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Série Selena 4

Feche os Olhos

Robin Jones Gunn

Título original: Close Your Eyes


Tradução de Myrian Talitha Lins
Editora Betânia, 2000
Digitalizado por deisemat
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SEMEADORES DA PALAVRA e-books evangélicos

Série Selena 4

Feche os Olhos

Robin Jones Gunn

Para
Janet Kobobel Grant
Minha amiga, este é o vigésimo livro em que trabalhamos juntas.
Pespero que os leitores saibam algo que eu já sabia o tempo todo:
Sem a sua colaboração, não teria conseguido fazer nenhum deles.
_____________________________________________________________________

Capítulo Um

- Como é que você consegue entender esse negócio? indagou Ronny Jenkins, atirando

na lareira acesa um invólucro de chicletes que acabara de amassar.

Ele se achava deitado no chão, e à sua frente estava um livro de física aberto e apoiado

na forma de um V invertido. À volta do rapaz, havia dezenas de folhas de papel. 'Selena

empurrou a pulseira esmaltada mais para o alto do braço e dirigiu um sorriso de incentivo

para o colega.

- Você está quase conseguindo, disse. Tente de novo.

Enquanto Ronny voltava a concentrar-se no dever de casa, Selena esticou as pernas e

correu os olhos carinhosamente pelo aposento aconchegante. A majestosa mansão vitoriana

onde morava, que já pertencia à sua família havia mais de cinqüenta anos, era bastante

espaçosa. A garota inclinou a cabeça para trás e fitou Ronny, com seus olhos azul-

acinzentados.

- Quer dar uma parada e fazer um lanchinho? indagou.

Antes que o rapaz respondesse, Tânia, a irmã mais velha de Selena, entrou na sala tendo

na mão o telefone sem fio.

- Cadê mamãe? perguntou ela.

- Foi levar os meninos ao barbeiro, respondeu Selena, virando-se para a outra.


Notou que Tânia tinha lágrimas nos olhos. Ou Selena muito se enganava ou ela estivera

conversando com o namorado, Jeremy Mackenzie, como fazia todos os dias, àquela mesma

hora. Contudo, sempre que telefonava para ele, geralmente ela era toda sorriso e sussurros, e

não lágrimas.

- Tudo bem com você? quis saber a garota em tom cauteloso.

As duas nunca tinham sido amigas íntimas, e Selena reconhecia que tal pergunta poderia

deixar Tânia meio constrangida, principalmente porque Ronny se achava presente.

- Claro, replicou a irmã. Estou ótima. Vou fazer uns biscoitos, anunciou ela, saindo da

sala e indo em direção à cozinha.

- Agora tenho certeza de que ela está chateada, comentou Selena em voz baixa.

Ronny estava rabiscando uma série de números numa folha de caderno e permaneceu

com a cabeça baixa.

- Aconteceu alguma coisa entre ela e Jeremy, continuou Selena. Aposto que ele não vai

vir.

- Que foi? indagou o rapaz, erguendo os olhos.

Seu cabelo louro-escuro, de corte reto, caiu-lhe nos olhos.

- Você falou comigo?

- Deixe pra lá, respondeu a garota.

Segurando com uma das mãos a saia longa e rodada, levantou-se e virou para ir à

cozinha.

- Volto já, disse.

- Tá o.k.! exclamou ele.

Tânia já enchera a mesa com os ingredientes que pegara na dispensa e até um pacote de

espaguetes. Na beirada, estavam dois ovos, quase a ponto de cair. A um canto, havia um vidro

de essência de baunilha destampado, exalando um agradável aroma sobre tudo, como se fosse

uma bênção. Quando Selena entrou, a irmã estava untando uma assadeira com manteiga. A
jovem não olhou para ela. Jogou o resto da manteiga numa tigela e se pôs a batê-la

vigorosamente com uma colher de pau.

- Tudo bem com você? indagou Selena de novo.

- Claro que está! retrucou Tânia. Só porque Jeremy não vai vier nesse final de semana,

como havíamos planejado, isso não significa que minha vida vai parar. Tenho muita coisa pra

fazer. Muita mesmo.

- Por que ele não vai vir?

- Não tem dinheiro. Tem de estudar. Está fazendo as provas IIo ir. l-scolha a desculpa

que você quiser.

Selena sentou-se num tamborete, sentindo o coração apertar. Nas últimas semanas,

Jeremy e Tânia haviam feito muitos planos para essa ocasião em que ele viria de San Diego

para visitá-la. E nesse período, Selena também acalentara alguns desejos. Jeremy tinha um

irmão, Paul, que a garota ficara conhecendo cinco meses atrás, no aeroporto de Londres.

Nesses meses, ela o vira na cidade duas vezes e recebera duas cartas dele. Essa pequena

correspondência e as poucas conversas que tinham tido acabaram por criar em Selena uma

porção de anseios, que ela guardava no coração como se este fosse uma caixinha de jóias.

Quando ficara sabendo que Jeremy era irmão de Paul, tivera certeza de que fatalmente

seu caminho iria cruzar com o do rapaz. Afinal Jeremy programara ir a Portland para ver

Tânia, e Selena entendeu que finalmente iria poder abrir sua caixinha de jóias. Agora, porém,

todas as possibilidades se frustravam.

- Então ele vai vir mais tarde, quando as aulas terminarem?

- Vai tentar, disse Tânia, abrindo a porta do armário e remexwndo dentro dele. Onde é

que mamãe esconde as gotas de chocolate?

- Na dispensa, explicou Selena. Na prateleira de cima, atrás das toalhas de papel.

A jovem foi à dispensa à procura do chocolate, enquanto Selena procurava realimentar

os sonhos, guardando-os dentro da sua caixinha.


- Ah, mas então não vai demorar muito, não, disse para a irmã (e para si mesma). É só

esperar mais algumas semanas. Além disso, vindo em junho, ele pode ficar mais tempo. Se

fosse no final de semana, o tempo iria passar assim ó, continuou ela, dando um estalido com

os dedos para exemplificar o que dizia. Você não acha melhor ele passar uma semana aqui?

- É, creio que sim. Mas isso só vai acontecer, é claro, se até lá ele tiver conseguido

ajuntar o dinheiro. Ele está precisando trocar os freios do carro, e a conta dele no banco está a

zero.

- Provavelmente por causa da conta de telefone, resmungou Selena.

- O que é que você quer dizer com isso? indagou Tânia girando nos calcanhares e tendo

na mão uma toalha de papel.

Selena devia ter se lembrado de que não deveria provocar Tânia quando esta se

encontrava de mau humor. E a principal razão era que a jovem, com dezoito anos, não dava

muito valor à lógica da garota, que só tinha dezesseis. Contudo resolveu dizer o que pensava.

- Vocês estão constantemente telefonando um para o outro, explicou. Tenho certeza de

que a conta deve ser alta. E nenhum dos dois tem muito dinheiro. Por que não telefonam

menos e assim economizam um pouco?

- Selena, retrucou Tânia, colocando a toalha de papel de volta na prateleira, você não

entende nada de nada sobre o amor.

- É; você tem razão. Não entendo mesmo.

Admirada ao ver que a irmã concordara com ela, Tânia não retrucou, continuando a

procurar as gotas de chocolate.

- É, insistiu Selena, acho que o amor leva a gente a tomar umas atitudes malucas, como

por exemplo, gastar o dinheiro em telefonemas em vez de ajuntá-lo para comprar uma

passagem de avião.

Tânia apertou os lábios como se estivesse reprimindo uma avalanche de palavras.

- Foi só uma sugestão, murmurou Selena, erguendo as mãos como que para se render.
Você não é a única que perde com isso, Tânia, pensou Selena. Agora o meu plano de

ver o Paul também foi por água abaixo, né?! É claro, porém, que a garota nunca diria isso em

voz alta para a irmã.

Um silêncio pesado tomou conta do ambiente. Tânia enfiou a mão no fundo de um

armário suspenso, localizado acima da geladeira, e encontrou o que procurava.

- Ah, ótimo! exclamou, pegando um grande pacote de gotas de chocolate, já meio

amassado.

- Parece que já tem uns dez anos que esse pacote está guardado aí, comentou Selena.

- E daí? Ele está fechado. Eles não põem conservantes nesses negócios para que durem

até o próximo século?

A jovem abriu o pacote e derramou os docinhos sobre a mesa.

- Vamos lá, disse. Pegue um. Experimente.

- Eu não, replicou Selena. Experimente você.

Naquele momento, a garota se deu conta de que ela e a irmã haviam invertido os

“papéis”. Durante a vida toda ela, Selena, sempre fora a mais audaciosa e atirada, embora

fosse mais nova. Quando eram pequenas, Tânia se mostrava mais delicada e “certinha”. Só

tomava leite com um canudinho, para não ficar com aquele detestável “bigode branco” no

lábio superior.

Agora era Tânia que estava agindo como Selena, bagunçando a cozinha toda para fazer

biscoitos, enquanto Selena se mostrava toda cheia de cuidado. Engraçado como ela fazia algo

contra sua natureza só para aborrecer a irmã.

- Ah, que bobagem! exclamou Selena afinal, pegando um punhado de chocolates. Olhe,

vou comer, concluiu, atirando alguns na boca.

Nesse momento, Ronny entrou na cozinha.

- O que está acontecendo? quis saber o rapaz.


- Estou fazendo biscoitos, explicou Tânia. E Selena está “dando o contra”, como

sempre.

- Estou não, defendeu-se a garota, com a voz meio embolada por causa dos chocolates

na boca.

Ronny já estava se acostumando a esse tipo de “guerra” entre as duas irmãs. Cerca de

três semanas atrás, ele passara a freqüentar a casa de Selena. A princípio, ia só às sextas-

feiras. Depois começou a ir também às segundas e quartas; e sempre que não estava

trabalhando, aparando algum gramado. Houve um dia em que ele até jantou com a família da

colega, embora ela houvesse saído para encontrar-se com a amiga Amy Degrassi. Os pais de

Selena incentivavam as visitas dos amigos dos filhos, e com isso Ronny se tornara quase um

membro da família.

- Só quero saber uma coisa, principiou ele, sentando-se ao lado de Selena e empurrando

os ovos da beirada da mesa. Quando é que esses biscoitos vão ficar prontos?

- Já, já, respondeu Tânia, medindo o açúcar e examinando a vasilha atentamente para

verificar se estava tudo certo.

- Então, se precisar de alguém para provar, é só falar comigo, concluiu o rapaz,

levantando-se para voltar à sala. Tenho de terminar esse dever de casa hoje ainda.

- Eu também, falou Selena.

Em seguida, ela dirigiu à irmã um olhar amigável e concluiu:

- E fique relembrando que dentro de mais algumas semanas ele vai vir.

Espantada com o tom amável da irmã, Tânia deu uma resposta também amável:

- Ah, é mesmo. Obrigada pelo interesse.

Ah, e eu tenho interesse sim, pensou Selena. Muito mais do que você pensa, querida

irmã. Mais do que você pensa.

Capítulo Dois
- Acho que já eliminei mais dois problemas. Agora só falta um, disse Ronny. Vou ficar

aliviado quando as aulas acabarem.

- Eu também, concordou Selena, dando um sorriso meio disfarçado, lembrando do

sonho de ver o Paul nas férias.

O telefone tocou e daí a pouco Tânia gritava da cozinha:

- É a Amy, Selena.

- Vou atender no escritório, disse a garota para o colega. Se tiver alguma dificuldade,

pode me chamar.

Ergueu-se de um salto e correu para a saleta, o cômodo da velha mansão que ela mais

apreciava. Acomodou-se numa poltrona próxima da porta que dava para o quintal dos fundos,

pegou o fone e apertou uma tecla.

- Oi, Amy! exclamou, ouvindo o clique que revelava que Tânia desligara a outra

extensão.

- O Ronny está aí? indagou a colega.

- Humm, humm. Está lá na sala terminando os problemas de física. Você já fez os seus?

- 'Tá brincando? É para sexta-feira ainda. E por que você sempre muda de assunto

quando falo em Ronny?

- Não estou mudando de assunto, não. Mas tenho uma notícia pra você.

- O quê?

- Adivinha!

- Não sei. Desisto.

- Você desiste muito fácil, Amy.

- Eu sei. Mas foi pra isso que você ligou, pra me dizer que não sou persistente?

- Não fui eu quem ligou, foi você.

- Ah, é mesmo. Então me diga logo sua notícia que eu vou dizer a minha.
- Jeremy não vem mais.

- O que significa que você não vai ver o Paul, certo?

- Certo.

- Boba! exclamou Amy.

- É, eu sei, comentou Selena, soltando um suspiro. Não devia ficar tão obcecada com a

idéia de ver esse cara, mas...

- Mas não consegue ficar sem revelar essa característica das pessoas obsessivo-

compulsivas, né? Não vai ficar satisfeita enquanto não conseguir o que quer. Depois, quando

conseguir, vai se sentir frustrada porque a fantasia acabou.

- Por favor, “Dr.” Degrassi, vamos parar com a sessão de psicanálise. Não sou

obsessivo-compulsiva, e você sabe disso.

- 'Tá bom, então está envolvida numa fantasia.

- Também não.

- O que é então? indagou Amy.

- Não sei. É só que o Paul é...

- Inacessível?

- Não necessariamente.

- Posso lhe dizer o que penso? indagou Amy.

Selena quase enxergava a amiga de olhos escuros, deitada sobre a cama coberta com

uma colcha de retalhos, jogando para trás o longo cabelo castanho e anelado, pronta a

“despejar” sobre ela suas pitadas de sabedoria.

- Pelo que você me contou sobre o Paul, eu diria: dessista desse sonho e passe a dar

atenção ao Ronny. Você sabe que ele gosta de você. Paul não passa de um fantasma em sua

vida. Ele é um misterioso desconhecido cuja estrada cruzou momentaneamente com a sua. É

só isso. Os dois agora estão em órbitas diferentes; e por enquanto não vão caminhar juntos,

não.
Selena soltou uma gargalhada.

- Onde é que você arranjou essa psiquiatria de ficção científica? Não gosto quando você

fala nesse tom de filme de terror.

- Não é filme de terror, não. É muito poético, explicou Amy.

- Parece que você está dando as coordenadas para o ônibus espacial, e não falando sobre

gente. Paul é uma pessoa, Amy, não um fantasma.

- O que estou querendo dizer, Selena, é que não adianta você ficar desejando algo que

não vai acontecer, quando bem aí perto tem algo de muito valioso à sua espera.

Selena não respondeu.

- Está bem. Pra ser mais precisa - quando bem aí na sala da sua casa tem algo de muito

precioso à sua espera.

- Eu e o Ronny somos apenas amigos, disse Selena. E você sabe disso. Por que é que, de

repente, você resolveu começar a direcionar minha vida social, hein?

- Porque tive uma grande idéia, principiou Amy. É por isso que estou ligando pra você.

Nós podíamos dar um jantar para alguns colegas da escola, como uma espécie de

comemoração do fim do ano. Minha mãe disse que podemos fazer aqui em casa. Posso

arranjar umas lagostas no restaurante do meu tio, assim a gente faz algo bem elegante.

- Humm, legal, replicou Selena. E quando você quer dar festinha?

- Não pensei ainda. Talvez sexta-feira.

- E quem você pretende convidar? quis saber Selena. O Drake?

- É, quero dizer, se nesta semana ele ficar sabendo que eu existo. E você vai convidar o

Ronny, né?

Selena não respondeu imediatamente. Enrolou um dedo numa mecha de seu longo

cabelo louro e notou que precisava lavar a cabeça. Tinha aplicado muito creme relaxante pela

manhã e ele parecia um pouco grudento.

- Selena, repetiu Amy, você vai chamar o Ronny, né?


- Talvez.

- Ah, não! Você já está de novo pensando naquele fantasma, não está?

- Talvez, respondeu Selena, com certo riso na voz.

O mais interessante em tudo que se relacionava com Paul era que quanto mais pensava

nele, mais se convencia de que estava apaixonada pelo rapaz. Não. Era mais que isso. Tinha

certeza de que fora Deus quem aproximara os dois. Sabia que algo teria de acontecer entre

eles, e quanto mais cedo, melhor.

- ‘Tá bom, Selena, interveio Amy. Tenta pôr nessa sua cabecinha inteligente uma

verdade muito poética: um Ronny na mão é melhor do que dois Pauis voando.

- O.k., já que é isso que você pensa, respondeu a garota.

Ela sabia que o melhor a fazer naquele momento era ceder, Por fora, poderia concordar,

para agradar a amiga. Contudo, por dentro, não deixaria ninguém abrir a caixinha de sonhos

que guardava escondida no coração.

Capítulo Três

- Humm! Até que não estão ruins, não, disse Selena, comendo um dos biscoitos

daTânia. Quer um? Foi minha irmã quem fez.


Ela e Amy estavam lanchando juntas na hora do almoço. A colega empurrou para um

lado sua bandeja, com algumas fritas já frias e um hambúrguer que ela apenas começara a

comer. Com o movimento, o sanduíche deslizou no prato, separando-se os três componentes:

as duas metades do pão e a carne. Amy era meio “enjoada” para comer, isto é, quando comia.

Deu uma dentadinha no biscoito de Selena e já ia abrindo a boca para dar sua opinião sobre

ele quando Drake apareceu por trás delas e disse:

- Ele não vai te morder, não, Srta. Amy!

O rapaz sentou-se entre as duas amigas e acomodou-se à mesa. O nome dele era Anton

Francisco Drake. Todos tinham conhecimento disso, contudo todos, inclusive os professores,

o tratavam por “Drake”. Tinha cabelo castanho-escuro, que penteava todo para trás. E sempre

que desejava dar ênfase a algo que dizia, esticava o queixo para diante. Tendo mais de um

metro e oitenta de altura, era um dos “astros” do time de basquete da escola. E não tinha a

menor dificuldade para convencer fosse quem fosse daquilo que pensava. Naquele momento,

estava de olho nos biscoitos de Selena.

- Quer um? indagou a garota.

- Claro, respondeu.

Com uma bocada só, engoliu o biscoito inteiro.

- Foi você quem fez? quis saber ele.

- Não, minha irmã. Ontem à tarde ela estava meio chateada e resolveu fazer biscoitos

para se distrair.

- Meninas, falou Drake, vocês querem ir ao jogo do Blazers sexta-feira à noite? Tem

uma turma de rapazes que vai, e se vocês quiserem, ainda podem comprar o ingresso.

- Eu gostaria, replicou Amy. Gosto muito de basquete.

Ronny, que se aproximara do grupo, bateu de leve no braço de Selena e perguntou:

- Você vai?

- Acho que não, respondeu a garota. Não estou muito a fim de gastar, não.
- Você quer ir, Ronny? indagou Drake.

- Talvez, depois eu te falo.

Drake se pôs a pegar as fritas da bandeja de Amy e disse:

- Quem precisar de carona é só falar comigo.

- Eu preciso, foi logo dizendo Amy.

Selena teve a impressão de que, pela primeira vez, Drake se dava conta de que a garota

tinha interesse nele. O rapaz mudou um pouco a expressão do rosto, enquanto pegava mais

algumas fritas.

- Então me explica como se chega à sua casa, pediu Drake. Acho que nunca fui lá.

- Não, foi não, falou Amy com meiguice.

A garota olhou para Selena e deu uma piscadela, sinalizando para a amiga que

conseguira o que desejava.

- Hoje mesmo faço um mapa pra você, continuou ela, dirigindo-se ao rapaz. A que horas

você vai me pegar?

Drake deu de ombros.

- Por volta de 18:30h, creio, replicou ele.

- Ótimo! exclamou Amy.

A sineta soou, indicando o final do intervalo, e os jovens que ainda estavam na cantina,

seis ao todo, se levantaram e foram levar a bandeja ao balcão. Saíram caminhando, e Amy deu

umjeito de ficar um pouco para trás com Selena. Pegou a amiga pelo braço.

- Viu o que aconteceu? indagou ela para a amiga, com um brilho alegre nos olhos

castanhos. O Drake finalmente me convidou para sair!

- É, disse Selena brincando, mas com um bom “empurrãozinho” de sua parte.

- Isso foi maravilhoso! Agora podemos começar a planejar o jantar para a outra sexta-

feira. Estou vibrando!


Nem era preciso que ela dissesse isso para Selena. Estava estampado em seu rosto. E

enquanto caminhavam para classe, a colega continuou falando dos planos para o jantar que

fariam.

Como essa minha amiga tem facetas variadas! pensou Selena. Há momentos em que

Amy demonstrava uma maturidade e uma sabedoria incríveis. E nesses instantes se punha a

“distribuir” conselhos, solicitados ou não. É que tinha duas irmãs mais velhas e aprendera

com elas muitas lições de vida. Contudo, em outras ocasiões, como agora, ela se revelava a

caçulinha da casa, sempre determinada a conseguir o que queria. E com sua meiguice,

manipulava todo mundo com essa finalidade.

As duas se sentaram lado a lado na sala de aula. Amy inclinou-se para Selena e disse:

- Que tal se você fosse ao jogo com o Ronny? Depois, nós quatro poderíamos sair

juntos. Vamos lá, Selena!

A garota abanou a cabeça, fazendo as pontas aneladas do cabelo dançar sobre os

ombros.

- Não posso. Já tenho um encontro marcado com o livro de educação cívica.

- Tem não, retrucou Amy. Já terminou aquele trabalho. Você mesma me disse.

- É, mas preciso de uns pontos a mais, você sabe disso.

Amy girou os olhos para o alto, abanando a cabeça.

- Você me irrita, sabia? Está me deixando nervosa. Bom, talvez o Mike e a Vicki

queiram ir comigo e o Drake ao jogo.

- É provável! concordou Selena.

- Olá, pessoal, disse o Prof. Rykert, falando alto para superar o zunzum da classe.

Podem ir passando os trabalhos para a frente.

Selena virou-se para Amy e fez um comentário final acerca de sexta-feira.

- Espero que você e o Drake se divirtam bastante.


A colega dirigiu-lhe um sorriso de agradecimento. Quando ela sorria daquele jeito,

parecia uma garotinha, ligeiramente tímida, mas ainda assim com certa exuberância. Selena

gostava desse traço da personalidade da amiga. Era algo que as duas tinham em comum.

Enquanto entregava seu trabalho, Selena teve de esforçar-se para se concentrar na aula,

em vez de deixar a mente e os olhos voltarem-se para o fundo da sala, onde Ronny estava

sentado ao lado de Vicki Navarone.

Esse negócio de relacionamento humano é muito complicado, pensou. A Tânia está lá

toda cheia de suspiros por causa do Jeremy. A Amy está com essa preocupação em

conquistar as atenções do Drake. E qual é o meu problema? Minha mente se acha ligada em

Paul. Será que estou me iludindo ao pensar que algo possa acontecer entre nós? E por que

será que a Amy se convenceu de que o Ronny gosta de mim e não é apenas um simples

amigo?

Deu uma espiada para trás e viu o rapaz conversando animadamente com a Vicki, como

dois velhos amigos.

Está vendo? Ele tem amizade com uma porção de garotas. Eu sou apenas mais uma de

suas amigas. É só isso.

Ronny e Vicki tinham saído juntos uma vez, mas parecia que depois não acontecera

mais nada. Era outra prova de que o colega era apenas amigo das meninas, e só.

- O.k., pessoal. Vamos orar para iniciar a aula.

Para Selena, essa era uma das vantagens de se estudar numa escola particular cristã. A

maioria dos professores orava apenas no primeiro horário. O Prof. Rykert, porém, fazia isso

em todas as suas aulas. A garota gostava de ouvi-lo conversar com Deus. Era como se o

Senhor estivesse presente bem ali, na sala, junto com a turma.

Selena também formulou sua petição: que não ficasse com a mente tão voltada para os

rapazes. Depois pediu que conseguisse terminar o segundo ano com notas boas. Ultimamente

o Wesley, seu irmão mais velho, vinha lhe passando muitos dados sobre algumas bolsas de
estudo em faculdades. Ela possuía inteligência necessária para entrar em diversos tipos de

cursos, contudo só começara a pensar seriamente em faculdade nesse último semestre.

- Amém! disse o Prof. Rykert, encerrando a oração.

Em seguida, erguendo um pouco mais a voz, ele fez uma comunicação à classe.

- Este ano, para a nota da prova final, vocês terão um trabalho um pouco diferente.

Farão um relatório escrito sobre uma experiência pessoal e o apresentarão à classe na última

semana de aula.

Vai ser fácil, pensou Selena. Vou escrever sobre minha viagem à Inglaterra. Ou talvez

possa escrever sobre a experiência de conviver com uma avó idosa e falar da cirurgia que ela

fez meses atrás.

- Então, continuou o professor, vai ser um trabalho em duplas, e eu vou indicar o

parceiro de cada um.

Amy e Selena se entreolharam. Como o Drake não fazia essa matéria, talvez a Amy

quisesse fazer dupla com Selena. Por uns instantes, a garota pensou também que seria muito

interessante ser parceira do Ronny.

- Primeiro, disse o Prof. Rykert, vou explicar a tarefa e depois direi com quem cada um

de vocês irá trabalhar. Tenho aqui uma lista de organizações de Portland que aceitam trabalho

voluntário. Cada dupla vai escolher uma delas. Por favor, deve ser uma dupla para cada

organização. Não pode haver duas num mesmo local. Em seguida, vocês vão entrar em

contato com a organização, oferecendo trabalho voluntário, os dois juntos, por um total de

quatro horas, no mínimo. Por fim, vão redigir um relatório e apresentá-lo perante a classe.

- Podemos escolher o colega de dupla? quis saber Amy.

- Não, eu vou designar. E por favor, nada de trocar de colegas. Essa folha que vou

distribuir agora traz a lista das organizacoesa, as duplas e as informações que precisam

constar do relatório. Mais alguma pergunta?

- Que dia que é pra entregar? indagou Amy.


- Vocês têm duas semanas para dar as quatro horas de serviço, e os relatórios, tanto o

escrito como o oral, são para a semana da prova final.

Selena pegou a pilha de papéis que lhe fora entregue pelo colega da frente e passou-a

para a garota que estava sentada atrás dela. Uma das meninas que se achava numa das

carteiras à frente soltou um gemido meio zombeteiro e disse:

- Ah, Jonas, não! Qualquer um, menos o Jonas!

- Muito obrigado! disse o rapaz. Pelo menos tenho carro e você não. E se você for

boazinha, posso deixar que pague a gasolina.

- Byron Davis! sussurrou Amy baixinho, de modo que só Selena escutasse.

E foi com o rosto radiante que se aproximou mais dela.

- Selena, disse, parece que todos os meus sonhos estão se realizando hoje!

Byron, que se sentava duas fileiras à frente dela, era um tipo forte e caladão, um aluno

estudioso que só tirava notas altas. Fazendo dupla com ele, Amy sabia que os pontos estavam

garantidos. Byron estava examinando a lista das organizações e aparentemente ainda não

havia procurado ver quem seria seu parceiro de dupla, ou talvez ainda não tivesse tido

coragem de olhar. Pelo fato de ser tímido, ele dava a impressão de ter medo de relacionar-se

com as garotas.

Selena gostaria muito se Byron fosse seu parceiro. Na certa iriam tirar a nota máxima.

Além disso, ela não ficaria na incômoda posição de ser sempre a mais inteligente da dupla.

Contudo, antes que virasse a página para ver a lista das duplas, ouviu Ronny chamá-la.

- Selena!

Virou-se e viu o colega sorrindo e segurando a folha no ar.

- Nós dois estamos juntos, disse ele. Jensen e Jenkins*. Colega, nós vamos “arrebentar”

nessa prova final!

___________________

* Nos Estados Unidos, a chamada escolar segue a ordem alfabética do sobrenome dos alunos, e não do

primeiro nome. Daí o fato de o nome Ronny Jenkins ser próximo ao de Selena Jensen. (N. da T.)
A garota levantou o polegar, dando um sinal de “tudo bem” e voltou-se para a frente.

Notou que Amy a fitava, dirigindo-lhe um olhar expressivo. Amy ergueu uma das

sobrancelhas e sorriu timidamente para Selena, dizendo o nome do rapaz apenas com os

lábios: “Ronny!”

Capítulo Quatro

Selena desviou os olhos de Amy e se pôs a examinar as folhas que havia recebido. No

resto da aula, eles estudaram um capítulo do livro da matéria. Assim que soou a sineta, ela
guardou seus objetos na mochila e levantou-se para sair. Nesse momento, o professor chamou

a ela e ao Ronny, pedindo que os dois fossem à frente.

Eles se aproximaram da mesa e ficaram parados perto dele. O professor aguardou que

os outros alunos saíssem da sala antes de começar a falar.

- Vocês devem ter observado, principiou ele, que formei as duplas seguindo a ordem

alfabética. Cheguei a pensar em alterar isso para que você, e aqui ele apontou para Selena,

fizesse dupla comTre.

A garota teve uma contração involuntária no rosto, mas desejou que ninguém tivesse

notado. Tre Nuygen era um aluno estrangeiro que fora transferido para o Colégio Royal no

meio do semestre. Era um rapaz tímido demais ou então não falava bem a língua, pois não se

adaptara ali. Amy dissera que ele era do Camboja e chegara aos Estados Unidos apenas

alguns meses atrás. Outro colega informara que ele fora expulso da escola pública e que o

Royal fora o único colégio que o aceitara. Fosse como fosse, Tre era um parceiro que

ninguém queria. Vicki terminara fazendo dupla com ele.

- Eu queria perguntar uma coisa a vocês, disse o professor. Vocês se importariam de

fazer um grupo de quatro, isto é, junto com a Vicki e o Tre?

- Claro que não, disse logo Ronny, dando de ombros num gesto de indiferença.

- Também não, concordou Selena. Pra mim, tudo bem.

- Professor Rykert! chamou alguém à porta.

Era Vicki. Tinha rugas de preocupação na testa, entre os olhos verdes. A garota

aprendera a tirar partido de sua popularidade e bela aparência para obter o que desejava.

- Entre, Vicki! replicou o professor. Estávamos falando sobre você. Eu queria que você

e o Tre formassem um grupo de quatro, aqui com o Ronny e a Selena.

- Ah, obrigada! exclamou a garota, correndo os olhos de forma graciosa pelos dois

colegas. Assim me sinto bem melhor.


- E eu quero sugerir-lhes uma organização para trabalharem, continuou o Prof. Rykert.

Gostaria que os quatro assumissem a Highland House. É ligada a uma missão que dá

assistência à população de rua e a algumas famílias de baixa renda. Vocês vão trabalhar com o

Kids Klub, que funciona depois das aulas. Quem opera esse clube é o Ministério

Evangelístico Highland. Sabem onde fica?

- É perto de meu serviço, explicou Selena. Eu já tinha visto aquilo ali, mas não sabia o

que era.

- A principal meta do pessoal da Highland House é ajudar as pessoas a recomeçarem a

vida. Eles têm uma pequena agência de empregos e também dão cursos de formação

profissional. O Kids Klub é para os filhos de pessoas que trabalham fora. Muitas dessas

crianças nem têm casa; e teriam de ficar perambulando pelas ruas. Outras moram em lugares

perigosos e não podem permandecer sozinhas enquanto a mãe está no trabalho. Então vão

para a Highland. Saber Ronny.

- Muitas, bem mais do que a gente imagina, explicou o professor.

- Parece que vamos aprender bastante com esse trabalho, comentou Selena.

- Isso é o que espero, continuou o Prof. Rykert, esfregando as mãos e olhando os três

com uma expressão tranqüilizadora. Então estamos combinados. Ronny, você fica

encarregado de comunicar ao Tre o que dissemos aqui, o.k.?

- ‘Tá certo.

- E se mais adiante vocês tiverem alguma dúvida, é só me falar.

- Obrigada, Prof. Rykert, disse Vicki.

Em seguida, a garota se virou para o Ronny e dirigiu-lhe um olhar muito meigo,

expressando sua gratidão.

- Assim me sinto muito melhor, disse.

Selena sentiu algo fervilhar em seu interior. Por que tinha essa sensação? Menos de uma

hora atrás ela não orara a Deus falando-lhe sobre os sentimentos que abrigava em relação ao
Ronny? Por que será que aquele olhar sedutor da Vicki para o rapaz a deixara com a idéia de

que precisava protegê-lo, ou de que deveria fazer o mesmo que a colega?

Caminhou apressadamente para a classe seguinte, perguntando a Deus por que essas

sensações começavam a perturbá-la tanto. Sentia-se tão imatura com isso! Essas situações - a

gozação de Amy e o ciúme que sentia de Vicki naquele momento - eram tão estranhas para

ela! Por que Deus estava lhe enviando tantas provas de uma vez só? Será que ele queria ver se

ela fora sincera quando fizera aquela oração?

Acomodando-se na carteira para a aula seguinte, Selena pensou em Vicki e resolveu

tentar ser justa. Se o Prof. Rykert a tivesse colocado em dupla com Tre, também quereria que

ele os juntasse com outro grupo.

Além disso, recriminou-se, isso aqui não tem nada a ver com namoro ou amizade. É um

trabalho da escola. E todos queremos tirar a nota máxima na prova final. É só isso. E é o que

importa para mim no momento. E se esse teste em minhas emoções é uma espécie de prova

final que o Senhor está me dando, Deus, quero tirar um 10 nela também.

À tardinha, quando Selena estava saindo do trabalho, resolveu dar uma volta e passar

pela Highland House a fim de dar uma espiada. E foi contando as quadras à medida que se

aproximava do rio. Depois de rodar onze quarteirões, avistou a velha mansão. Numa das

paredes dela, estava pintado um mural de cores brilhantes. Na frente da casa, havia várias

árvores, cedros, como que formando uma barreira entre ela e a rua movimentada. No

gramado, uns dez ou doze garotos jogavam futebol. Havia também uma espaçosa varanda

onde duas garotas pulavam corda, e no portão de entrada, uma placa de formato oval com a

identificação: Highland House. Embaixo do nome, em letras menores, lia-se o seguinte: “Um

lugar seguro para se recomeçar a vida”.

Selena estacionou numa vaga próxima e notou que na varanda havia uma outra pessoa,

talvez o diretor, batendo a corda para as meninas. O homem se encostou em uma das pilastras

e se pôs a contar, com voz grave e forte, enquanto uma das garotas saltava.
Que será que eles vão querer que nós quatro façamos aqui? Eu poderia bater corda

para as meninas e contar, como aquele cara está fazendo. Ou pode ser que queiram que

ajudemos os garotos a fazer o “dever de casa”. Isso vai ser fácil.

Sentiu vontade de descer do carro, entrar lá e oferecer-se para começar a trabalhar

imediatamente. Parecia que no momento havia ali apenas um adulto para atender a todas

aquelas crianças. Não poderia. Era terça-feira, e ela estava com uma porção de dever de casa.

Provavelmente a mãe já pusera o jantar na mesa, e seus pais ficariam preocupados se ela não

chegasse do trabalho na hora de costume. Dando uma última olhada para a mansão de aspecto

tão alegre, a garota sussurrou:

“Depois eu venho aqui.”

Nesse momento, viu, num dos lados da casa, uma longa fila de mendigos que iriam

receber sopa na cozinha da casa. Eles distribuíam a refeição diariamente, às 18:30h. Um velho

barbado e malvestido vinha caminhando pela calçada, carregando às costas um colchonete

enrolado. Parou e examinou uma lata de refrigerante caída no chão. Aparentemente ela estava

vazia. O homem parou junto a um poste, alguns metros antes de chegar à fila. Em seu rosto,

estampou-se uma expressão de desespero.

Selena sentiu uma enorme pena dele. Sem pensar muito no que fazia, pegou um pacote

de pães de canela do Mother Bear que estava levando para casa, saiu do carro e disse para o

velho:

- O senhor gosta de pãozinho de canela?

O homem ficou meio espantado com a pergunta dela e olhou para o saquinho que ela

trazia na mão.

- Foi feito hoje, explicou ela, estendendo-o para ele. Se o senhor quiser...

Selena nunca havia oferecido nada para um mendigo. Até aquele momento, o “mundo”

das pessoas carentes era algo bem remoto para ela. Nesse instante, porém, por alguma razão,

ela sentiu algo diferente. Compreendeu que deveria fazer o que pudesse para socorrê-los. E
parece que a quietude daquela noite primaveril mais a expectativa de vir a prestar serviços

naquela casa fortaleceram sua coragem. Não estava correndo perigo ali, em conversar com o

velho, pois havia um homem lá na varanda. Se precisasse pedir socorro, ele estava perto.

Não entendia por que se sentia tão feliz só de oferecer pães para o mendigo. Talvez

aquilo lhe lembrasse o trabalho que realizara na Grã-Bretanha, alguns meses atrás. Ela e seus

amigos tinham ido lá e corajosamente haviam pregado o evangelho de Jesus na região. Ou

talvez fosse o frescor da brisa noturna que lhe recordava da narrativa do livro de Genesis,

onde dizia que Deus caminhava com Adão e Eva na viração do dia. Fosse o que fosse, o certo

é que, naquele momento, sentia Deus muito perto de si, interessado pelo problemas da

humanidade. Era quase como se pudesse tocar nele.

O velho maltrapilho estendeu o braço e pegou o pacote.

- Obrigado! murmurou ele, virando-se de costas para a fila, para que os outros não

vissem o que ele ganhara.

- De nada! replicou Selena. Deus o abençoe!

Ele não respondeu, mas enfiou a mão suja no saquinho para pegar um pão.

A garota virou-se e voltou para o carro. Deu uma espiada para a varanda e percebeu que

as meninas haviam parado de pular corda. O homem que estava lá achava-se meio escondido

nas sombras e, ao que parecia, olhava para ela. Selena tinha uma sensação agradável, mas, ao

mesmo tempo, sentia-se um pouco incomodada. Estava feliz por ter dado ajuda a um

necessitado. Todavia preocupava-se ao pensar que fizera tão pouco por ele. Onde será que

aquele velho iria dormir? O que comeria pela manhã?

E enquanto rodava, ia pensando em sua vida. Chegaria em casa, sendo acolhida por uma

família maravilhosa. Depois teria um jantar farto e afinal iria para uma cama quentinha.

Aquele necessitado não dispunha de nada disso. Em seu interior, brotou uma determinação

que foi só se fortalecendo a cada instante.


Quero fazer mais. Quero aprender a viver para ti, Senhor, com vigor e coragem. Quero

atuar neste mundo que tu criaste e causar nele um impacto positivo.

Infelizmente, porém, seus pais tinham uma opinião diferente sobre a experiência que ela

vivera naquela tarde.

Capítulo Cinco

- Entendo que você tenha sentido que não corria perigo ali, disse o pai, pegando uma

tigela de verduras à mesa. Mas aquela área é muito perigosa, Selena. Você não faz idéia do

que poderia ter lhe acontecido.

- É mesmo, interveio Dilton, o irmão de oito anos, o cara podia estar com uma faca.
- É, concordou Kevin, de seis, ou uma metralhadora.

- Ele não tinha nenhuma metralhadora, afirmou Selena, servindo-se de uma colherada

de arroz.

- Nunca se sabe, insistiu Dilton. Poderia estar dentro do colchonete dele.

- Ou então na perna da calça, ajuntou Kevin. Você não devia ter conversado com um

desconhecido, Selena, não é, mãe?

Sharon Jensen deu um sorriso terno para o filho, daqueles que as mães reservam para os

caçulas. Em seguida, virando-se para Selena, que era a mais nova das filhas, deu o mesmo

sorriso, mas ao mesmo tempo franziu as sobrancelhas, o que era sinal de que estava

preocupada.

- Filha, disse ela, nós ficaríamos mais tranqüilos se você não abordasse pessoas assim de

novo, a não ser que estivesse com um colega ou amigo. Admiramos o seu interesse pelos

necessitados. Aliás, sempre admiramos. Mas você precisa temperá-lo com um pouco de bom

senso. Assim vamos nos sentir melhor.

- Mandei chamá-los ontem, disse de repente Vó May, lá do outro lado da mesa.

Selena, assim como todos os outros membros da família, amavam muito a avó. Havia

dias em que a mente da senhora estava lúcida como água cristalina numa lagoa. Em outros,

porém, como acontecera agora, ela se punha a dizer frases sem sentido, e toda a família se via

envolta numa nuvem de preocupação. Algumas vezes eles tentavam participar desse mundo

estranho de Vó May e procuravam responder ao que ela dizia. Em outras vezes, porém,

simplesmente deixavam passar em branco.

Nessa noite, ninguém sabia ao certo o que fazer. Ficaram a olhar uns para os outros,

esperando que alguém tivesse alguma idéia sobre qual seria a melhor atitude a tomar. A avó

parecia perfeitamente normal. Selena se indagou, como já fizera milhares de vezes, como era

que a mente de uma pessoa podia desligar-se do presente assim tão subitamente.
A avó olhou para seus familiares, sem compreender direito o silêncio que de repente

tomara conta de todos.

- Entendo o que a senhora quer dizer, mãe, interveio a garota, voltando ao assunto

interrompido. Mas aqui estamos nós, com toda esta comida e nesta casa grande, enquanto tem

muita gente por aí precisando de ajuda. Não posso ficar fazendo de conta que esse tipo de

situação não existe. E se posso socorrer essas pessoas, quero socorrê-las.

- E nós concordamos com isso, falou papai em tom sério. Só queremos é que você esteja

sempre acompanhada de alguém. Entendeu?

A garota fez que sim.

- Não foi assim que Jesus agiu quando enviou os discípulos para pregarem? De dois em

dois? indagou a mãe de Selena. É o mais sensato, filha.

Selena acenou que sim outra vez.

- É, tem razão, disse. Concordo. Vou agir assim.

Mais tarde, naquela noite, Selena se pôs a escrever em seu diário.

“Por que será que acabei fazendo tudo errado? Pensava que estava praticando um gesto

maravilhoso quando dei os pães para o mendigo e, no entanto, causei um transtorno a meus

pais. Como é que um ato pode ser errado e certo ao mesmo tempo? Será que sou impulsiva

demais?”

Em seguida, ela ia começar a analisar uma outra questão. Queria pensar nas loucas

sensações que experimentava com relação ao seu sonho de rever Paul e no quanto se achava

imatura por alimentar aquela obsessão por ele. Nesse momento, porém, Tânia chegou e

pendurou a bolsa no encosto que estava junto à mesa.

- Oi! disse Selena. Como foi o dia no trabalho?

- Péssimo!

Tânia tirou os sapatos e em seguida as meias de náilon.


- Recebemos hoje o relatório das vendas do mês passado e adivinha quem teve o pior

desempenho?

- Você? indagou Selena. Mas quando você fez aquela venda especial no “Dia dos

Namorados”, não ficou com o melhor promotora de vendas, ou algo assim?

Selena não entendia muito bem os detalhes do emprego de Tânia. A irmã trabalhava no

balcão de perfumes da loja Nordstrom. A garota nunca prestava muita atenção quando Tânia

comentava detalhes do seu trabalho.

- É, Selena, respondeu a irmã, com um tom de irritação, mas isso foi em fevereiro.*

___________________

*Nos Estados Unidos, o dia dos namorados cai em fevereiro, já que é comemorado no dia de S.

Valentino. Nessa data, as pessoas presenteiam todos os entes queridos, e não apenas o namorado(a), noivo(a),

etc, (N.da T.)

Selena sabia que se desse um palpite errado, a irmã descontaria toda a sua irritação em

cima dela. Felizmente, porém, Tânia viu que na mesa havia uma carta para ela e de imediato

esqueceu a irmã.

A garota fingiu que estava com a atenção voltada para seu diário mas, na verdade,

continuava atenta à irmã, que ainda se mostrava deprimida. Viu-a rasgar o envelope com a

unha do polegar e começar a ler. Selena vira a carta ali, mas não procurara saber de quem era.

Poderia ser de Jeremy, mas o rapaz costumava telefonar, e não escrever.

Olhando por sobre o diário, a garota notou que a expressão tristonha da irmã foi

mudando. Ela terminou a primeira página e virou para a segunda, e logo em seguida um

sorriso começou a formar-se em seu rosto. Seus lábios se moviam silenciosamente à medida

que ia lendo.

Nesse momento, Selena observou que Tânia tinha lábios finos. Não havia dúvida de que

a jovem era linda. Na rua, as pessoas costumavam parar para olhá-la. Selena já se acostumara
com isso, pois acontecia desde que eram pequenas. O tempo todo ela sabia que seria sempre a

“feiosa” que passaria despercebido, perto da beleza de Tânia.

Entretanto Selena tinha consciência de um fato: seus lábios eram perfeitos. E agora

percebera que os de Tânia não eram. Selena tinha os lábios iguais aos da mãe, perfeitamente

proporcionais, o superior e o inferior. E quando sorria, mostrando os dentes belamente

enfileirados, aparecia uma covinha no rosto. Sentiu-se consolada ao constatar que seus lábios

eram mais belos que os da irmã.

- Não acredito! exclamou Tânia quase gritando, abanando a carta e olhando para Selena

com expressão de assombro. Isso é maravilhoso!

Em seguida, a moça levantou-se da cama onde se sentara e saiu correndo porta a fora.

- Mãe! Pai! gritou ela, correndo descalça escada abaixo.

- Que foi? indagou Selena, mas já não havia ninguém para responder.

Um leve aroma de gardênia ficara no ar com a saída de Tânia. Selena entendeu que

tinha uma decisão a tomar. Deveria descer a escada correndo para saber o que deixara sua

irmã tão agitada? Ou deveria esperar que ela voltasse?

A garota sentiu vir à tona um velho conflito. Ela e Tânia eram irmãs, e Selena achava

que eram amigas também. Contudo nunca tinham sido muito unidas. Fora por isso que a

jovem em vez de ficar no quarto e revelar a notícia a Selena em primeiro lugar, correra à

procura dos pais.

Certa vez, Tânia afirmara que as duas não eram muito unidas porque ela era filha

adotiva. Se fossem irmãs de verdade, obviamente seria mais ligada a Selena. Já esta achava

que, se não eram muito amigas, era porque tinham personalidades bem diferentes.

Pensando nisso, ela pôs a caneta na boca e ficou a mordê-la de leve. Chutou uma pilha

de meias limpas que estavam ao lado da cama. Deu uma espiada no diário e releu a última

frase que escrevera. “Será que sou impulsiva demais?”


- ‘Tá bom, resmungou consigo. Então não vou ser impulsiva e correr lá embaixo. É

melhor eu esperar aqui e, quando ela voltar, vou me mostrar bem afável e interessada para que

ela me conte essa maravilhosa novidade.

Bateu o caderno, fechando-o, e decidiu guardar as roupas. Ajuntou as meias, cada uma

com seu par, e guardou-as na gaveta da cômoda. Em seguida, pendurou algumas peças limpas

que estavam no encosto da cadeira. Depois resolveu até arrumar a mochila, retirando os

papéis velhos. Passava das 10:00h e Selena estava com muito sono. Não dava para esperar

mais. Aprontou-se para dormir e, enquanto guardava seus objetos, ficou pensando nas idéias

que lhe haviam ocorrido sobre o conteúdo da carta. A conclusão a que chegou dói que a carta

devia ser de Jeremy, e ele dizia que viria visitá-los. Tânia correra para dar a notícia aos pais, e

naturalmente, em seguida, telefonara para o namorado. Portanto ela devia estar lá embaixo

agora, ao telefone, fazendo planos com ele.

Apagou a luz e puxou a coberta até o queixo. Então começou a pensar no que diria para

o Paul, assim que se encontrassem. É que, se Jeremy estava para vir à sua casa, certamente

Paul viria também.

Capítulo Seis
No dia seguinte, Selena acordou tarde e teve de se arrumar rapidamente. E quando saiu

do quarto, Tânia ainda estava dormindo. Desceu a escada correndo e entrou na cozinha

apressadamente.

- Que foi que aconteceu com a Tânia ontem à noite? O que era aquela carta? perguntou

à mãe, que tirava vasilhas da lava-louças.

A mãe de Selena olhou para o relógio e entregou à filha uma caixinha de suco e um

biscoito de aveia.

- É melhor você comer no caminho. Quando voltar da aula, conversaremos sobre a

carta.

Selena detestava quando eles ficavam assim cheios de mistérios. Pendurando a mochila

no ombro, enfiou o biscoito na boca e saiu depressa. Ao mesmo tempo, tentava abrir o orifício

da caixinha de suco com a ponta do canudinho.

‘Tá bom, vamos ver. Jeremy vai vir, mas eles não querem me dar todos os detalhes

agora porque...

A única explicação que lhe ocorreu foi que não daria tempo, pois estava atrasada.

Enfiou a mão na mochila e pegou a chave do fusca que ela e a mãe utilizavam. Durante os

dezoito minutoos de percurso até a escola, foi pensando nas tarefas em que iria trabalhar.

Teria uma semana cheia. Entrou na primeira vaga que viu e saiu correndo em direção ao

escaninho. Ronny já estava emperando-a ali perto.

- Olá! disse o rapaz. Quer ir ao Lotsa Tacos na hora do almoço?

- Claro, respondeu ela. Já conversou com o Tre?

Ronny olhou-a como se não tivesse entendido a pergunta.

- Sobre o trabalho na Highland House, explicou a garota.

Ele abanou a cabeça e disse:

- Não, mas ontem à noite liguei para lá e já combinei tudo. Vamos ter de ir lá duas vezes

para dar as quatro horas de serviço.


- Pra mim, tudo bem, disse Selena.

- É, achei que você ia concordar. Vou conversar com o Ter hoje.

- Sabe de uma coisa? Ontem, depois que saí do serviço, passei Poe lá...

Antes que ela terminasse o que dizia, a sineta soou estridentemente no alto do corredor.

Selena fez uma careta por causa do barulho e acenou para o colega, dizendo:

- Na hora do almoço, te conto o resto.

E à hora do almoço, ele chegou ao escaninho dela no momento preciso. Não havia

dúvida de que Ronny tinha um certo encanto. Ficou um instante parado, com seu sorriso

típico, com a boca meio torta, olhando para Selena como se ela fosse a única garota do

mundo.

- Que foi? indagou ela, passando por ele e fazendo a combinação do segredo do cadeado

para abri-lo.

- Está pronta? indagou ele.

- Estou, replicou Selena, dando uma batida firme na portinhola do escaninho para fechá-

lo.

- Ah, a propósito, podemos ir no seu carro?

- Ah, então é isso! exclamou a garota. Você me convidou para almoçar só para ganhar

uma carona.

- Não foi a única razão, não.

- Vai querer que eu pague o lanche também?

- Não, respondeu o rapaz, pegando-a pelo braço e conduzindo-a à porta da saída. Recebi

ontem; então, desta vez, estou com dinheiro.

- Ótimo! disse Selena.

Atravessaram o estacionamento em direção ao carro dela. Selena destrancou-o e sentou-

se em seu lugar. Em seguida, estendeu o braço e abriu a porta do lado do passageiro.


- Eu estava brincando, explicou ela. O melhor sistema para nós é mesmo este: “cada um

paga o seu”.

- Isso é porque nós dois formamos uma ótima dupla, comentou o rapaz, batendo de leve

com a mão no painel do carro. Somos imbatíveis!

Selena riu das palhaçadas dele.

- E tenho o prazer de lhe informar que, na semana passada, pus meu pagamento todo na

poupança, comentou ela. Estou guardando tudo que ganho.

- Está guardando pra comprar o quê?

- Boa pergunta! disse ela, arrancando o carro e saindo do estacionamento.

A lanchonete Lotsa Tacos ficava apenas a três quadras da escola.

- Na verdade, não estou precisando de nada. Acho que estou guardando quase que por

instinto. Papai sempre nos ensinou, desde pequenos, que temos de fazer poupança. Mas não

sei para que estou ajuntando o dinheiro.

Selena aproximou-se do sistema drive thru* da lanchonete. Ao parar o carro, bateu com

força no meio-fio, e Ronny observou:

___________________

*Um sistema de comércio pelo qual o cliente compra sem sair do carro. Ele pára o veículo junto a um

guichê onde faz o pedido. Em seguida, passa a outro guichê, onde paga. Afinal, recebe a compra em um terceiro

guichê. (N. da T.)

- Já sei com que você pode gastar seu dinheiro. Comprando pára-choques novos.

- Eu preferiria comprar um carro, interpôs Selena. Sabia que foi a própria Tânia que

comprou o carro dela? Eu talvez precise ter o meu se este aqui pifar.

Havia quatro carros à frente deles na fila, todos com alunos da escola.

- Então, o que você acha que eles vão mandar a gente fazer? indagou Selena. Quero

dizer, na Highland Ilouse?

- Sei lá. Talvez pintar o prédio. Ele já é bem velho.


Selena aproximou o carro do primeiro guichê

- De fora, não parece muito velho, não, observou ela. Você já sabe o que vai pedir?

O rapaz inclinou-se na direção do guichê e explicou o que queria. Selena pediu tacos* e

uma caixinha de leite de 250ml, e logo em seguida passou ao guichê seguinte.

___________________

*Tacos uma comida típica mexicana, constituída de uma espécie de panqueca, recheada com carne

moída, alface picada, queijo picado ou ralado e outros ingredientes. (N. da T.)

- Leite? questionou Ronny. Ninguém toma leite com tacos.

- Eu tomo, explicou Selena, pegando seu dinheiro no porta-luvas. Opa! Meu dinheiro

não vai dar. Pode me emprestar $0,25 centavos?

- Ah, então, você é uma daquelas, né? falou Ronny, gozando-a. Guarda o dinheiro todo

na poupança e depois, quando precisa, recorre aos pobres amigos desprevenidos.

Selena conduziu o carro para perto do segundo guichê.

- São só $0,25 centavos, cara. Do jeito que você fala, parece que estou cometendo um

crime.

- O único crime que você está cometendo é tomar leite com tacos.

- Acontece que gosto de leite.

- Eu também, mas com flocos de cereal, com biscoitos e até com sanduíche de peito de

peru, mas não com tacos. Nunca tacos.

- Espere só um instante, disse ela para o rapaz do caixa.

Em seguida, virou-se para o colega e disse:

- Vai me dar os 0,25 centavos ou não?

- Pode guardar seu dinheiro. Eu pago tudo.

- Ô Ronny, não precisa pagar tudo. Só me empresta 0,25 centavos.

- Com licença, disse o caixa, os dois pombinhos querem fazer o favor de pagar primeiro

e depois puxar o carro para continuar a briga?


- Pombinhos? exclamaram Selena e Ronny ao mesmo tempo.

Eles se entreolharam e caíram na risada. Selena arrancou o dinheiro da mão do amigo e

pagou a conta toda com ele.

- Pode ficar com o troco, disse ela e arrancou.

- Ficar com o troco? berrou Ronny. Você deixou um dólar de gorjeta pra ele!

Quando Selena já ia começar a dar uma explicação sobre seu gesto impulsivo, Ronny

saiu do carro e voltou ao guichê. A garota ficou a olhar pelo retrovisor. Ronny pediu

desculpas ao motorista do carro que parara atrás deles para pagar a compra Em seguida,

apontou para Selena e, com muita gesticulação, se pôs a argumentar com o rapaz do caixa.

Selena parou no guichê de receber o lanche e pegou o pacote com os pedidos deles.

Nesse momento, Ronny voltou e sentou no banco do passageiro, agitando no ar uma nota de

um dólar.

- Ah, peguei! exclamou ele sorrindo, parecendo não estar nem um pouco aborrecido

com a atitude dela.

Selena entregou-lhe o saquinho com o alimento e saiu à rua, tomando a direção da

escola.

- Sabe de uma coisa, Ronny? Acho que sou muito perigosa, disse ela.

- Sei disso! replicou o rapaz.

Ela abanou a cabeça.

- Não entendo o que está se passando comigo ultimamente. Estou sendo meio

irresponsável e agindo muito por impulso. Foi um erro meu deixar com ele um dinheiro que

era seu. Me desculpe.

Ela entrou no estacionamento da escola e logo achou uma vaga.

- Tudo bem! exclamou o rapaz. Isso é típico de você, Selena. É um espírito livre, e

gente assim faz maluquices de vez em quando. Não há nada errado com isso. Por que fica se

recrimindo? Eu não achei ruim.


- Achou, sim. Se não, por que você foi lá buscar o dinheiro?

- Porque sou muito mão fechada, explicou Ronny, abrindo o pacote.

Ele pegou o lanche de Selena e colocou-o sobre a palma da mão berta, como se o

estivesse servindo numa bandeja de prata.

- Seu taco e leite, Srta. Jensen.

- Mas sinto que estou mudando, Ronny, explicou Selena.

- É, a gente muda, disse ele.

Selena desembrulhou seu lanche e perguntou:

- Você também já teve a sensação de não saber direito quem é?

- Claro. Todo mundo, vez por outra, pensa isso.

- Mas eu nunca tinha sentido isso antes.

- Nunca? exclamou Ronny depois de engolir um pedaço do sanduíche.

- Creio que não.

O rapaz abanou a cabeça e deu outra dentada no lanche.

- Não fica preocupada com isso, não, comentou. Comigo você pode agir

impulsivamente sempre que quiser. Vou continuar sendo seu amigo assim mesmo. Posso

perder um ou dólares de vez em quando, mas continuarei sendo seu amigo.

Selena sorriu e tomou um gole do seu leite.

- Você não quer mesmo ir ao jogo na sexta-feira? indagou Ronny, mudando de assunto

e engolindo o último pedaço do sanduíche.

- Não estou com muita vontade, não. Você vai?

- Estou pensando em ir. Mas seria bem mais divertido se você fosse comigo, isto é,

conosco. Vai uma turma grande. Vamos lá, Selena. Eu pago seu ingresso, se você não quiser

desfalcar sua conta na Suíça.

- Você é um cara legal demais! comentou a garota.


Ela estava gostando muito de ver que Ronny era bastante compreensivo com relação aos

seus sentimentos confusos e desejava a companhia dela. Selena não se interessava muito por

basquete, principalmente porque os ingressos eram bem caros. Contudo reconheceu que seria

muito bom sair com o colega e ver como ficaria o relacionamento de Amy e Drake.

- E aí?

- 'Tá bom; eu vou. E não precisa pagar meu ingresso, não. Estou com dinheiro, posso

pagar.

- Legal! exclamou o rapaz.

Selena deu um sorriso e fez um gesto para Ronny, indicando que ele estava com um

pedacinho de queijo no canto da boca. Ele era o único cara da escola que ainda dizia “Legal!”

As expressões que ele mais usava eram “Legal” e “Tudo bem!” Era uma companhia

agradável. Selena se deu conta então de que havia entre eles uma boa e sincera amizade. Amy

achava que Ronny estava gostando dela, mas ela mesma percebia que era só amizade. Não era

toda garota que podia ter um amigo tãocompreensivo. A Amy não tinha. Era por isso que não

via que ela e Ronny eram apenas colegas.

Capítulo Sete
Na quinta-feira à tarde, Selena estava sentada na beirada da cama, olhando para a irmã

que tentava enfiar outro par de sapatos na mala e em seguida correr à cômoda para pegar suas

jóias.

- Ainda não estou acreditando que você vai para a Califórnia, comentou ela.

Desde que Tânia recebera a misteriosa carta, na terça-feira, a jovem parecia estar

andando nas nuvens. Em poucos dias, a vida dela mudara completamente. Amanhã, ela e os

pais iriam pegar um avião para Los Angeles, onde passariam o final de semana. E a razão era

que a família de Jennifer, a melhor amiga de Tânia no segundo grau, se mudara para lá. Fora

ela quem escrevera - convidava Tânia para ir morar com eles.

- Você pegou meus brincos de pérola emprestados? indagou a jovem, examinando

atentamente sua caixa de jóias, muito bem arrumada, que se encontrava na gaveta de cima da

cômoda.

- Como se eu gostasse deles! exclamou Selena, deitando-se de bruços. E se papai e

mamãe não quiserem deixar você se mudar para lá? Se você não conseguir transferência para

uma loja Nordstrom naquela área?

- É exatamente para isso que vamos lá neste fim de semana, explicou Tânia, meio

impaciente. Para verificar tudo isso. E agora, onde está minha pulseira dourada?

- Você já não colocou as jóias na mala ontem à noite?

Como um coelhinho arisco, a jovem correu de volta à mala, que se achava em cima da

cama, e verificou o bolso dela.

- Está certo. Devo estar ficando maluca, disse Tânia.

- É, mudar para Los Angeles assim é mesmo uma maluquice, interveio Selena.

- Não é Los Angeles, não. Já lhe falei isso. Ela mora é em Carlsbad, que fica mais ou

menos meia hora ao norte de San Diego. É que, indo por Los Angeles, a passagem fica mais

barrata, e papai achou também que seria muito bom fazer a viagem de lá para Carlsbad,

descendo pelo litoral.


- Quando é que eles vão ficar conhecendo o Jeremy? quis saber Selena.

- Amanhã à noite. Vamos jantar com os pais dele. Já lhe contei que liguei para o agente

hoje cedo?

- Que agente?

- O da agência de modelos que a tia da sua amiga me apresentou.

Selena quase caiu da cama.

- Agência de modelos? Você disse que não queria ser modelo!

- É, mas depois pensei melhor. Se eu tiver mesmo a chance de seguir a carreira, creio

que deveria pelo menos tentar, não acha?

Não havia dúvida de que Tânia estava mesmo nas nuvens.

- Ganharia bem mais dinheiro do que ganho agora, continuou ela. E além disso, talvez

seja um trabalho muito agradável.

- Agradável? Nunca viu uma entrevista dessas modelos que têm de passar muita fome e

trabalham quatorze horas por dia? Elas dizem que têm a sensação de que todo mundo as vê

como objetos e não como seres humanos. Como é que você pode achar que esse trabalho é

agradável?

- Espere aí! Eu não vou para Paris nem Nova Iorque. Essa agência é bem simples, e só

vou aceitar se for para apresentar apenas roupas, e não maiôs. Já conversei com papai e

mamãe sobre isso. Eles acham que devo tentar realizar esse sonho e ver o que aontece.

Selena voltou a sentar-se na cama, as pernas apoiadas à moda oriental, e cruzou os

braços.

- Ué, Tânia, e desde quando isso é o seu sonho? Depois que recebeu essa carta da

Jennifer você parece outra pessoa.

Tânia interrompeu por uns instantes sua agitação frenética e olhou para a irmã com

expressão suave.
- É, pode ser que eu pareça mesmo. Mas talvez fosse isso que eu estivesse esperando -

uma oportunidade de sair de casa, fazer algo diferente e ter um relacionamento fantástico com

um rapaz. Esse negócio de morar longe do Jeremy tem sido uma tortura para mim. Você acha

que devo abrir mão de tudo isso? Em troca de quê? De ficar aqui, onde não tenho amigos,

nem futuro, nem vida?

Selena sempre achara que um dia Tânia iria sair de casa, como os dois irmãos mais

velhos já haviam saído. Só que ela não esperava que fosse desse jeito. As duas ficaram em

silêncio por uns cinco minutos. Tânia pegou um casaco preto, dobrou-o e redobrou-o duas

vezes. Afinal deitou-se sobre a mala para fechá-la. Em seguida, deu um passo para trás, tendo

no rosto bonito uma expressão de satisfação.

- Tânia, disse Selena, levantando-se e aproximando-se da irmã. Gosto muito de você e

vou sentir sua falta. Espero que tudo dê certo.

E deu-lhe um abraço que a jovem recebeu com ar de surpresa.

- Ai, Selena, disse ela. Deixa disso. Vamos passar fora só o final de semana. Ainda não

estou de mudança, não.

Selena teve vontade de empurrar a irmã no chão, atrapalhar o cabelo dela e fazer-lhe

cócegas até que ela começasse a rir. Contudo essa brincadeira nunca dera certo quando eram

crianças, e a garota tinha certeza de que não daria agora.

- Ah, então só quero dizer que estou muito feliz de que tudo isso esteja acontecendo

com você.

- Obrigada, replicou Tânia.

A jovem foi à mesinha de cabeceira e pegou a lista de tudo que teria de fazer para a

viagem e examinou-a.

- Ah, é, murmurou para si mesma. Tenho de embrulhar presentes para os pais de

Jennifer.
Enquanto a irmã tratava de fazer os embrulhos, Selena foi ao banheiro que ficava no

corredor. Fechou a porta e trancou-a pondo-se a examinar sua imagem no espelho.

- E se eu fosse bonita como a Tânia? cochichou ela para seu reflexo. Será que quereria

sair de casa para me tornar modelo. Ou será que ela está indo atrás de Jeremy?

Pegou o cabelo anelado e volumoso e afastou-o do rosto. Virou-se de lado, pondo-se a

analisar seu perfil. Em seguida, virou-se de frente para o espelho e sorriu, fazendo aparecer as

covinhas. Fitou os olhos azul-acinzentados e analisou cada traço: o nariz, o queixo, as

sobrancelhas, as faces. Todos regulares, concluiu ela. Talvez as sardas que havia no nariz é

que fossem demais. Por outro lado, para contrabalançar, tinha lábios perfeitos. Fez um

biquinho, como se fosse dar um beijo. Imediatamente pensou que estava muito crescida para

ficar olhando sua imagem dessa maneira. A maioria das garotas tinha esse tipo de atitude aos

doze anos.

Aos doze anos, porém, ela estava mais interessada em andar a cavalo e em escrever

músicas; e não tinha muito tempo para se olhar no espelho. Aos quatorze, ainda estava

brincando de virar cambalhotas com os irmãos no quintal e criando coelhos para seu projeto

do “Clube 4 S”*.

___________________

*Clube 4 S: uma organização que reúne jovens da zona rural, e incentiva o interesse deles em pecuária e

agricultura. (N. da T.)

Agora, com 16, pela primeira vez na vida, ela se dava conta de que já era quase adulta.

E o que contribuíra muito para isso fora o fato de que sua família se mudara, de uma

cidadezinha das montanhas da Califórnia, para Portland, que era uma cidade grande. Além

disso, fizera uma viagem à Europa, onde amadurecera bastante. Pelo menos quando estava lá,

sentira-se perfeitamente ajustada com os outros jovens que eram mais velhos que ela.

Selena entendeu que estava para ficar sozinha, após a partda da irmã, que tinha 18 anos.

E a única coisa que desejava naquele instante era que pudesse voltar à sua infância feliz. Para
que toda essa preocupação de ter de estudar tanto para tirar notas altas? E por que iria perder a

irmã justamente agora que estavam começando a se relacionar melhor? E para que ficar com

aquele “fantasma” do Paul em sua vida?

A garota soltou um suspiro profundo. Não chegava a estar com vontade de chorar, mas

seria muito bom se pudesse extravasar aquelas emoções fortes. Olhou-se longamente ao

espelho e recordou-se de Paul, talvez por causa dos olhos. Os olhos do rapaz eram da mesma

cor dos dela. Pelo menos fora isso que o comissário de bordo havia dito ao vê-los sentados

lado a lado no uvião, quando vinham para Portland.

Selena deu um puxão na gavetinha do armário da pia e pegou sua escova de dentes. Pôs

um bocado de pasta nela e começou a escovar os dentes vigorosamente, impulsionada pelas

emoções.

Agora que Tânia vai se mudar para San Diego, nunca mais vou ver Paul. Jeremy não

terá motivo algum para vir aqui. Portanto não preciso mais achar que vou ver Paul. E aliás,

ele já deve ter me esquecido completamente.

A espuma da pasta de dentes começou a escorrer-lhe pelo canto da boca. Selena fez uma

careta, como se fosse um monstro raivoso, e em seguida cuspiu.

Amy tem razão. Tudo não passa de um sonho que eu mesma criei. Penso nele demais.

Lavou a boca e chegou mais perto do espelho para examinar os dentes que brilhavam.

Além disso, sou muito nova pra ele. Sou impulsiva demais e... como foi que falei para o

Ronny outro dia? Ah é, sou muito perigosa para o Paul.

Fez uma careta para seu reflexo no espelho. Inesperadamente, lembrou-se da última

frase que Paul lhe dissera no aeroporto, quando se despediam perto do setor de recolhimento

de bagagem. “Não mude nunca, Selena.”

A garota continuou fitando sua imagem, contemplando os olhos que haviam adquirido a

tonalidade de uma tranqüila manhã de inverno. Nesse momento, recordou com precisão

algum detalhes com relação ao rapaz. O cheiro dele lhe lembrava o Natal em Pineville, a
cidade onde morara antes. Reviu mentalmente seus olhos profundos, azul-acinzentados, seu

blusão de couro e seu chapéu à Indiana Jones. Recordou o modo como ele a abordara e lhe

falara de forma tão desinibida.

Afinal, como Selena já fizera centenas de vezes, fechou os olhos e orou por ele.

Capítulo Oito
No dia seguinte, à noite, Selena estava sozinha em casa, tendo apenas a companhia de

Vó May, que dormia em seu quarto. A garota pegara uma caixinha de passas e fora acomodar-

se no balanço da varanda, pondo-se a comer as frutinhas. Dali ouvia umas pombas arrulhando

no telhado da casa em frente. O céu estava carregado de nuvens, e caía uma garoa fina e

morna.

Ela se sentiu muito só. Naquele exato momento, seus amigos Ronny, Amy e Drake

estavam se dirigindo para o ginásio de esportes, onde iriam assistir ao jogo do Blazers. Selena

tivera de recusar o convite de ir com eles, porque os pais haviam viajado com Tânia. Alguém

precisava ficar em casa e cuidar de Vó May. A garota era a única que poderia fazer isso.

À tarde, Cody, um de seus irmãos mais velhos, tinha vindo buscar os menores para

passarem o final de semana na casa dele, no estado de Washington, a uma hora dali. Cody e

Katrina, sua esposa, gostavam muito quando Kevin e Dilton iam para sua “fazenda”, pois

faziam companhia para o Tyler, o filhinho deles que tinha três anos. O garotinho adorava os

pequenos tios.

Uma hora atrás, Amy ligara para Selena quase em pânico, pedindo sua opinião a

respeito da roupa que deveria usar para ir ao jogo. Contudo, assim que começou a descrever a

roupa com que estava vestida, de repente, deu um gritinho e desligou o telefone antes mesmo

que a garota lhe desse alguma sugestão. Drake chegara mais cedo do que o combinado.

Selena tentou chamar Vó May para darem uma volta no quarteirão, dizendo-lhe que o

exercício lhe faria bem. Algum tempo antes, a avó havia quebrado o pé e, no dia que tirara o

gesso, o médico dissera que seria bom se fizesse caminhadas leves. Nessa noite, porém, a

senhora estava cansada e não quis sair. Preferira ficar assistindo à televisão em seu quarto. A

neta lhe fizera companhia durante alguns minutos, vendo um programa de competição entre

telespectadores. Entretanto, cinco minutos depois, Vó May se pusera a cochilar. Selena a

cobrira com um cobertor e desligara a televisão que, aliás, estava com volume muito alto.
Com o silêncio, Vó May acordara e, bastante irritada, dissera a Selena para “ligar a televisão

de novo”.

A garota obedecera à querida avó e, em seguida, saíra do quarto pisando de leve.

Calçara seus chinelos felpudos e descera para o andar de baixo. Afinal fora para a varanda

onde estava agora, comendo passas e pensando em Paul.

Pai, o Senhor já deve estar cansado de me ouvir orando por esse cara, não está? Não

sei o que é. Só quero que Paul ande no caminho certo contigo. Quando o conheci, parecia

que ele estava se afastando de ti. Por favor, mantenha-o perto de teu coração, Pai. Sei que é

ele quem tem de decidir se vai te obedecer ou andar em seus próprios caminhos. Eu te peço,

Senhor, que tua mão esteja sempre sobre ele.

O silêncio era profundo, algo muito estranho para aquela casa. Selena pensou nas

inúmeras mudanças que haviam ocorrido na família. Os dois irmãos mais velhos já tinham

saído de casa. Agora, se Tânia também saísse, ela seria a filha mais velha. E já começava a

sentir o peso de ser a mais “responsável”. Tivera de abrir mão do jogo de basquete para ficar

com Vó May. De certo modo, Selena compreendia o fato de sua irmã estar desejosa de viver a

própria vida, organizar ela mesma suas atividades.

Bateu a caixinha para soltar a última passa que nela ficara agarrada. Levantou-se e saiu

arrastando o chinelo. Entrou em casa e foi para o escritório, o cômodo de que mais gostava.

Uma das paredes estava coberta de alto a baixo com livros velhos que a avó fora comprando

no decorrer dos anos. Alguns eram escritos em dinamarquês, a língua de origem de Vó May.

Selena acendeu a luz do abajur que ficava ao lado da poltrona estofada e correu os olhos pelo

aposento. Os livros, dezenas de volumes, pareciam chamá-la silenciosamente, convidando-a a

que mergulhasse em suas páginas e passasse algumas horas ali com eles.

Repassou mentalmente todos os trabalhos escolares que precisaria fazer nesse final de

semana. Sendo uma garota determinada, Selena rejeitou o “convite” dos livros e ligou o

computador que estava sobre a escrivaninha do pai. Ouvindo os suaves ruídos característicos
do “cérebro eletrônico” carregando, sentiu fortalecer-se mais sua decisão de estudar. O

primeiro trabalho que teria de fazer era uma redação de dez páginas. Resolveu que iria fazer

quinze, pois precisava obter todos os pontos possíveis.

Em seguida, pôs-se a redigir rapidamente e trabalhou durante quase uma hora. A certa

altura, escutou passos leves no assoalho de madeira da sala. Calculou que a avó tivesse

acordado e descido para comer algo. Qual não foi sua surpresa quando viu Wesley, seu irmão

mais velho, aparecer à porta do escritório.

- Ei, o que está fazendo aqui? indagou.

O irmão aproximou-se e deu-lhe um beijo no alto da cabeça.

- Vim lhe fazer companhia para que não ficasse sozinha durante todo o final de semana,

explicou ele.

O rapaz estudava na Universidade de Oregon, no campus de Corvallis, que ficava a

umas duas horas de Portland. Selena nunca confessaria que gostava mais de um dos irmãos do

que dos outros. Lá no fundo, porém, era mais chegada ao Wesley do que aos demais.

- Onde está Vó May? quis saber ele.

- Dormindo, acho. Mais ou menos uma hora atrás ela estava cochilando. Depois disso,

não voltei mais lá.

A garota pressionou mais algumas teclas do computador, encerrando o trabalho.

- Terminou tudo? indagou Wesley.

- Não, mas não agüento ficar mais do que uma hora falando dos “benefícios da

Revolução Industrial”, numa noite de sexta-feira. Se eu insistir, vou começar a entrar em

depressão.

- Por que não saiu com os amigos hoje? perguntou Wesley. Antes mesmo de terminar a

frase, porém, o próprio rapaz compreendeu qual era a resposta e disse:

- Bom, mas agora estou aqui. Posso ficar de olho em Vó May. Você pode sair e se

divertir um pouco. Não é muito tarde, não.


- Meus amigos foram a um jogo do Blazers.

- Humm, você está andando com uma turma riquinha agora, hein?

- Que nada! Eles compram os ingressos mais baratos. E você? Não tem nenhuma garota

bonita para lhe fazer companhia em plena noite de sexta-feira?

Wesley encostou o ombro a uma estante e correu os dedos pelo cabelo castanho e

ondulado. Um leve sorriso surgiu-lhe no rosto, suavizando as linhas do queixo onde a barba

despontava. O rapaz se parecia demais com o pai, ou pelo menos era como o pai deveria ter

sido quando jovem, antes de começar a ficar calvo

- Esta semana, não, explicou ele, com ar indiferente.

Selena sabia que, por ocasião do Dia de Ação de Graças, seu irmão estivera interessado

em uma garota, só que, ao que parece, ela não correspondera. E de lá para cá, ele não falara

em mais ninguém.

- Quer fazer alguma coisa? indagou o rapaz.

- O que, por exemplo?

- Locar uma fita, ou sair pra comer algo.

- Claro, mas será que podemos deixar Vó May sozinha?

- Ah, é mesmo, concordou Wesley. Esqueci que estamos só nós aqui com ela. Puxa,

acho que nunca tinha visto esta casa tão silenciosa!

- É estranho, né? comentou Selena. Na época em que Vó May fez a cirurgia e fiquei

sozinha com ela, foi pior ainda. Esta casa vazia chega a dar medo.

- Você já deu uma olhada na geladeira? Tem comida gostosa aí?

- Achei umas passas, respondeu a garota.

Ela sabia que ele detestava passas, ameixa seca e figo. Abominava qualquer fruta

“enrugadinha”. Wesley fez uma careta.

- Vamos lá ver a Vó May. Talvez ela esteja acordada e queira ir conosco comer uma

pizza.
- Duvido, Wesley, disse Selena dando risada. Esqueceu que ela é uma senhora idosa e

não uma jovem estudante?

- O problema dela é esse, prosseguiu o rapaz, subindo a escada à frente da irmã. Todo

mundo a trata como se ela não fosse capaz de fazer nada sozinha. Vó May é uma mulher cheia

de energia. Quando eu tinha 14 anos, ela subiu na casa da árvore comigo. Lembra disso? E

fizemos um piquenique lá. Só eu e ela.

- ‘Tá bom, Wesley, disse Selena abaixando a voz, mas isso foi o quê? Oito ou nove anos

atrás. De lá pra cá, muita coisa já aconteceu.

- Cada pessoa tem a idade que pensa que tem, insistiu o rapaz.

Ele bateu de leve à porta do quarto da avó e em seguida girou a maçaneta. Vó May se

achava de pé perto da janela, olhando lá para fora. Vestia um robe com estampa de flores. A

televisão estava desligada, mas, do rádio, vinha o som suave de uma música de jazz.

- Não falei que ela estava acordada? disse Wesley. Como está minha avozinha querida?

indagou ele erguendo a voz.

A senhora se virou, assustando-se com a chegada deles. Tinha nos olhos uma expressão

tensa e fitou um ponto atrás dos netos. Selena automaticamente virou-se para ver se havia

alguém ali. Era claro que não havia ninguém. Vó May estava tendo uma das suas crises de

memória.

- Pois não? disse ela em tom cordial.

Parecia não ter a mínima noção de quem eram Wesley e Selena.

- Eu é... principiou o rapaz. Isto é, nós resolvemos vir ver como a senhora está.

Selena teve a impressão de que ele teve um ligeiro choque com a estranha recepção da

querida avó. Lembrou-se, então, de que ele não vinha muito em casa. Provavelmente não vira

a avó assim muitas vezes.

- Ah, sim, replicou Vó May em tom frio. Estou muito bem.

- A senhora quer alguma coisa? perguntou Selena.


- Ao que parece, ainda não trouxeram minha bagagem, disse ela. Se não for muito

incômodo, vocês poderiam verificar isso pra mim?

Wesley virou-se para Selena. Ela dirigiu ao irmão um olhar de compreensão e disse:

- Claro, vamos verificar. Mais alguma coisa?

- Não, obrigada!

Vó May pegou sua bolsa, que estava sobre uma banqueta forrada de um pano bordado.

- Vou lhes dar uma gorjeta agora, e depois, quando trouxerem minhas malas, dou outra.

Wesley empalideceu.

- É muita bondade sua, mas não precisa, não, falou Selena imediatamente. Isso é por

conta da casa.

- Ah! exclamou ela com uma expressão agradável. Então, obrigada!

Selena e Wesley saíram do quarto, fechando a porta e desceram as escadas em silêncio.

- Será que devemos levar umas malas lá para cima? indagou Weslwy.

- Precisa não. Se levarmos, é capaz de ela perguntar que malas são essas. Parece que ela

tem essas idéias desencontradas e não faz conexão nenhuma entre elas, explicou a garota. É,

então não poderemos sair.

- Claro, concordou o rapaz. Mas puxa, é tão esquisito ver a vovó desse jeito...

- É, eu sei.

Entraram na cozinha e Wesley acendeu a luz. A lâmpada brilhou por um instante, mas

logo em seguida se apagou. Estava queimada.

- Uhh! exclamou o rapaz. Onde é que papai guarda as lâmpadas? Na oficina?

- Acho que é no porão, explicou Selena.

O rapaz desceu para procurar a lâmpada e Selena foi com ele. Voltaram, e ele a trocou

rapidamente. Num gesto habitual, Selena pegou o objeto e sacudiu-o, escutando o barulhinho

dos fios soltos lá dentro. Ia atirar a lâmpada na cesta de lixo, mas ocorreu-lhe um pensamento.

Devia ser muito doloroso para Vó May ter idéias desconexas, que não se ligavam umas nas
outras. Sua mente era como uma lâmpada queimada. Durante muitos anos, sempre que ela a

“ligava” ou “desligava”, as idéias tinham uma conexão perfeita. Um dia, de repente... puf! Ela

tentou “ligar”, mas não houve conexão. Selena estremeceu ao pensar que algum dia Vó May

iria morrer.

A mesma sensação ocorria com relação a Tânia. Durante toda a vida, compartilhara um

quarto com a irmã. Agora, porém, era muito possível que essa situação se alterasse.

Aproveitando um momento em que Wesley não olhava em sua direção, Selena pegou a

lâmpada queimada e colocou-a numa gaveta, em vez de jogá-la fora. Mais tarde, quando o

irmão estivesse por perto, iria buscá-la e guardá-la no quarto.

Capítulo Nove
Aos sábados, Selena trabalhava na confeitaria Mother Bear de 8:00h às 17:00h. No seu

horário de almoço, Amy apareceu por lá e as duas foram se sentar na saleta dos fundos para

conversar. Ficaram comendo pedacinhos de pão de canela que haviam se quebrado. E

comeram tanto que acabaram ficando enjoadas do pãozinho doce. Amy falou sem parar,

contando a respeito do jogo e sobre Drake. Ao que parecia, ele fizera tudo certinho, agindo

como um perfeito cavalheiro. Abrira a porta do carro para ela, comprara-lhe um refrigerante,

dera-lhe atenção o tempo todo e a levara em casa, conduzindo-a até a porta. A garota estava

radiante.

- Já falei com ele sobre nosso plano de dar um jantar para ele e Ronny, e ele adorou a

idéia.

- E já conversou com o Ronny sobre isso? indagou Selena.

- Claro. Ele estava sentado do nosso lado.

- Amy!

- O quê?

Selena ia comentar algo, mas afinal achou que era melhor concordar com os planos da

colega e não tentar mudar nada.

- Nada, replicou, pegando um guardanapo e limpando os dedos sujos de calda de açúcar.

Continue. O que está planejando fazer?

- O.k., falou Amy, com os olhos brilhantes. Vai ser sábado que vem, na minha casa.

Vamos fazer lagosta, batata assada e...que mais?

- Uma salada, ajuntou Selena.

-- É, uma “César”, resolveu Amy. E uma sobremesa super deliciosa. Tem de ser de

chocolate, claro.

- E quando é que vamos preparar tudo isso? quis saber Selena.


- A lagosta nós teremos de cozinhar quase na hora. Já lhe disse que meu tio prometeu

me dar quatro, não disse? Normalmente ele não serve lagosta no restaurante dele, mas pode

comprar com desconto. Então vai nos ceder de graça.

- Que bondade dele!

- Talvez ele possa nos dar também uma musse de chocolate, comentou Amy. Já

perguntei ao Drake e ele disse que gosta de musse.

- Tenho a impressão de que Drake vai gostar de qualquer comida que fizermos,

observou Selena.

Amy fitou-a com uma certa estranheza e a garota logo acrescentou:

- Ronny também. Já viu algum rapaz que não gosta de comer?

- Tenho um primo que odeia massas, disse Amy. E em nossa família isso é o mesmo

que dizer: “Não gosto de respirar”.

Selena deu uma espiada para o relógio que havia acima da pia.

- Tenho de voltar para o serviço, disse. Se você quiser que eu leve alguma coisa, é só

me falar, está bem? E vai ser no próximo sábado, né?

- Isso. Marquei para as 19:00h. Assim vamos ter bastante tempo para preparar tudo.

- Humm, parece que vai ser legal! comentou Selena.

A garota colocou o avental para trabalhar e Amy foi saindo pela porta dos fundos.

- Tchau! gritou Selena para a amiga.

A seguir, encaminhou-se para o balcão onde Jody, sua colega ruiva, atendia a uma longa

fila.

- Você devia ter me chamado, falou Selena. Não percebi que a loja estava cheia.

- Chegou todo mundo mais ou menos ao mesmo tempo, explicou Jody. Basta cair uma

chuvinha e o pessoal quer tomar café.

Jody estava manipulando a máquina de café expresso e Selena foi para a caixa

registradora, pondo-se a receber.


No momento seguinte, quando ergueu a cabeça, viu mais dois clientes entrando: Ronny

e Drake. Sorriu para os colegas e continuou com seu serviço na registradora, enquanto Jody,

habilidosamente, ia fazendo os capuccinos. Quando chegou a vez de atender aos dois rapazes,

ela notou que estavam com o cabelo molhado.

- Acabaram de tomar banho? indagou.

- Foi o contrário, explicou Drake. O banho caiu em nós.

- Ele estava me ajudando a aparar o gramado de alguns clientes regulares de sábado,

interveio Ronny. Numa determinada casa, tivemos de parar no meio, pois começou a chover

forte. Eu, como o executivo em comando, decidi que era hora de sair para almoçar.

E o rapaz deu seu sorriso característico, que deixava seu rosto radiante. Mais uma vez,

Selena percebeu o quanto a atitude dele era amistosa. Ela se sentia bem à vontade quando

estava com ele. Fora mais ou menos essa a sensação que tivera na noite anterior, quando

estava sozinha com Vó May, e Wesley aparecera para lhe fazer companhia.

- O Ronny me falou que aqui se come o melhor donut desta cidade, comentou Drake,

correndo a mão pelo cabelo e ajeitando alguns fios que estavam fora de lugar.

- Na verdade, não trabalhamos com donuts, não; só com pãezinhos de canela. E D.

Amélia, a proprietária, está pensando em instalar uma daquelas máquinas de sorvete

instantâneo.

- Então vamos querer dois pãezinhos de canela, pediu Drake.

- Com muita calda de açúcar, acrescentou Ronny. A gente sempre tem de lembrar a

Selena para colocar bastante calda.

- São seus amigos, Selena? quis saber Jody.

- Ah, Jody, este aqui é o Drake e este é o Ronny, falou Selena, apresentando os colegas.

E... sim. Se for obrigada a dizer que são meus amigos, digo.

- Prazer em conhecê-los, falou Jody. Vão querer tomar alguma coisa?

- Um capuccino, disse Drake.


Ronny pediu duas embalagens de leite e Selena logo brincou:

- Leite a gente toma é com tacos.

Ronny entendeu a brincadeira, o que alegrou a garota.

- Não, não, replicou ele. Leite combina com pãozinho de canela e não com tacos. É isso

que você precisa entender.

- Servem tacos aqui também? indagou Drake.

- Não, explicou Selena. É só uma piadinha nossa.

Drake olhou para o colega que ainda sorria e em seguida virou-se para Selena. A garota

compreendeu que acabara dando a entender algo que não queria. Geralmente quem tem

piadinhas ou brincadeiras em comum são os casais de namorados. Drake ficou a fitar

atentamente a um e outro, como que tentando descobrir qual era o tipo de relacionamento que

eles tinham. Nesse momento, sem saber bem por que, Selena se sentiu um pouco incomodada.

Pegou os pãezinhos para eles e os dois ajuntaram o dinheiro numa quantia só e lhe

entregaram.

- Sabe o que é? principiou ela, dirigindo-se ao Drake. Quando como tacos, gosto de

tomar leite, e o Ronny acha isso estranho.

- Também gosto de tacos com leite, explicou Drake.

- Está vendo? disse Selena para Ronny.

Ela registrou o dinheiro e sua pulseira de metal tiniu ao bater na caixa.

- Então é isso que vamos ter no jantar na casa da Amy sábado que vem? indagou o

rapaz. Tacos com leite?

- Não. Aliás, ela acabou de sair daqui, disse Selena. Vai ficar sentida quando souber que

vocês estiveram na loja pouco depois que ela saiu. Mas ela não lhes disse o que vamos ter no

jantar?

Os dois abanaram a cabeça e se puseram a comer o pãozinho doce.

- Então também não vou dizer, não, respondeu a garota. Vai ser surpresa.
Um novo cliente chegou ao balcão e os dois rapazes se afastaram para um lado,

comendo seu lanche. A garota atendeu mais duas pessoas, as últimas da fila, e Ronny

aproximou-se da caixa.

- Nós achamos muito legal isso que você e a Amy estão fazendo, disse ele.

- É, mas vocês ainda não sabem se cozinhamos bem ou não, brincou Selena. Esperem

para expressar sua opinião depois que jantarem, se sobreviverem.

- Pois eu estou disposto a correr o risco, observou Drake, fitando-a com um sorriso

muito cordial.

Selena se sentiu um pouco estranha com o olhar dele. O rapaz contrastava bastante com

Ronny. Era moreno, mais alto, tinha feições perfeitas e ombros largos. Seu queixo era firme e

ele o projetava para diante, ao sorrir.

Se Amy estivesse aqui, pensou ela, iria achar que Drake está querendo me conquistar.

Selena sabia, porém, que a amiga não precisava temer nada. Namoricos e flertes não

eram o seu forte.


Capítulo Dez

No domingo à noite, por volta de 20:00h, Selena estava sentada no balanço da varanda

ao lado de Vó May. Nesse dia, a avó estivera lúcida o tempo todo. Pela manhã, Wesley e

Selena tinham ido à igreja com ela. Após o culto, haviam almoçado no restaurante predileto

da senhora. Chegando em casa, a avó fora tirar um cochilo, e Selena aproveitara para terminar

um trabalho da escola. Enquanto isso, Wesley fora dar uma volta com Brutus, o cachorro da

família, um enorme São Bernardo. A tarde, a garota preparara sanduíches de queijo quente

para lancharem. Vó May colocara no seu um picles bem azedo e tomara café preto, bem forte,

na sua xícara de porcelana.

Tudo estava normal. As duas já tinham ido dar uma volta no quarteirão e agora se

achavam sentadas na varanda, conversando a respeito de passarinhos. De tardinha, Cody e

Katrina tinham vindo trazer os dois irmãos mais novos, Kevin e Dilton, que agora brincavam

de luta livre com Wesley e Brutus no gramado da casa.

Caía a noite, uma calma noite de maio. Tudo parecia envolto em tons escuros, e eles já

começavam a ouvir os ruídos típicos dessa hora. Instantes depois, a van da família descia a

rua, com o pai ao volante e parava à porta. Ele buzinou e soltou sua frase característica:

- Chegamos em casa, pessoal!

Os garotos correram ao encontro dos pais e de Tânia. Minutos depois estavam na

varanda, todos fazendo perguntas ao mesmo tempo, enquanto Brutus latia sem parar.

- E aí? indagou Wesley. Como foi lá? O que decidiram?

- Você vai ser uma modelo famosa, Tânia? quis saber Dilton.

- A bagagem chegou direitinho? perguntou Selena.

- Diga logo, Nini, pediu Vó May, chamando a neta pelo apelido de infância que a jovem

detestava.
A moça olhou para os pais. Os dois fizeram um aceno de cabeça, dando-lhe permissão

para contar. Fitando aqueles rostos ansiosos, ela explicou:

- Vou sim! Vou mudar para Carlsbad. Embora essa fosse a resposta que todos

desejavam, ficaram um momento em silêncio, olhando para a jovem, sentindo a alegria e o

senso de expectativa estampados no semblante dela.

- Que beleza! exclamou Wesley, que foi o primeiro a falar.

- Uau! disse Selena quase gritando. Então você vai mesmo!

Tânia acenou que sim e dirigiu um olhar de gratidão aos pais.

- Queria que todos vocês ficassem conhecendo os pais do Jeremy. Eles são

maravilhosos.

- São mesmo, concordou mamãe.

- E o Jeremy não é dos piores também, não, interveio papai brincando. É passável. Não

parece nem um pouco com aquele cara lá de Pineville. Como era mesmo o nome dele?

Marvin?

- Martin! responderam ao mesmo tempo Selena, Wesley, Tânia e mamãe.

- Isso! falou papai, com um brilho brincalhão nos olhos. O marciano.

- Espero que papai não tenha ficado com essas brincadeiras perto de Jeremy, disse

Selena.

- Graças a Deus, não! exclamou Tânia.

Vó May deu um tapinha na perna de Selena e indagou:

- Quem é esse Jeremy?

A garota aproximou-se mais da avó e explicou:

- É o rapaz que eu e Tânia ficamos conhecendo quando fomos à Califórnia no recesso

da Páscoa. Ele é amigo de meus amigos que moram lá. Lembra que falamos sobre ele? Pois é,

ele é irmão de Paul, e é mais velho que Paul.

No rosto suave de Vó May, estampou-se uma expressão de quem se recorda de algo.


- Ah é, Paul! Gosto muito daquele rapaz. Ele levou um lírio pra mim, sabia?

- Sei, respondeu Selena. Ele foi visitá-la no hospital.

- É, foi sim. Gosto muito do Paul, repetiu Vó May.

Eu também, pensou Selena.

- Vamos levar as malas pra dentro, disse o pai virando-se para Wesley, que

imediatamente o seguiu até a van. Como foi o final de semana aqui, filho? Nós ficamos muito

gratos de você ter vindo para cá.

As mulheres se movimentaram para entrar em casa, e Selena ajudou Vó May a se

levantar. Naquele momento, a garota achava que tudo estava perfeito. Segurava a mão sedosa

da querida avó. Os irmãos menores corriam pelo quintal, seguidos do imenso Brutus que latia

incessantemente. Todos os seus entes queridos se encontravam junto dela, com exceção de

Cody, Katrina e Tyler. Estava adorando o aroma que ficara no ar após a chuva, o tom alegre

da voz de Tânia e a sensação agradável que experimentara quando Vó May dissera o nome de

Paul.

A vontade dela era “congelar” aquele momento do jeilo que estava - até com as

mariposas pousadas na portinha de tela. Era sua casa, sua família, sua vida. Não queria que

nada daquilo mudasse. Na verdade, bem lá no fundo, não queria que Tânia fosse embora.

Por que será que sentia isso? E já que sentia, como poderia dizê-lo à irmã?

Uma hora depois, as duas estavam sozinhas no quarto. Tânia desarrumava as malas e

narrava empolgada os detalhes da viagem. Selena se acomodara na cama, toda encolhidinha,

já vestida com seu pijama, ouvindo atentamente. Não perdia uma palavra.

Tânia parecia ter ganhado vida nova desde que tudo aquilo começara. Mostrava-se

empolgada com todos os aspectos da situação. Já havia contado a Selena a entrevista com o

agente de modelos no sábado, relatando que ele achava que a jovem tinha possibilidade de

arranjar trabalho imediatamente. Contara também que Jennifer ficara super feliz com o fato de

Tânia ir morar com ela. Agora estava mencionando de novo que na segunda-feira, na
Nordstrom, iria pedir transferência para uma loja da Califórnia e mudar-se para lá o mais

rápido possível. Tudo parecia perfeito.

Tudo, menos a sensação de dor que Selena experimentava. Queria protestar e gritar para

a irmã:

“Não! Você não pode ir embora, não. Ainda não.” Nunca imaginara que iria ter tal

reação.

- Fico muito feliz por você, Tânia, disse afinal, respirando fundo. Feliz mesmo. Só que

ainda não estou acreditando que você vai embora. Na verdade, eu não queria que você fosse.

Vou sentir muita falta sua.

Com movimentos graciosos, Tânia caminhou em direção a ela e passou os braços pelo

pescoço da irmã, num leve abraço Em seguida, tocou-lhe o rosto com os lábios num beijo

rápido.

- Pense o seguinte: vai ficar com o quarto só pra você, disse a jovem sorrindo.

E continuou sorrindo enquanto voltava para onde estava a mala quase vazia.

Como é que ela pode ter essa atitude tão fria? pensou Selena. Eu me abro com ela pela

primeira vez na vida, e ela vem e me beija. Por que nosso relacionamento não foi sempre

assim? E será que algum dia viveremos outro momento igual a esse?
Capítulo Onze

Na semana seguinte, Selena não teve muito tempo para pensar sobre seu relacionamento

com Tânia. Na segunda-feira, na aula do Prof. Rykert, eles se dividiram em grupos e passaram

o tempo todo conversando a respeito do trabalho que iriam realizar fora da escola. Ronny já

fizera algumas anotações sobre as tarefas deles e foi logo distribuindo responsabilidades.

Vicki pegou uma “xuxinha” que estava em seu braço e, segurando o próprio cabelo, fez

um rabo-de-cavalo com ela.

- Ó gente, disse a garota, dá licença um minuto. Volto já.

Saiu da roda deles e dirigiu-se para o lugar onde Amy e Byron estavam, pondo-se a

conversar com os dois colegas. Na época em que Selena começara a freqüentar essa escola,

Amy e Vicki eram muito amigas. Pouco depois, porém, Vicki começara a namorar um rapaz

do terceiro ano, e Amy ficara sozinha. Com isso, ela e Selena se aproximaram um pouco uma

da outra.

- Está marcado para irmos à Highland House na terça e na sexta-feira, informou Ronny.

O diretor quer que contemos uma história da Bíblia para as crianças e depois, talvez,

cantemos algumas músicas com elas. No resto do tempo, ficaremos ajudando-os a fazer o

“dever de casa”.

Ter tinha no rosto uma expressão de indiferença. Selena não saberia dizer se ele estava

prestando atenção ou não.

- Você pode se encarregar de preparar a história? Indagou Ronny, olhando para Selena.

- Claro. Sem problema.

No dia seguinte, à tarde, quando os quatro entraram na casa, Selena compreendeu que

fora precipitada em aceitar a incumbência. Não seria nada fácil contar história para aquele

bando de crianças. Depois de passarem uma parte do dia na escola, muitas delas não queriam

absolutamente saber de se sentar no chão para ouvir uma história.


Selena ficara acordada até quase meia-noite, colorindo e recortando as figuras das

personagens bíblicas, que depois pregou em um lápis para usá-las como ilustração ao contar a

história. Escolhera a parábola do “filho pródigo”. Como as figuras eram muitas, pediu a

Ronny, Vicki e Tre que a ajudassem a segurá-las enquanto ela narrava.

Tre não entendera que ela queria que ele segurasse um dos lápis e dirigiu-se para o

fundo da sala, ficando de lá a olhá-los. Vicki não entrou bem no espírito da atividade e passou

o tempo todo mandando que as crianças ficassem caladas.

O Ronny, porém, participou com grande entusiasmo, principalmente quando era sua vez

de levantar as figuras dos porcos de que o “filho pródigo” tratava quando “caiu em si”. Ronny

movia as figuras, fazendo os porcos dançar, grunhindo o tempo todo. Estava até atrapalhando.

As crianças riram demais e se puseram a imitar o barulho dos animais.

- Ronny, interveio Selena, o “pródigo” tem de se conscientizar de que não quer ficar no

chiqueiro.

Sem parar de fazer dançarem os porcos e sem tirar os olhos dos garotos, o rapaz se

inclinou para a garota.

- Mas pelo menos estão prestando atenção, disse. Vamos lá, apresente a lição da história

enquanto ainda estão atentos.

Selena tentou concluir, dizendo que o “pródigo” voltou para sua casa e que o pai dele

estava lá, olhando para a estrada, à sua espera. Só que a Vicki, que segurava a figura do pai,

tinha os braços esticados, segurando o lápis afastado de si, como se ele fosse um isqueiro

prestes a explodir.

- E Deus é assim também, disse Selena.

Naquele momento, a garota se sentia bastante frustrada com a colega, que não estava

mostrando toda a importância da figura paterna, que representava Deus.

- Ele nos ama e quer que voltemos para ele, continuou ela. Quer que peçamos perdão

pelas coisas erradas que fizemos e que lhe entreguemos nossa vida.
Afinal, guardaram as figuras, e Selena ficou sozinha na frente. Contudo os pequenos

logo começaram a desviar a atenção.

- Se algum de vocês quiser fazer isso, prosseguiu a garota, sem saber bem que palavras

devia empregar, se alguém quiser orar e entregar a vida a Deus, nós podemos conversar com

vocês depois.

Vários garotos já estavam se afastando, dirigindo-se ao fundo da sala, esperando que se

abrissem as portas para irem brincar.

- Antes de vocês saírem, insistiu ela, falando em voz alta e com certo desespero, eu

queria orar por vocês. Por favor, crianças, parem onde estão e fechem os olhos.

Ela aguardou uns instantes, correndo os olhos pelo aposento. Somente duas meninas

fecharam os olhos, e uma delas se pôs a abri-los e fechá-los.

- Vamos lá, gente! interveio Ronny, aproximando-se de Selena. Parem onde estão e

fechem os olhos.

Agora todos olhavam para o rapaz, inclusive as duas garotinhas que antes haviam

fechado.

- É melhor você orar logo, cochichou ele para Selena.

A garota inclinou a cabeça de olhos cerrados, ciente de que talvez fosse a única naquele

salão a fazer isso. Fez uma oração curta de quatro frases e disse “Amém” mais depressa do

que imaginara.

- O.k., pessoal, podem sair, falou Ronny em voz alta para superar a barulhada das

crianças.

Não precisou dizer duas vezes. Ele, Tre e Vicki foram atrás da meninada, e Selena ficou

sozinha. A garota pôs-se a guardar os objetos.

Que bomba! pensou ela chateada. E olha só este chão! Como foi que eles conseguiram

fazer tanta bagunça em tão pouco tempo?


Em toda parte havia pedaços de copos de plástico que as crianças tinham usado na hora

da merenda. Alguns haviam picado os copos em pedacinhos, como confetes, e espalhado pelo

chão. Resmungando para si mesma, Selena pegou uma lixeira e se pôs a catar o lixo e a

colocar nela.

Não ouviram uma palavra do que eu disse! pensou. Que fracasso!

- Parece que você é especialista em “filhos pródigos”, né? Disse uma voz masculina

atrás dela.

- De jeito nenhum! replicou a garota sem olhar.

- Por quê? Acha que eles não mudam nunca, Selena?

Era a voz dele e dissera seu nome. De fôlego suspenso, a garota se virou e deu com o

rosto que estava gravado em sua memória havia meses. Paul.


Capítulo Doze

Selena sentiu o sangue subir-lhe ao rosto e desbriu que, de repente, ficara sem voz. Paul

se achava alguns passos dela, com um ar tranqüilo e natural. Seu cabelo castanho, ondulado e

volumoso, caía-lhe pela testa, dando-lhe o aspecto de alguém que estivesse fazendo algo ao ar

livre. Estava bem barbeado, e as faces e o nariz fino pareciam levemente bronzeados. Ou será

que ele também ficara vermelho?

Ele segurava a figura do “filho pródigo” e girava o lápis entre os dedos, rodando-o de

um lado para outro. Permaneceu em silêncio por uns instantes, fitando-a com seus olhos

claros, azul-acinzentados, que sorriam para ela, embora seus lábios estivessem cerrados.

- Oi! disse Selena afinal, com uma vozinha meio espremida.

Ela afastou uma mecha de cabelo do rosto e respirou fundo. Seu coração batia

loucamente. Tentou dar um sorriso, mas seus lábios tremeram.

- Oi! replicou ele. O que houve com suas botas?

- As velhas botas de cowboy do meu pai?

Ele fez que sim.

- A sola do pé direito soltou. E ainda não tive tempo de mandar consertar.

Ele ainda se lembra das botas que eu usava no dia em que nos conhecemos.

- Anda não lhe agradeci por ter mandado flores para minha avó no hospital, continuou

Selena. Ela ficou muito alegre.

- E como ela está passando?

- Está bem. Muito bem mesmo. Está passando muito bem.

Pare de falar, Selena. Está parecendo um papagaio.

Por uns instantes, os dois permaneceram em silêncio. Selena e Paul se olharam durante

um longo momento. Em seguida, a garota percebeu que estava se acalmando, e teve a

sensação de que se achava mais próxima do rapaz, embora não houvesse saído do lugar.
- Eu queria lhe dizer... principiou Selena.

- Tem uma coisa... começou Paul ao mesmo tempo.

Ambos soltaram um risinho nervoso e disseram juntos:

- Você primeiro...

- Fale, disse, disse Paul, sorrindo para ela não apenas com os olhos, mas também com os

lábios.

- Eu...é..., falou Selena.

A garota não estava conseguindo coordenar os pensamentos e colocá-los em palavras.

Um lado dela queria correr para o rapaz e dizer:

“Tenho orado tanto por você e agora o encontro nesta missão evangélica. isso significa

que Deus atendeu minhas orações? Você parou de andar longe dele?”

Por outro lado, ela ainda estava meio abalada com aquele encontro inesperado. E sua

vontade era virar e sair correndo. De repente, a porta se abriu e apareceram duas meninas com

o cabelo todo cheio de trancinhas.

- Ah, agora te encontramos, Paul. Vem bater corda pra nós.

O rapaz não respondeu, mas continuou fitando Selena.

- Vamos! disseram as garotinhas, aproximando-se dele e pegando-o pelo braço.

Paul deu um passo para Selena e bateu de leve no braço delea com dois dedos da mão

direita.

- Uma hora dessas precisamos conversar, disse em voz baixa.

As meninas insistiam em puxá-lo, mas ele continuou:

- Ah, e por falar nisso, o Clint gostou muito dos pãezinhos.

- Clint?

- Na semana passada, explicou o rapaz, sem dar atenção às garotinhas que ainda o

puxavam, eu a vi na calçada lá na frente. Vi quando deu um pacote para o Clint. Depois ele

me disse que estava cheio de pãezinhos de canela.


- Era você que estava na varanda? indagou a garota.

O rapaz fez que sim e aí permitiu que as pequenas o arrastassem para fora da sala.

Quando ele passou perto de Selena, ela sentiu um perfume silvestre.

- De quem é a vez de pular primeiro? perguntou Paul, passando um braço em cada uma

das garotinhas.

A porta se fechou e Selena se deixou cair sentada no chão. Permaneceu alguns instantes

ali parada, tentando assimilar o que acabara de acontecer. Sabia que sua amiga Katie diria que

essa coincidência de Paul estar no lugar onde ela fora mandada para participar de um projeto

social era uma “coisa de Deus”. Mas por quê? O que ele estaria fazendo ali? Estava claro que

as crianças o conheciam, então já fazia algum tempo que ele freqüentava o lugar. Será que era

um funcionário da casa? Ou trabalhava como voluntário? E nesse caso, por que teria se

apresentado para atuar ali como voluntário? Com base na primeira impressão que tivera dele,

essa era a última coisa que ela achava que ele iria fazer. Contudo tinha de reconhecer que ele

parecia mudado.

- Selena! gritou lá de fora uma voz masculina e em seguida alguém abriu a porta.

A garota virou-se com certa expectativa. Era Ronny.

- Você vai vir ou não? Estou precisando de ajuda aqui no “dever de casa”.

- Eu só estava... é... dando uma arrumação aqui. Vou daqui a pouco.

Ela se indagou se seu rosto ainda estava muito vermelho, já que o sentia pegando fogo.

- Legal! replicou o rapaz com um aceno de mão e saindo.

Selena acabou de recolher os últimos pedaços de papel e em seguida guardou os lápis na

mochila. Quando pegou a figura do “filho pródigo”, parou um pouco e ficou a girar o lápis

lentamente entre os dois dedos, como Paul havia feito. O que será que ele quisera dizer

quando afirmara que ela era especialista em “filhos pródigos”? Será que ele se via como o

“pródigo” que regressara para casa?


Na ocasião em que se haviam conhecido, o rapaz lhe falara sobre a namorada dele, e

Selena lhe pregara um sermão, dizendo o quanto era errado namorar uma pessoa não crente.

Por causa disso, ele se mostrara meio frio com Selena, e ficara só nisso. Será que ficara

mesmo? Será que as orações que ela fizera por ele durante aqueles meses tinham surtido

resultado?

A garota ainda sentia o coração batendo forte quando saiu do salão e entrou num

aposento amplo, que no passado fora a sala de jantar da mansão. Havia várias mesas no

cômodo, e a meninada estava fazendo o “dever de casa”. Parecia que Ronny era o único que

se achava ali para ajudar as crianças, umas quinze ou mais. Paul não se achava à vista. Talvez

tudo não tivesse passado de um sonho. Ela dormira pouco na noite anterior; ademais estivera

cercada do barulho das crianças...Era bem possível que houvesse apenas imaginado que o

rapaz chegara perto dela, que olhara para ela e sorrira, que tocara em seu braço com os dedos.

Colocou a mão no ponto onde ele batera de leve, como se assim pudesse verificar se aquilo

fora mesmo um sonho ou era realidade.

- Venha cá! gritou Ronny, apontando para uma mesa onde havia cinco meninos, cada

um com uma folha de papel, todas com o mesmo exercício. Eles estão fazendo frações. Você

pode dar uma força aqui pra eles?

Ainda com a cabeça meio nas nuvens, Selena aproximou-se e se sentou numa

cadeirinha. O garotinho que estava ao lado exalava um mau cheiro horrível. Aquilo foi como

um vidro de “sais” - despertou-a de seu devaneio. Contudo mal estava agüentando ficar perto

dele. O odor era tão forte que Selena, meio despistadamente, procurou tapar o nariz.

Lembrou-se do que lera sobre uma professora que lecionava numa escola do interior do país.

Os alunos dela eram tão malcheirosos que ela andava com um lenço encharcado de perfume.

Essa professora ficava o dia todo levando o lenço ao nariz para aliviar um pouco aquele forte

odor.
- 'Tá bom, disse Selena para o garoto, assim que ele acabou o exercício. Você já

terminou, pode ir brincar lá fora.

O menino afastou a cadeira, dando a impressão de que estava ansioso para sair.

Contudo, em vez de ir embora, aproximou-se mais de Selena e fitou-a intensamente.

- Você vem amanhã de novo? indagou ele com uma expressão de súplica nos olhos

castanhos.

- Não, não, respondeu ela, tentando segurar o fôlego e falar ao mesmo tempo.

O garotinho ficou um pouco decepcionado, mas continuou ali parado.

- Eu venho sexta-feira, concluiu Selena, falando rapidamente.

O rosto dele se iluminou.

- Meu nome é Johnny, disse. Não esquece, não, 'tá?

- 'Tá, disse ela. Não esqueço, não.

Pode crer, Johnny, não vou me esquecer de você, não! pensou.

Ele saiu e Selena soltou a respiração, ansiosa para respirar fundo.

- Você pode fazer trabalhos manuais conosco na sexta-feira? quis saber uma das

meninas. Na sexta-feira, a gente não tem “dever de casa”, não, mas podemos desenhar e

modelar se tiver alguém para nos ajudar.

- Claro, replicou Selena. Posso sim.

- Toda sexta-feira? indagou outra menina.

- Bom, nesta sexta-feira é certo, explicou a garota.

Agora entendia por que o diretor se mostrara tão contente quando os quatro estudantes

tinham aparecido ali naquela tarde. Dissera que estavam com poucos auxiliares. Nesse

momento, Selena percebera o quanto aquelas crianças precisavam de gente que lhes desse

atenção.

As outras crianças da mesa terminaram o exercício e logo chamaram Selena para ir lá

fora para jogarem futebol. Ela deixou que a conduzissem puxando-a pela mão. Quando saíram
no amplo pátio, ela logo avistou Paul. Ele não estava batendo corda. Agora era Tre quem

brincava com as duas garotinhas. Só que naquele momento, eram as duas que batiam a corda

para o rapaz pular. Era a primeira vez que Selena via o colega rir. As meninas haviam

conseguido o que nenhum dos alunos da escola tinham sido capazes de fazer - tinham feito

amizade com Tre.

Paul se achava no centro do pátio, com um apito pendurado no pescoço e uma bola de

futebol debaixo do braço. Quando Selena se aproximou, levada pelo seu novo “fã clube”, ele

estava dando instruções aos garotos.

- Ela é do nosso time! gritaram as crianças que estavam com Selena.

Paul fitou-a com um misto de admiração e surpresa.

- 'Tá bom, 'tá bom, gritou ele, atirando a bola para o alto. Agora é cada um por si. O gol

é ali, naquela árvore.

Ele trilou o apito e as crianças todas, mais ou menos vinte, se puseram a gritar na ânsia

de jogar.

- Aqui, aqui! gritavam as meninas com vozinha estridente, correndo atrás da bola.

Selena correu também e notou que Ronny se posicionara como goleiro. Deu uma

espiada rápida na direção de Paul e se convenceu de uma vez por todas de que ele não era um

sonho. Estava bem ali perto, com aquele sorriso típico, que começava nos olhos e alegrava

todo o rosto. E olhava diretamente para ela.

As meninas jogadoras ficaram rodeando Selena, ao mesmo tempo que corriam em

direção ao gol. Fazia um pouco de calor e a garota desejou que tivesse vindo de short, em vez

de calça jeans. Os animados jogadores de futebol corriam o campo todo. Selena tentava

acompanhá-los. Finalmente um menino conseguiu marcar um gol. A bola passou por Ronny,

bateu na árvore e entrou.

Então Ronny trocou de lugar com o garoto que marcara, e o jogo continuou. Agora o

colega corria ao lado de Selena, dando-lhe instruções à medida que iam jogando.
- Faz um lançamento em direção à cerca, que vou lá para receber, disse ele.

Ela começou a protestar:

- Mas Ronny, os garotos é que têm de jogar...

Ele, porém, já saíra correndo. De repente, a bola apareceu à frente dela e Selena deu um

chute para a cerca. O rapaz estava lá, como dissera, e chutou para a árvore. O goleiro nem viu

onde a bola passou.

- Gol!!! gritou Ronny erguendo os braços. É isso aí, gente!

Em seguida, correu para Selena e ambos bateram as palmas de ambas as mãos num

“Toque aqui!” Depois aproximou-se dela e disse-lhe ao ouvido:

- Eu não disse que formamos uma ótima dupla?

Num gesto espontâneo, ele passou os braços em volta dela e deu-lhe um abraço rápido.

Selena sentiu-se avermelhar do pescoço para cima. Aquele gesto do colega fora o mais

afetuoso que ele tivera para com ela. Selena sabia que Paul estava observando-os. Sentiu um

calor subindo para o rosto, chegando depois à testa, que se achava molhada de suor.

- Não pode! gritaram vários meninos. Vocês dois não podem fazer isso!

- Sabe de uma coisa? disse Selena, limpando o suor que se acumulara sobre o lábio

superior e vendo que Paul se aproximava. Acho que vou parar agora.

- Logo agora? exclamou Ronny. Com um pouco de estratégia, a gente ganha esse jogo

fácil, fácil.

- Não sai, não, Selena! disseram as meninas do seu “fã clube”, retendo-a pelo braço.

- Vamos jogar, gente! gritou um dos meninos. Paul, solta a bola! Vamos jogar!

- Todo mundo está pronto? indagou o rapaz.

Ele agora se achava a menos de dois metros, rodeado por um grupo de garotos. Selena

sentiu de novo o cheiro de Johnny. Só que agora não tinha muita certeza se ela própria estava

ou não contribuindo para aquela “poluição” do ar.


- Dessa vez, não vou jogar, não, afirmou Selena para as meninas que estavam ao seu

lado. Preciso ir verificar uma coisa lá dentro.

E com isso, ela saiu correndo, antes que alguém notasse como seu rosto estava

vermelho. E também não olhou para trás. Por isso não ficou sabendo qual a expressão que se

estampou no rosto de Paul quando ele viu que ela estava saindo.
Capítulo Treze

- É o que estou lhe dizendo, afirmou Selena em tom firme para Amy, à noite.

Ela contara para a amiga tudo que ocorrera na Highland House e concluiu:

- E o pior é que não aconteceu nada.

- Você está querendo dizer então que os dois conversaram por uns instantes e depois

Paul voltou a ser aquele “fantasma” de sempre?

- De certa forma, sim, replicou Selena. Mas não parece que é uma “coisa de Deus”?

- Bom, principiou Amy, não quero acabar com seus sonhos Selena mas, na verdade,

temos de reconhecer que nada aconteceu. Quero dizer, ele estava lá, mas apenas olhou para

você, conversou um pouquinho e depois desapareceu.

- Sei disso. Mas quando ele olhou pra mim, tive a sensação de que tudo à minha volta

sumiu, ficando só ele.

- Ah, qual é? disse Amy, começando a rir. Você é muito melodramática, Selena.

Ninguém sente isso quando está perto de um rapaz.

- Não estou inventando, não, Amy. Senti sim.

- Onde é que a Vicki estava o tempo todo? quis saber Amy.

- Estava na varanda dos fundos, jogando cinco-marias com uma garotinha.

- E ela não viu Paul?

- Não sei. Por quê?

- Só queria saber. Se ela o viu, na certa vai me contar.

Houve um instante de silêncio entre as duas, e Selena teve de se controlar para não

deixar a mente divagar descontrolada. Vicki era uma garota que atraía a atenção de todos os

rapazes que via. Será que Paul seria o próximo da lista?

- Será que não dá pra você ir conosco à Highland House nesta sexta-feira? propôs

Selena.
Ela não tinha certeza se isso ajudaria em alguma coisa, mas no momento em que o

disse, achou que seria uma boa idéia.

- Não vou poder, não, explicou Amy. É sexta-feira que eu e o Byron vamos dar

andamento ao nosso projeto social. Ah, eu lhe contei que no próximo final de semana vou

começar a trabalhar no restaurante do meu tio?

- Saiu outra recepcionista? perguntou Selena.

A garota não estava conseguindo ficar empolgada com as novidades de Amy, pois ela

própria ainda estava vibrando com o que tinha para contar sobre Paul. E a colega não se

mostrava muito interessada. Aliás, não estava nem um pouco interessada.

- Saiu, explicou a outra. E ele queria que eu começasse já nesse sábado, mas respondi

que já tinha um compromisso. A que horas você larga serviço no sábado?

- Por volta de 16:00h.

- Você podia ir direto para a minha casa, para começarmos a preparar o jantar para o

Ronny e o Drake. Eu lhe contei que ganhei a musse de chocolate?

Selena havia se esquecido totalmente do jantar que teriam no sábado.

- Que bom! exclamou.

- Puxa, como você está empolgada, hein? disse Amy irônica. Não gosta de musse, não?

- Não, quero dizer, gosto. Gosto de musse.

- ‘Tá bom então. Tenho de desligar. Amanhã te encontro perto do meu escaninho, o.k.?

No dia seguinte, Selena esperou a colega até a campanhia tocar, mas ela não apareceu.

Entrou em classe quando já ia soando o segundo sinal e pegou logo o trabalho para entregar.

Na noite anterior, ficara acordada até tarde digitando o relatório, mas estivera o tempo todo

pensando em Paul. Que será que ele achara dela? Por que não conversara mais com ela? Será

que iria vê-lo de novo?

Ademais, sua casa estivera muito agitada à noite, por causa dos planos de mudança de

Tânia, e ela não pudera mencionar nada para ninguém sobre o encontro com o rapaz. Vendo
que Amy não atribuíra muita importância ao fato, Selena decidiu que não iria falar dele com

mais ninguém, como se fosse algo de extraordinário.

O curioso, porém, é que tinha muita vontade de comentar com Ronny. Ele era seu

amigo. Já se abrira com o rapaz a respeito de diversas questões, inclusive sobre o fato de sua

irmã ir embora. Além disso, ele tinha estado lá, na Highland House. Ficara conhecendo Paul.

Com certeza, se mais ninguém concordasse com ela que aquilo fora uma “coisa de Deus”,

Ronny concordaria.

Por alguma razão, porém, não teve coragem de falar com ele. Ainda não estava muito

convencida de que o leve abraço que o colega lhe dera no jogo, depois de marcar o gol, fora

apenas um ato de irmão, um extravasamento da alegria pela vitória. Contudo continuava meio

confusa. E o mais engraçado é que nem pensara em contar para Amy acerca do abraço. E a

colega teria adorado ouvir isso, já que se tratava de Ronny. Acabou achando que não deveria

conversar com o colega a respeito de Paul nem conta a Amy sobre o abraço que Ronny lhe

dera. Na verdade, não era importante.

Quando chegou a hora do almoço, Amy e Selena foram juntas para o refeitório. E Amy

complicou tudo. Contou a Selena que, de manhã, na chegada, ficara conversando com Vicki

no estacionamento e por isso não fora encontrar-se com ela junto ao escaninho.

- Perguntei a Vicki se ela ficara conhecendo um cara chamado Paul, e ela respondeu que

viu um rapaz no pátio jogando futebol com as crianças, mas que não sabia o nome dele.

- Mas você não disse pra ela que eu o conhecia, disse?

- Bom, principiou Amy, e baixou para o chão os grandes olhos castanhos.

- Então disse. O que você contou pra ela?

- Ah, só algumas coisas.

- Aposto que contou tudo, não foi? quis saber Selena.

- Eu e a Vicki somos amigas há muito tempo, explicou Amy. Imediatamente,

procurando defender-se. Ela não vai contar pra ninguém. Pedi a ela pra não contar.
- Amy, que raiva que estou de você!

- Des-cul-pa! pediu a garota num tom bem acentuado.

- Você sabia que o que lhe falei sobre Paul era confidencial, disse Selena, parando junto

à porta do refeitório. Você foi desleal comigo. Não lhe dei permissão para ir contando minha

vida para outros.

Os estudantes iam passando pelas duas e entrando no salão. Selena falava em voz baixa,

para que apenas a amiga escutasse. Amy desviou o olhar, como se fosse uma garotinha que

fizera algo errado e fora descoberta.

Afinal Selena sentiu que se acalmava e concluiu:

- Por favor, Amy, eu só queria que você não saísse contando minha vida pessoal para

outros assim, não. Aquela vez que você percebeu que eu achara que o Ronny me convidara

para ir ao jantar de gala, quando na verdade a Vicki é que o chamara, você falou que sabia

guardar segredo.

- Eu disse isso?

Selena sentiu o sangue fugir-lhe do rosto.

- Você não contou para o Ronny, contou?

A expressão que se estampou no rosto da garota revelou tudo.

- Mas só contei porque ele estava querendo saber o que você sentia por ele, explicou ela.

- Ele mesmo poderia ter me perguntado! exclamou Selena com vigor. Qualquer dia,

qualquer hora! Ele sabe que eu teria respondido com sinceridade!

Parou para recobrar o fôlego, olhando o corredor agora vazio.

- É por isso que você vem insistindo para eu namorar o Ronny? Você disse para ele que

eu gostava dele e agora está querendo comprovar o que afirmou, não é?

- Do jeito que você fala, parece que fiz uma crueldade, defendeu-se Amy.

- Foi uma enorme desconsideração! retrucou Selena. Você falou com outros sobre meus

sentimentos, revelando fatos que lhe relatei confidencialmente.


Selena tinha a sensação de que voltara a ser uma garotinha de doze anos, brigando com

a melhor amiga. Ao pensar nisso, acalmou-se. De certa forma, ela ainda era uma garota de

doze anos no que dizia respeito a rapazes. Não tinha a experiência de Vicki nem estava

ansiosa como Amy. O que a dominava era aquela obsessiva paixãozinha por Paul, um rapaz

mais velho.

- Você tem razão, disse Amy, olhando muito séria para a amiga. Falei demais tanto com

a Vicki como com o Ronny. Sinto muito, muito mesmo. Me desculpe.

Selena soltou um suspiro profundo e disse:

- Aceito suas desculpas. Vamos lá. Vamos almoçar.

Uma virtude de Selena era que sabia ser justa. Desde pequena, aprendera em casa que

podia dizer tudo que pensava, abertamente e com exatidão. Entendera também que, numa

discussão, a atitude mais acertada era a do primeiro que tomasse a decisão de perdoar e

esquecer.

- Passou a raiva? indagou Amy.

- Vai passar, replicou ela. Eu disse que aceito suas desculpas; e aceito mesmo. Não vou

mais brigar com você por causa desse episódio.

- Humm! Que bom! exclamou Amy quando as duas se encaminhavam para a mesa onde

costumavam se sentar.

- Bom? Por quê?

- Foi a primeira vez que alguém me perdoou tão depressa. Na minha casa, pra gente ser

desculpada, tem de lavar o carro da pessoa, ou fazer o bolo predileto dela, para depois ela

começar a pensar se vai nos perdoar ou não.

Selena sorriu. Não era assim que agiam na sua família.

- Podemos sentar com vocês? indagou Selena, parando perto de uma mesa onde já

estavam o Ronny, o Drake e mais quatro estudantes.


Vicki não estava com eles, o que fez com que a garota se sentisse um pouco mais

aliviada. Assim seria menos provável que falassem sobre Paul.

- Você é muito diferente, Selena, comentou Amy.

- Obrigada, creio eu.

- Diferente como? quis saber Drake, jogando na boca um nacho* e limpando os lábios

com um guardanapo, antes que o queijo escorresse pelo queixo e caísse na bandeja.

___________________

* Nacho: uma comida mexicana. Uma espécie de chips feito de milho, que se come com queijo cremoso e

muita pimenta. (N. da T.)

- É isso que tem aí para o almoço? indagou Amy, fugindo à pergunta do rapaz. Nacho?

- Tem sanduíche também, explicou Ronny. Selena lhe contou como foi bom ontem lá na

Highland House?

- Pra falar a verdade, contou sim, respondeu a garota. Parece que havia lá muita gente

interessante.

E ao dizer isso, ela ergueu ligeiramente as sobrancelhas, dando a entender que sabia

mais do que estava revelando. Selena ficou de fôlego suspenso, para ver se ela faria mais

algum comentário sobre Paul.

- Vou buscar um sanduíche pra mim, disse Amy, como que encerrando o assunto.

Alguém quer alguma coisa?

Selena lhe dirigiu um olhar de gratidão por ter limitado seus comentários ao mínimo

possível.

- Ei, Selena, tive uma idéia, disse Ronny. Sexta-feira podemos ir comer uma pizza

depois que sairmos de lá.

- Você quer dizer todos nós? Vicki e Tre também? E talvez algumas das pessoas que

trabalham lá, se puderem vir conosco?

- Ah, principiou o rapaz, parecendo meio surpreso. Claro. Pra mim, está bom.
Selena virou-se para Tre, que estava calado, sentado do outro lado de Drake, e

perguntou:

- Você gostaria de ir a uma pizzaria conosco sexta-feira, depois que terminarmos o

trabalho lá na Highland House?

Tre olhou para ela e fez que sim. Ela tinha certeza de que ele compreendera o que ela

dissera. De qualquer modo, assim, aquela ida à pizzaria não lhe traria mais confusões. A

despeito do que Amy dissera a Ronny, agora o rapaz compreenderia que o que havia entre

eles era apenas amizade, e se Selena aceitava a companhia dele, isso não significava que

estivesse querendo namorá-lo.

A garota se pôs a descascar uma laranja, ouvindo o zunzum do aposento. Procurou

analisar a si mesma para ver se de fato se acalmara depois da discussão com Amy.

Meu coração está em paz contigo, Senhor? pensou, no momento em que colocava na

boca um gomo de laranja e o mastigava, sentindo o doce sabor do suco. Não quero que haja

nada errado nele.

Enbtretanto tinha a sensação de que era tarde demais. Parecia que sua vida estava

começando a ser envolvida por um redemoinho.


Capítulo Quatorze

Na sexta-feira de manhã, Selena levou um tempo para decidir o que iria usar. Levantou-

se cedo para tomar banho e poder escolher com calma a roupa certa. Já estava na terceira,

quando Tânia virou na cama e disse:

- Que foi que houve que você está aí experimentando roupas?

Como a garota ainda tinha tempo, aproximou-se da cama e se sentou com movimentos

leves. Esse tipo de conversa com a irmã era novidade para ela, por isso sentia que precisava ir

com cautela. Estava com muitos pensamentos guardados. Eram coisas que não dissera a Amy,

depois da discussão que tivera com ela, e também não poderia comentar com Ronny.

- Talvez veja o Paul hoje, disse afinal.

Tânia teve uma expressão de interesse e ergueu-se, apoiando-se num dos cotovelos.

- Ah é? indagou.

Sentindo-se estimulada pelo interesse da irmã, Selena resolveu contar tudo.

- Mamãe lhe falou sobre o que aconteceu na Highland House terça-feira?

- Não. Você sabe como mamãe é. Não conta nada a não ser que a gente diga que pode.

A palavra que ela mais fala é “Humm... humm”, concluiu Tânia, dando uma risadinha.

Selena sentiu uma leve irritação ao ver a irmã tão animada e feliz, e isso cedo de manhã,

que antes era a pior hora do dia para Tânia.

Explicou que ela e Ronny estavam realizando um trabalho social, uma tarefa da escola.

Em seguida, foi mais fundo e contou que, na terça-feira, Paul fora ao salão onde ela estava e

lhe falara algo sobre “pródigos”. Ao final do dia, porém, saíra sem voltar a conversar com ela.

Tânia ia ouvindo o relato com bastante atenção.

- Pois é. E pode ser que eu o veja hoje de novo, e estou um pouco nervosa, confessou

Selena. Não, pra falar a verdade, estou petrificada. Nunca passei por isso antes.
- O primeiro passo, disse Tânia, que agora se achava totalmente desperta, é a oração. A

gente sempre tem de orar.

Selena quase caiu na risada.

- Não tenho feito outra coisa. Já faz vários meses que estou orando por Paul. Isto é, não

peço a Deus para encontrá-lo novamente, mas que ele volte a ter uma comunhão profunda

com o Senhor.

- É mesmo? perguntou Tânia, com um leve tom de admiração. Então creio que Deus

está atendendo suas orações, porque nas férias ele vai para a Escócia, para trabalhar numa

missão que foi fundada pelo avô dele.

- Ah, é? disse Selena, sentindo o coração apertar-se. Quando?

- Não sei bem, mas deve ser já, respondeu Tânia, estalando os dedos. A Highland House

é ligada à missão fundada pelo avô deles. Lembro-me de que Jeremy me perguntou se eu já

tinha ouvido falar dela, pois o tio dele é o diretor dessa casa aqui em Portland. Acho até que o

Paul está morando na Highland House. As aulas dele já terminaram, mas ele ainda não tem

dinheiro para ir para San Diego nem para Londres.

Quando ela disse “nem para Londres”, Selena se viu inundada por uma porção de

recordações. No mesmo instante, teve vontade de pegar um avião e viajar para Londres junto

com Paul.

- Sabe o que poderíamos fazer? continuou a irmã. Vou ver com mamãe se podemos

convidar o Paul e o tio dele para virem jantar aqui, antes de eu ir para San Diego e de Paul

viajar para Londres.

Selena adorou a idéia. Antes, porém, que sua imaginação começasse a criar uma

infinidade de sonhos, Tânia ajuntou:

- Lembre-se de uma coisa, Selena, se for para acontecer, acontecerá. Se não for, não

haverá nada.
Tânia era pouco dada a reflexões profundas. Dessa vez, porém, Selena reconheceu que a

irmã tinha razão. Apesar de tudo, essas ligações de sua família com a de Paul eram bastante

interessantes, e lhe traziam muitas esperanças.

- Selena! gritou mamãe do lado de fora da porta, batendo de leve e entrando. Preciso

ficar com o carro hoje, então vou levá-la à escola. Dá para você ficar pronta dentro de uns dez

minutos?

- Dá! respondeu a garota.

Ela deu uma olhada rápida para o relógio que estava sobre a cômoda da irmã e

imediatamente entrou em ação, terminando de aprontar-se. Resolveu usar roupas simples:

uma calça jeam, uma camiseta branca e um coletinho de algodão. Colocou também um

conjunto de pulseiras de couro entrelaçadas com contas e brincos combinando.

Selena chegou na escola à hora certa, mas teve muita dificuldade para se concentrar nos

estudos. Suas emoções estavam bem agitadas. Sentia-se ansiosa para rever Paul, e havia a

possibilidade de ele ir jantar em sua casa. Pensava também nas diversas frases que pretendia

dizer-lhe se o visse hoje. Na noite anterior, antes de pegar no sono, ficara “ensaiando” várias

delas. Planejava conversar sinceramente com ele, sem fazer brincadeiras nem gozar dele.

Tinha mania de agir assim com rapazes; dessa vez, não faria isso. Iria revelar-lhe que orara

por ele durante vários meses. E naquele momento, meio dormindo, meio acordada, imaginara

Paul pegando em sua mão e segurando-a com firmeza.

A garota abanou a cabeça para afastar a lembrança desse sonho. Precisava prestar

atenção ao professor, que dava as últimas instruções sobre o dever de casa. Estava na hora de

guardar os pensamentos acerca de Paul dentro daquela invisível caixinha de sonhos que havia

em seu coração; e deixá-la trancada pelo menos até de tarde.

Na hora do almoço, Ronny encontrou-se com ela perto do escaninho e avisou-lhe que

ele e Tre iriam almoçar no pátio da escola, já que o tempo estava bom. Disse ainda que

precisaria da ajuda dela para preparar a história que iriam contar à tarde. Como Selena havia
se encarregado dessa tarefa sozinha na terça-feira, Ronny e Vicki iriam ficar com a

responsabilidade dessa vez.

Selena foi com os rapazes para o pátio, sentindo que, em parte, estava “fugindo” de

Amy. Sua mente se achava tão ligada em Paul, que tinha receio de se descuidar e contar algo

à amiga.

- Cadê a Vicki? indagou.

- Parece que ela tem outras coisas pra fazer, explicou Ronny, pegando seu violão e

afinando-o. Disse que, de tarde, iria encontrar-se conosco lá.

O rapaz se pôs a dedilhar o instrumento, cantando baixinho os três cânticos que

pretendia ensinar às crianças. Tre acompanhava atentamente cada movimento dele.

- Quer tocar? perguntou Ronny, estendendo o violão para o colega.

Selena ficou emocionada com a atitude do rapaz. Ela praticamente ignorara o outro, mas

Ronny o tratava como amigo, a ponto de lhe oferecer o violão. E ela sabia o quanto o rapaz

era apegado a ele. Certa vez, Ronny o levara à casa de Selena, mas não permitira que Kevin e

Dilton o tocassem.

Com gestos tímidos, Tre pegou o instrumento e se pôs a tocar. Daí a pouco começou a

entoar antigas músicas populares americanas, acompanhando-se com perfeição. Selena e

Ronny o olhavam surpresos.

- Onde aprendeu a tocar assim? indagou Ronny. Você toca muito bem.

- Meu irmão sabe tocar, disse Tre. Ele me ensinou.

Selena se deu conta de que era a primeira vez que ouviu o garoto dizer uma frase

completa. Com isso, deduziu que devia compreender tudo que diziam, mas era tímido demais

para participar da conversa.

Foi bom ela ter percebido esse dado a respeito do colega, pois à tarde, quando foi com

ele e Ronny para a Higland House, estava bem mais à vontade. Além disso, sentiu-se mais
segura para trabalhar nesse projeto em grupo, embora Vicki não tivesse estado presente no

momento em que ensaiaram.

Ronny diminuiu a marcha da camionete perto do portão da casa e estacionou. Quando

saíam do veículo, uns dez ou doze meninos que ali estavam brincando e gritando bastante os

avistaram e vieram correndo para eles. Selena sorriu cumprimentando-os. Todos falavam ao

mesmo tempo. Alguns queriam jogar beisebol. Outros suplicavam que jogassem futebol com

eles. Duas garotinhas se aproximaram correndo e relembraram a Selena que ela havia

prometido fazer trabalhos manuais.

- Primeiro vamos entrar e fazer o cultinho, disse a garota.

Erguendo a cabeça, correu os olhos pela varanda, procurando ver se Paul se achava ali.

- Nós preparamos algo muito legal para vocês hoje, continuou.

- Já sei o que é, disse um garotinho, olhando para Ronny. Você trouxe o violão.

- Isso mesmo, respondeu o rapaz. Querem entrar pra me ouvir tocar?

- Você sabe tocar bem? quis saber outro menino.

- Não tão bem quanto o meu colega Tre, mas toco.

Todas as crianças voltaram a atenção para Tre enquanto subiam a escada da varanda.

- Vamos lá, gente, disse Selena, pondo a mão na maçaneta da porta. Vocês vão ver que

surpresa maravilhosa trouxemos!

Assim que abriu, parou e ficou gelada. Paul e Vicki estavam ali, pertinho um do outro.

A garota tinha o rosto erguido para o rapaz. Paul também a fitava nos olhos e parecia prestes a

acariciar a face dela com a mão direita.


Capítulo Quinze

A meninada entrou fazendo barulho, mas nem Paul nem Vicki se mexeram. As crianças

começaram a rir e a soltar piadinhas.

- Ele vai beijar ela!

- Ui! Namoradinhos!

Selena e os outros ficaram observando. Vicki piscou várias vezes e Paul passou os

dedos de leve sob o olho direito da garota.

- Pronto, disse ele, erguendo o indicador direito para mostrar a ela. Peguei.

- Obrigada! replicou Vicki. Essa minha lente nova fica só saindo do lugar. Não consigo

pegá-la.

Parecia que Paul não a escutava mais. Virara-se para o grupo e a primeira pessoa que

fitou foi Selena.

- Oi! disse ela, falando alto para superar o barulho reinante. As duas amiguinhas já

estavam cada uma agarrada a um braço, puxando-a para o salão, para onde o diretor se dirigia

com o resto das crianças.

- Oi! respondeu Paul.

O rapaz estava usando uma camisa de brim azul-claro e tinha as mangas arregaçadas.

No braço esquerdo, tinha uma correia com tiras de couro trançadas. Em torno da cintura,

estava com um cinto largo, de carpinteiro, com algumas ferramentas.

- Vicki, disse Ronny, passando à frente de Selena e quase acertando-a com o violão.

Você vai nos ajudar a ensinar os cânticos?

A garota estendeu a mão, mostrando a lente “rebelde”. Selena notou que um dos olhos

dela tinha uma cor azul piscina, enquanto o outro exibia a cor verdadeira, cinza claro.

- Vou; assim que colocar a lente, explicou Vicki.


- Que bom que você veio! exclamou Ronny para a colega, que saiu corredor abaixo.

Então vamos logo, concluiu ele para Selena.

As prestimosas acompanhantes da garota prontamente foram seguindo atrás de Ronny,

afastando Selena de Paul. A menorzinha, Ângela, que usava uma franja bem comprida, logo

agarrou o braço direito dela. A outra, Meruka, que estava sem os dentes da frente e era um

pouco mais desinibida, pegou firme o esquerdo. As duas foram puxando-a pelo braço, em

direção ao salão. Quando elas já iam passando pela porta, a garota se virou e deu uma olhada

para Paul. O rapaz permanecera parado no mesmo lugar, junto à porta de entrada, com os

braços cruzados. Tinha no rosto uma expressão de quem estava achando graça em algo.

- Você vai ficar por aqui? indagou ela.

Ela acenou que sim.

- Ótimo! foi a única palavra que lhe veio à mente para dizer.

E com mais um puxão apressado, as garotinhas a arrastaram para o salão.

Ronny estava dizendo às crianças para se sentarem e prestarem atenção. Uma boa parte

obedeceu. Selena também se sentou, com as pernas cruzadas à oriental, tendo de cada lado

uma de suas novas amiguinhas. Em seguida, procurou silenciar a meninada. Enquanto isso,

Ronny tirava o violão da capa e se punha a afiná-lo. A garota notou que Vicki entrou no salão

e ficou em pé a um canto, perto de Tre.

Onde será que o Paul está? pensou Selena. Será que ele também vai vir para cá?

Ronny começou a tocar um cântico típico de escola dominical, que a maioria das

crianças americanas conhece. Entretanto Selena foi a única que cantou com ele. Ao que

parecia, a meninada presente ali nunca o ouvira.

Ronny tocou outras músicas, que tentou ensinar aos meninos. Eles pareciam prestar

mais atenção no rapaz do que tinham prestado em Selena na terça-feira passada.

Contudo Ronny não contou uma história bíblica, preferindofalar de como se tornara

crente. De forma bem resumida, deu seu testemunho pessoal, citando vários versículos da
Bíblia. Disse que desde pequeno ia à igreja, acreditando que iria para o céu quando morresse.

Certo dia, quando estava com oito anos, aconteceu um acidente que mudou tudo. Estava

nadando numa piscina e de repente os cadarços do seu calção de banho se agarraram num

filtro. Ele ficou preso ali uns instantes, lutando para soltá-los, e quase morreu afogado.

Naquele momento pediu a Jesus para perdoar seus pecados e entrar em sua vida, para que ele

pudesse ter certeza de que iria para o céu. Os meninos o ouviam fascinados.

- Aí chegou um anjo e te salvou? perguntou um deles.

- Não, replicou o rapaz, com aquele jeito próprio de sorrir. Consegui tirar o calção e

subi à tona peladão.

A garotada caiu na risada, e foi quase impossível fazer com que voltassem a prestar

atenção em Ronny e na conclusão que ele deu.

- Vocês todos precisam entregar mesmo a vida a Deus, continuou o rapaz, erguendo um

pouco a voz. Deus quer que todos venham a ele. Lembram-se da história do “filho pródigo”?

Selena não tinha muita certeza de que eles o estavam escutando.

- Sssssiu! fez ela. Presta atenção, gente!

Como é que eles vão entender tudo isso? pensou, tentando fazer com que se calassem.

Nem conhecem bem a palavra “pródigo”. Por que não escolhi outra história? Estas crianças

aqui não compreendem esse conceito de um pródigo perder tudo e acabar indo trabalhar

num chiqueiro.

- ‘Tá bom, disse Ronny afinal, num último esforço para reconquistar a atenção dos

garotos. Agora vou orar. Por favor, todos vocês fechem os olhos. Isso mesmo. Vamos

esquecer tudo que está acontecendo ao nosso redor e conversar com Deus.

Sem se preocupar com a bagunça que as crianças faziam, ele fez uma oração fervorosa,

sem pressa, como se estivesse com muito tempo. Selena baixou a cabeça, fechou os olhos e

foi orando silenciosamente junto com ele. Assim que o rapaz terminou, a meninada se

levantou e foi logo se dirigindo para a porta.


- Antes de vocês saírem, disse Ronny em voz alta, queremos dizer-lhes que Deus os

ama, a todos vocês. Ele quer que vocês venham a ele, quer adotá-los em sua família, para que

se tornem filhos dele.

A meninada abriu a porta e saiu correndo.

- Vamos fazer trabalhos manuais! disse Meruka a Selena.

A garotinha sorria, exibindo a falha dos dentes.

- Você prometeu! interveio Ângela.

- ‘Tá bom! concordou Selena, levantando-se e passando um braço em torno de cada

uma das meninas. Mas antes vamos dizer ao Ronny que a palestra dele foi muito boa. Ótima

palestra Ronny!

O rapaz tinha um ar cansado.

- Você acha que alguém prestou atenção?

- Eu prestei! respondeu Meruka.

- Eu também! disse Ângela, batendo nas franjas para afastá-las dos olhos.

- Ótimo! exclamou Ronny, sorrindo para as meninas.

Em seguida, ele tirou o violão da capa e estendeu-o para Ter.

- Tome! disse ele. Toque para eles lá na varanda. Vão ficar encantados!

Tre abriu um sorriso radiante e alegremente aceitou o oferecimento.

- Vamos, disseram as impacientes “artistas” para Selena. Vamos lá!

- Tá bom, 'tá bom! Já estamos indo! falou a garota, conduzindo-as porta a fora.

Assim que se encontraram no corredor, ela olhou para um lado e outro à procura de

Paul.

- Meninas, disse ela em voz suave, sabe aquele moço legal que estava aqui na entrada

um momento atrás?

- O Paul? indagou Meruka.

- É. Vocês o viram por aí?


- Por quê? Você está gostando dele? quis saber a garotinha.

Bem lá no fundo do coração, na caixinha de sonhos de Selena, uma vozinha que mais

parecia um trinado de passarinho respondeu:

Estou! Estou muito apaixonada!

A garota sentiu o rosto avermelhar-se, mas não deu atenção à fala que vinha de seu

coração. Deu uma risadinha suave e disse:

- Não! Claro que não!


Capítulo Dezesseis

E durante meia hora, Selena ficou supervisionando o trabalho dos pequenos artistas, que

agora eram em número de onze. Arranjou vários tipos de projetos: fazer colares de macarrão

ou de contas, figuras de massinha, marionetes, máscaras, etc. As idéias foram só aparecendo,

e ela começou a pensar se a Highland House não gostaria de ter um programa desses nas

férias e se não aceitariam voluntários para trabalhar com as crianças. E pensou também se

Paul iria passar as férias todas fora.

De repente, sentiu um cheiro forte, bem característico. Selena virou-se para a porta e lá

estava Johnny, com um brilho de esperança nos olhos castanhos.

- Você lembra de mim? indagou ele.

- Claro. Você está bom, Johnny?

No rosto do menino, estampou-se uma expressão de satisfação ao ver que ela recordara

seu nome.

- Posso brincar aqui?

- Claro. Fica ali com aqueles garotos, disse Selena, mandando que ele se sentasse junto

com dois meninos que estavam numa mesa fazendo aviõezinhos de papel. Você quer fazer

aviãozinho também ou quer desenhar?

Os outros garotos começaram a brigar pelos pedaços de papel que tinham, dizendo que

eram poucos e não dariam para o Johnny também. Selena ouviu duas meninas que se achavam

numa mesa próxima dizerem:

- Não deixa ele sentar perto de você, não. Ele gosta de ficar chutando a gente.

- É, eu sei. E tem um cheiro ruim também.

- Sai daqui, Johnny! disse um dos meninos.


Selena se deu conta de que estava prendendo o fôlego de novo. Começou a desejar que

houvesse um ventilador na sala. O fedor estava forte demais. Johnny se achava parado entre

as duas mesas, esperando uma definição por parte de Selena.

- Ah, Johnny, sabe o que mais? Você não quer ir lá pra fora jogar futebol com os outros

meninos?

O garoto abanou a cabeça.

- Quero fazer um sapo.

- Um sapo, né? repetiu Selena. Então vamos ver. Você quer fazer um sapo.

Correu os olhos pelo aposento rapidamente. A porta e as duas janelas já estavam

abertas. Não dava para arranja mais ventilação do que já havia nela.

- Ô gente, disse afinal, vamos lá para a varanda? A tarde está ótima. Podemos levar tudo

para lá. Cada um pegue alguma coisa e vamos.

As crianças se mostraram ligeiramente relutantes em relação à sugestão dela. Algumas

simplesmente desistiram de continuar fazendo trabalhos manuais. Quando, por fim, ela

conseguiu reorganizar todas na varanda, só haviam ficado sete e mais o Johnny.

Contudo Selena sentiu que fizera bem em levar a turminha para a varanda. Ela era bem

ampla. Além disso, ali soprava uma brisa calma que trazia o doce perfume de madressilvas,

muito agradável, apesar de chegar misturado ao odor da fumaça dos ônibus que passavam na

rua. Dali Selena avistava a porta da cozinha, junto à qual já se formava uma longa fila. A

garota se lembrou de que ouvira dizer que eles serviam jantar pra cerca de cento e cinqüenta

pessoas, todas as noites. Soubera também que tinham espaço para dar abrigo noturno a oitenta

e cinco moradores de rua. Os homens dormiam no barrcão, e as mulheres e crianças, no

segundo andar da Higland House.

Selena ficou admirada de ver quanta gente aparecia ali todas as noites, surgindo como

que do nada. De onde será que vinham? Como acabavam indo parar ali? Cada um deles devia

ter sua própria história para contar.


- Hohnny, disse ela, espalhando no chão os artigos com que as crianças iriam trabalhar,

quantos anos você tem?

- Ele tem cinco, respondeu uma menina. Sou mais velha que ele.

- Onde você morava antes de vir para cá? indagou ela.

- Não sei, replicou o menino, sentando-se perto dela e estendendo o braço para pegar

um lápis crayon verde.

- O pessoal aqui da Highland House já conseguiu arranjar trabalho para sua mãe?

- Não sei onde minha mãe está, explicou o garoto. Ela foi embora quando eu era neném.

Eu moro é com meu tio.

Selena percebeu que não estava conseguindo mais prender o fôlego. Além disso, sentia

o coração condoer-se de pena daquele garotinho.

- Vamos lá, Johnny. Vamos ver se conseguimos fazer um sapo.

Naquele momento, Selena sentiu todo o impacto da realidade da vida daquelas crianças.

Elas viviam em condições difíceis e não eram as culpadas por isso. Tinham problemas que

não poderiam ser resolvidos da noite para o dia. Aquelas quatro horas de serviço que seu

grupo iria prestar ali, dando um pouco de atenção àqueles meninos, não seriam suficientes

para mudar a situação. Selena sentiu-se profundamente ligada com eles. Compreendeu que,

naquele instante, ela se encontrava exatamente onde Deus queria que estivesse, cumprindo a

missão para a qual o Senhor a criara - fazendo um sapo para o Johnny.

- Temos de fazer uns olhos bem grandes para ele, disse a garota, pegando a tesoura. E

vamos arranjar umas patinhas compridas também. Sabia que foi Deus quem criou os sapos?

- Eu sei uma história sobre um príncipe encantado, interveio Ângela. Ele virou sapo e a

princesa teve de beijá-lo para que ele virasse príncipe de novo.

- Isso mesmo, concordou Selena sorrindo. É uma historinha muito bonita, né?

- Ééékkk! Eu nunca beijaria um sapo, comentou Meruka em voz alta, a ponta da língua

aparecendo no ponto onde lhe faltavam dentes.


- Tem gente que come sapo, informou um garotinho.

- Eu não como, não, disse uma garota. Prefiro beijar.

- Tome, Johnny, falou Selena, estendendo-lhe os olhos que recortara. Já quer colar os

olhos?

- Você já beijou sapo, Donassalena?

- Donassalena?

- Como é que você chama mesmo?

- Ah, Dona Selena, repetiu a moça com um sorriso. Pode me chamar só de Selena.

- Você já beijou sapo, Selena?

A verdade era que, apesar de ter dezesseis anos, Selena não tinha beijado ninguém -

nem sapo, nem príncipe.

- Não, respondeu, não beijei nenhum sapo.

As meninas deram risadinhas. De repente, ouviram passadas pesadas no telhado. Selena

ergueu os olhos e só então notou que havia uma escada encostada à parede da frente da casa.

Alguém estava descendo por ela. Primeiro apareceram umas botas enormes. Todas as crianças

ficaram a observar e viram as pernas da calça jeans. Depois um cinto de carpinteiro e em

seguida uma camisa de brim.

Selena engoliu em seco. Paul estivera em cima do telhado o tempo todo. Devia ter

escutado os comentários que ela fizera. Chegando embaixo, ele pegou a escada e, com um

gesto lento, levantou a cabeça e olhou-a. Deu um sorriso cativante para ela. Fitou-a direto nos

olhos e disse algo antes de sair carregando a escada:

- Croc! Croc! fez ele, imitando o coaxar de um sapo.


Capítulo Dezessete

Uma nova história começou a se formar na imaginação de Selena - uma história antiga,

mas ao mesmo tempo novinha em folha. Será que Paul quisera dizer que ele era um príncipe

disfarçado? Isso ela já havia percebido.

Cerca de uma semana atrás, ela se vira como uma pessoa perigosa e impulsiva - o que a

deixara bastante incomodada. Agora achava-se determinada e prestativa. Naquele mometo

teve certeza de que Paul tinha certo interesse por ela. Se não fosse mais nada, pelo menos

curiosidade ele tinha. Isso veio confirmar aquele seu devaneio de que entre ela e o rapaz

existia uma forte atração, se é que não era apenas uma impressão sua.

Cantarolando baixinho, ela continuou ajudando as crianças a completar seus trabalhos

manuais. O sapo do Johnny acabou ficando meio desproporcional e com aparência estranha.

Contudo, para o garoto, isso não importava. Saiu mostrando-o para todo mundo, dizendo,

todo orgulhoso, que Selena o ajudara a fazê-lo.

As crianças começaram a sair, e Selena recolheu todos os crayons e papéis picados

espalhados pelo chão. De instante a instante, dava uma olhada ao redor para ver se avistava

Paul. Dessa vez, não queria perdê-lo de vista.

O diretor veio até a varanda e apertou-lhe a mão, agradecendo-lhe pelo trabalho

realizado. Selena chamou-o para um lado, afastando-se de três crianças que ainda se achavam

por ali desenhando, e perguntou se poderia continuar indo à Highland House para trabalhar

como voluntária.

- Claro, replicou o Sr. Mackenzie. Nós gostaríamos muito. Você deve ter visto o quanto

precisamos de gente trabalhando aqui. Meu sobrinho tem uma ótima impressão de você.

Paul me elogiou?

- Também tenho uma ótima impressão dele! explicou Selena. E do Jeremy. A Tânia,

namorada dele, é minha irmã.


- Ah é! exclamou o Sr. Mackenzie, com um jeito muito educado e cativante. Sua irmã

também está aqui?

- Não. Mas queremos muito convidar o senhor e o Paul para virem jantar conosco um

dia desses, antes da viagem do Paul para a Escócia.

- Ah, ele lhe contou que vai pra lá?

- Não, foi Tânia quem me contou.

- Então temos de marcar para um dia qualquer da semana que vem, pois o Paul viaja

daqui a nove dias. Sabia disso?

Selena teve a sensação de haver recebido um murro na boca do estômago.

- Não. Não sabia que a viagem dele era pra agora, disse a garota, pigarreando em

seguida. Minha mãe disse que ligaria para o senhor para marcar. Mas tenho certeza de que

poderemos combinar a visita para antes de ele viajar.

- Ótimo! Estou encantado de conhecê-la, Selena. Pode vir aqui sempre que quiser.

Ficaremos muito agradecidos com qualquer ajuda que você puder nos dar.

A garota acabou de recolher os papéis picados. A maioria das crianças já havia saído.

Restavam ali apenas suas duas fiéis companheirinhas, Meruka e Ângela, que agora estavam

ajudando-a a arrumar as coisas. Com essa novidade a respeito de Paul fervilhando-lhe a

mente, Selena não conseguia se concentrar em mais nada.

- Você vem amanhã? quis saber Meruka.

- O quê? Ah, não. Amanhã, não. Vou vir aqui num outro dia. Aí vamos fazer mais

trabalhos manuais, o.k.?

- Você conta outra história com as figuras? indagou Ângela.

- É, talvez. Você gosta?

A garotinha fitou-a com um olhar cheio de inocência e acenou que sim.

- Selena! gritou Ronny do pátio. Já está na hora de ir embora! Está pronta?

- Não! respondeu ela meio aflita.


Ainda não havia conversado com Paul.

- Tenho de guardar estes negócios aqui, continuou a garota. Vou demorar uns

minutinhos.

- 'Tá bom. Vamos ficar esperando.

Selena pegou os últimos pedacinhos de papel picado e correu para dentro do prédio.

Guardou o material no armário, deu uma ajeitada no cômodo e partiu à procura de Paul. Não o

encontrou em parte alguma.

Ele disse que estaria por aí. E o que foi mesmo que ele falou na terça-feira quando

pegou no meu braço? Foi algo sobre conversarmos.

Deu uma última espiada no salão e afinal desistiu de procurá-lo. Para que ela o visse

hoje - ou em qualquer outra ocasião - seria preciso que acontecesse uma “coisa de Deus”.

Triste e decepcionada, Selena dirigiu-se para a camionete de Ronny em passadas largas.

Sentou-se ao lado de Tre e manteve-se em silêncio no trajeto até a pizzaria. E durante todo o

tempo em que jantavam, ela se sentiu envolta numa nuvem de tristeza.

Paul iria viajar daí a uma semana. Como era possível que tivessem conseguido se

encontrar e ficar tantas horas próximos um do outro, mas ao mesmo tempo tão distantes?

Ronny conseguiu que Tre se abrisse um pouco e falasse sobre sua família e sobre o seu

gosto por música. Selena comeu apenas uma fatia de pizza e ficou pensando se sua mãe já

tinha ligado para o tio de Paul, marcando uma data para virem jantar. Ronny foi levá-la em

casa. Assim que chegaram, ela saiu correndo do carro, ansiosa para entrar e conversar com a

mãe.

- Espere aí! gritou Ronny, seguindo-a até a escadinha da entrada.

Ela se esquecera de que o rapaz geralmente ficava na casa dela às sextas-feiras. E eram

apenas 20:30h. Era claro que ele queria entrar. Contudo isso não significava que ela teria de

ficar dando atenção para ele o tempo todo.


- Acho que os meninos estão lá na saleta, informou Selena para Ronny assim que

entraram.

O pensamento da garota era ir procurar a mãe e começar a fazer os planos para o jantar

com Paul e o tio.

- Ei! disse Ronny no momento em que subiam a escada. Não vim aqui para conversar

com seus irmãos.

Selena parou e fitou o colega. Ele estava com a cabeça ligeiramente inclinada e tinha

uma interrogação no olhar. Com um gesto lento, ele levou a mão ao cabelo comprido, muito

liso, e jogou-o para trás.

- Eu queria conversar um pouco com você, falou.

- Agora? indagou Selena.

De repente, ela se deu conta de que estava sendo muito mal-educada. Ronny sempre

tivera paciência para ouvir os desabafos dela. Será que seria assim tão difícil para ela fazer o

mesmo com ele?

- Quero dizer, corrigiu-se ela, pode esperar um pouquinho?

- Claro, replicou o rapaz, dando seu sorriso meio torto. Vou esperar na saleta.

- Obrigada! disse Selena.

E em seguida, subiu o resto da escada de dois em dois degraus. Foi encontrar a mãe no

quarto de Vó May. As duas estavam jogando Scrabble*

___________________

* Scrabble - um joguinho que consta de se formar palavras com letras gravadas em pequenos blocos de

madeira. (N. daT.)

- Mãe, foi dizendo Selena quase sem fôlego, a senhora está sabendo daquela nossa idéia

de convidar o Paul e o Sr. Mackenzie para jantar, não está? O Paul vai viajar daqui a uma

semana. Se formos convidá-los, então terá de ser amanhã à noite, porque na semana que vem

tenho provas finais todos os dias.


- Calma, queridinha! interveio Vó May. Respira um pouco!

- Liguei pra ele mais ou menos uma hora atrás, explicou mamãe. Marcamos para a

próxima sexta-feira à noite.

Selena sentou-se na beirada da cama de Vó May.

- Na próxima sexta-feira. É daqui a uma semana. Só vou vê-lo na véspera da viagem

dele. Tenho de arranjar um jeito. Preciso fazer alguma coisa. Tenho de descobrir um modo

de dizer ao Paul que tenho orado por ele, de revelar-lhe o que sinto por ele.

- Me ajuda aqui, queridinha, pediu Vó May. Estou com um j e não sei onde colocá-lo.

Selena foi para perto da avó, postando-se atrás dela. Ficou examinando as letras de que

ela dispunha, pensando nas palavras que poderia formar. Não havia como usar aquele j, mas a

garota conseguiu formar uma palavrinha com outras três letras, e livrou-se delas. Como Vó

May agora tinha a ajuda da neta, o joguinho ficou mais ágil e emocionante também. É que

mamãe, a campeã da família, agora encontrara uma oposição forte.

Cerca de quarenta minutos depois, elas fizeram a contagem final. A mãe venceu com

sete pontos de vantagem.

- Acho que tenho de ir lá ver os meninos, disse mamãe. Já passou da hora de eles irem

para a cama.

Ao pensar nos irmãos assistindo à televisão na saleta, Selena de repente, se lembrou de

Ronny.

- Ah, não! exclamou, levantando-se de um salto e descendo as escadas correndo.

Entrou na sala intempestivamente, mas encontrou ali apenas o pai e seus irmãos, atentos

a uma fita de vídeo a que estavam acabando de assistir.

- Cadê o Ronny?

- Foi embora agorinha mesmo, explicou papai. Algum problema?

- Espero que não, falou Selena, saindo rapidamente.


Dirigiu-se para a entrada da casa e ficou a olhar a rua, a ver se ainda avistava a

camionete do colega. Já devia estar longe. A garota ergueu a cabeça para o céu e sussurrou:

- Me perdoe!

Ela ficara tão chateada de Paul ter sumido e de não ter podido conversar com ele, mas

agora fizera o mesmo com o Ronny. Seu colega dissera que queria bater um papo com ela.

Ocorreu-lhe então que talvez fosse só ela quem estivesse com vontade de conversar com

Paul. Ele mesmo não tinha interesse em falar-lhe. Era possível até que ele a visse da mesma

forma que ela via o Ronny - uma pessoa agradável, mas incômoda. E em meio ao silêncio da

noite escura e vazia, ela deixou que as lágrimas escorressem, lágrimas que brotavam do fundo

de seu ser.
Capítulo Dezoito

- Minha vida está se desmoronando! disse Amy para Selena, ao telefone, no dia

seguinte.

Selena se aprontava para ir trabalhar e não estava em condições de sentir muita pena da

colega. Na noite anterior, suas emoções tinham estado agitadas pelo fato de não ter

conseguido conversar com Paul e de ter se esquecido de Ronny. Por isso, passara a noite toda

virando e revirando na cama. Não estava de muito bom humor.

- Não vamos poder fazer o nosso jantar hoje, continuou Ainy, porque minha irmã está

muito gripada. Mamãe acha que não é legal a gente convidar os outros para virem à nossa

casa quando tem alguém doente.

- Sua mãe tem razão, concordou Selena, estremecendo só de pensar na possibilidade de

pegar gripe. A semana que vem vai ser muito cheia pra nós, Amy. Talvez seja melhor

esperarmos as aulas terminarem.

- É, acho que vamos ter de esperar. Vou ligar para o Drake e dizer-lhe tudo. Espero que

ele então sugira que saiamos para jantar fora.

- Para mim, está ótimo, replicou Selena.

Estava com um pouco de sentimento de culpa por ter ficado muito calada no dia

anterior, na pizzaria. Fora ela própria quem insistira para que convidassem o Tre. Depois,

porém, ficara por demais absorta em seus pensamentos e não conversara muito. Seria bom se

pudesse ver o Ronny essa noite e acertar tudo com ele. Com relação ao Paul, não poderia

fazer nada, a não ser esperar até sexta-feira, no jantar. Por outro lado, poderia também tentar

ir vê-lo lá na Highland House. Contudo ali não era um bom lugar para conversarem. Então

decidiu que iria pedir desculpas ao Ronny e, assim, poderia sentir-se melhor pelo menos no

que dizia respeito a ele.


Durante o dia inteiro, no trabalho, teve dor de cabeça. Achou que fora causada pela

noite mal dormida, somada à preocupação com as provas finais. Havia também a ansiedade

que vinha abrigando depois que se reencontrara com Paul. Além disso, de manhão comera

apenas uma banana já um pouco passada. Nem os pãezinhos de canela do tabuleiro de “oferta

queimada” haviam melhorado a situação. Jody ofereceu-lhe uns tabletes de vitamina B e de

ginseng. Selena até pensou em tomá-los, mas reconhecia que não se sentia bem. Era provável

que o remédio nem parasse no estômago.

Assim que deu 16:00h no relógio da “barriga” da figura do urso, ela saiu e foi para casa.

Que alívio pensar que poderia ir embora direto, já que haviam adiado o jantar da Amy.

Nenhum de seus amigos ligara para ela no serviço. Portanto não sabia se estavam planejando

algum programa. Se estivessem, ela recusaria. O que ela mais queria naquele momento era

tomar um banho quente, comer algo e cair na cama.

Entretanto, assim que virou a esquina de sua casa, viu a camionete de Ronny parada em

frente e sentiu um aperto no coração. Na carroceria do veículo, estava o enorme cortador de

grama do colega. Avistou o rapaz no jardim, conversando com o pai dela. Ainda usava as

roupas de trabalho e tinha na cabeça um boné com a aba virada para trás. Ambos escutaram o

barulho do motor diesel do fusca e se voltaram para olhá-la. Os dois sorriram e lhe fizeram

um aceno.

A vontade de Selena era de “evaporar” para não precisar passar pela humilhação de

pedir desculpas ao Ronny. Sabia que ele iria compreender perfeitamente o fato de ela tê-lo

abandonado no dia anterior. Era muito compreensivo. Só que ela detestava a idéia de ter de

reconhecer que esquecera dele completamente.

- Oi! gritou ela, batendo a porta do carro e esforçando-se para dar um sorriso alegre.

- Ei! falou o pai, notando que ela não trazia o costumeiro saquinho branco da loja. Hoje

não sobraram pãezinhos para nós?


- Ah, ainda não contei? A D. Amélia resolveu doar tudo que sobrasse para a Highland

House.

- Ótimo. Eles precisam mais do que nós, comentou o pai, batendo de leve na própria

barriga. Bom, gente, tenho de fazer uns serviços lá no fundo. Dá licença, Ronny. Te vejo

depois.

- Tchau, respondeu o rapaz e, virando-se para a colega, continuou: Você está bem?

Ele estava engraçadinho com aquele boné virado e as pontas do cabelo louro, meio

assanhado, aparecendo abaixo dele, Cheirava a grama aparada, e a calça dava a impressão de

que levara um belo tombo.

- Estou. Ronny, quero lhe pedir desculpas pelo que fiz ontem à noite.

Ele não interrompeu sua difícil confissão, mas deixou que prosseguisse.

- Nem sei o que dizer. Minha intenção era conversar com minha mãe e descer

imediatamente. Mas aí comecei a ajudar Vó May no joguinho dela e acabei nem vendo o

tempo passar.

Em vez de dar aquele sorriso típico, sempre cordial, Ronny continuou sério. Selena

percebeu uma leve expressão de mágoa em seu olhar.

- Imaginei que devia ser algo de muito importante, disse o rapaz, com um tom

ligeiramente mordaz. Olhe aqui, Selena, se você não que eu venha à sua casa, é só dizer.

Achei que estávamos nos tornando mais amigos, mais chegados um ao outro. Agora não sei o

que está acontecendo. Se estou lhe incomodando, por favor, prefiro que diga.

- Não, você não me incomoda, não, Ronny. De modo nenhum. Nem pensei nisso. A

questão é que...

Ela não sabia ao certo como poderia falar-lhe sobre os sentimentos fortes que nutria

com relação a Paul. E talvez ele até compreedesse. Ronny era uma pessoa que sabia escutar os

outros e guardar segredo, melhor até do que Amy. Mesmo assim, era estranho dizer a um

rapaz que a gente gosta de outro.


- Que o quê? indagou ele, mudando o peso do corpo de um pé para outro.

- Tem acontecido muita coisa nos últimos dias. Sei que tenho tido umas atitudes

estranhas. Por favor, não veja isso como uma mudança no nosso relacionamento. Preciso que

você tenha paciência comigo mais esta semana e uns dias.

O rapaz ficou uns instantes calado como que procurando absorver o que ela dissera.

- É, dá pra ter, disse ele afinal.

- Ótimo! exclamou Selena aliviada e sorrindo para ele. Muito obrigada!

- Parece que nosso jantar na casa da Amy foi cancelado, né? comentou Ronny. Vim

aqui para ver se você queria fazer alguma outra coisa.

De repente, Selena teve uma sensação cálida e suave no coração. Na verdade, ele estava

convidando-a para saírem. Que gentileza!

- Meu plano era vir pra casa e descansar, replicou ela. Estou muito cansada e ainda

tenho de digitar meu relatório sobre nosso trabalho na Highland House. Se quiser ficar aqui

para jantar, acho que está bem para meus pais.

Ronny pensou um pouco, parecendo avaliar as opções que dispunha.

- Acho que vou seguir seu belo exemplo, disse o rapaz, agora com seu sorriso

característico de volta ao rosto. O melhor que tenho a fazer é ir pra casa e terminar meu

relatório também. Talvez possamos combinar algum programa para o próximo final de

semana, só nós dois, depois de passada essa agitação das provas finais. Que tal sexta-feira?

- Claro! disse Selena prontamente.

Era agradável perceber que tudo estava resolvido entre ela e o colega. Ele se virou para

ir embora e foi aí que a garota se lembrou de que Paul e o tio viriam jantar na sexta-feira.

- Ah, sexta-feira talvez eu não possa. Vamos ter visita aqui para jantar. Mas podemos

sair no sábado, não podemos?


- Então sábado, repetiu Ronny em tom firme, parecendo pregar uma taxinha nas

palavras de Selena para afixá-las em algum lugar. Creio que no sábado à noite tem um show

de um conjunto gospel.

- Beleza! exclamou Selena. Acho que vai ser ótimo! Então te vejo na segunda-feira.

Em seguida, ela fez um aceno de despedida e caminhou direto para a banheira.

Selena só viu Ronny na segunda-feira, pouco antes de apresentarem o relatório do

trabalho perante a classe.

- Você fala primeiro, disse-lhe o rapaz e concluiu brincando: Deixemos o melhor para o

fim.

Selena foi à frente e deu seu relatório sem qualquer acanhamento. Não se sentia

constrangida de falar em público, como ocorria com alguns de seus colegas. No final, fez o

seginte comentário:

“Para mim, o melhor que aconteceu nesse trabalho na Higland House foi que descobri

que podemos fazer muitas coisas para cumprir o mandamento de Cristo, que encontramos em

Lucas 6:31.”

Olhou para a folha de papel e leu:

“Como vocês querem que os outros lhes façam, façam também vocês a eles."

A seguir, encarando a classe, Selena continuou:

“Existem muitos necessitados por aí, e podemos socorrê-los de várias maneiras, seja

distribuindo alimentos ou dando-lhes um pouco de nosso tempo. Eu pretendo continuar

realizando esse trabalho voluntário na Highland House. E para encerrar, quero citar o texto de

Mateus 25.37-40: ‘Então, perguntarão os justos: Senhor, quando foi que te vimos com fome e

te demos de comer? Ou com sede e te demos de beber? E quando te vimos forasteiro e te

hospedamos? Ou nu e te vestimos? E quando te vimos enfermo ou preso e te fomos visitar? O

Rei, respondendo, lhes dirá: Em verdade vos afirmo que, sempre que o fizestes a um destes

meus pequeninos irmãos, a mim o fizestes.’”


Selena iniciara seu relatório falando a respeito de Johnny e do sapo de papel. Então

encerrou com as seguintes palavras:

“Talvez possamos dizer que o Johnny é um desses ‘pequeninos irmãos’. Então aprendi

que ajudando a esse garoto, estou servindo a Cristo.”

Em seguida, ela se dirigiu para sua carteira, mas antes mesmo que se sentasse a turma se

pôs a aplaudi-la. Ronny se levantou batendo palmas e assobiando. Selena se virou para ele e

fez um gesto com a mão para que se sentasse e parasse com aquele barulho. Interiormente,

porém, tinha de reconhecer que gostava do jeito como ele brincava com ela.

- Excelente apresentação, Selena, disse o professor Rykert, caminhando para a frente.

Agora vamos ouvir o relatório do Tre, continuou ele, fazendo um aceno de cabeça para o

rapaz, indicando-lhe que fosse à frente.

Selena teve pena do colega. Ele estava suando e dava a impressão de que preferia levar

uma surra a ir falar diante da classe.

- Fui trabalhar na Highland House, principiou o rapaz, tremendo e engolindo em seco.

Ajudei no trabalho com as crianças e toquei violão. E ouvi a história do “filho pródigo”.

Ele demonstrou certa dificuldade para pronunciar a palavra “pródigo”, e mais uma vez

Selena desejou ter escolhido outra história. Tinha certeza de que as crianças não a haviam

compreendido bem.

- Eu entendi muito bem a questão dos porcos, falou Ter.

Uma onda de risadinhas varreu a classe.

- Não quero levar esse tipo de vida, continuou o rapaz. Então lá, naquela hora, tomei a

decisão de voltar para o Deus Pai que está me esperando.

A turma ficou em profundo silêncio. Todos procuiavam assimilar corretamente o que

ele dizia. O Prof. Rykert aproximou-se do aluno e disse:

- Você está querendo dizer que tomou a decisão de entregar sua vida a Deus?

Ele acenou que sim e desfez a tensão que estampava no rosto ao dizer:
- Meus amigos me mostraram Jesus.

E aqui ele olhou para Selena e em seguida para Ronny e acrescentou:

- Também quero conhecer Jesus.

A garota virou a cabeça para fitar Ronny. Seu colega estava boquiaberto, os olhos meio

fechados, numa expressão de surpresa. Voltando-se para a frente, para o Tre, Selena sentiu

lágrimas brotando em seus olhos e quase a escorrer-lhe pelo rosto.

Então o Tre se tornou crente? Ele compreendeu a história do “filho pródigo” e

daqueles porcos? Não acredito! Que maravilhosa “coisa de Deus”!

O Prof. Rykert parecia estar emocionado e sem fala. Chegou perto do aluno e pôs a mão

no ombro dele.

- Quero orar por você, Tre, disse.

E a seguir, orou. Fez uma oração profunda, significativa, na qual agradeceu a Deus pelo

acontecido.

Antes que ele terminasse, a campainha tocou, sinalizando o final da aula. Todos

aguardaram em silêncio. O Prof. Rykert disse “Amém”. Muitos dos alunos, em vez de sair da

sala, foram à frente cumprimentar o Tre. O rapaz parecia meio surpreso, sem entender bem

toda aquela atenção que recebia.

- Salva pelo gongo! exclamou Vicki quando saía em companhia de Amy e Selena. Eu

teria de fazer minha apresentação depois do Tre. Mas nada que eu dissesse depois daquilo

pareceria interessante.

- Ele não falou aquilo para tirar boa nota, interveio Amy.

- Sei disso, replicou Vicki. Calma, eu estava só fazendo uma piadinha.

Em seguida, ela se virou para Selena:

- Você e o Ronny vão ao concerto do Trio Sierra, no sábado?

- Concerto de quem? indagou Amy. Selena vai num concerto no sábado?

- É de um grupo feminino, o Trio Sierra. Não conhece?


- Não.

- Nem eu, interveio Selena. Humm, vai ser ótimo! Agora quero ir mesmo. Ronny

comentou algo comigo sobre esse grupo. E agora quero ir, mesmo que ele não queira mais.

Quer ir conosco, Amy?

- Devo começar a trabalhar no restaurante de meu tio neste sábado, explicou a garota. E

como fica o nosso jantar, Selena? Indagou ela fazendo beicinho. Não íamos adiá-lo por uma

semana?

- Vamos deixá-lo pra daqui a duas semanas. Quero muito ir a esse concerto.

- Tenho alguns ingressos a mais, disse Vicki, e se você quiser, posso passá-los pra você.

Vou com o Mike, e se você e Ronny desejarem, podemos ir os quatro juntos.

Nesse momento, Selena se deu conta de que os outros viam a ela e ao Ronny como

namorados, e não apenas como amigos. E não tinha bem certeza do que ela própria achava

disso.
Capítulo Dezenove

Mamãe fez carne assada com batatas para o jantar de sexta-feira. E a casa ficou

inundada pelo aroma agradável da comida. Iria servir também vagem, salada e pão feito em

casa. De sobremesa, teriam torta de maçã com sorvete de creme. Na opinião de Selena, o

cardápio era perfeito.

Por volta de 17:30h, a garota ainda não decidira o que iria vestir. Essa talvez fosse a

ocasião em que a escolha do vestuário era a mais difícil pra ela. E pela primeira vez na vida,

parecia que Tânia estava entendendo o problema.

- Acho que você deveria usar aquela saia com o coletinho bordado, disse a irmã. É um

conjunto legal, que combina com sua personalidade.

- Será? falou Selena, examinando as outras cinco opções que colocara sobre a cama. Eu

estava com essa roupa no dia em que ele me viu, na chuva, carregando os lírios. Estava

completamente ensopada.

- Ah, é por isso que o Jeremy diz que o Paul a chama de “princesa dos lírios”?

Selena fez que sim, recordando-se da carta gozadora que Paul lhe escrevera mais tarde,

referindo-se àquela situação humilhante.

- Será que este vestido aqui não seria melhor? indagou, pegando um longo cor de creme,

no estilo camponesa. E meus colares.

Tânia abanou a cabeça.

- Você fica melhor com algo de cor forte perto do rosto, disse. Este vestido parece mais

uma camisola. Confie em mim. A saia com o coletinho fica melhor. E pode usar os colares

também.

Selena concordou afinal. Sua irmã tinha razão. Na verdade, aquele era o conjunto de

que mais gostava. Tânia usava uma saia azul claro e um blusão, com os quais já fora trabalhar

pela manhã. Hoje fora seu último dia na loja. Seu pedido de transferência para a Nordstrom de
San Diego fora aprovado, e ela estaria mudando-se para lá dentro de uma semana, no mais

tardar, duas. E o mais estranho em tudo isso era que, justamente agora, as duas estavam

começando a apreciar mais a companhia uma da outra. Tânia até convidara a irmã para fazer

com ela a viagem de carro para a Califórnia e depois voltar de avião. Selena ainda não

decidira se iria ou não. Queria deixar passar primeiro as provas finais e esse jantar com o

Paul.

Agora, finalmente, a sexta-feira chegara. Não havia mais trabalhos nem relatórios para

entregar. Só lhe faltava fazer mais uma prova final na semana seguinte e as aulas terminariam.

O importante, porém, era que daí a alguns minutos Paul chegaria em sua casa, e ela poderia

fitá-lo bem nos olhos. Iria dar um jeito de arranjar uma conversa em particular, para dizer-lhe

o quanto gostava dele. Diria que havia orado por ele fervorosamente e depois...

Selena não sabia o que aconteceria depois. Talvez eles pudessem se corresponder

durante as férias. Era possível até que dessem alguns interurbanos. E quando ele regressasse,

ela já teria quase dezessete anos e iria iniciar o último ano do segundo grau. Aí Paul já não a

acharia tão nova.

Enfiou no braço a última pulseira, jogou o cabelo para trás e deu mais uma olhada no

velho espelho oval sobre a cômoda. Queria ver se não havia borrado a maquiagem que Tânia

fizera com tanta habilidade. Notou que o rímel estava bem discreto. Antes disso, ela só

deixara a irmã maquiá-la uma vez. Fora no primeiro dia em que Ronny viera à sua casa.

Mesmo naquela ocasião, naquele seu “primeiro encontro”, ela estivera pensando em Paul,

querendo que o visitante daquela noite fosse ele, e não seu colega. E agora esse desejo se

realizava.

Descendo a escada em passos leves em direção à cozinha, Selena sorria consigo mesma.

Sentia-se radiante de felicidade. Engraçado como agora compreendia bem a empolgação que

Tânia demonstrava por Jeremy. E pelo fato de Paul e Jeremy serem irmãos, a situação se

tornava ainda mais interessante. Agora as duas tinham mais pontos em comum.
No momento em que descia o último degrau, a campainha da porta tocou. Selena correu

para atender, mas antes de abri-la, fechou os olhos e respirou fundo.

- Ronny! exclamou surpresa.

- Ei! Você está bonita! disse o rapaz.

De repente, o rapaz se lembrou e bateu a palma da mão na testa.

- Ah, é! Vocês vão ter visitas hoje, né?

Nesse momento, um carro parou do outro lado da rua. Selena mordeu o lábio inferior e

tentou pensar bem rapidinho em algo para dizer.

- São eles? indagou Ronny, olhando para o cara que saíra do carro.

O rapaz vestia calça jeans e camisa branca de manga comprida. Seu cabelo castanho,

anelado, estava penteado para trás.Trazia nas mãos um pequeno buquê de lírios amarelos.

Selena achou que seu coração iria saltar para fora do peito e descer a escadinha da entrada

correndo para cumprimentá-lo.

- Ei, é o Paul! É ele a visita? disse Ronny, com uma expressão de mágoa no olhar.

- Paul e o Sr. Mackenzie, o tio dele, respondeu Selena prontamente. O namorado da

Tânia é irmão do Paul.

- Ah, é? Não sabia. Oi, Paul! exclamou Ronny, saudando-o com um forte aperto de

mãos. Como vão as coisas?

Em seguida, dando uma olhada para os lados, indagou:

- O seu tio não veio?

- Ele mandou pedir desculpa, explicou educadamente Paul, fitando Selena. Tinha pouca

gente lá na Highland House para ajudar a servir o jantar e ele teve de ficar. Espero que não

achem ruim por eu ter vindo assim mesmo.

- Claro que não! disse Selena, olhando para as flores.

- Trouxe para Vó May, explicou o rapaz, estendendo-lhe o buquê.

- Naturalmente, disse a garota. Entre.


Selena pegou os lírios e abriu a porta para Paul. Ronny também entrou. A garota

engoliu em seco sem saber direito como agir. Se seu colega ficasse ali para jantar, a noite não

seria mais como ela tanto sonhara. E obviamente a mãe o convidaria para ficar, já que o Sr.

Mackenzie não viera.

Selena pensou na hipótese de chamá-lo à saleta e lhe falar sobre suas expectativas e

anseios com relação àquele jantar. Certamente ele compreenderia que aquela noite era muito

importante para ela e, com um gesto simpático, iria embora. Ronny faria isso por ela. Tinha

certeza de que ele faria. Agora teria apenas de descobrir um meio de explicar-lhe tudo sem

ferir seus sentimentos. Parecia que ultimamente ele estava muito sensível.

- Então tinha pouca gente, comentou Ronny. Eu poderia ir lá ajudar. Acha que, se eu

fosse lá, seu tio poderia vir para cá?

Selena teve vontade de dar um abraço apertado no amigo por ser tão amável e se

mostrar sensível ao problema. E ela não precisara dizer nada. Que rapaz sensacional! Vai,

Ronny, vai!

- Tenho certeza de que ele apreciaria muito essa oportunidade de dar uma saída, disse

Paul. Obrigado, Ronny.

O rapaz deu uma olhada rápida de Selena para o colega, como se estivesse tentando

descobrir o que havia entre eles, e depois concluiu:

- Isso seria maravilhoso!

- Legal! exclamou Ronny. Então até mais!

Ele também deu uma olhada longa para Selena, e a garota pensou se o colega não

estaria fazendo o mesmo que Paul - procurando enxergar sinais ocultos de um relacionamento

entre ela e o rapaz.

- Obrigada, Ronny! disse a garota, sorrindo carinhosamente , mas sem exagerar.

Seu melhor sorriso estava reservado para Paul. E assim que Ronny saiu, ela estampou-o

no rosto, nos lábios perfeitos, como um gesto de boas-vindas dirigido somente a ele.
Capítulo Vinte

P aul encantou toda a família, e principalmente Tânia, que ficava só dizendo:

- Puxa! Você falou isso igualzinho ao Jeremy!

O tio dele, o “Tio Mac”, como o rapaz o chamava, chegou no momento em que estavam

se sentando à mesa espaçosa da sala de jantar. E ficou constantemente elogiando Ronny, que

fora à missão e o substituíra, liberando-o para vir jantar. O Tio Mac sentou-se ao lado de Paul.

Selena estava do outro lado da mesa, bem na direção do rapaz. Afinal o pai de Selena fez sinal

de que todos dessem as mãos para orar. A garota fechou os olhos, pensando em como seria

bom se estivesse ao lado do rapaz, em vez de se encontrar entre Tânia e Kevin. Se estivesse,

iria segurar na mão forte dele.

Houve vários momentos durante o jantar em que, ao erguer o rosto, teve a impressão de

que ele estivera olhando para ela. Obviamente, assim que o fitava, ele desviava o olhar.

Selena estava ansiosa para ter uma chance de conversar com ele a sós. Contudo ainda não

sabia como conseguiria isso.

Vó May não escondia sua admiração pelo rapaz. Ela simplesmente adorou os lírios que

ele trouxe para ela; e fez questão de colocá-los no centro da mesa.

No momento em que mamãe e Tânia serviam a sobremesa, Paul virou-se para o pai de

Selena e disse:

- Eu queria lhe pedir um favor. Aliás, Jeremy me pediu que fizesse um favor para ele.

- Tudo bem, replicou papai, antes mesmo de saber do que se tratava.

- Será que, após o jantar, posso sair com a Tânia e a Selena para irmos tomar um café?

Selena teve a sensação de que o coração iria sair-lhe pela boca. Que maneira singular de

começar um “namoro”! Ela adorou!

- Se elas quiserem, para mim, está bem.


Paul olhou primeiro para Selena. De algum modo, a garota conseguiu subjugar suas

emoções que estavam totalmente agitadas e limitou-se a dar um sorriso, ao mesmo tempo em

que acenava que sim. Tânia continuou a servir a sobremesa, mas em seu rosto estampou-se

um sorrisinho maroto.

Uma hora depois, quando se dirigiam para o centro, ela ainda sorria.

- Vocês têm algum lugar a que gostariam de ir? indagou Paul. O Jeremy disse, Tânia,

que você tinha pensado em ir a um certo restaurante.

A jovem falou de um café que ficava numa colina em West Portland e ensinou ao rapaz

como se chegava lá. Eles estacionaram e entraram. Foram para uma mesa redonda, pequena,

que ficava em frente de uma janela, através da qual se viam gerânios vermelhos plantados

numa caixa. O local estava bem silencioso naquela hora. Havia poucos clientes. Selena teve a

sensação de que, subitamente, tinham sido transportados para outro país.

- Sabe de uma coisa? falou Tânia ainda de pé, assim que Selena e Paul se sentaram. É

possível que eu não tenha outra oportunidade de vir aqui antes de me mudar para a Califórnia.

E nesta rua, há algumas lojas que ainda estão abertas. Então, vocês dois vão começando aí que

volto já.

E saiu rapidamente porta a fora. Selena baixou os olhos para a mesa posta, apertando as

mãos.

- Está parecendo que isso é armação, disse em voz suave.

Paul não respondeu, esperando que ela levantasse o rosto para ele.

- É, parece que sim, disse ele afinal. Quer tomar alguma coisa?

- Será que aqui eles servem chá de ervas? indagou Selena.

- Vamos perguntar, disse o rapaz, erguendo a mão e chamando o garçom.

Nesse instante, tendo Paul bem à sua frente, sentindo o forte aroma de café no ar e

vendo aproximar-se um garçom com um grande bigode, a garota achou que tudo não passava

de um sonho. Era uma breve excursão a Paris e se achavam num café do Champs Elisées,
onde tomavam uma xícara de capuccino. Só que, neste sonho, ela estava com os olhos

abertos, e não queria fechá-los. Tinha medo de que tudo desaparecesse como por encanto.

- É, quero um café expresso, disse Paul. E vocês têm chá de ervas?

O garçom fez um aceno de cabeça e saiu.

- Você quer comer alguma coisa, um palito de chocolate ou algo assim?

Selena entendeu que ele se referia a um daqueles biscoitos compridos, recobertos de

chocolate.

- Não, obrigada, respondeu ela. Acho que comi bastante no jantar.

- Eu também, disse o rapaz. Aliás, o jantar estava ótimo. Sua família é maravilhosa,

Selena. Tudo que Jeremy disse confere.

- Ah, é? E o que foi que ele disse?

- Bom, principiou ele, recostando-se na cadeira, disse que você surfa muito bem.

A garota sorriu.

- Disse também que você é uma pessoa de personalidade forte, se bem que isso não era

novidade para mim.

O garçom voltou com a xícara grande de café para o Paul e uma vasilhinha de água

quente com uma xícara combinando. Colocou diante da garota uma cestinha com vários

saquinhos de chá para que ela escolhesse o que desejasse. Em seguida, virou-se para sair.

- Vocês têm mel? indagou Selena antes que ele se fosse.

- Jeremy falou também que você é uma forte intercessora, guerreira na oração.

Selena sentiu que chegara o momento que ela estava aguardando. Colocou o saquinho

de chá de amora silvestre na água fervente e se pôs a relembrar as frases que ensaiara para

dizer a ele. O garçom chegou com o mel e ela ficou esperando que ele saísse, guardando as

frases certinhas na ponta da língua.

- Como é mesmo aquele ditado? “Todo guerreiro é uma criança”? comentou Paul,

bebericando seu café.


Ele fitou a garota com uma expressão que Selena conhecia muito bem. Era a mesma que

Wesley, seu irmão mais velho, lhe dirigia vez por outra. Lembrava um tapinha na cabeça, um

gesto carinhoso que um irmão mais velho tem para com um mais novo quando este faz algo

engraçadinho.

Selena sentiu como se o mundo tivesse parado de repente. Era como se lhe tivessem

tirado o ar dos pulmões.

Então ele acha que sou uma criança, uma garota bobinha! Não tem nenhuma das idéias

românticas que eu tenho com relação a ele!

Desse modo, tudo mudava. De forma alguma poderia abrir o coração para ele e dizer-

lhe o quanto batalhara por ele. Aliás, ele não parecia interessado em saber que, quando ele

estava desviado, ela suplicara a Deus por ele, para que o Senhor o trouxesse de volta aos seus

caminhos.

- Meu irmão disse ainda... principiou ele e aqui fez uma pausa, sorrindo com ar de

compaixão... que você curte uma paixãozinha por mim.

Selena ficou paralisada. Sentiu a respiração ofegante. O rosto ardia como se fosse uma

lâmpada prestes a explodir.

Uma paixãozinha por você? É isso que você acha que sinto? Meus sentimentos não

passam de um amorzinho infantil, como de um cachorrinho pelo dono, um adulto maduro e

sábio? Ah, que arrogância!

Agora ela não sabia mesmo o que dizer. Por que Tânia a deixara ali e saíra? Será que ela

armara tudo isso? Será que sua irmã e Jeremy queriam zombar dela?

Sua vontade era de se levantar e derrubar a mesa toda em Paul. Entretanto resistiu ao

impulso. Ficou olhando para as próprias mãos e preparando o seu chá. Bem devagar, pôs-se a

remexê-lo. Queria acalmar-se para não dar uma resposta da qual viesse a arrepender-se

depois. Dessa vez, não iria agir impulsivamente. Aliás, isso só serviria para demonstrar que
ela realmente era imatura. Paul permaneceu em silêncio, aguardando sua resposta, segurando

a xícara com as duas mãos.

- Sabe de uma coisa? disse Selena, largando a colherinha e tomando um golinho do chá.

Paul parecia estar com a atenção presa a ela, querendo ouvir o que ela diria. A garota

assumiu um ar bem sereno e adulto e continuou:

- Acho que Deus coloca diversas pessoas em nossa vida, em épocas diferentes, para nos

ensinar muitas lições.

Sua intenção fora dizer algo bem profundo, mas afinal aquilo lhe pareceu uma

repetição. Tomou outro golinho de chá e ergueu o rosto para o rapaz, para que ele constatasse

que não havia lágrimas em seus olhos.

- Parece que Deus nos aproximou um do outro, por um breve período de tempo, para

que eu pudesse aprender o seguinte: ele realmente atende as nossas petições.

O rapaz pareceu espantado com a reação dela. Ele já a fitara com essa mesma expressão

antes - no aeroporto de Londres. Obviamente não era isso que esperava que ela dissesse.

- Você agora está bem mais perto de Deus do que na época em que nos conhecemos,

não é? comentou ela.

- É, respondeu o rapaz, com um aceno afirmativo.

- E agora vai passar as férias na Escócia para trabalhar na misão de seu avô. Está

caminhando em direção oposta à que estava em janeiro.

Paul concordou novamente.

- Não é só para passar as férias lá, corrigiu ele. Vou passar um ano. Vou estudar numa

universidade em Edimburgo.

Selena sentiu um aperto no coração. Embora ele houvesse se referido aos sentimentos

dela como uma “paixãozinha” infantil, aquela notícia a feriu bem no fundo de seu ser. Uma

coisa era ele estar fora durante as férias; outra bem diferente era passar um ano longe.
- Espero que tudo dê certo para você, disse a garota, esforçando-se para dar um dos

sorrisos que guardara somente para Paul. Estou feliz porque nossos caminhos se cruzaram

naquela ocasião.

Teve vontade de acrescentar que agora eles estariam circulando em órbitas diferentes,

mas achou que tal afirmação iria ficar parecida com as frases de ficção científica que a Amy

citava.

Inclinou-se ligeiramente para a frente e tomou a iniciativa de tocar de leve no braço

dele. Fitando-o diretamente nos olhos, procurando atingir sua alma, ela disse em voz

sussurrada:

- Paul Mackenzie, Deus colocou a mão dele em você. Ele fará coisas extraordinárias em

sua vida.

O rapaz não se moveu. Continuou com os olhos presos nos da garota.

- Obrigado! falou afinal em voz baixa e rouca.

A expressão levemente irônica que ele mantivera no rosto o tempo todo agora parecia

ter-se esvaído por completo.

- Agradeço também por ter orado por mim, prosseguiu ele. Continue orando.

Selena não respondeu imediatamente. Parou para pensar na promessa que iria fazer. Ela

levava essa questão muito a sério, embora tivesse a impressão de que ele, não. Será que estava

disposta a orar por Paul, mesmo sabendo que ele ia morar em outro lugar? Ou que poderia se

casar com outra pessoa? Iria orar a despeito do que ele fizesse? E mesmo que nunca mais o

visse? E será que cumpriria fielmente o compromisso assumido, mesmo sabendo que o

envolvimento emocional que tinha com ele era apenas de sua parte?

- Está bem, disse ela, ainda fitando-o nos olhos. Vou continuar orando por você.
Capítulo Vinte e Um

Selena dormiu muito pouco naquela noite. Ficara a virar e revirar na cama. Tinha

conversado com Tânia até depois de meia-noite, procurando algumas explicações para os

acontecimentos. A irmã confessara que ela e Jeremy haviam de fato armado tudo. A

esperança deles era que Selena e Paul pudessem conversar livremente, de coração aberto, para

ver o que aconteceria.

Agora Selena achava que fora muito bom não ter aberto o coração para Paul, pois o

rapaz deixara bem claro que não tinha interesse nela. Se tinha, pelo menos não era no mesmo

nível que ela, que cultivara pensamentos românticos a respeito dele.

Ao compreender isso, a garota experimentou uma forte dor emocional. Sentiu-se

machucada interiormente, num ponto da alma que ela desconhecia - uma emoção profunda e

sensível. E estaria disposta a dedicar todo o seu amor a Paul, se ele o quisesse. Contudo ele

não queria.

Então, em vez de deixar extravasar essas intensas emoções femininas, Selena as

encerrou dentro de si mesma. Estava extremamente envergonhada de haver interpretado como

sinal de interesse as atitudes e os atos de Paul. Ele havia escrito cartas muito expressivas para

ela. Por diversas vezes, olhara-a fixamente, como se estivesse procurando ver o próprio

reflexo nos olhos dela. E por fim fizera aquele cômico “croc-croc” na Higland House. E em

nenhum desses gestos, ele tivera a intenção de comunicar que nutria por ela um sentimento

especial.

E na última hora que passaram juntos, Paul também não dera mais nenhuma

demonstração de interesse. Ele terminou de tomar seu café, e ela, o seu chá. O rapaz pagou a

conta e os dois saíram. Estava caindo uma chuvinha leve. Ficaram parados debaixo do toldo

listrado, ao clarão dos postes da rua. Achavam-se próximos um do outro, mas permaneceram

em silêncio.
Selena olhou para os gerânios com ar distraído e comentou:

- Eles são do tipo Marta Washington. Quero dizer, os griânios. São os que minha mãe

mais gosta.

Paul fez um aceno simpático. A garota se sentiu ridícula falando de flores num

momento como aquele. Havia pensaso que ocorreria algo entre ela e Paul; e que iria abrir-se

para os dois um mundo de felicidade. Na realidade, nada acontecera.

Instantes depois, Tânia chegou e entrou no carro, falando sem parar sobre uma

promoção de batons que encontrara - do seu batom predileto. E em seguida, voltaram para

casa.

Paul acompanhou as duas até a porta, e Tânia abraçou-o ao se despedir.

- Espero que tenha bons momentos lá na Escócia, disse ela. Estou tão feliz de tê-lo

conhecido antes de você viajar!

- Também lhe desejo um ano maravilhoso, falou Selena, conseguindo dar mais um

sorriso para ele. Tchau, Paul.

- Tchau, respondeu ele. Deus abençoe vocês!

Ele fitou Selena direto nos olhos uma última vez, bem debaixo da lâmpada da varanda.

Depois virou-se e, com passadas largas, voltou para o carro. Ligou-o, arrancou e foi embora.

Pronto, acabou-se. Ele se fora. Saíra da vida dela para sempre.

Quando as duas conversavam sobre o assunto, já deitadas, Selena conseguiu dar uma

explicação muito certinha e bem espiritual para o fato de eles se haverem conhecido. Então

disse à irmã o que já dissera a Paul. Eles tinham tido contato por um breve período de tempo.

Por causa desse relacionamento, ela aprendera a interceder por alguém, a orar com

persistência. E não fora só isso. Aprendera também a travar batalha espiritual em favor dele. E

afirmava - quase sem emoção alguma - que, para aprender essas lições, valera a pena passar o

que passara.
Tânia lhe pediu desculpas, dizendo que nunca imaginara que tudo iria acabar daquela

maneira. Estava convencida de que Selena e Paul poderiam perfeitamente manter um

relacionamento à distância, assim como ela e Jeremy mantinham. Só que, para Selena, não

dera certo.

A garota olhou para o relógio. Eram 5:27h. Levantou-se silenciosamente e calçou o

chinelo felpudo. Pegou a Bíblia e o diário. Caminhando bem de leve, desceu para o escritório.

Ali se pôs mais uma vez a orar por Paul, pedindo a Deus que o protegesse nesse dia em que

estaria preparando-se para viajar. Daí a algumas horas, ele deveria partir para a Escócia.

Abriu a Bíblia e seus olhos deram com um marcador de páginas que pegara em uma

livraria evangélica. Nele estava impresso um versículo de 2 Coríntios e um comentário: “Ele

põe um pedaço do céu em nosso coração para que não nos contentemos com menos”.

“É isso mesmo”, escreveu ela no diário. “Quero que venha o reino de Deus na minha

vida e que a vontade dele se faça na terra como no céu. Desejo o que Deus tiver de melhor

para mim. Pelo menos creio que desejo. Quero desejar isso. Então, vou guardar todos esses

tesouros em meu coração. São ‘pedaços do céu’, e não vou me contentar com algo inferior.

Não seicomo vou explicar isso em relação ao Paul. Só sei que quero que ele também receba o

melhor que Deus o ver tiver para ele. É, não foi legal naquela ocasião quando ele estava se

contentando com algo que não era o melhor para ele.”

Respirou fundo e depois continuou escrevendo.

“Esse período da minha vida está encerrado. Terminou essa fase de ficar só querendo

saber se ele sentia algo por mim, como eu sentia por ele. Ele foi embora. Senhor, entrego-te

esse meu relacionamento. Não permita Pai, que algum dia eu me contente com algo que não

seja o melhor que o Senhor designou para mim.”

Agora era ela que se sentia como o “filho pródigo”. Tinha se deixado levar por sonhos

desordenados a respeito de Paul, que acabaram dando em nada. Nesse momento, estava de

volta aos braços do Pai celeste, o lugar mais seguro que existe. Não era isso que estava escrito
na placa da Highland House? Esforçou-se para lembrar a frase completa e depois registrou-a

no diário. “Um lugar seguro para se recomeçar a vida.” Releu a frase e em seguida

acrescentou: “Nos braços do Pai celeste”.

Durante todo o dia, no trabalho, Selena sentiu uma calma e um uma paz até estranhas.

Ronny deu uma passada lá e lhe contou como achara bom ajudar a servir o jantar na Highland

Housee, na noite anterior. E novamente ela lhe agradeceu por haver substituído o Tio Mac.

- Não precisa me agradecer, disse o rapaz. Passei ótimos momentos. Vamos voltar lá um

dia desses? Eu gostaria de ajudar aquele povo ali.

- Eu também, concordou Selena.

- Você quer que eu venha buscá-la para o show hoje à noite?

Uma vez mais a garota se esquecera de que tinha um compromisso social. Estava com

um pouco de sono, mas estivera também desejosa de ouvir aquele grupo.

- Claro, replicou. E será que o Mike e a Vicki não gostariam de ir conosco?

- Já perguntei ao Mike. Ele disse que vão jantar fora antes, então combinei de nos

encontrarmos com eles na porta do teatro. Tem muita gente lá da escola que vai também.

- Humm, parece que vai ser ótimo! exclamou Selena, senttindo-se mais reanimada após

a noite emocionalmente estressante. Então te espero lá em casa.

- Legal. Vou passar lá por volta de 18:30h.

Quando ele chegou, Selena ainda não estava pronta. Depois que voltara do trabalho,

resolvera tirar um cochilo e acabara caindo no sono. Acordou com a mãe chamando-a,

dizendo-lhe que Ronny chegara. O rapaz estava lá embaixo, jantando com a família. Ele

dissera que os dois iriam a um show.

A garota saltou da cama e, falando depressa, foi dando os detalhes para a mãe, ao

mesmo tempo em que se aprontava. E com isso também ficou totalmente desperta. Quinze

minutos depois, os dois já estavam a caminho do concerto. A camionete dele cheirava a lama
e grama cortada. Achou ótimo estar com uma calça jeans, caso houvesse o perigo de manchar

a roupa no assento do carro.

O estacionamento já estava cheio quando chegaram, e tiveram de estacionar na “China”,

como disse Ronny.

- Combinei com o Mike que iríamos nos encontrar na porta da entrada, comentou ele,

caminhando apressadamente.

Na fachada, lia-se em letras garrafais: “TRIO SIERRA”. Ela sorriu na expectativa de

ouvir aquele grupo.

Ficaram correndo os olhos pelo povo que estava entrando e que, naquele momento, não

era numeroso, à procura de Mike e Vicki. Não os viram.

- Vou procurar lá dentro, disse Ronny. Quer ficar aqui um pouco mais, caso eles

cheguem atrasados?

- Como vou te encontrar depois? indagou Selena, enfiando a mão no bolso da calça para

verificar se seu ingresso estava mesmo com ela.

- Volto já, respondeu ele e foi saindo sem mais explicações. Selena sentiu-se um pouco

perdida ao vê-lo afastar-se apressadamente. Reparou que ele estava bem vestido, mais

arrumado do que de costume. Aliás, ele lhe levara em casa um raminho de violetas, que a

garota jogara na mesa da cozinha no momento em que saíam. Achou que ele talvez estivesse

querendo igualar-se a Paul, que levara os lírios para Vó May. Entretanto o rapaz explicou que

estivera aparando o gramado de uma casa e em dado momento vira aquelas flores.

Simplesmente não tivera coragem de passar o cortador de grama sobre elas.

Selena ficou olhando para os lados, esperando e batendo o pé meio impaciente. Por fim,

começou a ficar nervosa, vendo entrarem as últimas pessoas que chegavam para o show.

Certamente já devia ter começado, e ela estava perdendo. Talvez não fosse tão difícil

encontrar Ronny lá dentro. Vicki e Mike tzmbém já deviam estar lá.


Entregou seu ingresso e parou no saguão. A porta que dava para o salão estava fechada,

mas conseguia ouvir os aplausos lá dentro.

O que devo fazer? Fico por aqui ou entro?

Resolveu entrar. O auditório estava lotado. A platéia estuva aplaudindo de pé.

Compreendeu que havia perdido a primeira música. Sentiu uma forte irritação. Era verdade

que fora por sua culpa que haviam chegado atrasados, mas por que Ronny a largara na porta?

Agora seria praticamente impossível encontrá-lo. Sentou-se numa poltrona do corredor, numa

fileira onde não viu nenhum conhecido. Acabou reconhecendo que dali poderia apreciar a

apresentação e ao mesmo tempo procurar o colega. E se não o achasse, aproveitaria o fato de

que estava sozinha para analisar bem suas idéias com relação a Paul e depois “arquivá-las”

para sempre.

A luz de um holofote se fixou no centro do palco. Em seguida, apareceram três jovens,

cada uma com um microfone na mão. Elas se puseram a cantar uma música que falava sobre

confiar em Deus. Tinham vozes suaves que se harmonizavam maravilhosamente bem. Selena

gostou demais do trio. Sentiu que os cânticos delas iriam acalmar sua alma enquanto ela, a sós

consigo mesma, “passava a limpo” alguns fatos de sua vida. Era exatamente do que precisava

naquele momento.
Capítulo Vinte e Dois

Ouvindo a canção seguinte, que era bem ritimada, Selena teve a sensação de que as

peças de um quebra-cabeça se encaixavam em seus lugares. A letra falava de paz e esperança.

Escutando-a, percebeu que não era tão importante assim ficar fazendo aquelas avaliações

espirituais com relação a Paul. Sentiu que estava relaxando a tensão.

Correu os olhos pelo auditório à procura de Ronny, mas não o avistou. Sabia que ele

compreenderia o fato de ela haver entrado sem esperá-lo. O rapaz era muito compreensivo e

bastante paciente. Também era muito atencioso e bondoso com ela. Aliás, Ronny era uma

pessoa maravilhosa.

Começou a sorrir ao se lembrar de como ele lidara com as crianças na Highland House.

É, ele tinha razão. Os dois formavam uma ótima dupla. E como ele aceitava bem as

brincadeiras dela, como naquele dia, na Lotsa Tacos, quando pegara o dinheiro dele! Naquele

instante deu se conta de que era com uma pessoa assim que ela se relacionava melhor: um

amigo que a deixava ser exatamente como era, mas não permitia que ela dominasse o

relacionamento.

O trio encerrou a canção de forma harmoniosa, casando bem as vozes e dando a última

nota num único fôlego. A plateia explodiu em aplausos. Uma das cantoras, uma loira, deu um

passo à frente para falar.

- Meu nome é Wendi Foy Green, disse ela. Estas aqui são Deborah Schnelle e Jennifer

Hendrix. Nós constituímos o Trio Sierra.

O auditório aplaudiu entusiasticamente.

- Nesses anos em que estamos atuando juntas, continuou Wendi assim que os presentes

foram silenciando, aprendemos muito sobre a amizade. Como acontece com qualquer

relacionamento, nós também temos algumas dificuldades e mal-entendidos. Contudo cremos


que precisamos apegar-nos firmemente ao verdadeiro amor, que é Jesus Cristo. Ele é o Único

que pode nos manter unidas.

Ao fundo, ouviram-se os acordes de um violão, e a cantora prosseguiu:

- Compus esta canção em parceria com minha amiga Connie. Quando a escrevemos,

estávamos pensando no amor de Jesus.

Em seguida, ela olhou para Deborah e Jennifer e começou a cantar.

Tivemos muitos momentos,

Alguns melhores que outros.

E por vezes nossa devoção

Passa por muitas provas.

Contudo podemos permanecer juntas,

Mesmo nos momentos mais escuros,

Se compreendermos que o amor

É a âncora que sustém nossa vida.

Persevere no amor,

Pois é a única coisa em que vale a pena nos firmarmos.

Persista em amar,

Porque no fim de tudo

Descobrimos que é o amor

Que nos sustenta.

Às vezes digo que preciso de você.

E você também diz que precisa de mim,

Mas se nosso coração ficar ferido,


Será necessário cuidar dele.

Pois não podemos nos descuidar

Do amor que sentimos uns pelos outros.

Precisamos abanar as chamas

Para que elas possam se fortalecer.

Nesse ponto, ouviu-se um solo de saxofone enquanto, atrás das cantoras, estavam sendo

projetadas imagens em branco e preto numa grande tela. Eram cenas só com mãos em várias

posições - orando, “lendo” em Braille, uma criancinha segurando o dedo da mãe e a mão de

uma pessoa estendida para pegar a de um amigo.

O trio voltou a repetir o coro, e Selena mais uma vez olhou para os lados à procura de

Ronny. Sentia o coração batendo mais depressa. E elas cantavam:

Persevere no amor,

Pois é a única coisa em que vale a pena nos firmarmos.

Persista em amar,

Porque no fim de tudo

Descobrimos que é o amor

Que nos sustenta.

Enquanto o auditório aplaudia, Selena deu um passo para o lado, para o corredor. Sentiu

um forte impulso de sair e ir procurar Ronny. Era possível que ela fosse mesmo meio

demorada para entender os fatos relacionados com a amizade, como Tânia dissera. Talvez não

conseguisse enxergar um bem precioso que estivera ali diante do seu nariz. Como Ronny, por

exemplo. Ele estivera sempre por perto, o tempo todo. Levara-lhe uma rosa na noite em que
iria ter seu importante encontro com Vicki. Oferecera-se para ir ficar no lugar do Tio Mac. E

até se lembrara de Selena quando estivera para cortar as violetas no gramado.

Por que não enxergara isso antes? Amy tinha razão! Selena ficara tão envolvida no seu

sonho com Paul que nem dera atencão à verdadeira amizade que Ronny tinha por ela.

Saiu apressada para o saguão do teatro e se pôs a correr os olhos em volta, na esperança

de que ele houvesse retornado ali à sua procura. Não o via em parte alguma. De repente, com

o canto do olho, avistou uma figura solitária lá fora, no ponto onde ele a havia deixado.

Será que é o Ronny?

Abriu a porta de vidro e saiu apressadamente ao ar frio da noite.

- Ronny! gritou. Estou aqui, Ronny!

Ele se virou e, assim que a viu, em seu rosto estampou-se uma expressão de alívio.

Correram um em direção ao outro e se encontraram no meio do caminho. Imediatamente

ambos se puseram a dar explicações, falando ao mesmo tempo.

Num gesto impulsivo, Selena abriu os braços e, de todo o coração, deu um abraço no

amigo. Quando ela se afastou, o rapaz fitou-a espantado.

- Tudo bem com você? indagou, procurando enxergar nas feições dela a resposta de sua

pergunta.

A garota se pôs a rir, e com o riso escaparam de seus olhos também algumas lágrimas.

Não conseguia falar.

- Ei! O que foi? perguntou Ronny.

Aparentemente ele não estava sabendo como agir. Ficou parado ao lado dela, a cabeça

inclinada, aguardando que Selena dissesse algo.

- Ronny, principiou ela, finalmente recuperando a fala, eu...

Limpou as lágrimas, sentindo-se leve e renovada interiormente.

- ... quero lhe agradecer por ser meu amigo e por se como você é. Acho-o uma pessoa

maravilhosa!
O rapaz fitou-a atento e foi dando seu sorriso típico.

- Só agora que você descobriu isso?

Selena riu de novo. Sabia que não precisaria dar explicações para ele, nem ele as

pediria. Era assim mesmo que ela queria que sua vida fosse. Queria estar ali, naquele

momento, com seu amigo Ronny.

- Quer voltar lá para dentro? perguntou ele.

Selena fez que sim e limpou o resto das lágrimas que ainda haviam ficado nos cílios.

Eles se viraram para entrar e Ronny, com sua mão grande e áspera, segurou a mão da garota e

deu-lhe um aperto de leve. Ela apertou a dele também, sentindo no coração um pedacinho do

céu.

Naquele instante, fechou os olhos e expressou o desejo de nunca se contentar com nada,

a não ser com o melhor que Deus tivesse para ela.

Fim

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