que ela pudesse orar por
ele. E o fato era que ela, mesmo contra a vontade, por diversas vezes se vira
impulsionada a interceder pelo rapaz.
Contudo agora, depois de alguns meses que ele fora para a Escócia,
algo parecia haver mudado nele. Mais ou menos no final das férias, ele lhe
escrevera e pedira que passassem a se corresponder. Ela sugerira que se
escrevessem via e-mail, mas ele replicou que gostaria que o fizessem pela
“lesma-mail” mesmo, em vez do correio eletrônico. Queria que as cartas
demorassem a “viajar” de um país a outro, em vez de passarem
imediatamente de um lado do mundo para o outro.
Então fazia já várias semanas que estavam se correspondendo. Selena
escrevia para o rapaz todos os dias. Por vezes, era apenas um postal ou um
bilhete numa folha de caderno, escrito em plena aula. E ele também lhe
mandava cartas com freqüência. Ele lhe falava dos cursos que estava
fazendo. Contava sobre as pessoas com quem convivia. Relatava os ditos
engraçados de sua avó. E certa vez descreveu o pôr-do-sol visto através da
vidraça da casa dela. Paul costumava expor-lhe ainda o que lhe passava no
coração - seus sentimentos, as orações que fazia, os pensamentos que lhe
ocorriam quando estava sozinho. Em suma, ele abria o coração para Selena,
e a garota também fazia o mesmo.
Antes, quando queria “dar uma espiada” na vida de Paul, dispunha
apenas das palavras dele. Agora, porém, contava com uma “janela”.
Olhando aquele porta-retratos, ela não via apenas as colinas, as florzinhas
ou o blusão de couro que ele estivera usando no dia em que se conheceram.
Não. Via o rosto, os olhos e o sorriso do rapaz que tinha mexido com suas
emoções. Isso nunca havia acontecido antes, com nenhum outro; pelo
menos não da maneira como sucedera com Paul.
Passou os dedos de leve no vidro que estava sobre o retrato – a sua
“janela”. Um sorriso lhe veio aos lábios. Ainda se lembrava de como suas
mãos haviam tremido no dia em que sua mãe lhe entregara o pacote, com o
presente de Paul, na véspera de seu aniversário. Ali mesmo, na cozinha,
rasgara o envelope reforçado com plástico de bolhas. Em seguida, sob o
olhar da mãe e de Kevin, abrira o objeto. Estava embrulhado numa folha de
papel de seda e atado com um barbante. Recordou-se de que pusera o
barbante de lado, pensando que mais tarde iria fazer algo com ele. Junto
havia um cartãozinho com os dizeres:
“Parabéns, princesa dos lírios.”
Era como Paul a chamava.
Assim que o desembrulhou, Kevin indagou:
- Foi só isso que ele mandou? Um retrato?
Selena teve vontade de chorar quando fitou o rosto simpático do
rapaz. Se a mãe e o irmão não estivessem ali, com certeza teria dado um
beijo no vidro.
Agora, porém, estava no quarto da Vó May, envolta em silêncio. Lá
de baixo, da entrada, vinham as vozes de mais gente que chegava. O som
subiu até onde ela se encontrava. Selena levou aos lábios a ponta do dedo
indicador e a seguir tocou com ele o rosto de Paul, avermelhado pelo vento.
Lembrou-se de que ainda não lera as últimas palavras dele, guardadas no
bolso do blusão.
Sentou-se, com as pernas cruzadas a moda oriental, apoiou o porta-
retratos sobre elas e pegou a carta. Ajeitou-se melhor para ficar mais perto
da pequena lâmpada que havia sobre a mesinha-de-cabeceira da avó.
Desdobrou o papel e leu, movendo os lábios silenciosamente.
... Mas já devia ter percebido, pois parece ter resposta para tudo.
Quero dizer, no bom sentido. Sabe bem o que quer e entende a vida.
Gostaria de ter tido essa lucidez quando era da sua idade. Acho que Deus
permitiu que eu aprendesse pelo caminho mais difícil. Mas agora já
aprendi. Com toda sinceridade, posso dizer que nunca senti tanta paz de
espírito e nunca estive tão perto de Deus como agora. Isso e ótimo! Ou
como é que suas amigas diriam? É uma “coisa de Deus”? É, com certeza
isso é uma “coisa de Deus”.
Minha avó resolveu que vamos economizar no sistema de
aquecimento este ano. Eu já lhe disse que a casa dela é muito velha; não,
velhíssima. Então, quando chove e faz frio, fica tudo úmido e frio de
verdade. Eu agora ando cheio de roupas, mesmo dentro de casa. Visto umas
três mudas de roupa, uma por cima da outra, e ainda ponho uma suéter de
lã. Hoje, na hora do jantar, eu queria vestir meu blusão forrado de lã de
carneiro, mas minha avó disse que isso era um insulto e me bateu com uma
colher de pau. (Não doeu nada. Eu estava com tanta roupa...)
Então agora estou escrevendo no meu quarto, nessa “racionada”
casa escocesa. Estou com o blusão, e enrolado num cobertor de lã. Não
conte isto a minha avó, mas “roubei” uma das velas dela e trouxe para cá.
Entre um parágrafo e outro, paro e “descongelo” a mão nela.
Pronto, está quentinha de novo. Bom, o que eu estava dizendo? Ah,
sim, à noite está muito escura e chove forte. Os pingos de chuva batem na
janela, parecendo bandoleiros de faroeste gritando: “Queremos entar! Aqui
fora está muito frio. Aí dentro deve estar mais quente!” Mal sabem eles que
a temperatura aqui é a mesma de lá de fora. E aqui, ainda por cima, teriam
de enfrentar a vovó. Lá fora eles só tem de encarar o vento. Humm... acho
que talvez eu vá lá ficar com eles.
Que a paz de Cristo esteja com você, querida Selena.
Paul
Caro Poeta,
Você é poeta. Sabe disso, não é? Adorei o seu poema “Quando
chove”. E veio na hora certa porque aqui também está chovendo. Também
estou pensando em você. Lá embaixo tem um milhão de parentes nossos
que vieram para comemorar o Dia de Ação de Graças conosco amanhã.
Mas arranjei um lugar tranquilo, perto de uma janela, onde os bandoleiros,
os pingos de chuva, também estão batendo, querendo entrar. O mais
engraçado, porém, é que não parecem do faroeste. Têm sotaque escocês.
Foi você que os mandou para cá, para me atormentarem? Se foi, por que
não veio junto? Garanto que o deixaria entrar, e aqui dentro está mais
quente do que lá fora, na chuva e na escuridão.
- Está todo mundo ai? indagou Sharon Jensen, virando-se para trás.
Ela se achava ao volante da van. Nos outros bancos do veículo
estavam as mulheres da família, todas ajeitadas, com cinto de segurança e
tudo. lam para um evento que, na opinião de Selena, era mais do interesse
de sua mãe do que de qualquer uma das outras. Era sexta-feira à tarde. O
“encontro” da família Jensen já estava se encerrando. E sua mãe decidira
levar todas as parentes para tomarem chá num restaurante no centro de
Portland.
Selena fizera uma tentativa de ficar de fora do passeio. Todos haviam
dormido mal, novamente, e a garota pensara em tirar um cochilo. Teria de
trabalhar no sábado. O domingo era muito cheio de atividades, além dos
cultos da igreja. Então sexta seria o único dia em que poderia descansar no
“feriadão”. Era verdade que passara relativamente poucas horas em
companhia dos parentes. É que, sempre que podia, procurava um cantinho
solitário para escrever ao Paul; e estava apreciando muito esse isolamento.
Sabia que eram todos seus parentes e ela lhes devia atenção, mas, no
momento, não tinha o menor interesse neles.
A Vó May ia no primeiro banco, ao lado de Sharon. Selena e Tânia
estavam no último, junto com Tia Frida, que era meio gordinha. Esta se
inclinara para diante e conversava com Emma, que se achava no assento
imediatamente à frente delas. Mary e Nicole, as primas adolescentes,
estavam brincando de armar figuras com barbantes nos dedos, sob os
olhares de Amanda e Kayla, as gêmeas de sete anos.
- O que você queria me contar? cochichou Selena para a irmã,
aproximando-se mais dela para que ninguém as ouvisse. Queria lhe
perguntar ontem, mas não deu jeito.
Tânia penteara o cabelo para trás, num coque estiloso. Alguns fios
estavam meio espetados e fizeram cócegas no rosto de Selena quando esta
chegou os lábios perto do ouvido da outra.
- Resolvi voltar a estudar. Vou recomeçar em Janeiro, explicou Tânia.
- Ah, o Paul me disse mesmo que você estava pensando nisso.
A irmã fitou-a espantada.
- Quando foi que você conversou com ele? E como é que ele sabia?
- Foi o Jeremy quem lhe contou, claro. E eu não conversei com ele,
não. Ele me escreveu. Nós estamos nos correspondendo. E bastante!
concluiu, dando ênfase a essa última palavra.
Tânia entendeu a insinuação e fez uma expressão de agradável
surpresa.
- Oh, o Jeremy não me contou isso. Você e o Paul estão trocando e-
mails?
- Não.
- Não? Estão escrevendo com papel e tinta?
Selena fez que sim. O carro passou por um quebra-molas, quando
entravam na Ponte Hawthorne, e chegou ao coração da cidade, levando o
bando de mulheres, todas falando sem parar. Chovia copiosamente.
- Hummm! Que ótimo! exclamou Tânia. Eu não sabia vocês
estavam... bom... o quê? Namorando por correspondência?
Selena sorriu. Gostou do que a irmã dissera.
- É, acho que pode se dizer isso.
- E como é? Com que frequência escrevem um para o outro?
A garota deu de ombros.
- Sei não. Todos os dias. Dia sim, dia não. Ou até duas vezes por dia.
Tânia arregalou os olhos muito azuis.
- Ah, então isso está ficando muito serio, irmãzinha. Por que não me
contou? Por que será que o Jeremy não me disse nada? Será que o Paul
falou disso com ele?
- Não sei, replicou Selena.
De repente, a garota sentiu um aperto no estômago. Talvez Paul não
tivesse contado ao irmão por achar que sua correspondência com Selena não
era nada importante. E se ele pensasse assim? Era possível que só ela
achasse que o relacionamento deles era sério. Não era possível. O rapaz
tinha feito uma poesia para ela. Ficara em casa sozinho, numa sexta-feira à
noite, escrevendo para ela. Tentou recuperar a autoconfiança. Era claro que
a relação deles era importante para o Paul, assim como era para ela. Ele já
deixara isso bem claro por diversas vezes, não deixara?
- Talvez seja melhor você não comentar nada com o Jeremy, disse
Selena, resolvendo usar de cautela. Quero dizer, pode ser que o Paul prefira
contar ele mesmo. Se você disser, vai estragar a surpresa dele.
- É, mas ele estragou a minha, contando que vou para Reno! retrucou
a jovem.
- Para Reno? Como assim? Você disse que ia voltar a estudar.
- E vou. Na Universidade de Nevada, em Reno, explicou Tânia, com
uma expressão determinada no rosto.
- Mas por que justamente em Reno? E o Jeremy? Por que não estuda
em San Diego mesmo, já que é lá que você mora? Quero dizer, e o seu
trabalho de modelo? Afinal, você conhece alguém lá em Reno?
- Não; ainda não, explicou Tânia com ar meio enigmático.
- Não estou entendendo nada, disse Selena. O Jeremy também vai se
transferir pra lá?
- Não. Falta só um semestre pra ele terminar o curso. Vai se formar
em junho, como o Wesley. Ele acha que suporta passar esse último período
longe de mim. Acredita que suas notas talvez até melhorem.
- Já falou com mamãe e papai?
- Ainda não. Primeiro vou esperar chegar a carta da escola, pra saber
se me aprovaram. Pode ser que haja algum problema com meu histórico
escolar.*
___________________
*O ingresso nas universidades americanas e de alguns países não se dá por exame
vestibular, como no Brasil. O estudante pode se inscrever em qualquer faculdade. A admissão é
feita com base nas notas que o aluno obteve no segundo grau. Além disso, o curso é pago,
embora existam muitas ofertas de bolsas de estudos. (N. da T.)
- Ainda não entendi por que você quer ir estudar num lugar onde não
conhece ninguém; e vai pagar mais caro, já que é de outro estado.
- Talvez pague, talvez não.
Selena pensou em tentar extrair mais informações da irmã, mas nesse
momento a mãe achou uma vaga na rua e estacionou, desligando o carro.
- Pessoal, eu trouxe várias sombrinhas, disse ela, oferecendo às
convidadas o objeto mais importante para quem mora em Portland.
Selena olhou para fora, e a primeira imagem que viu foi uma vidraça
com a inscrição Carla’s Café, escrita em letras douradas, sob um toldo
listrado. Sorriu e cutucou a irmã.
- Você sabia que estávamos vindo pra cá? indagou. Foi aqui que você
nos trouxe, a mim e ao Paul, na véspera da viagem dele para a Escócia.
- Não. Não é aí que vamos tomar chá, não, replicou a jovem. É num
outro lugar que mamãe descobriu e que fica do outro lado do quarteirão. É
um hotel antigo. Eles têm um salão só para chás. Você não a ouviu falar
sobre isso hoje de manhã? E ali ainda usam alguns dos móveis utilizados no
dia da inauguração, no final do século XIX.
- É, acho que não escutei, não, comentou Selena, deslizando para o
outro lado do banco.
Saiu do carro, juntando-se ao grupo de mulheres que continuavam
conversando alegremente. Dirigiu um olhar saudoso para o café. Tinha
esperança de que algum dia ela e Paul pudessem voltar ali e se sentar perto
da janela da frente. Dessa vez, o diálogo deles seria diferente. O rapaz não
precisaria perguntar se ela tinha uma “paixonite” por ele. É que já saberia,
assim como Selena sabia, que o que sentiam um pelo outro não era uma
simples paixãozinha infantil.
- Selena, chamou Tânia, não vai, não?
As outras já haviam seguido e dobrado a esquina. A garota ficara
parada à frente do café, com a chuva molhando-lhe o cabelo. Não se
importava. Houve uma outra ocasião em que ela ficara mais molhada do que
estava agora. Fora em fevereiro. Estava seguindo para casa, a pé, levando
um buquê de lírios para a avó. Estava ensopada. Paul passara por ali de
carro com alguns amigos e a vira na calçada. Fora então que começara a
chamá-la de “princesa dos lírios”.
- Já vou, respondeu, ainda imersa em seu devaneio.
Não tinha o menor desejo de ir tomar chá com aquela turma de
parentes. Sua vontade era entrar no café e se sentar na mesa que ocupara da
outra vez, imaginando que Paul se encontrava do outro lado da mesa. Assim
poderia sonhar sobre o que iriam conversar. Ele iria estender o braço e pegar
a mão dela. Sorriria e diria:
“Que bom que finalmente estamos juntos, Selena! Estou tão feliz!”
Deu um suspiro no momento em que dobrava a esquina. Tânia se
achava três passos adiante dela, segurando a sombrinha bem baixa, para
proteger o cabelo. A mãe de Selena lhe pedira que se aprontasse com uma
roupa chique, mas não conseguira. Afinal pusera uma saia longa,
estampada, nas cores marrom e creme. Usava uma suéter branco-trigo.
Calçava as velhas botas de cowboy que tinham sido de seu pai e meias
grossas. Estava ciente de que a roupa não era clássica e elegante como a de
sua irmã. Contudo estava como gostava: confortável, simples e muito
original.
Agora só queria que a Tia Frida parasse de olhá-la com aquele ar de
desagrado. Aí tudo estaria perfeito. Poderia até “curtir” um pouco o chá, em
consideração à sua mãe.
O salão de chá do velho hotel era realmente muito encantador. As
mesinhas, que eram redondas, tinham quatro lugares. Do mesmo lado em
que se sentaram, havia um piano de meia cauda. Quando entraram e foram
ocupando seus lugares, o pianista tocava a música “Pour Elise”, de
Beethoven, uma das prediletas de Selena. Sentou-se à mesa em que estava
Vó May. As gêmeas ficaram com as outras duas cadeiras.
O garçom aproximou-se. Usava uma camisa branca social, um colete
preto, e tinha uma toalha no braço. Citou o nome de todos os bolos e
docinhos que estavam servindo naquela tarde e em seguida uma lista de
chás. Selena pediu o de marionberry, que era típico do Oregon. Foi servido
num bule de porcelana com um coadorzinho de prata, já que era um chá de
folhas, e não de saquinho. As meninas adoraram os detalhes decorativos. Os
torrões de açúcar estavam enfeitados. A vasilha de leite era pequena e
delicada. O chá era acompanhado de pequenos sanduíches cortados em
forma de estrela ou de coração. Havia também fatias de torta de abóbora,
em formato quadrado, com imensas “gotas” de chantilly.
- Não quero torta de abóbora, não, foi dizendo Amanda. Estou
enfarada disso.
- Eu também, ajuntou Kayla.
- Tudo bem, assentiu Selena. Se não quiserem a torta, não precisam
comê-la. Eu mesma estou meio enjoada dela também.
Aliás ela comera uma fatia de torta no café da manhã, e não fora a
única. Wesley e o pai também haviam comido.
Vó May participava do grupo animadamente, ouvindo com atenção
quando lhe dirigiam a palavra, mas nem sempre dando uma resposta. Selena
percebeu que a mente dela estava começando a “fugir” da realidade e
mergulhar no seu mundo de esquecimento.
- Este bolo de castanhas está delicioso, vó, disse a garota. A senhora
gostou?
Vó May deu um sorriso educado. Olhou para a neta como se não
soubesse quem ela era nem por que lhe dirigia a palavra. Contudo estava
comendo direitinho, o que Selena achou muito bom. É que, quando lhe
levara o café da manhã, ela se limitara a dar uma beliscadinha na torrada.
Nesse momento, a garota lhe serviu de um pouco do chá inglês.
- Quer mais açúcar? indagou, procurando fazer com que a senhora lhe
respondesse.
- Deixe eu por? pediu Amanda e logo se virou para a avó. Um torrão
ou dois, vó?
Percebia-se que aquele chá seria uma experiência inesquecível para as
duas meninas. Selena até se sentiu um pouco mais alegre de ter vindo,
podendo quase voltar a ser uma “garotinha” novamente.
- Só um, respondeu a avó, mexendo o chá com a colherinha, a mão
relativamente firme.
Instantes depois, as duas garotinhas se mostraram cansadas de ficar ali
paradas, embora as outras mulheres do grupo ainda não estivessem. Selena
sugeriu que fossem à loja de suvenires do hotel. Então, deixando Vó May
junto com Tânia e a mãe, elas foram: Selena com suas roupas comuns e as
gêmeas com seus vestidinhos de festa e laços de fita no cabelo. Cada uma
segurou uma das mãos da prima e saíram. Pareciam superfelizes com as
atenções especiais que estavam recebendo.
- Quando eu crescer, quero vestir roupas iguais às suas, comentou
Amanda. Você é muito “chic”, Selena.
- Eu também quero ser igualzinha a você, concordou Kayla. Quero ir à
Europa muitas vezes, que nem você.
- Mas eu não vou muitas vezes, corrigiu Selena.
- Minha mãe disse que vai. Ela falou que você foi duas vezes este ano
porque é uma garota de “espírito livre”.
- Kayla, interveio Amanda em tom de repreensão, do jeito que você
está falando parece que isso é errado.
- Não, insistiu a outra. Mamãe disse que antes de casar também tinha
“espírito livre”.
- A Tia Emma falou isso? perguntou Selena no momento em que
entravam na loja.
- Falou, replicaram as duas em uníssono.
- Sabe o que mais? A mãe de vocês é muito “chic”!
Kayla deu de ombros.
- É, mas não tão “chic” como você.
Selena e suas pequenas admiradoras puseram-se a percorrer a loja de
presentes do hotel, que de fato era uma graça. Viram uma mesa antiga,
sobre a qual estava uma coleção de bules de chá ingleses e vários outros
acessórios. A garota avistou uma lata de biscoitos, com uma estampa xadrez
tipicamente escocesa. Ficou feliz de ter enfiado vinte dólares na bota, que
por vezes lhe servia de bolsa, quando não queria carregar a mochila. Pensou
em comprar aqueles biscoitos, que comeria tomando chá e escrevendo para
o Paul.
Já terminara sua longa carta para ele. Depois acrescentou aquele P.S.
ainda mais comprido, que ela fora só esticando. Afinal, colocara dois selos
no envelope, pois parecia bem pesado, e o deixara na caixa do correio, para
que o carteiro o recolhesse.
- Olhe só estes kits de costura, disse Kayla, pegando um pano
preparado para ser bordado e mostrando-o a Selena.
Ele se achava numa cesta, no chão, junto com vários outros paninhos
que estavam marcados com cinqüenta por cento de desconto.
- Muito legal, replicou a garota, dando uma olhada rápida para ele.
O desenho mostrava a insígnia* de uma família nobre escocesa, e no
alto estava escrito “MacIver”.
___________________
*Insígnia de família: figura representativa de uma família da nobreza. (N da T.)
Selena,
Isto é apenas um bilhete rápido. Estou atolado em provas. E já que
não sou um aluno “nota 10” como você, tenho de pôr o cérebro para
funcionar. Que bom que você gostou do retrato. Tirei-o no local onde faço
caminhada. Gosto muito daquele lugar. Estou querendo ir lá neste final de
semana, se a chuva deixar. Faz vários dias que só tem chovido aqui. Você
perguntou sobre o meu aniversário. É 10 de dezembro. E se eu puder ter o
atrevimento de lhe pedir algo, gostaria de ganhar um retrato seu, para pôr
em minha escrivaninha. Assim, quando estiver estudando, posso olhar para
o seu sorriso leve e tranquilo e suavizar meu sofrimento. Tenho de terminar
agora.
Com meus melhores votos para você,
Paul
Rapidamente calculou quantos dias faltavam para aquela data. Se
tirasse o retrato ainda hoje, poderia mandar revelá-lo em um desses lugares
que fazem o serviço em uma hora. Compraria uma moldura, embrulharia e o
enviaria no dia seguinte. Assim teria o prazo de quase dez dias para chegar
lá. Era a conta certa.
- Mãe! gritou ela, entrando em casa. Onde é que você está?
Encontrou-a deitada num sofá, enrolada em um cobertor.
- Oh! O que é que foi?
- Só estou cansada. O que é?
- Preciso de um favor seu. Pode bater umas fotos minhas? Quero
aproveitar que não está chovendo. Quero tirar no quintal do fundo. Já estou
com o filme na máquina e tudo o mais.
- Precisa disso agora, neste instante? indagou a mãe.
Parecia que ela não estava com muita vontade de abandonar aquela
posição confortável naquele momento.
- Não; pode deixar. Podemos tirar mais tarde. Desculpe por tê-la
acordado.
Na verdade, não queria deixar para mais tarde. Desejava resolver isso
agora. Foi à cozinha e discou para a casa da Vicki. Ninguém atendeu. Ligou
para o Ronny. A mãe dele informou que o rapaz ainda não havia chegado.
Telefonou para outros conhecidos. Ninguém poderia ajudá-la. Ligou para
Vicki outra vez. Ninguém atendeu. Desesperada, resolveu acordar a mãe.
Afinal, já tinham se passado bem uns cinco minutos depois que conversara
com ela. Justamente nesse momento, porém, Vó May entrou na cozinha.
- Ola, Queridinha! Como passou o dia?
- Muito bem, vó. Ei, Vó May, será que poderia tirar umas fotos
minhas lá no quintal?
A senhora demorou um pouco para responder. Primeiro olhou para a
neta com uma expressão estranha.
- Creio que sim, disse por fim.
- Ótimo! Então espere aqui. Volto já.
Selena subiu as escadas correndo e pôs o vestido verde. Aplicou
rapidamente um pouco de maquiagem e tentou ajeitar o cabelo rebelde.
- Já estou indo, vó, gritou de cima para a avó.
Pegou a máquina e verificou se o filme estava na posição certa para
começar a rodar.
- Pronto, vó, estou pronta, disse, voltando à cozinha.
A avó não estava mais lá. Selena não queria chamá-la para não
perturbar a mãe. Então pôs-se a dar voltas pela casa à procura da senhora.
Subiu para o andar superior e encontrou-a em seu quarto, espiando
tranquilamente pela janela.
- Estou pronta, Vó May, disse ela. Pode tirar meu retrato agora? Lá no
quintal? Acho que vai ficar bonito se tirar perto daquela árvore pequena, que
está com as folhas amarelas e ainda não acabou de desfolhar.
- ‘Tá bem, concordou Vó May.
Ela veio seguindo a neta com passos lentos, mas firmes.
Quando chegaram embaixo e saíram porta afora, a senhora já estava
cansada. Selena teve de esperar um pouco até que ela se recuperasse e
pudesse bater as fotos.
- Vou ficar bem aqui, vó, disse a garota, aproximando-se da árvore de
folhas amarelas. A senhora pode pegar do meu joelho para cima, porque não
tenho nenhum sapato que combina com este vestido.
E ficou ali parada, descalça, tremendo de frio, naquele vestido
decotado.
- A senhora sabe onde é que aperta, né, vó?
- Fala “xis”, disse Vó May, e bateu a foto.
- Pode bater mais, vó. Podemos gastar o filme todo. Pegue uns mais de
perto. Quero que fique um retrato bem legal.
Aprumou o corpo para ficar o mais elegante que pudesse e sorriu,
olhando para a câmera. Ouvindo o clique da máquina, lembrou-se do que
Paul escrevera, que o seu sorriso tranqüilo iria suavizar o “sofrimento” de
estudar. Ele era tão poético! Abriu ainda mais o sorriso e desejou que o
brilho do seu olhar – o brilho que havia nele por causa de Paul - aparecesse
nas fotos.
Capítulo Treze
A sineta da porta da Mother Bear soou, com seu tinido alegre, quando
Vicki e Selena entraram. Imediatamente as duas sentiram o aroma de café,
misturado ao cheiro de pãezinhos recém-assados.
- Adoro o cheiro deste lugar! exclamou Vicki. Você fica enfarada dele
quando está trabalhando?
- Enfarada, não, mas às vezes nem o sinto, replicou Selena, correndo
os olhos pelas mesas para ver se Amy já chegara.
Não chegara. E as duas estavam cinco minutos atrasadas.
- Quer tomar algo? indagou Vicki, encaminhando-se para o balcão.
Quer chá? Eu pago!
Selena agradeceu a generosidade da colega. No domingo, havia
pegado 5 dólares emprestados com o pai para por gasolina no carro, pois
teria de ir à Highland House e à aula. No dia seguinte, iria receber. Contudo,
depois que pagasse todas as dívidas, teria muito pouco de resto para
comprar os presentes de Natal.
- É, quero um chá de hortelã, disse. Obrigada, Vicki.
Acompanhando a colega até o balcão, Selena cumprimentou D.
Amélia e em seguida perguntou:
- A senhora se lembra daquela minha amiga Amy? Viu se ela esteve
aqui?
- Creio que não, respondeu a mulher. Mas a loja tem estado muito
cheia.
D. Amélia estava usando um avental que criara especialmente para as
festas natalinas. Era de cor vermelha e, na parte superior, tinha uma
aplicação com a figura de um urso. O animalzinho tinha uma fita na cabeça
com o desenho de chifre de renas. Selena achou o avental engraçadinho,
embora meio infantil. No sábado, quando usara um deles, percebeu que
algumas clientes tinham olhado bastante para ele.
- Eu lhe falei que uma freguesa perguntou se eu queria lhe vender meu
avental? indagou para a patroa.
- Não. Falou não. Espero que você tenha dito que sim.
- Não; eu disse que a senhora é que o tinha feito e que ela teria de
conversar com a senhora.
- Ótima idéia! Acho até que vou fazer mais uns dois ou três, trazer
para cá e pendurar na loja. Vou fazer isso hoje à noite mesmo.
Selena não conseguia imaginar como alguém poderia costurar algo da
noite para o dia. Seu bordado estava demorando tanto! E não estava ficando
lá muito bom, não; quanto mais o olhava, mais via defeitos. Começara-o
com muito entusiasmo, mas agora sua animação tinha acabado havia algum
tempo.
D. Amélia foi buscar a água para o chá e Vicki tirou o dinheiro da
bolsa.
- O que foi que aconteceu sexta-feira à noite? quis saber Selena.
Ronny me disse que não foi ele quem lhe deu carona, foi o Warner.
A amiga girou os olhos para o alto.
- Nem me fale nisso, por favor, disse. Estou querendo esquecer.
- Se fosse eu, preferiria pegar um táxi a entrar num carro sozinha com
Warner.
- Não estava sozinha, explicou Vicki. Havia mais quatro pessoas. E eu
fui a primeira a descer. Então, na verdade, não há nada pra contar.
- Há, sim, insistiu Selena. Por que o Ronny não lhe deu a carona?
- Ele ia levar o Tre, e na hora lá não quiseram ficar apertados pra me
levar também.
- Mas o Warner quis, disse Selena, pegando a vasilha de chá que D.
Amélia lhe trouxera e agradecendo a mulher.
- Quis, concordou Vicki, sorrindo para a proprietária da confeitaria, e
acrescentou: Quero um capuccino com canela.
- Parece que nada está saindo exatamente como a gente queria, né?
comentou Selena.
Vicki pagou a compra e as duas pegaram as xícaras, indo sentar-se
numa mesa perto da janela.
- Sei, não, replicou Vicki. Acho que no momento não tenho muito de
que reclamar. E creio que você também não tem.
- Pra mim está tudo péssimo, desabafou Selena, chegando a cadeira
para mais perto da amiga para que ninguém as ouvisse. Estou tendo um
conflito com meus pais que está me inquietando bastante. Eles estão
querendo ter uma conversa comigo sobre o assunto. Na sexta-feira,
começamos, mas eu não consegui discutir direito o problema.
- Que problema?
- Paul. Eles não gostam dele.
- Hein? Quer me explicar isso direito? Quando foi que eles pararam de
gostar do Paul?
- Acho que foi quando comecei a me corresponder com ele. Eles têm a
mania de expor a opinião deles sem a dizerem explicitamente. Então a gente
é que tem de encontrar a solução.
- Pois o jeito deles é melhor do que o dos meus pais. Eles dizem tudo
claramente e apontam tudo que estou fazendo errado.
- E eu preferia que os meus agissem assim com relação ao problema
do Paul. Não sei o que eles têm contra ele, ou contra o fato de eu estar
gostando dele.
- Por que você não pergunta? sugeriu Vicki. Se você perguntasse, eles
lhe diriam exatamente o que estão vendo de errado no caso, não diriam?
- Creio que sim.
- Ou será que você não está querendo muito saber o que eles pensam?
- Sei lá. Só sei que não estou gostando nada dessa constante sensação
de que há algo errado.
- É, sei o que está querendo dizer. Tinha essa mesma sensação quando
andei afastada de Deus.
Selena pensou que talvez fosse esse também o seu problema, mas
rejeitou o pensamento. Considerava-se uma boa crente. Havia vários anos
que era assim. O que poderia estar errado no seu relacionamento com Deus?
Em seguida, ocorreu-lhe outra lembrança. Quanto tempo fazia que não
orava nem lia a Bíblia? Muito tempo; várias semanas. Mas é que tinha
andado muito ocupada. Obviamente Deus compreendia isso. Essa situação
não mudava sua condição básica. Deus a amava do mesmo jeito, isto é,
incondicionalmente Ela ainda era capaz de testemunhar de sua fé a qualquer
momento. Além disso, estava trabalhando na Linha Jovem da Highland
House. O crente que se afasta de Deus não faz um serviço voluntário desses,
faz?
O aperto que sentia no estômago parecia ter piorado. Pedira o chá de
hortelã exatamente porque ele era bom para dor de estômago. Levou a
xícara aos lábios avidamente, mas sorvera devagar o líquido quente. Queria
se acalmar, não queimar a boca.
A idéia de não se queimar ficou a pairar em sua mente. De tudo o que
estava lhe acontecendo no momento, isso era o que ela mais queria.
Desejava, sim, ter um relacionamento caloroso e agradável com o Paul.
Contudo não queria se “queimar” nem sofrer, como Amy profetizara.
Queria ter uma conversa calma e tranquila com os pais, sem ficar toda
agitada nem “queimar” o bom relacionamento que construíra com eles no
decorrer dos anos. A idéia de “se acalmar e não se queimar” aplicava-se
também à sua amizade com Amy. Jamais quisera perder o controle de seus
atos, como acontecera na sexta-feira.
- Acho que a Amy não vai aparecer, disse Selena.
Vicki deu de ombros.
- Se não vier, depois eu ligo pra ela. Creio que é fundamental que não
descuidemos desse novo relacionamento que iniciamos na semana passada.
Então, se ela disser que está chateada com você, concorda em ter uma
conversa pra resolver o problema?
- Claro, replicou Selena.
Ainda se sentia meio ridícula por causa do que acontecera no The
Beet. O que fora mesmo que Paul lhe dissera na ocasião em que haviam se
conhecido? Ele comentara algo a respeito do amadurecimento dessa sua
impulsividade no futuro. É, estava claro que isso ainda não ocorrera.
Pensava que era suficientemente madura para sair de casa e ir estudar na
Escócia. No entanto via que não estava conseguindo cultivar
adequadamente seus relacionamentos mais importantes.
- E se você não se importar, Selena, quero dizer que deve ir conversar
com seus pais o mais depressa possível e acertar esse desentendimento com
relação ao Paul.
- É, eu sei, replicou a garota.
Tomou outro gole do chá de hortelã, mas ele não lhe transmitiu muita
tranquilidade.
E afinal Amy não apareceu mesmo, o que fez com que Selena e
sentisse ainda pior. Foi para casa e direto para a cama. Instantes depois, sua
mãe subiu para ver o que estava se passando com ela. Selena explicou que
não estava se sentindo bem, parecia que ia ficar doente e não queria jantar.
Cochilou um pouco, por cerca de uma hora, e depois acordou. Resolveu
sentar-se na cama. Acendeu a luz e pegou a carta que estava escrevendo
para o Paul.
Será que é porque sou muito perfeccionista? Quero que tudo esteja
bem certinho. Quero que minhas amigas gostem de mim, que meus pais não
fiquem aborrecidos comigo. Quero que tudo dê certo e esteja em paz. Mas
neste momento não está assim. Bom, é verdade que algumas áreas de minha
vida estão bem. Não quero lhe mandar uma carta totalmente negativa. E
também não posso dizer que está tudo errado, não. A questão é que muitos
aspectos não estão perfeitamente bem. Entende o que quero dizer?
Parou de escrever e deu um suspiro. Releu toda a carta, iniciando a
partir do ponto que escrevera na escola. Notou que não passava de um
amontoado de frases, que não davam em nada. Embolou a folha, amassou-a
e jogou no lixo. Não era aquilo que desejava que Paul lesse no trem. Ele
precisava era de algo que o edificasse; não daquela louca fieira de palavras
pessimistas. As cartas dele para ela sempre eram inspirativas e animadoras.
Queria que as suas tivessem o mesmo efeito nele. Então iria refrear o desejo
de escrever para ele todas as vezes que estivesse meio desorientada, como
agora. Sentiu uma lágrima brotar no canto do olho.
- Parece que não consigo fazer nada certo, disse para si mesma,
censurando-se. Afinal, o que há de errado comigo? Não posso nem escrever
para o Paul! E meu relacionamento com ele é o elemento mais importante
de minha vida!
Ouvindo o pensamento que acabara de expressar, Selena levou um
susto. Repetiu o que dissera para ver se escutara direito.
- Paul é o que há de mais importante pra mim!
Essa constatação deixou-a preocupada. Será que o Paul agora ocupava
um lugar que sempre pertencera a Deus? Alguns anos antes, ela decidira que
Jesus seria a principal pessoa de sua vida. No início, quando falava disso
para alguém, sentia que o fazia num tom de vanglória. Contudo confessara
esse erro para Deus e continuara amando-o. O fato de ter cometido esse
pecado não tirara Deus do centro do jardim do seu coração.
Agora, porém, se fechasse os olhos e tentasse imaginar o jardim do
seu coração, não via mais Jesus ali; via Paul. E não fora o rapaz que entrara
ali à força, não. Fora ela própria que o colocara nesse lugar. Percebia que
pouco a pouco passara a ignorar a Deus e parara de ter comunhão com ele.
Finalmente compreendia a razão da dolorosa sensação de vazio que havia
em seu estômago.
- Selena! chamou a mãe do lado de fora, batendo levemente à porta.
Em seguida, ela abriu e entrou, trazendo o telefone sem fio.
- É a Tânia. Ela quer falar com você.
Capítulo Dezoito
Quero brilhar por ti, Senhor. Não desejo que essa luz se apague.
Quero que o fogo tenha a intensidade certa, dando luz, cor e energia ao
meu relacionamento com Paul. Entretanto não quero mais exagerar e
acabar incendiando tudo.
De agora em diante, desejo que o Senhor esteja em primeiro lugar e
continue sempre sendo o primeiro. Ensina-me, Pai, a agir assim. Meu
coração é teu, bem como todas as emoções que tu criaste em mim. Peço-te
que protejas minhas emoções e me impeças de extravasar tudo de uma vez
só. Ensina-me a ser paciente comigo mesma e com os outros.
E continuou escrevendo até sentir dor nos dedos. Estava sendo tão
bom tirar tudo aquilo da cabeça! Agora a única dor que sentia era de fome.
Assim que terminou de escrever sua “oração”no diário, foi para o andar de
baixo. O pai estava na saleta, trabalhando no computador.
- Está melhor? indagou ele.
- Bem melhor. Que notícia boa a da Tânia, né?
- É, replicou o pai. Só esperamos que tudo dê certo e que ela não
esteja com expectativas muito elevadas, fora da realidade.
- Pai, eu acho que a Tânia sempre tem as expectativas certas com
relação a todos os seus relacionamentos. Vai acabar tudo bem.
O pai pareceu relaxar um pouco ao ouvir aquelas palavras.
- Sabe o que mais? Você tem razão. A Tânia sempre revelou
maturidade e bom discernimento em tudo. Ela sabe tomar as decisões certas.
Selena teve vontade de dizer:
“Ela não é como a sua outra filha, que sempre apronta a maior
bagunça com todos os seus relacionamentos, né?”
Pensou em dizer, mas não disse. Lembrou-se da recomendação de
Ronny, no sentido de não se censurar muito por ser sensível e agir levada
pelos sentimentos. Ela era assim. Acolhia tudo na vida de braços bem
abertos, com um coração muito vulnerável, cheio de emoções. Dava para
perceber que Tânia, com sua autodisciplina e controle emocional, sempre
tomava decisões corretas. Apesar de tudo, Selena preferia ser assim, cheia
de erros e defeitos, do que igual a Tânia, com seu jeito racional.
- Pai, se você e mamãe tiverem uma hora disponível amanhã,
poderemos ter aquela conversa.
- Ótimo, replicou o pai. Acho que poderemos conversar logo após o
jantar. Ah, tem três e-mails para você aqui.
- Ah, é? De quem?
- Uma mensagem e de sua amiga que está na Suíça e as outras duas da
Katie. Quer que eu imprima pra você?
- Quero, obrigada, pai.
Selena se lembrou de que fazia várias semanas que não escrevia para
Cris e Katie. Eram duas amigas que não queria perder. Contudo não fizera
nenhum esforço para cultivar sua amizade com elas, ao passo que estava
dando uma atenção exagerada ao Paul. Recordou-se das coisas que
comprara para fazer o seu chazinho. Como estava com pouco dinheiro para
comprar outros presentes de Natal, decidiu mandá-las para Cris, assim como
enviara a outra caixa para o Paul. Depois teria de pensar num outro presente
para Katie.
Pegou os e-mails na impressora e foi para a cozinha preparar uma
merendinha para si. Fez algo de que gostava muito. Pegou dois biscoitos
cream cracker, esmigalhou-os e jogou dentro de uma caneca de louça.
Colocou um pouquinho de leite, apenas o suficiente para virar uma “papa”.
Para enfeitá-los, acrescentou um punhado de marshmallows. Em seguida,
sentou-se à mesa da cozinha e se pôs a comer e a ler os e-mails.
O da Cris era bem curto. Dizia que estava aprendendo muito no
orfanato em Basiléia, e que ela e Ted estavam se correspondendo. Lembrou-
se de como a amiga ficara preocupada com o namoro, quando pensara em ir
estudar na Europa, onde passaria um ano. O problema era que desde que
conhecera o Ted ele nunca lhe escrevera uma carta. Recordava-se
vagamente também a respeito de um coco que o rapaz enviara do Havaí para
Cris. Contudo, obviamente, não poderia ter escrito nele uma carta para ela.
Sorriu ao se dar conta de que agora, porém, ele estava escrevendo.
Em seguida, ocorreu-lhe que uma carta, de fato, possui uma força
própria toda especial. Talvez tenha sido por isso que acabara se envolvendo
tanto com Paul, em tão pouco tempo. É que nelas ambos normalmente se
abriam de uma forma que não fariam se estivessem conversando cara a cara.
Achou então que seria bom reler todas as cartas dele, agora que tinha
uma compreensão melhor de como deveria ser o relacionamento com ele.
Subiu para o quarto levando os e-mails e a caneca com o restante de sua
“papa”. Abriu a primeira gaveta da cômoda, onde se encontrava toda a
correspondência dele, amarrada com uma fita. Atirou-se na cama, desatou a
fita e se pôs a reler uma por uma na ordem em que haviam chegado. Havia
oito cartas e dois postais. Ela mesma escrevera o dobro disso para ele. Nesse
momento, pensou se ele também as havia guardado ou se as tinha atirado no
lixo assim que acabara de responder.
A medida que as ia lendo, mais com a razão do que com o coração,
percebia algo que não vira antes e que a deixou muito surpresa. Embora as
palavras dele fossem calorosas e bem pessoais, não havia nada nelas que
desse a entender que o rapaz estava se apaixonando por ela, como pensara.
Dava para ver que ele gostava dela e se interessava por ela como pessoa.
Entretanto não havia nas cartas o menor indício de que ele se achava
emocionalmente empolgado por ela, da mesma forma que ela estava por ele.
Apesar de essa constatação ser um pouco dolorosa, constituiu também uma
libertação para ela. Estava enxergando a verdade e se libertando. Via
também que poderia continuar escrevendo para ele, poderia seguir gostando
dele e até sonhar um pouco.
Deitou-se de costas e ficou a olhar para o teto. Não dava para culpar,
assim de imediato, o tom das cartas que escrevera para o Paul. Será que
havia extravasado as emoções da maneira desarticulada como estivera
fazendo ultimamente? Não; lembrava-se de que muitas de suas cartas
tinham um tom calmo. Outras eram recheadas de notícias. Ainda outras
continham brincadeiras e piadinhas que fizera para ele em resposta ao que
ele lhe escrevera.
Lembrou-se novamente de que Ronny lhe dissera para não se
“castigar”demasiadamente. O que estava feito, estava feito, e ela não
poderia mudar. Talvez tivesse realmente exagerado na dose de emoção no
relacionamento com Paul, mas sabia que poderia recomeçar de modo
diferente. Iria confiar em Deus para que ele cuidasse dessa área de sua vida.
Poderia também agir de maneira mais responsável no que dizia respeito aos
seus sentimentos, cuidando para não cometer excessos. Estava esperançosa
de poder reiniciar tudo de maneira mais correta.
E acabou que Selena não pôde ter a conversa com os pais naquela
terça-feira. Eles só conseguiram ter esse encontro no domingo à tarde. Nesse
intervalo, a garota teve tempo para resolver sozinha muitos dos dilemas
relacionados com a questão.
Numa das noites, ela pegou a sua lista de metas para o namoro e seu
compromisso de pureza, o seu “credo”. Fez alguns acréscimos ao que
escrevera, pois compreendera que não bastava “se guardar” para o futuro
marido apenas fisicamente. Teria de se preservar também emocionalmente.
Então, quando desceu para conversar com os pais na sala, no domingo
à tarde, levou as anotações.
- Acho que os dois já perceberam que nos últimos dias estou tendo
algumas experiências, principiou ela. E a explicação mais simples pra isso é
que Deus está me ensinando algumas verdades. Primeiro, quero pedir
desculpas porque tive uma atitude rebelde e afirmei que já tinha idade
suficiente pra tomas minhas decisões. Agora estou vendo que a gente age
melhor quando ouve os conselhos e as opiniões de outros. Eu devia ter
ouvido o que estavam querendo me dizer a respeito do Paul, em vez de cair
na defensiva.
- E o que foi que você entendeu que queríamos lhe dizer sobre o Paul?
indagou o pai.
- Achei que queriam dizer que eu estava me envolvendo demais com
ele no plano emocional e que era possível que ele não tivesse o mesmo
interesse.
Os pais acenaram que sim. Selena pegou as folhas. Sentia-se como
uma jovem advogada defendendo uma causa. Em primeiro lugar, mostrou-
lhes duas cartas do rapaz, algo que nunca fizera antes.
- Aí dá pra ver que ele tem interesse em se corresponder comigo,
disse. Achei que devia lhes provar isso. Mas agora vejo também que ele não
encara o nosso relacionamento no mesmo nível emocional que eu.
Aqui ela deu aos pais sua lista de metas para o namoro e seu
compromisso de pureza, agora já atualizado.
- A lição mais importante que aprendi foi que a idéia de esperar e
manter a pureza não se aplica apenas ao aspecto físico, mas ao das emoções
também. As emoções começam no coração. Então, quando a gente se
envolve emocionalmente, está dando ao outro uma parte do coração, da
mesma forma que o envolvimento físico implica dar o corpo ao outro.
Sentiu-se um pouco constrangida de expor esses pensamentos para os
pais. Contudo esse era o único jeito que encontrara para explicar-lhes o que
Deus estava lhe ensinando nesses últimos dias.
- Acho que estou começando a perceber que essa questão de guardar
as emoções pode ser muito difícil pra mim, ao passo que no plano físico o
problema nem existe. Mas agora percebo que sou meio impulsiva. Parece
que me deixo levar pelas emoções mais do que outras pessoas.
- Isso é um aspecto da sua personalidade, interveio a mãe. Desde
pequena, já era mais sensível que seus irmãos. Mas você não precisa ter
vergonha disso. Foi Deus que lhe deu esse nível de sensibilidade. Isso é um
dom dele.
Selena fez que sim. Percebia que estava começando a entender isso.
- É, mas é possível que eu use mal esse dom, aliás, qualquer outro
dom, não é?
O pai acenou que sim, movendo a cabeça rapidamente várias vezes.
- Então como sou uma pessoa de espírito livre, tenho de ficar mais
vigilante do que a Tânia e o Wesley. Eles usam mais a razão do que os
sentimentos em seus relacionamentos.
- Uma atitude muito sabia, filha, disse o pai, correndo os olhos pelas
folhas que ela lhe apresentara. Mas não pense que você também não usa um
pouco a razão. O que acabou de dizer mostra um bom discernimento, revela
que tem maturidade.
- Deu pra perceber também que já estou enxergando melhor o
relacionamento com o Paul e que pretendo continuar a correspondência com
ele, mas com menos intensidade?
- Deu, replicou a mãe.
- Sem dúvida nenhuma, disse o pai. Confiamos em que, daqui pra
frente, você poderá conduzir tudo sozinha. Foi muito bom, filha, ter se
aberto conosco. Obrigado.
- E eu tenho de lhes agradecer por terem sido compreensivos comigo.
Selena pegou as folhas de volta, sentindo uma doce calma envolver
todo o seu ser. Geralmente seu diálogo com os pais era assim. E queria que
continuasse do mesmo jeito.
Voltou para o quarto levando as cartas e as folhas. Em seguida passou
alguns minutos tentando arrumar a interminável bagunça do aposento.
Ainda tinha de fazer o dever de casa e embrulhar o presente que iria enviar a
Cris. Daí a uma hora e meia devia se apresentar na Highland House, para
trabalhar na Linha Jovem. Hoje seria a última vez que iria lá antes das férias
de Natal, então sentiu que não podia faltar.
Fez um esforço para se sentar e terminar o dever escolar. Na hora em
que ia saindo para a Highland House, pegou o retrato de Paul e o colocou na
mochila. No domingo anterior, falara dele para o Tio Mac, e este lhe pedira
que o trouxesse, pois queria vê-lo.
Capítulo Vinte
Fim