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Série Selena 8

O Tempo Dirá

Robin Jones Gunn

Título original: Time Will Tell


Tradução de Myrian Talitha Lins
Editora Betânia, 2002
Digitalizado por deisemat
Revisado por deisemat
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SEMEADORES DA PALAVRA e-books evangélicos

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Para minhas “irmãs secretas”,

Que “concordemente” glorificam o Senhor comigo.

Que sempre possamos glorificá-lo,

juntas, na unidade do Espírito de Deus.


Capítulo Um

Selena estava parada no estacionamento do restaurante italiano do tio de Amy, “roendo”

nervosamente a unha do polegar. Sentiu frio. Vestia um short, uma camiseta e estava de

sandália. Encostada no carro da amiga, olhava fixamente para a porta dos fundos, esperando

que a qualquer momento ela aparecesse ali. Geralmente a colega saía as 8:00h. Deu uma

espiada no relógio: 8:20h. Cadê a Amy?

Reunindo coragem, foi até lá e abriu a porta devagar. Havia planejado conversar com a

amiga ali no carro, quando ela saísse. Assim poderiam resolver o problema calmamente. Não

desejava uma confrontação com Amy no saguão de forma nenhuma.

Correu os olhos pelo aposento. A amiga não se encontrava em seu lugar de sempre, no

posto de recepcionista. Também não havia fregueses ali, aguardando o momento de serem

conduzidos à mesa. Tudo estava em silêncio, exatamente como ela imaginara que estaria

numa noite de meio de semana, nesse mês de setembro. Fora por isso que tivera certeza de

que Amy deveria sair às 8:00h.

Uns passos mais adiante, avistou Ronny, seu amigo, que também trabalhava no

restaurante. Estava limpando uma mesa perto da entrada. Selena veio por trás, aproximou-se

bem dele e fez:


- Bu!

O rapaz virou-se, dando aquele seu sorriso característico, entortando a boca. A garota

compreendeu que ele não se assustara.

- O que foi? indagou Ronny.

- Vim aqui pra falar com a Amy. Viu se ela já foi embora?

- Já. Saiu junto com o Nathan. Acho que foram para o The Beet.

O The Beet era um ponto novo, próprio para jovens, que fora inaugurado alguns meses

atrás, no centro de Portland. Nele não se vendia bebida alcoólica, e havia música ao vivo, com

conjuntos da própria cidade. Fora o Ronny e seus companheiros da banda que, na primeira

semana de aula, haviam lhe informado sobre o lugar. Aliás, eles também estavam na agenda

do pessoal lá, para se apresentarem no mês de outubro. Isso significava que, finalmente, iriam

fazer sua estréia.

- Não vi os dois passando pelo estacionamento, comentou ela.

- É, eles saíram pela porta da frente. Provavelmente vão para lá a pé. A esta altura, todas

as vagas nas proximidades do The Beet já devem estar ocupadas. Só resta estacionamento

pago.

- Ah! exclamou a garota em voz baixa.

- Você estava esperando há muito tempo?

- Mais ou menos meia hora.

Ronny olhou-a com ar de compreensão.

- Ainda não teve aquela sua conversa com a Amy, né?

Selena abanou a cabeça.

- E bem que tentei, disse. Mas todo dia na escola parecia que ela tinha de conversar com

alguém, ou então precisava ir a algum lugar após a aula. Liguei pra ela. Deixei bilhete no

escaninho dela, e nada. E agora...


- E agora ficou esperando no estacionamento, completou o rapaz também abanando a

cabeça.

O cabelo dele, que era louro e liso, havia crescido bem durante as férias, e Ronny o

estava usando amarrado atrás, num rabo-de-cavalo curtinho. Eles estudavam num colégio

evangélico, Academia Royal. A junta diretora da escola já havia lhe mandado um aviso

dizendo que seu cabelo estava passando do comprimento permitido pelo regulamento da

escola, como estava na página 14 do Manual do Aluno.

- Já sei, principiou Selena, você me acha uma coitada, andando atrás dela desse jeito. A

questão é que não consigo dar nossa amizade por terminada, enquanto não tiver pelo menos

uma boa conversa com ela.

- E, ao que parece, a Amy não pensa assim, deduziu Ronny.

A garota acenou que não, e a ponta de seu brinco comprido esbarrou no queixo.

- Desanima não, interveio o rapaz, pondo a mão em seu ombro e apertando-o de leve.

Lembre-se daquele versículo que você vivia repetindo pra mim quando chegou da Suíça.

E olhou para ela com uma expressão de quem não se recorda.

- Como é que era mesmo? insistiu ele.

- “Tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de

pecados”, disse ela mecanicamente, como uma criança cansada de repetir algo.

- Exatamente! Fique falando a si mesma que tenha amor intenso pela Amy. Uma hora,

ela vai perceber.

- Sei não, replicou Selena, suspirando.

Nesse momento, um casal idoso que estava sentado numa mesa próxima levantou-se, e

Selena arredou para o lado, deixando-os passar.

- Bom, acho que vou embora pra você poder trabalhar, disse.

- ‘Tá bom, concordou Ronny. Amanhã a gente se vê na escola.


E o rapaz foi “tirar” a mesa da qual o casal saíra.

Selena deixou o restaurante silenciosamente, do mesmo jeito que chegara. Entrou no

carro e o ligou, acionando também o sistema de aquecimento. Estava fazendo bastante frio

para aquela época do ano. E isso era estranho, pois a aparência da natureza ainda era de verão.

Ela não queria que a estação quente terminasse. Sem dúvida nenhuma, essas férias tinham

sido as melhores de sua vida. Viajara muito. Vira muitos amigos. Vivera experiências

diferentes e quase começara um namoro. E assim como não queria que o verão acabasse, não

desejava que a amizade com Amy tivesse um fim.

O desentendimento entre elas fora até muito simples. Sua colega demonstrara interesse

em Nathan, um rapaz que recentemente fora trabalhar no restaurante. Um dia, Nathan a

convidara para sairem. Mais tarde, ela ligara para Selena e contara que os dois tinham

“ficado” no carro do rapaz. Imediatamente, Selena criticara a colega por ter feito isso. No

final, a amiga desligara o telefone meio zangada. A partir desse dia, as duas quase não haviam

conversado.

Selena ficou fora algumas semanas e, quando voltou, teve de “correr” para preparar

tudo para o início das aulas. Então já fazia mais de um mês que elas não tinham contato. E, ao

que parecia, sua amiga e Nathan continuavam namorando.

Entrou na estreita rampa da garagem de sua casa, uma velha mansão vitoriana. Desligou

o carro, um fusca 79, que agora era só dela, e ficou ali sentada por uns instantes. No ano

anterior ela o compartilhara com a mãe. Isso significava que o pai pagava o seguro dele.

Agora, eles o tinham dado para ela. Era muito bom ter o veículo só para ela, mas também

implicava mais despesas. E que além da gasolina, teria de arcar também com o seguro.*

Enquanto ela tirasse boas notas, os pais permitiriam que trabalhasse. Então, com o salário que

recebia na confeitaria Mother Bear, dispunha do suficiente para suas despesas. Contudo não

teria mais condições de fazer uma poupança e guardar um dinheirinho para passeios
maravilhosos como o que fizera nessas férias.

___________________

*Nos Estádos Unidos, todos os carros têm de pagar seguro obrigatório, que em alguns casos, é muito

caro. (N. da T.)

Será que sou eu que estou errada? pensou. Será que estou dando muito valor a essa

necessidade de ter uma conversa cara a cara com a Amy? Devo deixar pra lá? Mas quero

provar pra ela que sou sua amiga em qualquer circunstância. E como vou fazer isso se ela

não me da atenção?

Saiu do carro e o trancou. Foi andando devagar pelo gramado molhado em direção à

varanda. Uma luz amarela, no alto da porta, parecia dar-lhe as boas-vindas. Certa vez, Amy

lhe dissera, em tom meio agressivo, que sua família era “certinha”, e seu lar, maravilhoso. E

nesse momento, de fato, tudo parecia perfeito. Seus pais, após vinte e sete anos de casados,

ainda se amavam muito. Sua avozinha, a Vó May, morava com eles. Ou melhor, eles

moravam com ela - a casa era a residência dela. E seus cinco irmãos - quatro homens e uma

mulher - levavam uma existência feliz.

- Antes de entrar, limpou os pés no capacho. Lembrou-se de dez dias atrás, quando, ali

mesmo, com os olhos cheios de lágrimas, despedira-se de Wesley, o irmão de que mais

gostava. Ele estava de saída para Corvallis, onde estudava. Ia no carro novo dele, que

mandara equipar todinho. Ela amava muito aquele irmão. E nessas férias, tinha se ligado

ainda mais a Wesley, buscando apoio nele quando precisava.

Fora a ele que falara sobre Alex, um rapaz russo, alto e simpático, que conhecera na

viagem à Suíça. Também lhe contara da carta que recebera de Paul, três semanas antes. Paul

era um amigo seu, um cara meio enigmático, de olhos azul-acinzentados, que estava

estudando na Escócia. Ela não mostrara a carta ao irmão, mas lhe contara que o rapaz dissera
que costumava fazer caminhadas nas montanhas daquele país, cantando louvores a Deus, em

voz alta. Wesley não rira, mas cruzara os bracos, fizera um aceno positivo de cabeça e

comentara:

- Isso é que e um “coração valente”.* Continue orando por ele, Selena.

___________________

*Uma alusão ao personagem central do filme Coração Valente, que é escocês. (N. da T.)

Ela aceitara o conselho dele e não somente continuara a orar pelo Paul, mas também lhe

escrevera duas cartas. Contudo o rapaz ainda não lhe respondera.

Assim que abriu a porta, sua mãe, que se encontrava na cozinha, deu uma olhada na

direção da entrada para ver quem era. Sharon Jensen estava ao telefone e tinha uma expressão

de preocupação no rosto. Acenou para a filha, abanando os dedos.

A garota dirigiu-se para a saleta, o cômodo da casa de que mais gostava. Ali era também

o escritório do pai e a biblioteca da avó. Gostava de fazer os deveres da escola nesse aposento,

sentindo o aroma característico dele - uma mistura de couro e livros velhos. Havia deixado a

mochila ali, de tarde, quando começara os trabalhos escolares. Entrou e deu com o pai sentado

à escrivaninha, também falando ao telefone. Ele não olhou para ela.

Selena pegou seus objetos rapidamente e os enfiou na mochila. Foi então que ouviu o

pai dizer:

- Está bem, querida, dentro de mais alguns dias a gente conversa de novo. Você sabe

que eu e sua mãe lhe damos todo apoio na decisão que tomar, não sabe?... ‘Tá bom... ótimo...

Depois então você liga e conta o que decidiu... Tchau.

Havia apenas três pessoas que Harold Jensen chamava de “querida”. E duas - ela e sua

mãe - estavam em casa. A outra era Tânia, a irmã de Selena, que alguns meses antes fora

morar na Califórnia, para ficar mais perto de Jeremy, seu namorado. Ouvindo o pai despedir-
se da irmã e desligar o aparelho, a garota começou a sentir-se um pouco tensa com relação a

Tânia.

- Algum problema? indagou quando o pai se virou para olhá-la.

- Tânia precisa tomar uma decisão importante em breve, explicou ele.

Selena observou que o olhar dele, normalmente tranquilo, agora trazia uma expressão de

preocupação. Nesse momento, a mãe de Selena chegou à saleta. Ela não percebeu que a filha

estava sentada na poltrona, num canto.

- Não estou gostando nada disso, Harold, comentou ela. O que você acha?

O pai de Selena dirigiu os olhos para a garota, e sua esposa virou-se naquela direção.

Em seguida, fechou os lábios, dando um sorriso forçado para a filha.

- Oh, não a vi aí, Selena! disse. Como é que foi lá com a Amy?

- Não deu pra conversar com ela, não, replicou a garota. Ela já havia saído. Acho que

vou tentar amanhã de novo.

- Ótima idéia! Tenta sim!

Selena percebia nitidamente que a mãe não estava com o pensamento em sua amiga.

- Tudo bem com a Tânia? indagou, numa tentativa de descobrir o que se passava.

- Tudo bem, respondeu Sharon Jensen, fitando o marido.

Nenhum deles explicou nada.

Puxa! pensou Selena. Tem algum problema por aí, mas eles não querem me dizer. Será

que é algo com Jeremy?

Olhou para o relógio e em seguida voltou a fitar os pais. Notou que eles se

comunicavam um com o outro em silêncio, como quem diz:

“Não fale nada!”

- Vou para o meu quarto, disse Selena.

E teve vontade de acrescentar: “Pra que vocês possam conversar à vontade sobre esse
grande segredo da Tânia, sem a minha presença”. Contudo não disse nada e saiu, fechando a

porta. Sabia que deveria estar feliz pelo fato de seus pais fazerem segredo da situação de

Tânia. Se fosse com ela, iria querer muito que eles não contassem nada para ninguém.

Subindo as escadas com desânimo, resmungou consigo:

“Que chatice! Tudo pra mim agora é esperar! Esperar outra oportunidade pra conversar

com Amy. Esperar a resposta de Paul. Esperar que mamãe e papai me falem do problema da

Tânia. Esperar! Esperar! Esperar! Detesto esperar!”

Entrou no quarto e jogou a mochila no chão, perto do armário. O quarto estava bem

bagunçado, demonstrando que ela não tinha mesmo muita preocupação em arrumá-lo. Não

tinha nem onde sentar para se entregar à sua crise de autopiedade, que era o que desejava

naquele momento. Teve de reconhecer que o aposento estava mesmo horrível. Por toda a

parte, viam-se roupas, livros, sacolas, meias, vasilhas, CDs, bonés, papéis e vários outros itens

espalhados. E o cômodo era bem amplo, mas não tinha o menor vestígio de arrumação.

Apesar disso, ela sempre conseguia encontrar o que queria. Ademais, achava que havia algo

mais interessante a fazer do que organizar e guardar seus pertences.

Se tudo o mais estava em compasso de espera, pensou a garota, o quarto também

poderia ficar. Deixaria para ajeitá-lo no dia seguinte.


Capítulo Dois

Todavia, do dia seguinte acabou deixando para o outro dia, e para o outro, até que

chegou a sexta-feira à noite. Selena entrou no quarto e começou a sentir que precisava dar um

jeito naquela confusão. Todos os outros aspectos de sua vida ainda estavam em desordem.

Perguntara aos pais sobre Tânia, mas eles lhe disseram que preferiam que a própria jovem

contasse para ela e para os irmãos. Com isso, entendeu que a tal decisão não tinha nada a ver

com casamento ou com a volta dela para casa. Se fosse algo assim tão radical, os pais

certamente não teriam hesitado em lhe contar.

Além disso, não recebera nem uma linha de Paul. E Amy, por outro lado, parecia estar

fugindo dela. Desaparecia pelo corredor da escola todas as vezes que Selena tentava

aproximar-se.

Só lhe restava, então, tomar alguma providência com relação ao quarto. Resolveu dar

uma arrumada nele. Começou a recolher os objetos espalhados e a colocá-los nos devidos

lugares. Afinal, o efeito foi mais positivo do que imaginara. No momento em que guardava

algumas roupas na cômoda, teve uma idéia para conseguir conversar com Amy. No dia

seguinte, pegaria serviço na confeitaria Mother Bear só às 10:00h. Então decidiu preparar uma

cesta de café da manhã e ir à casa de Amy “acordá-la”. Assim tomariam o café juntas, no

quarto da amiga. Dentro da própria casa, a colega não teria como fugir dela.

Selena enfiou a mão na lixeira, empurrando o lixo mais para o fundo e colocou mais um

punhado nela. Empilhou os livros no chão, perto da cama, e em seguida esticou a colcha do

outro leito, que pertencera a Tânia. Pegou uma braçada de roupas sujas e desceu para o porão,

onde ficava a lavadora. Colocou as de cor escura na máquina. Aquela era apenas a primeira
trouxa. Calculava que o que restara ainda daria mais duas lavadas. Isso significava que iria

subir e descer as escadas diversas vezes.

Os cheiros próprios ali do porão lhe trouxeram à mente as recordações da infância.

Quando era criança, e a familia vinha ali visitar a Vó May, o porão era um ótimo lugar para se

esconder. Certa vez, Selena, que era muito magrinha, entrara atrás de uma pilha de caixas que

havia ali. Em seguida, puxara para perto de si uma velha lata de lixo, onde estavam algumas

pás e uns ancinhos, fechando com ela a entrada do seu “esconderijo”. Nos primeiros cinco

minutos - mais ou menos - achara maravilhoso ficar ali quietinha, sem ser vista. Permanecera

sentada no chão, abraçando as pernas e sorrindo consigo mesma à espera de que viessem

procurá-la.

Depois de alguns instantes, porém, o sentimento de aventura foi se desgastando. O chão

cimentado estava gelado e ela ficou com o traseiro dormente. O cheiro de mofo, que a

princípio lhe parecera exótico, acabou deixando-lhe o nariz entupido e os olhos irritados.

Ademais não tinha espaço para esticar as pernas.

Afinal, não suportando mais ficar ali escondida, empurrou a lata de lixo, levantou e pôs-

se a agitar as pernas para se livrar do formigamento. Depois foi subindo a escada devagar e se

dirigiu ao jardim. Então encontrou a irmã e os quatro irmãos olhando para dentro de uma

caixa de papelão. Ali estavam seis gatinhos, filhotes, miando sem parar.

Selena ligou a lavadora e voltou o pensamento ao presente. Lembrou-se de que, naquela

ocasião, não tivera o menor interesse pelos bichanos. Queria saber por que ninguém fora

procurá-la. Por que não tinham se interessado em ir ver onde estava?

Deu um sorriso ao recordar-se de que Tânia suplicara ao pai que a deixasse ficar com

um dos gatinhos. Ele recusara. O Sr. Jesen não gostava de gatos; preferia cães. Tânia pegara

um deles, tão peludinho, cor de caramelo, e o chegara bem junto do rosto do pai. A menina

tinha os olhos cheios de lágrimas e o bichinho parecia tão indefeso! Nem isso o fizera mudar
de idéia. Contudo, no Natal, a garotinha ganhara um gatinho todo branco. Dera-lhe o nome de

“Floco de Neve” e o colocara numa caminha bem ao lado da secadora.

Selena subiu as escadas de dois em dois degraus, largando para trás o cheiro de mofo e

as recordações da infância. Resolveu preparar a cesta agora, enquanto esperava que a máquina

de lavar terminasse o ciclo. Pegou uns pãezinhos de trigo integral e os colocou numa cesta de

vime da mãe, que se achava pendurada num gancho, na cozinha. Tirou da geladeira um vidro

de geléia de amora, duas laranjas e dois ovos nos quais estavam desenhados duas carinhas

risonhas. Era a mãe de Selena que marcava os ovos dessa maneira. Isso significava que se

tratava de ovos cozidos. Ela fazia os desenhos por causa de Kevin e Dilton, os dois filhos

mais novos. Dois anos antes, Kevin pegara um ovo que, dissera ele, achava que estava cozido,

e o quebrara na cabeça do irmão. Estava cru. Depois que os meninos brigaram e choraram, a

mãe criara aquele “código” - o desenho de carinha risonha.

Afinal a cesta ficou cheia e Selena cobriu-a com um pano de prato. Sentia-se feliz com a

idéia que tivera, e muito satisfeita com sua cesta. Nesse instante, os dois irmãos entraram ali

acompanhados do pai. Cada um estava com uma miniatura de automóvel feita de madeira e os

mostraram a irmã.

- Vou pintar o meu amanhã, anunciou Kevin. De vermelho vivo, pra correr mais

depressa.

- Hummm, ficaram bem legais, comentou Selena, examinando atentamente também o

carro de Dilton.

Os dois garotos haviam se inscrito num concurso de miniaturas que era realizado no

parque municipal. A mãe entrou na cozinha com uma bandeja cheia de vasilhas sujas do

jantar.

- A Vó May já está dormindo, gente, avisou ela. Acho que está na hora de vocês

também irem deitar, meninos.


Após os costumeiros resmungos e reclamações, os dois se puseram a subir a escada. O

pai foi até o corredor atrás deles.

- Em silêncio, para não acordar a Vó May! Disse-lhes, cochichando, mas com voz forte.

- O que você está fazendo, Selena? quis saber a mãe.

- Dando uma arrumada no meu quarto.

- É mesmo? indagou a outra com uma expressão alegre no olhar. Que bom!

- Pus algumas roupas na máquina e preparei uma cesta de café da manhã pra mim e a

Amy. Estou pensando em ir lá amanhã e acordá-la.

- Vocês ainda não tiveram aquela conversa?

- Não, e isso está me incomodando, como se fosse um trabalho de escola que ainda não

entreguei.

- Espero que resolva logo essa situação, disse a mãe, examinando umas vasilhas que

estavam na lavadora, para ver se estavam lavadas. Esses problemas de rompimento de

relacionamento deixam a gente muito insegura.

Nesse momento, o Sr. Jensen entrou de volta na cozinha e escutou o final da conversa.

- Estão falando da Tânia? indagou ele.

- Imediatamente Selena e a mãe ergueram os olhos para ele. Esta, com a expressão do

olhar, parecia dizer: Cuidado com o que vai dizer. A filha, por outro lado, suplicava: Conte

logo!

- É; parece que não, disse o pai, pegando um copo e enchendo-o de água.

Ele foi bebendo devagar, olhando para as duas. Quando terminou, colocou-o sobre a

mesa, sem explicar nada. Em seguida, deu um sorriso meio sem graça para a esposa e disse:

- Então, continuem conversando.

Fez um gesto de despedida, meio brincalhão, e saiu para a oficina.

- Está acontecendo algo com a Tânia que eu preciso saber? indagou Selena assim que o
pai se afastou. Quero dizer, já sei que ela tem de tomar uma decisão muito importante nestes

dias. Agora entendi que tem relação com um rompimento de relacionamento. É com o

Jeremy? Ela não vai terminar o namoro com ele, não, vai?

A mãe de Selena concluíra que as vasilhas que estavam na máquina ainda não haviam

sido lavadas e começou a colocar nela mais alguns copos. Não respondeu nada, concentrada

em fazer o serviço. Em silêncio, despejou sabão no compartimento apropriado e apertou o

botão de ligar. Só ai dispôs-se a falar.

- Não sei ao certo o que devo lhe dizer, querida. Acho que Tânia prefere que não

falemos nada, enquanto ela não tomar a decisão final. Faltam poucos dias, e creio que ela

prefere assim.

- Mas mãe, insistiu Selena, a gente é irmã. Por que temos de guardar segredo para um

membro da família?

A mãe suspirou e se encostou no balcão da cozinha, cruzando os braços. Em seu rosto,

estampou-se uma expressão de desalento.

- Você tem razão. Sempre agimos assim. Em nossa famiília, somos sempre francos e

sinceros uns com os outros. Mas creio que é melhor esperar a Tânia tomar a decisão dela e

depois, sim, poderemos conversar sobre a questão.

Selena não conseguia imaginar o que poderia ser essa decisão que tinha de ficar em

segredo. Voltou ao porão, onde retirou a primeira “trouxa” da máquina, passando-a para a

secadora e colocando outra braçada na lavadora. Tinha esperança de que o segredo da irmã

fosse algo muito bom, como o gatinho que ela ganhara no Natal, quando era pequena. É,

talvez a novidade que Tânia teria para revelar fosse algo assim.

Mas, por outro lado...


Capítulo Três

Na amanhã seguinte, às 7:30h, Selena se aprontou para ir trabalhar e pegou a cesta que

preparara. Dirigiu para a casa de Amy, orando silenciosamente, pedindo a Deus que lhe desse

uma reconciliação pacífica com a amiga. Teve de tocar a campainha três vezes. Afinal, o pai

de Amy veio abrir. Estava vestido com um roupão e tinha um aspecto sonolento e mal-

humorado.

- Oh, desculpe! foi logo dizendo a garota. Devo ter acordado o senhor! Vim fazer uma

surpresa pra Amy. Trouxe uma cesta de café da manhã pra nós.

O homem fitou-a com uma expressão de quem está confuso.

- Meu nome é Selena. Selena Jensen. Sei que faz muito tempo que não venho aqui...

- Amy foi dormir na casa da mãe dela ontem, falou ele.

E sem dar maiores explicações, fechou a porta. Selena quase deixou a cesta cair.

Na casa da mãe dela? O que está acontecendo? A mãe da Amy mudou-se daqui?

Voltou para o carro andando lentamente e aí se deu conta do quanto estivera “desligada”

de tudo que dizia respeito a amiga. No começo das férias, a colega lhe confidenciara que os

pais estavam brigando muito e falando em divorciar-se. Selena tentara tranquilizála, dizendo

que não devia ser nada sério. Todos os casais têm suas desavenças. Tudo acabaria bem,

dissera para Amy. Agora estava claro que se enganara.

Meio aturdida, entrou no carro para voltar para casa. Quando virou a esquina da rua 52,

avistou Ronny, que estava cortando a grama no quintal de um de seus clientes. No início do

ano ele começara esse trabalho de aparar gramados e, nas férias, pegara o emprego de “tirar

mesas” no restaurante. Com esses dois serviços e ainda o tempo que dedicava à sua banda -
qua ensaiava duas vezes por semana na garagem da casa do rapaz - ele estava sempre

ocupado.

Selena parou o carro junto ao meio-fio e desligou-o. Pegou a cesta e foi andando em

direção ao Ronny, acenando e chamando-o. Ele estava com um fone de ouvido, ligado a um

walkmam que se achava afixado ao cós da calça. Quando já se encontrava a poucos passos,

gritou de novo.

- Oi!

Dessa vez, ele ergueu a cabeça e avistou-a. Desligou o cortador de grama e tirou o fone.

- Ei! exclamou ele. O que está havendo? indagou.

- Você sabia que os pais da Amy se separaram? perguntou Selena.

- Sabia.

- Por que não me contou?

- Pensei que já sabia, que todo mundo sabia.

- Eu não tinha conhecimento disso, explicou a garota. Fui lá agora, e o pai dela me

disse. Ele me pareceu bem mal-humorado.

Ronny olhou para a cesta na mão dela.

- O que é isso? quis saber ele.

- Uma cesta de café da manhã.

- E tem algo pra se comer aí?

- É, replicou Selena. Tive essa bela idéia de fazer uma surpresa pra Amy, mas só que ela

dormiu na casa da mãe ontem. Puxa, não dá pra acreditar! Como é que ela está encarando

tudo isso?

- Não sei. Lá no restaurante, ela não conversa muito e, depois, ao terminar o serviço, sai

com o Nathan. Parece que a mãe dela se mudou para um apartamento em Halsey. Ouvi a Amy

contando isso pra alguém outro dia.


- E quando foi que ela saiu de casa?

- Quando você estava viajando.

Selena abanou a cabeça e deu um suspiro.

- Ah, eu sinto muito por Amy, desabafou.

Ronny concordou com um aceno de cabeça e em seguida apontou para a cesta.

- E então? O que tem ai? indagou.

- Por que? Está com fome?

O rapaz deu um leve sorriso, dando a entender que era uma pergunta tola.

- Espero que tenha aí uns pãezinhos de canela fresquinhos, lá do Mother Bear, insinuou

ele.

- Não, sinto muito. Só uns pãezinhos de trigo integral, replicou Selena. Lembre-se de

que preparei está cesta pra mim e pra Amy.

- ‘Tá bom, replicou ele, pegando a cesta da mão dela. Pão integral é bom.

Em seguida, saiu caminhando em direção a uma parte do gramado que já havia aparado.

Selena seguiu-o. Ronny sentou-se e tirou o pano de prato.

- Tem algo pra beber? perguntou.

- Não.

- Lá na caminhonete tem, disse ele.

Ergueu-se de um salto e foi ao veículo. Voltou com duas latas de refrigerante. Não

parecia combinar muito com pão integral e ovos cozidos, mas Selena não reclamou. Estava

satisfeita de, pelo menos, poder conversar com o Ronny. Tinha a impressão de que, no

momento, ele era seu único amigo.

- O que você quer primeiro? indagou ela. O pão ou o ovo?

- O que é isso? Será uma variação daquela velha pergunta: “Quem veio primeiro, o ovo

ou o pão integral?”
E o próprio rapaz riu de sua piada.

- Quero os dois, continuou. Vou fazer um sanduíche.

Tirou do bolso o canivete, abriu-o e limpou a lamina na calça. A seguir, fez o seu

sanduíche para o café da manhã.

Selena deu uma olhada pelos arredores, para as casas silenciosas que começavam a

despertar.

- Será que não tem importância a gente estar sentado aqui no gramado desse pessoal,

não? indagou ela.

- Claro que não. Eles não vão se incomodar, não.

A garota cortou seu pãozinho e passou geleéia nele. No alto, em meio às copas das

árvores, ouviam-se pombas arrulhando. De um lado, havia um canteiro de amores-perfeitos.

As flores, com a “carinha” engraçada, pareciam contemplar aqueles dois ali, deliciando-se

com seu banquete matinal. Infelizmente, porém, aquele cenário tão agradável e cheio de paz

não se harmonizava com os sentimentos de Selena. Contudo ela fez força para se acalmar e

tentar “curtir” esses momentos que passava ali com o Ronny. Talvez ele fosse o único amigo

de verdade que ela teria na escola, nesse ano. Foi então que se lembrou de perguntar-lhe algo

que, sem dúvida nenhuma, faria com que o colega começasse a falar sem parar.

- E aí? Como está indo a banda?

- A Vicki foi ao nosso ensaio ontem à noite, replicou ele, abrindo a latinha de

refrigerante. Ela achou que estamos fazendo um som muito legal.

Fazia algum tempo que Selena não assistia a um ensaio da turma dele. Um dia ela fora

lá, mas acabara ficando nervosa de ouvi-los tocar a mesma música várias e várias vezes.

- Hummm, que bom! comentou. E vocês já arranjaram um nome que agrade a todos?

- Quase.

- Você quer dizer que o nome do conjunto é “Quase” ou que quase arranjaram o nome?
Ronny deu uma risada.

- É, podemos colocar esse aí na lista. “Quase”. Seria bem radical. Não. O que quero

dizer é que quase escolhemos “Cavalo Branco”. Mas o Ben acha que já existe um grupo com

esse nome. A Vicki falou que dá pra checar isso na Intemet. Então ela vai verificar pra nós.

- Que legal da parte dela! comentou Selena pensativa.

Pôs-se a comer o pãozinho, procurando ao mesmo tempo reprimir o que sentia em

relação a Vicki. No início do ano, a garota havia convidado o Ronny para ir com ela a um

jantar beneficente de gala, e Selena logo a havia rotulado de “namoradeira”. Talvez não fosse

uma avaliação muito justa, mas o relacionamento das duas já começara errado. Pouco depois

que Selena se mudara para Portland, ela ouvira Vicki conversando com outra garota no

vestiário da escola, na primeira semana de aula. Estavam falando dela. A outra menina dissera

que Selena era “metida”. Esta, que escutara tudo do outro lado, dera a volta e as encarara,

dizendo que não era metida, não. Em seguida, saíra do vestiário pisando duro.

Recordando o episódio agora, reconhecia que não fora a maneira certa de resolver a

questão. Com aquela atitude intempestiva, ela apenas provara que as duas estavam com a

razão. Infelizmente, por causa disso, Selena ficara com a impressão de que não deveria

relacionar-se com Vicki. Depois, a outra ainda convidara o Ronny para aquele jantar, o que

piorara mais a situação. Naquela ocasião, Selena estava comecando a aprofundar a amizade

com o rapaz. Então teve a impressao de que Vicki estava se intrometendo entre os dois.

Já quase no final do ano letivo, Ronny e Selena haviam recebido uma tarefa escolar

especial. Teriam de trabalhar na Highland House, uma casa que dava assistência aos sem-teto,

e onde Selena ainda agora, vez por outra, prestava serviços. Vicki também fora designada

para atuar ali. Entretanto ela não se empenhara muito no trabalho. Houve dias em que nem

aparecera por lá.

De repente, Selena sentiu vontade de assistir ao ensaio da banda de Ronny. Sabia que
era tolice dela. Reconhecia que o faria apenas porque Vicki parecia estar muito interessada em

seus amigos, e não confiava muito naquela garota.

Talvez, se Vicki não fosse tão bonita, Selena não tivesse tais sentimentos. A moça tinha

cabelo castanho-claro, bem liso, que lhe caía pelas costas. Ela o penteava partido ao meio e

ficava constantemente jogando-o para trás. Tinha sobrancelhas finas e arqueadas, e belos

olhos verdes, que chamavam atenção para seu rosto. Quando alguém olhava para ela, o

primeiro ponto que fitava eram os olhos.

Selena tinha complexo de inferioridade em relação a essa colega. O que mais chamava a

atenção nela, para quem a visse pela primeira vez, era seu cabelo rebelde. Sabia que tinha

olhos bonitos. Eram azul-acinzentados, e alguém lhe dissera que eles mudavam de cor, de

acordo com o tempo. Seu corpo também sempre fora mais semelhante ao de um “meninão”

do que propriamente de uma “senhorita”. Contudo notara que ultimamente suas roupas lhe

pareciam mais justas no busto. Ou haviam todas encolhido, ou seu corpo finalmente entrara

em seu estágio final de desenvolvimento. Esperava que a explicação certa fosse a segunda.

De repente, se deu conta de que havia um bom tempo que estava calada. Então afastou

os pensamentos voltados para si mesma e perguntou ao Ronny como estava indo o serviço de

aparar gramados. Ao que parecia, o rapaz, que estivera preocupado em comer, nem notara que

ela ficara em silêncio.

- Tive de largar alguns, por causa da escola, principiou ele. E acho que vou ter de deixar

o restaurante também. Eles aumentaram minhas horas, passando para dezesseis horas por

semana. Mas, com a escola e os gramados que ainda tenho, não sobre tempo para a banda.

- Já deu o aviso lá?

- Não. Hoje de manhã eu estava até pensando e orando sobre isso. O que você acha?

- Acho que não vai dar conta de tudo. Vai ter de largar um deles.

- Ganho mais cortando grama. E quando trabalho sábado o dia todo, dá pra terminar
tudo. Assim fico com as noites da semana livres para ensaiar com a banda.

- É, parece que você pode largar o restaurante, e mesmo assim não terá muita perda

financeira, comentou Selena.

- Ontem à noite, pedi a opinião de meus pais e eles disseram que isso era comigo.

Falaram que vão me apoiar naquilo que eu decidir.

- Detesto isso; você não? interveio a garota. Ás vezes eu gostaria que meus pais me

dissessem o que devo fazer, em vez de deixar a decisão comigo.

- É mesmo. Engraçado, né? Uns anos atrás, eu reclamava que meus pais não me davam

muita liberdade para tomar minhas decisões. Agora eles dão, e ainda reclamo.

Ronny jogou na boca o último pedaço de pão. Uma migalha de gema de ovo ficou presa

no canto da boca. Selena lhe fez um gesto indicando que a limpasse. Ele passou a mão no

lugar e em seguida disse com firmeza:

- Vou dar o aviso lá no restaurante hoje à tarde.

- Quantos gramados você ainda tem pra fazer?

- Oito.

- E são todos grandes como este?

Ronny correu os olhos a sua volta.

- Alguns são, respondeu. Outros são menores. Sei lá. Gasta mais ou menos uma hora em

cada casa, menos em algumas daqui de perto. Nessas, gasto mais ou menos meia hora. No

sábado, faço dez casas. Tenho de trabalhar o dia inteiro, mas como eu disse, ganho um bom

dinheiro.

- Então é melhor eu deixar você trabalhar um pouco, disse Selena. Obrigada por ter

aceitado meu café da manhã.

- De nada, replicou o rapaz, rindo. Sempre que quiser, estou às ordens. Que pena que

Amy não estava na casa do pai dela! Mas com isso eu saí lucrando, completou ele, batendo de
leve na barriga, com ar satisfeito.

Selena pegou a cesta, entrou no carro e foi para o trabalho. Quando ali chegou, já havia

uma fila longa. Lavou as mãos, colocou o avental e foi substituir a Jody no caixa. No ar,

espalhara-se o delicioso aroma de pãozinho recém-assado misturado ao de canela. E cada vez

que alguém abria a porta, deixando escapar um pouco daquele cheiro, mais gente se sentia

atraída a entrar.

A garota reconhecia que tinha um ótimo emprego. Gostava muito dos colegas de

trabalho e principalmente de D. Amélia, a dona da confeitaria. Ela fora bastante compreensiva

quando Selena pedira uma licença para ir à Califórnia, nas férias. Depois, de lá, ela ligara para

a patroa, avisando que iria ficar mais uma semana fora. É que recebera um convite para viajar

à Europa com sua amiga Cris. D. Amélia lhe respondera que estava bem e que não precisava

se preocupar. Nessa “fugida” para a Alemanha e a Suíça - que apesar de curta fora muito

importante - Selena aprendera algumas lições preciosas. Ela entendera melhor um aspecto do

relacionamento humano. Compreendera que não podemos enfiar as amizades em “formas”

pré-fabricadas, nas quais elas não cabem. Ainda não sabia bem aplicar esse princípio no dia-a-

dia, mas iria tentar. E Amy era uma das pessoas com quem queria tentar aplicá-lo.

No mometo em que lavava o coador da máquina de café expresso, viu dois clientes

entrarem correndo pela porta. Uma chuva começara a cair de repente, e os dois estavam

ensopados. O brilho e a beleza do verão haviam acabado.


Capítulo Quatro

Selena não chegava a detestar a chuva, mas também não gostava dela. Era algo a que já

se acostumara ali em Portland. Às vezes, achava gostoso escutar o leve tamborilar das gotas

na janela do quarto. Esse ruído tinha um efeito tranqüilizante. Em outras, porém, a chuva

significava que não poderia ir ao jogo de beisebol nem passear com Brutus, o cão São

Bernardo da família.

Encerrado o período de trabalho, foi para casa e subiu imediatamente para o quarto,

ainda meio desarrumado. Pegou uma calça jeans, um moletom velho do irmão do qual se

apossara sem o perceber e foi para a banheira. Fazia um bom tempo que não tomava um

banho de imersão.

Pôs-se a esfregar a pele para remover o cheiro de café e de canela que se impregnara

nela, tentando não pensar em nada. Já verificara a caixa do correio; não chegara nenhuma

carta de Paul. Grande novidade! Também não queria começar a especular com relação ao

segredo de Tânia. E quanto a Amy, achava-se muito desanimada de tentar contactar a amiga.

Amizade é uma rua de mão dupla, não é? Então não sou só eu quem deve ficar

correndo atrás!

Não tinha muita certeza se estava pensando nisso com relação à Amy ou ao Paul. Não

tinha importância. Os dois pareciam ter adotado atitude igual: o silêncio. E o mesmo se

poderia dizer da tal decisão que Tânia deveria tomar.

Quem disse que o silêncio é de ouro nunca deve ter tido amigos e parentes iguais aos

meus, pensou.

Afinal ela se cansou do sossego do banheiro e saiu da água. Vestiu as roupas caseiras
confortáveis. Em seguida, desceu para o andar de baixo, desejando um pouco do barulho e da

agitação da família.

Sua mãe, Vó May e Dilton se encontravam na cozinha. A mãe estava colocando uns

pratos no balcão, e o garoto olhava para sua miniatura de carro para ver se a tinta se secara.

- Se pegar, vai deixar marca de dedo nele, avisou Selena. É melhor largar quieto aí a

noite toda e só pegar amanhã.

Ao que parecia, era uma decisão dificil para o menino. Não sabia se seguia o conselho

da irmã ou se obedecia ao impulso de tocar no objeto. Acabou cedendo ao impulso. Ele

espiou para um lado e para outro meio sem graça, para ver se alguém o havia notado. Selena

estava de olho nele.

- Está quase seco, comentou Dilton, procurando demonstrar naturalidade.

E foi saindo dali, limpando despistadamente a tinta vermelha que lhe manchara o dedo.

- Ah! Peguei! exclamou Selena, rindo.

- O que foi? indagou Vó May que estava na pia lavando uma xícara.

- Eu estava conversando com Dilton, vó, explicou a garota. Mãe, o que vai ter no jantar?

- Seu pai foi buscar comida no restaurante chinês.

- Ótimo! disse Selena, sentindo a disposição aumentar.

- Ah! fez Vó May, contraindo a rosto com desprazer. Acho que não quero comida

chinesa, não. Estou com vontade de tomar uma sopa.

E se dirigiu para a despensa.

- Mais alguém vai querer sopa? perguntou de lá.

- Não, obrigada, disse Selena, respondendo pelas duas.

- Deixe-me cuidar disso pra senhora, Vó May, interveio a mãe de Selena.

- Eu consigo fazer isso sozinha, Sharon, replicou a avó.

- Eu só quero ajudá-la, mãe.


Vó May virou-se e fitou a nora com expressão de espanto.

- Eu não sou sua mãe, sou?

- Mas o Harold, seu filho, é meu marido, explicou calmamente a mãe da garota. É

minha sogra, mas pra mim é como se a senhora fosse minha mãe.

- É, sei disso, replicou a avó em tom irritado.

Ela tinha na mão uma lata de canja que colocou no balcão.

- E está casa é minha. Vocês estão todos morando comigo e não querem deixar que eu

faça uma sopa pra mim.

A mãe de Selena afastou-se. A garota sabia que, quando a avó ficava confusa, era

melhor não conversar muito. Contudo, naquele momento, ela não parecia estar com a mente

embaralhada. Tudo que dissera era verdade. A casa era dela, sim. A família de Selena viera da

Califórnia para morar com Vó May, porque haviam sentido que esta não tinha mais condições

de viver sozinha. E todos eles tinham precisado se adaptar. Entretanto, desde que moravam

ali, havia quase um ano, Selena nunca ouvira a avó afirmar que a casa era dela, como se

alguém estivesse querendo negar esse fato.

- Não queremos impedir a senhora de nada, Vó May, explicou Sharon calmamente. Só

queria ajudar.

- Ajudar a abrir uma lata de sopa? Acho que não preciso disso. A vida toda, nunca

precisei de ajuda para abrir uma lata de sopa.

E continuou a resmungar, ao mesmo tempo em que prociurava um abridor de latas na

gaveta. Pegou-o e ficou tentando ajustá-lo na beirada da lata. Contudo essa atividade simples

para qualquer um era problemática para ela que tinha mãos trêmulas. Afinal, conseguiu

ajustá-lo e foi abrindo a lata com enorme esforço. Selena teve vontade de auxiliá-la, mas sabia

que era melhor deixar que a avó o fizesse sozinha.

Finalmente, com a lata aberta e a tampa segura apenas por um fiapo de metal, Vó May
foi pegar uma panela. Tirou uma do armário e derramou nela a sopa. Em seguida, com gestos

lentos, girou o botão da trempe para acender o fogo. Selena ficou admirada ao perceber como

tudo aquilo parecia dificil para a avó.

Deixando a sopa no fogo, Vó May voltou a despensa para pegar um pacote de biscoitos

cream cracker. Tirou uma tigela no armário e uma colher na gaveta. Parecia estar envolvida

com seu pequeno mundo particular. Selena não tentou conversar com ela nem procurou ajudá-

la. Ficou conversando com a mãe e pegou um pano para dar uma limpada na pia, como fazia

no seu serviço. Contudo ambas, com o canto dos olhos, se achavam atentas aos movimentos

de Vó May.

Assim que a sopa começou a ferver, a avó arranjou um pegador de panela e

vagarosamente foi despejando a comida na tigela. Em seguida, com a refeição na mão,

dirigiu-se à sala de jantar, deixando Selena e a mãe sozinhas na cozinha. Foi então que Selena

começou a compreender a tensão em que a mãe estava vivendo todos esses meses, desde que,

carinhosamente, havia passado a cuidar da sogra. Muitas vezes tinha de ir atrás dela, pela

casa, atenta para que a senhora não fizesse nada que pudesse causar dificuldades a outros ou a

si mesma. Vó May lhe dava mais trabalho do que os filhos pequenos, quando estavam

aprendendo a caminhar. É que, sempre que quisesse, ela podia encerrar os meninos no

cercadinho, mas não poderia fazer o mesmo com a sogra. A Vó May andava aonde queria,

abria portas, acendia o fogão e poderia até sair de casa e se perder.

- Será que tem algo que eu possa fazer pra ajudar? perguntou a garota para a mãe.

- Para o jantar?

- Não, replicou Selena, com essa trabalheira que a senhora tem com a Vó May.

A mãe deu de ombros.

- Ultimamente ela até que tem passado bem, respondeu.

- É, eu sei. Mas a senhora não tem de ficar de olho nela o tempo todo?
A mãe fez que sim.

- Quem sabe eu poderia sair com ela, passar uma tarde fora de casa, para a senhora não

ter de se preocupar pelo menos por algumas horas?

- Precisa não, Selena. Sua vida também está muito cheia. Você está no último ano da

escola, tem seu trabalho e tudo o mais.

- Mesmo assim posso fazer algo por Vó May, insistiu a garota, falando alto, mas

baixando a voz em seguida. Eu quero ajudar de alguma forma.

Nesse momento, chegaram o pai e Kevin trazendo as caixinhas de comida chinesa.

- Vamos comer logo enquanto está quente, disse o Sr. Jensen. Eu e o Kevin quase

abrimos esse negócio no caminho e começamos a comer.

A mãe de Selena foi pegar umas colheres de servir ao mesmo tempo em que dizia para a

filha:

- Se você quiser planejar um passeio com ela, pra mim tudo bem. Mas converse antes

com Vó May. Ela gosta de ter tempo para pensar bem em tudo e analisar as mudanças que

ocorrerão em sua rotina de vida.

A garota foi para a copa, onde a avó estava se levantando da cadeira. Sentiu um impulso

de ajudá-la, mas conteve-se.

- Tem certeza de que não quer mesmo a comida chinesa, vó? indagou. Está com um

cheirinho muito bom.

- Não, não Isso aqui está bom pra mim. Mas a sopa está quente demais. Vou para o meu

quarto, esperar que ela esfrie.

Com um movimento rápido, Selena se aproximou dela e pegou a tigela antes que a avó

a segurasse com suas mãos trêmulas.

- Deixe que eu levo pra senhora, disse ela.

- Obrigada, Queridinha, respondeu a avó. Eu agradeço muito.


Selena soltou um suspiro de alívio. Ao que parecia, sempre que a avó a chamava de

“Queridinha” estava com a mente lpucida. Ouvir esse nome, para Selena, significava o

mesmo que escutar o grito: “campo livre!” Quando eles eram pequenos e brincavam de pique,

era assim que anunciavam uns para os outros que poderiam sair do esconderijo, pois o

pegador não estava por perto. Tudo estava bem.

A garota foi seguindo a avó, enquanto esta subia a escada. Parecia que cada degrau

exigia um esforço maior da senhora. E mais uma vez Selena ficou impressionada ao constatar

o quanto a vida diária era penosa para sua amada avozinha. Afinal as duas chegaram ao quarto

e a avó se acomodou na poltrona.

- Mais alguma coisa, vó? indagou Selena assim que Vó May acabou de se ajeitar.

- Não, não. Aqui está ótimo. Obrigada! concluiu ela, dando um sorriso agradável e com

um ar de quem diz: “Pode ir agora!”

Descendo a escada, a garota se lembrou de que, pouco depois que haviam se mudado

para aquela casa, ela criticara os pais mentalmente. É que eles, às vezes, não chamavam Vó

May para se sentar à mesa com a família. Agora começava a compreender a razão disso.

Como todos eles juntos normalmente eram meio agitados e barulhentos, era melhor para a avó

ficar sozinha no quarto grande e confortável. Assim ela gozava de um ambiente mais calmo e

tranquilo.

Quando a garota voltou à cozinha, os outros já tinham se servido e estavam sentados em

torno da mesa da sala de jantar. Aí se recordou de que havia pensado em convidar Vó May

para sair com ela um dia, só as duas. Deixaria isso para depois. Agora aquela cheirosa comida

chinesa estava “chamando-a”.

Selena serviu-se de arroz com carne. Era o resto que ficara na caixa. Ficou satisfeita ao

ver que Dilton não pusera tudo no prato dele, já que essa era sua comida predileta. A garota

desembrulhou os “palitos” que tinham vindo junto com a refeição e ia levar à boca o primeiro
pedaço de came, quando o telefone tocou. Ainda com o prato na mão, pegou o fone. Era sua

irmã.

- Oi, Tânia! disse a garota, imitando o jeitão de seu amigo Ronny cumprimentar. O que

é que está rolando?

- Pra falar a verdade, muita coisa, replicou a outra.

- Você deve estar querendo falar com papai ou mamãe, né? disse Selena, equilibrando o

aparelho no ombro e levando à boca um pedaço de came.

- Não; acho até bom ter sido você quem atendeu. Gostaria de saber sua opinião sobre

uma questão.

Selena deixou a carne cair de volta no prato. Pôs a comida sobre o balcão e se encostou

no móvel. Estava boquiaberta; quase não acreditava no que ouvia. Em toda a vida, a irmã

nunca dissera algo assim.

- O.k., disse ela em tom controlado, procurando não demonstrar o espanto nem a

satisfação que sentia pelo fato de finalmente ficar sabendo do grande segredo. O que é que

está acontecendo? indagou.


Capítulo Cinco

- O que foi que mamãe e papai lhe contaram? perguntou Tânia.

- Nada.

Tânia soltou um suspiro.

- Eles são mesmo os melhores, não são, Selena?

A garota ficou sem entender.

- Os melhores o quê? indagou.

- Os melhores pais do mundo, explicou a irmã. Achei que eles poderiam ter contado

algo para você. Mas já deveria saber que guardariam segredo. Sou tão agradecida a eles. Você

vai ver, quando sair de casa. Aí compreenderá como em casa tudo é bom demais!

Selena pensara que a irmã iria revelar-lhe o grande segredo, mas agora ela parecia

interessada em falar só sobre os pais. A garota já sabia o quanto eles eram maravilhosos. Isso

não era novidade para ela. Pegou os palitos de novo e, fmalmente, conseguiu pôr na boca a

primeira “garfada”.

- Humm, hummm, disse, replicando a irmã.

- Eu preciso tomar uma decisão muito importante, continuou Tânia. Já conversei com

mamãe e papai sobre a questão uns dias atrás. Já falei com Jeremy também, é claro. Aliás,

muitas vezes. Comentei ainda com alguns amigos. Agora queria sua opinião, antes de dar o

passo seguinte.

- Ahn-hummm, replicou Selena de novo.

- Está jantando? quis saber Tânia.

Selena engoliu a comida e respondeu:


- Estou. Arroz chinês! Uma delícia! Peguei a última porção.

- Oh! fez Tânia, dando um suspiro. É daquele restaurante chinês que fica no centro da

cidade? Tenho uma saudade daqueles bolinhos deles!

- Ah, é mesmo! Os bolinhos de ovos! exclamou Selena.

E com isso saiu para procurar os bolinhos nas caixas de comida.

- Desta vez eles não vieram. Ou então todo mundo já os pegou antes de mim. Mas ainda

tem um resto de arroz e um pouco de frango com castanha de caju.

E com isso, Selena enfiou o “palito” numa caixa e pegou um pedaço de frango.

- Hummm! continuou ela. E esse frango está delicioso!

- Ei! Você está me torturando! gritou Tânia do outro lado da linha.

- Então estamos quites, interveio Selena, quase sem parar para pensar. Estou passando

por tortura mental tentando descobrir qual e o seu grande segredo.

Tânia fez uma pequena pausa e em seguida soltou tudo de uma vez:

- Encontrei a minha mãe biological Ela mora em Reno. Tenho vontade de conhecê-la,

mas não sei como devo agir.

Selena sentou-se num tamborete junto ao balcão.

- Como foi que você a descobriu? indagou.

- Um dos colegas de Jeremy, na faculdade, precisava realizar um trabalho de pesquisa

para uma das matérias da escola. Uma noite, o pessoal da nossa turma estava sentado

conversando e, de repente, eu disse: “Você poderia descobrir a minha mãe. Assim eu não

preciso pagar um detetive particular e economizo uma grana”. Ele achou a idéia ótima. E

aceitou fazer a investigação.

Selena quis que a irmã continuasse, mas parecia que esta preferia que ela fizesse

perguntas. Então resolveu atender.

- Como é o nome dela?


- Lina. Bonito nome, né? Lina Rasmussen.

- E mora em Reno? indagou Selena.

Imediatamente, a garota imaginou uma mulher de meia idade, talvez uma bailarina, o

que seria uma grande decepção para a irmã.*

___________________

*A cidade de Reno, como Las Vegas, vive da industria do jogo, e ali existiu muitos cassinos e clubes

notumos. Daí a suposição de Selena. (N. da T.)

- Ela trabalha lá, na universidade, prosseguiu Tânia, desmanchando a imagem mental

que Selena criara.

- O que mais você descobriu sobre ela?

- Muito pouco, replicou a jovem, falando devagar. Ela tinha quinze anos quando eu

nasci.

- Só quinze! Puxa! Coitada! Foi por isso que ela a entregou para ser adotada!

No instante em que Selena fez esse comentário impensado, arrependeu-se. Tânia sempre

ressentira muito o fato de ser filha adotiva.

- Desculpe, Tânia! interveio ela prontamente. Não tive a intenção de magoá-la!

- Não, replicou a jovem. Tudo bem. O Jeremy também disse mais ou menos o mesmo.

Falou que, considerando a outra alternativa, fora até muito bom que Lina tivesse resolvido me

entregar para ser adotada.

- Sei, falou Selena. Você quer dizer que a outra alternativa seria abortar?

Assim que a garota fez a pergunta, pôs a mão na boca.

- Ih, dei outro “fora”! Desculpe de novo, Tânia. Estou falando demais. É que fiquei

muito chocada com o que você disse.

- Não esquenta, não, replicou Tânia. Você tem razão. Lina poderia ter abortado, e aí
hoje eu não estaria aqui. Aliás, essa é uma das razões por que quero vê-la, continuou a jovem

em tom emocionado. Quero agradecer-lhe pessoalmente por ter me deixado viver. Vou lhe

dizer que a decisão que ela tomou foi a melhor possível.

Selena sentiu os olhos cheios de lágrimas.

- Acho que ela vai ficar muito feliz! comentou.

- Sei que esse negócio de procurar os pais biológicos nem sempre dá muito certo,

prosseguiu Tânia. Uma colega de trabalho me contou que sua prima descobriu o pai biológico

e depois ligou para ele. O homem lhe bateu o telefone na cara. Então ela lhe escreveu uma

carta, mas ele não respondeu. Parece que tem gente que quer esquecer completamente o fato

de que gerou aquele filho. E não gosta quando alguém os relembra disso

- Você vai escrever pra Lina, ou telefonar pra ela, ou o quê?

- Não sei ainda. É por isso que quero sua opinião. Conversei com papai e mamãe para

me orientarem sobre como devo agir, mas eles disseram que isso é comigo. Depois mamãe me

ligou e disse que ela e papai tinham opiniões diferentes. Ela acha que devo escrever. Papai

acha que devo telefonar.

- E você? O que acha? indagou Selena.

- Estou indecisa. Jeremy é de opinião que devo ir procurá-la. Assim ela não vai poder

desligar o telefone na minha cara nem deixar de responder a uma carta.

- É, mas assim você estaria “forçando a barra”, comentou Selena. Quero dizer, imagine

só uma garota passando o que ela passou aos quinze anos. Aí, quase vinte anos depois, você

simplesmente aparece na frente dela.

- É verdade. Por isso é que gostei da sugestão de mamãe, escrever para ela primeiro.

Assim posso dizer aquilo que realmente quero e agradecer por ter me dado vida. E se ela não

sentir vontade de responder, pelo menos fiz o que queria: dizer para ela tudo o que penso.

- Será que isso tudo não deixa papai e mamãe aborrecidos, não? indagou Selena.
- Sei lá. No começo, eles ficaram um pouco espantados, mas me deram total apoio.

Você sabe como eles são, né? Mas hoje, já não tenho muita certeza. Mamãe disse algo que me

deu a impressão de que está um pouco incomodada, sim. Deu a entender que quer que eu

termine logo com isso.

- É, afinal foi ela que a criou, comentou Selena.

- Sei, interveio Tânia. E é por essa razão que, quando falei de Lina, não disse que era

minha “verdadeira” mãe. Para mim, ela é apenas mãe biológica. A verdadeira é a mamãe. E já

falei isso pra ela.

Selena remexeu-se no tamborete, procurando uma posição mais cômoda.

- É, concordou, e sei que fazia muito tempo que você queria procurar sua mãe. Uma vez

você me disse que iria contratar um detetive para isso. Mas parece que Deus está resolvendo

tudo muito bem.

- Também penso assim, disse Tânia. E parece que o Jeremy está mais empolgado do que

eu. Disse que preciso consolidar meu senso de identidade.

- Que é isso?

- Eu preciso ficar bem certa sobre quem sou e como Deus quer que eu seja. Mas eu

mesma ainda não sei direito o que acho de toda essa questão, falou Tânia com um suspiro.

Tenho uns conhecidos que são adotivos e disseram que raramente pensam nos pais biológicos.

Eu não sou assim. Há muito tempo que esse assunto vem me perturbando. Quero ver se meus

olhos são iguais aos dela. E talvez ela me diga que minha risada lembra a do meu pai. Quando

eu era pequena, volta e meia alguém - que não nos conhecia bem - dizia: “Você não se parece

nem com seu pai nem com sua mãe”. Ou às vezes eu escutava comentários assim: “Os filhos

do Harold e da Sharon se parecem tanto uns com os outros, menos a garota mais velha!” Isso

me deixava muito incomodada.

- É, interveio Selena, mas “a senhora” não deve ter escutado os outros comentários que
eu ouvia. Eles diziam: “Essa Tânia é muito mais bonita que a irmã dela”. Foi isso que tive de

aguentar a vida toda. Sempre estive em segundo plano com relação a você.

- Selena! exclamou Tânia em tom de espanto. Logo você, que sabe muito bem que não

devemos nos comparar uns com os outros, vem me dizer isso?

- Você também não estava se comparando?

Tânia fez uma pausa.

- É, comparei, sim. E o Jeremy vem me dizendo o mesmo há muito tempo. Foi

exatamente por esse motivo que ele afirmou que preciso consolidar meu senso de identidade.

Teoricamente, sei que meu senso de identidade deve vir de Jesus. Eu deveria estar procurando

saber como Deus quer que eu seja. Mas creio que ainda não apliquei isso na realidade.

Selena fez que sim. Entendia muito bem essa questão. Estava achando maravilhoso a

irmã abrir o coração para ela. Por uns instantes, ambas permaneceram em silêncio. Selena

comeu outra garfada.

- E aí? Você e o Jeremy estão ficando firmes no namoro? indagou.

- Tem hora que acho que sim, explicou a irmã. Outras vezes fico meio em dúvida. Ele

nunca me falou em casamento, se é o que você quer saber. É que primeiro pretende terminar a

faculdade, mas quer muito que continuemos o namoro. Nos não conversamos sobre nenhuma

outra possibilidade. Ah, e por fallar nisso, como vai seu relacionamento com o Paul? Um

tempo atrás, você me disse que ele lhe escreveu. Já recebeu mais cartas dele?

- Não. Escrevi duas vezes pra ele, mas ele não respondeu. Então decidi esperar um

pouco e ver se ele manda uma resposta. Só depois é que vou escrever de novo. Num

relacionamento com um rapaz é muito dificil ter certeza de algo, né? Uma hora a gente pensa

que está com “luz verde” e, de repente, ela fica “amarela”. Nunca sei se o sinal está aberto e

posso seguir em frente ou se está fechado e tenho de parar.

Tânia soltou uma risadinha alegre, revelando que compreendia muito bem o que a irmã
dissera.

- É, disse ela, você expressou tudo com muita clareza. Rapaz é assim mesmo.

Selena olhou para fora.

- Quero dizer, eu abri o coração pra ele e falei coisas que não digo pra quase ninguém,

comentou ela, sentindo lágrimas lhe brotarem dos olhos.

- É, concordou Tânia, a gente sente que se expôs. É como se tivéssemos dado o coração

para um rapaz e depois ficássemos com medo de o cara “pisar” nele.

Selena fungou e em seguida respondeu com voz rouca:

- Isso mesmo!

- Mas vai dar tudo certo, Selena, interveio Tânia prontamente. Ainda que ele não

responda as cartas, está tudo bem. Não se feche, não, viu? Não perca nunca essa

espontaneidade, esse jeito franco. Seja sempre como você é, mesmo que uma hora diga algo

de que depois se arrependa. Todo relacionamento, na verdade, é um processo. A gente vai

aprendendo à medida que “caminha”. É assim para todo mundo.

Selena pegou um guardanapo na cesta que se achava na ponta do balbão e limpou os

olhos.

- Eu queria entender melhor todos os aspectos do relacionamento humano e já saber

antecipadamente tudo que irá acontecer, comentou a garota, pensando em Paul e também em

Amy. E se tivesse conhecimento de antemão do que o outro estava pensando e do que iria

acontecer com ele, já saberia o que pensar e como deveria agir.

- Infelizmente, Selena, a vida não é assim. Muitas vezes a gente conhece muito pouco a

respeito dos outros; e tem de agir com base nesse pouco. Dessa forma, temos de confiar mais

em Deus.

- É, concordou ela. E isso se aplica ao meu relacionamento com Paul e a decisão que

você tem de tomar com relação à sua mãe biológica, se vai telefonar ou escrever, né?
Tânia permaneceu uns instantes em silêncio e depois respondeu:

- É, tem razão.

- Todo mundo pode dizer que você deve ligar pra ela, que o sinal está aberto. Mas

depois você pode descobrir que ele está fechado; e se avançar, tera um monte de problemas.

- É verdade, disse Tânia em voz baixa. É isso mesmo. Creio que vou ter de seguir o que

eu mesma disse. Tenho de agir com base no pouco que sei. Nessa questão, tenho de confiar

totalmente em Deus.

- E como vai saber se tomou a decisão certa? perguntou Selena.

- Acho que só o tempo dirá!


Capítulo Seis

Selena entrou na classe no momento exato em que a campainha acabava de tocar. Era

aula de Literatura. A Prof.ª Charlotte olhou-a com uma expressão séria, como que a

repreendendo. A garota sentou-se e pegou o caderno, sentindo o coração bater rápido.

Atrasara-se porque ficara conversando com Amy no corredor.

Havia avistado a amiga perto do escaninho pouco antes da hora de a aula iniciar.

Resolvera seguir o conselho de Tânia, pois tinha a impressão de que o “sinal estava aberto”.

Caminhara direto para a amiga.

- Oi! dissera. Será que dá pra gente conversar depois da aula?

Pega de surpresa, Amy respondera:

- Tudo bem!

Selena então lhe sugerira que as duas se encontrassem ali, perto do escaninho. E ficara

combinado. Estivera procurando confiar totalmente em Deus, como aconselhara Tânia.

- Vou dar um trabalho para sexta-feira, disse a Prof.ª Charlotte, distribuindo umas folhas

de papel. Isto é uma lista de escritores, com o título de algumas obras de cada um. Vocês vão

escolher um dos livros de um autor e fazer uma análise literária. Quem quiser créditos a mais

pode fazer dois trabalhos. Na outra folha, estão as perguntas que vão responder para a análise.

Selena correu os olhos pela lista e reconheceu apenas metade dos nomes.

- Olhe aqui, gente, continuou a professora, encostando-se na ponta da mesa, não deixem

para fazer o trabalho lá pelas 10:00h da noite de quinta-feira, não. Vão logo à biblioteca, tirem

o livro e leiam o capítulo marcado. Naquela mesa no fundo da sala, há algumas das obras da

lista. Quem quiser, pode pegar emprestado. Mas é só até sexta-feira.


Ao fim da aula, a professora deu alguns minutos para os alunos examinarem os livros.

Selena foi à mesa, pois decidira pegar um deles. Escolheu uma coletânea dos poemas de

Emily Dickinson. Vicki também se aproximou e pegou uma obra de Henry Wadsworth

Longfellow.

- Selena, disse ela, eu estava pensando que poderíamos dar uma saída juntas, pra fazer

algo.

A garota olhou-a sem entender.

- Fazer o quê?

O rosto de Vicki avermelhou-se.

- Sei lá, disse. Fazer umas compras ou lanchar.

Selena controlou-se para não demonstrar espanto.

- Claro, respondeu afinal. Podemos, sim.

- Que tal depois da aula, então? indagou Vicki.

- Hoje já tenho um compromisso.

- Então amanhã.

- Amanhã tenho de trabalhar, explicou Selena.

- ‘Tá bom, outra hora então, prosseguiu a colega. Quando você tiver uma folga me

avise, ‘tá?

- O.k.! disse Selena.

Em seguida, enfiou os braços nas alças da mochila, firmando-as nos ombros. Dirigiu à

colega um olhar de dúvida.

Achei que ela não ia muito com a minha cava, pensou. Será que está pretendendo algo?

O que será? Será interesse no Ronny?

Pondo de lado as indagações com relação a Vicki, Selena passou o resto das aulas

pensando em como conversaria com Amy na saída. Planejou tudo direitinho, mas, quando
chegou junto ao escaninho para esperar a amiga, percebeu que estava um pouco nervosa.

Ronny aproximou-se.

- Já lhe contei que dei o aviso no restaurante? indagou ele.

- Não, replicou ela. Deu prazo de duas semanas?

- Dei, retrucou o rapaz. Falei duas semanas, mas o cara disse que, se eu trabalhar no

horário do almoço no sábado, posso sair esta semana mesmo.

- E como vai fazer com os gramados marcados pra sábado?

Ronny deu de ombros.

- Peço alguém pra trabalhar pra mim.

A garota notou que ele amarrara o cabelo atrás, como num rabo-de-cavalo, e enfiara a

ponta dele debaixo do colarinho. Parecia querer escondê-lo.

- E no que deu o aviso que a secretaria lhe deu com relação ao comprimento do seu

cabelo? perguntou ela.

- Nada.

- Vai cortar?

- Não sei. Hoje no almoço, todo mundo estava dizendo que essa norma é meio sem

sentido. Disseram que eu deveria fazer um requerimento pedindo para a mudarem. Acham

que o regulamento deve exigir apenas que a gente esteja com o cabelo sempre limpo e bem

penteado; e que, estando assim, o comprimento não importa.

- E assim você vai mudar um regimento que já tem cinnquenta anos?

O rapaz deu de ombros novamente.

- Bom, eu não me considero exatamente um aluno rebelde.

- Mas será que eles não estão achando isso, pelo fato de ter deixado o cabelo crescer?

- Deixei comprido por causa da nossa banda, explicou Ronny. Acho que assim a gente

fica mais de acordo com o pessoal que frequenta o The Beet. O que você acha?
- Sei lá, replicou a garota. Nunca fui ao The Beet. Também não prestei atenção ao

cabelo do pessoal da banda. Tem certeza de que vai ficar de “pé firme” nessa questão?

Ronny ajeitou a mochila no ombro.

- Não sei.

- Pretende conversar com seus pais sobre isso? quis saber Selena.

- É, talvez eu devesse.

O rapaz ergueu o olhar, fitando alguém que se aproximava, e deu um cumprimento.

- Oi, Amy! Como vão as coisas?

- Oi, Ronny! replicou a garota, olhando para Selena.

- Olá! falou Selena.

- Bom, gente, disse Ronny, entendendo a situação, vou dar o fora!

- Precisa não, interveio Amy. Pode ficar. Se for por minha causa, não precisa ir embora,

não. Vim aqui só pra lhe dizer, Selena, que esqueci que tinha de sair agora.

A garota sentiu o coração apertado.

- E mais tarde? À noite? indagou.

- Hoje à noite vou trabalhar e depois tenho muito dever da escola pra fazer.

- Quando é que você vai poder então? insistiu Selena. Preciso muito conversar com

você.

Amy passou a mão no cabelo castanho anelado, procurando ajeitá-lo.

- Não sei, respondeu, sorrindo para Ronny e evitando fitar a amiga diretamente. ‘Tá

bom. Tenho de ir embora. Tchau, gente.

E saiu apressada. Selena acompanhou com o olhar a colega que desceu o corredor

praticamente correndo, saiu pela porta de folha dupla que dava para o estacionamento e se foi.

A garota se viu dominada por um forte sentimento de apreensão e desalento. Ronny

compreendeu o que se passava.


- Olhe, Selena, disse ele, inclinando-se para fitá-la, não fique se condenando. Você fez

tudo o que podia. Dê mais um tempo.

- Mais um tempo? repetiu ela. Por que será que a gente tem de dar mais um tempo a

tudo na vida? Estou cansada de esperar! Por que nossos relacionamentos não podem ser mais

descomplicados, sem essa... essa... o quê?

- Vida, concluiu o rapaz com ar sério. Isso é da vida, Selena. Não é igual nos livros, é?

- Pois não estou gostando nada disso! exclamou a garota, fazendo uma careta. Por que

ela não quer conversar comigo?

Ronny deu de ombros.

- Isso me da uma frustração! desabafou Selena.

- É, deve dar mesmo, concordou o rapaz.

Selena suspirou e ajeitou a mochila no ombro.

- Vamos, disse Ronny, puxando-a pela manga da blusa. Vamos comer tacos* e tomar

leite. Eu pago. Assim você vai se reanimar um pouco.

___________________

*Tacos: uma comida típica mexicana, constituída de uma espécie de panqueca, recheada com carne

moída, alface picada, queijo picado ou ralado e outros ingredientes. (N. da T.)

Selena puxou o braço.

- Mas só tacos e leite, né?

- ‘Tá bom, concordou ele e comentou: Você é a única pessoa que conheço que toma

leite, em vez de refrigerante, quando come tacos.

- E o que tem isso? resmungou ela.

Ronny se pôs a caminhar à frente dela, saindo do prédio da escola.

- E pode deixar que eu pago, repetiu ele.


- Em que carro? falou a garota, quando chegaram ao estacionamento.

- No meu, disse Ronny. A caminhonete está logo ali.

Quando já se dirigiam para a lanchonete Lotsa Tacos, que ficava a duas quadras dali,

Ronny indagou:

- A Prof.a Charlotte deu pra vocês a mesma tarefa que deu pra minha turma?

- Ela mandou fazer análise literária de uma obra de um escritor americano. Você pegou

um dos livros que ela pôs à disposição?

- Não, replicou ele. Você pegou?

- Peguei.

- Será que ela acharia ruim se eu fizesse do mesmo autor que você? quis saber o rapaz.

- Creio que não. Estou pensando em fazer meu trabalho hoje à noite. Então posso passar

o livro pra você amanhã. Mas tem de devolvê-lo até sexta-feira, viu? Está no meu nome.

Resolveram entrar na lanchonete em vez de utilizar o sistema drive thru. * Selena levou

consigo a mochila e, enquanto Ronny fazia o pedido, retirou o livro de Emily Dickinson. Leu

rapidamente o prefácio e em seguida pôs-se a folheá-lo. Teve um sentimento do satisfação ao

constatar que os poemas eram todos bem curtos.

___________________

*Drive thru: um sistema de comércio pelo qual o cliente compra sem sair do carro. Ele para o veículo

junto a um guichê onde faz o pedido. Em seguida, passa a outro guichê, onde paga. Afinal, recebe a compra em

um terceiro guichê. (N. da T.)

Ronny voltou trazendo os tacos, um copo de refrigerante tamanho grande e uma

caixinha de leite de 250ml.

- Ei, você não almoçou, não? quis saber Selena.

- Almocei. Por quê?


- Deixe pra lá.

Ronny sentou-se.

- É esse o livro do trabalho de literatura? indagou, apontando para o volume.

- É, replicou a garota, erguendo-o e mostrando-o ao colega. É uma coletânea de poesias

de Emily Dickinson.

- Poesia? repetiu ele. Pensei que tínhamos de ler contos, ou algo assim.

- Poesia é melhor do que conto, explicou Selena. Um poema é uma idéia apresentada

numa “embalagem” pequena, belamente ornamentada.

- Esplêndido! exclamou o rapaz em tom irônico, batendo o canudinho na mesa para

rasgar o invólucro de papel. Sempre sonhei em fazer uma análise literária de uma idéia

apresentada em embalagem pequena!

- Ei! Não fale assim! protestou a garota, saindo em defesa da poetisa. E as músicas que

vocês compõem? O que são? A letra de uma música é como uma pequena poesia.

- Hummmm, fez Ronny.

- Hummm, o quê?

- Isso mesmo, hummm. Não sei se concordo bem com você.

- Espere aí. Vou ler uma pra você. Talvez fique mais inspirado.

- Inspirado?

- É. Olhe o que diz aqui. “Emily Dickinson escreveu mais de 1.700 poemas, mas

publicou apenas dez em vida. O primeiro volume de versos dela só saiu impresso depois de

sua morte.”

- E quando foi que ela morreu?

Selena correu os olhos pela introdução.

- Aqui não diz. Só diz que ela nasceu em 1830.

Selena sentiu uma emoção diferente, ao pensar que iria ler palavras que haviam sido
escritas mais de cem anos atrás. E a mulher que as escrevera nem sabia que um dia iria se

tornar famosa.

- Olhe, disse ela, apoiando-se na mesa, vou ler um aqui pra você.

Numa terra, que nunca vi,

Estão os Alpes imortais, dizem.

O “chapéu” deles toca o firmamento,

Os pés, a aldeia embaixo.

Perto desses pés eternos,

Brincam miríades de margaridinhas.

Qual delas, senhor, é você? Qual sou eu?

Neste dia de agosto?

- O que ela quer dizer com isso? quis saber Ronny, mastigando um pedaço de taco.

Selena sentia o coração bater forte, cheio de contentamento. Ela já experimentara a

emoção de contemplar os “Alpes imortais”, cujo “chapéu” toca o céu e cujos “pés” estão na

aldeia embaixo. E num dia de agosto, ela estivera lá, numa colina cheia de margaridinhas. E

até fizera um piquenique ali. O “senhor” do seu poético passeio era Alex. E, como Emily, ela

também fizera algumas perguntas sobre o papel deles na vida.

Olhou pela janela, fitando o claro céu de outono. Naquele momento, parecia

completamente alheia ao ronco dos motores dos carros parados no sinal ali perto. Em agosto,

ela abrira o coração para Alex. Abrira só um pouquinho, mas fora uma experiência

maravilhosa. Sentia até que crescera emocionalmente.

De repente, compreendeu que não errara em ter aberto o coração para Paul, nas duas

cartas que lhe escrevera. Mesmo que ele nunca as respondesse, agora reconhecia que havia
“crescido”, pelo fato de havê-las escrito. E talvez até tivesse podido ajudar o Paul também. E

era isso que queria. Era possível que, em certos relacionamentos, algumas perguntas nunca

fossem respondidas.

E, quem sabe, nem precisassem mesmo de respostas.


Capítulo Sete

- Oi, Selena! chamou Ronny, passando a mão diante do rosto dela e tapando-lhe a visão

do céu. Com isso, ela voltou à realidade, dando-se conta de que estava na barulhenta

lanchonete.

- “Onde” você estava? indagou o rapaz.

A garota sorriu, mas não respondeu.

- Posso ler outra poesia da Emily pra você? perguntou.

- Depende, replicou ele. Vai “viajar” de novo?

- Não sei, respondeu. Vamos arriscar?

Virou a página e leu:

É assim que leio uma carta.

Primeiro, tranco a porta.

Depois giro a maçaneta

Para ver se está bem fechada.

Em seguida, vou para o canto mais afastado

Para não ouvir ninguém bater.

Por fim, tiro minha cartinha do envelope

E devagarinho espio pela fechadura dela.

E a poesia continuava, mas Ronny a interrompeu. Agora era ele que estava olhando para
fora, parecendo ter sido levado para outro mundo.

- Olha só! exclamou ele. É o novo diesel turbo 780! Aquele preto ali! Faz pouco tempo

que saiu. É o primeiro que vejo.

Selena virou a cabeça e olhou para a fileira de carros na rua. Não tinha a menor idéia de

qual veículo ele estava falando. E também nem queria ter. Estava mais interessada em ler os

pensamentos daquela mulher que sabia o que era esperar uma carta e depois ir fechar-se no

quarto para “espiar pela fechadura” dela e “saboreá-la” sozinha. Esse pensamento fez com

que sorrisse.

- Vai comer isso aí? indagou Ronny, apontando para o tacos em que ela nem tocara.

- Não, replicou. Pode ficar pra você, respondeu, voltando a atenção para o livro e lendo

o resto do poema só para si.

O rapaz devorou o lanche.

- Sabe o que mais? perguntou ela depois de alguns instantes. Mudei de idéia. Não vou

lhe emprestar este livro, não. Quero ficar mais um tempo com ele.

- Você entende mesmo o que ela está dizendo ai? quis saber ele.

- Tudo, não. Mas há umas partes dele que se aplicam a fatos que me dizem respeito.

Ronny amassou os papéis dos invólucros dos tacos e levou tudo para a lixeira, sem fazer

nenhum comentário. Selena atrás dele, carregando sua caixinha de leite, do qual tomara muito

pouco.

- Amanhã eu pego outro livro, disse o rapaz. Pode ficar com essa Emma só pra você.

- Emily, corrigiu a garota.

- Como queira! replicou ele.

Eles entraram na caminhonete e voltaram ao estacionamento da escola. Rodando de

volta para casa, Selena ia pensando nos poemas. Iria tentar ler o restante do livro agora à noite

e começar o trabalho de literatura. Seria bom se já se adiantasse um pouco nesse semestre.


Contudo estava tão fascinada pelas três poesias que lera, que queria “degustar” lentamente os

outros poemas, antes de iniciar a análise literária.

Estacionou em frente de casa e foi direto à caixa do correio pegar a correspondência, um

hábito que cultivara ultimamente. Abriu a portinhola de tela e dirigiu-se para a cozinha,

colocando tudo sobre o balcão.

- Oi, pessoal! gritou. Cheguei!

- Estou aqui embaixo, respondeu a mãe, que se achava no porão.

A garota examinou rapidamente a correspondência que acabara de pegar. Havia

algumas contas, impressos publicitários, uma carta para Vó May e mais dois envelopes.

Aqui ela parou, de fôlego suspenso. Os dois estavam endereçados a ela, em tinta preta,

numa caligrafia grande que ela conhecia bem. Os selos traziam o perfil da rainha da Inglaterra

e estavam carimbados com a data de 12 de setembro. Olhou o remetente. Era o nome que, nos

meses anteriores, ela sussurrara muitas vezes em suas orações: Paul Mackenzie.

Então ele não me esqueceu, pensou. Pôs estas cartas no correio mais de uma semana

atrás. Ah, então o Paul também esteve pensando em mim.

Seu coração batia apressado, lembrando uma borboleta apanhada numa rede. E não

conseguia parar de sorrir. Não havia ninguém por perto. Então pegou as duas cartas e foi

andando de mansinho para o escritório, dirigindo-se para sua poltrona predileta.

Entrou e trancou a porta, como no poema que lera instantes atrás. Puxou a cadeira para

perto da porta de vidro, através da qual o Sol outonal derramava sua luz maravilhosa. E ali, ao

brilho daquele clarão suave, sentou-se, segurando uma carta em cada mão.

Qual delas abro primeiro? Talvez ele tenha posto a data na carta.

Rasgando o envelope, Selena abriu uma delas. Tinha uma página só. Era um papel bem

fino e delicado, que fez um barulhinho característico quando ela o desdobrou. Olhou aquela

letra grande que já conhecia tão bem. A data marcada era 7 de setembro.
Selena não sabia se teria coragem de deixar de ler essa e abrir a outra. Contudo teria

mais sentido lê-las na ordem em que tinham sido escritas. Abriu a segunda rapidamente.

Tinha três folhas, e a data era de 10 de setembro.

Apertou os lábios um contra o outro e voltou à primeira carta.

Prezada Selena,

Ainda não recebi a resposta da carta que lhe escrevi e entendo que você pode até nem

responder. Como disse em minha ultima carta, se você não quiser se corresponder comigo,

entenderei perfeitamente.

- Ele não recebeu minhas cartas! exclamou ela, erguendo os olhos e fitando os

cisquinhos de poeira que “dançavam” no feixe de luz que entrava pela vidraça.

Continuou a ler.

Eu ainda queria lhe dizer mais uma coisa e depois não a incomodarei mais. Uns meses

atrás, quando estávamos no avião, você falou algo que nunca mais esqueci. E quero lhe dizer

isso. Você me perguntou como eu me sentia com a morte do meu avô. Você foi a única pessoa

que me fez essa pergunta. Muita gente me disse como “eu devia me sentir”. E ainda fazem

isso. Muitos me dizem: “Ah, isso passa. Depois você supera isso”. Outros comentam: “Você

devia ter orgulho de ser neto desse homem”.

Selena, você foi a única que perguntou o que eu sentia. Quero agradecer muito. Aquilo

me deu tranqüilidade para sentir o que preciso sentir.

Que a paz de Cristo esteja com você,

Paul

Selena dobrou a carta e em seguida, meio ansiosa, pegou a outra.


Oi, minha rainha dos lírios!

A garota aproximou a folha do próprio peito e, erguendo os olhos para o teto, mordeu o

lábio inferior, reprimindo a vontade de dar uma risadinha.

- “Oi, minha rainha dos lirios!” repetiu em voz alta.

Lembrou-se da ocasião em que estava andando na rua, debaixo de chuva, carregando

um buquê de lírios amarelos, e ele a avistara ali. Depois fizera uma pequena gozação dela.

Agora, porém, o “título”que ele lhe dera tinha um “sabor” diferente, bem mais doce.

Já li e reli suas duas maravilhosas cartas umas dez vezes; e ainda continuo rindo delas.

Você tem um jeito tão gostoso de escrever! Tive a impressão de que estava “vendo” os casos

que me contou. “Vi” seu pai levando-a ao restaurante, onde seus amigos trabalham, e ali lhe

dando a aliança do compromisso de pureza. “Enxerguei” direitinho o Douglas amarrado

naquela balsa da Ilha Balboa e até a sua viagem à Suíça.

Ri às gargalhadas quando contou que você e sua amiga derrubaram uma estante de

cartões na lojinha elegante de Basiléia. E sei exatamente como ela é. Aqui tem uma casa de

chá, aonde minha avó vai toda quarta e sábado, para lanchar com umas amigas. Logo que

cheguei aqui, um dia ela me levou a essa confeitária. Acredito que a intenção dela era me

“exibir” para as outras senhoras do lugar, para elas verem se eu poderia ser um bom

candidato a marido das netas delas. Sentamos a uma mesinha próxima da janela. Assim que

o garçom serviu o chá com os pãezinhos, tivemos um pequeno “acidente”. Sem querer, dei

um chute na perna da mesa, que aliás é bem velha, e tudo caiu no chão: o bulê de chá, as

xícaras e a toalha!
Selena não pôde conter uma risada. Inclinou a cabeça para trás e soltou uma boa

gargalhada. Estava praticamente “enxergando” a cena. Sabia como eram essas casas de chá,

que certa vez, quando estava na Irlanda, fora lanchar numa delas. E sabia como aquelas

mulheres inglesas levavam a sério a “hora do chá”, que para elas deve ser cercado de muita

elegância e tranquilidade. Coitado do Paul! Que vergonha ele deve ter sentido!

As aulas da faculdade iniciaram-se já há várias semanas. Minha vida atualmente só

consiste em estudar, estudar e estudar. Talvez seja por isso que gostei tanto de suas cartinhas

alegres.

E você? Como foi na primeira semana de aula? Você contou que estava tendo um

problema com sua amiga Amy. E aí? Já resolveu?

No ano passado, eu tinha muitos amigos na escola. Sempre havia algum com quem se

podia sair. Aqui, porém, tenho poucos colegas que são amigos. Não sei se o problema é

comigo ou com eles. A verdade é que no ano passado, não tive muitos amigos que, como se

diz, eram “boa companhia”. E aqui ainda não conheci ninguém que tenha os mesmos valores

que agora assumi. Então fico sozinho a maior parte do tempo, em vez de ir para os barzinhos

com os colegas. Aliás, isso está sendo bom para mim. Até o momento, tenho tirado só notas

boas. Nos finais de semana, geralmente, vou para a casa da minha avó, onde faço uns

pequenos serviços aqui e ali.

Já lhe falei da casa de minha avó? É uma residência muito antiga, do tipo chalé. O

alicerce dela tem mais de duzentos anos. Mas a estrutura já foi remodelada uma porção de

vezes. Os melhoramentos mais recentes datam de quatro anos atrás. Minha avó possui um

forno de microondas e já instalou uma fornalha à lenha, que aquece a casa toda. Mas não

quer nem ouvir falar em lavadora de pratos nem triturador de lixo. O terreno da propriedade

É grande, mas cheio de morros e com muitas pedras. Pertence à nossa família há várias
gerações. Antigamente, eles criavam ovelhas aqui. Agora não criam mais. Minha avó

conserva apenas uma cadela da raça collie, chamada “Laddie”. Tem ainda um jardim e uma

horta, que neste verão não deu muita coisa, pois fez calor demais.

Estou escrevendo no trem, indo para a casa de minha avó. Vou descer na próxima

estação, então tenho de concluir esta carta. Já estou esperado ansiosamente sua próxima

correspondência. Talvez até já tenha uma lá no chalé à minha espera. Por favor, conte-me

tudo que está acontecendo aí em Portland. As chuvas de outono já começaram? Ou o Sol

ainda está quente e o céu com aquele tom azul brilhante que ele tem quando as folhas das

árvores começam a amarelar? Aqui tem chovido muito pouco, e todo mundo está desejando a

estação chuvosa.

Então, um abraço para você, Selena. Estou orando por você. Que a paz de Cristo reine

em seu coração.

Paul

Selena baixou no colo as mãos com a carta, sentindo as batidas do coração irem se

acalmando. A luz do Sol “brincava” na vidraça da porta de folha dupla, aquecendo seus

braços do mesmo modo que a carta de Paul aquecera seu coração. Sua vontade era ficar

parada ali naquela cadeira, imóvel. Não queria deixar escapar aquela sensação maravilhosa.

Nunca.
Capítulo Oito

Sentada no silêncio de seu quarto, Selena deu uma “espiada pela fechadura” das

maravilhosas cartas de Paul. Já devia ser a décima vez que fazia isso, desde que as recebera,

dias atrás. Depois de relê-las, orou pelo rapaz, como fizera muitas vezes. Pediu a Deus que

endireitasse mesmo o caminho de Paul, e que este tivesse um coração aberto ao Senhor, para

aprender tudo que Deus quisesse lhe ensinar. Sentiu um grande conforto em lembrar que,

embora estivessem muito distantes um do outro, estavam próximos em espírito. Paul estava

orando por ela. Dissera isso numa das cartas.

Escrevera-lhe na segunda-feira mesmo, quando as recebera. Levara três horas para

elaborar uma resposta que a satisfizesse. Enviara para ele seu email, com a sugestão de que se

correspedessem pelo correio eletrônico, que seria bem mais rápido. Na terça-feira, após as

aulas, passara no correio e mandara a cartinha por via aérea. Agora tinha de ficar aguardando

a resposta. E como isso era difícil! Se pudessem se corresponder pelo e-mail, poderiam

realizar bate-papos on line, respondendo um ao outro no mesmo dia.

Já era quase quarta-feira à noite, e ela acabara de chegar do estudo bíblico dos jovens,

que havia na igreja. Subiu direto para o quarto, onde fechou a porta e releu as cartas,

totalmente a sós. A caligrafia de Paul tinha características bem firmes e definidas. Cada letra,

escita em tinta negra, se destacava claramente no papel fino. Selena notou que ele cortava o t,

fazendo um risco de baixo para cima. Isso dava ao conjunto um ar de otimismo. As cartas

pareciam refletir a personalidade do rapaz, que a garota estava começando a conhecer:

contemplativa, porém cheia de esperança.

- Selena! chamou a mãe do lado de fora da porta. Está muito ocupada?


- Não, mãe. Entre!

Sharon Jensen entrou e se sentou na beirada da cama de Tânia. Metade do leito estava

tomado com um monte de roupas que Selena lavara na segunda-feira, mas ainda não dobrara.

- Acabei de conversar com a Tânia, disse a mãe.

Selena fez um aceno afirmativo, esperando que ela continuasse. Antes de ela entrar, a

garota havia dobrado as cartas de Paul e guardado debaixo do travesseiro. Aliás, era aí que as

mantinha desde o dia em que as recebera.

- Ela resolveu escrever uma carta pra mãe biológica e esperar a resposta dela. Tânia

pediu pra eu lhe contar o que havia decidido.

Selena acenou de novo. Estava tentando “sentir”, pelo semplanite da mãe, como esta

recebia aquilo. Aparentemente estava calma.

- Como é que você está se sentindo com tudo isso? Indagou afinal.

Parecia-lhe estranho conversar com a mãe de igual para igual, perguntando-lhe o que

sentia.

- Pra ser sincera, no começo, fiquei muito chateada. É que, nessas situações, podem

acontecer muitos fatos desagradáveis. Uma ou a outra pode dizer algo negativo, coisas que a

gente nunca mais esquece. E a Tânia é muito sensível. Estava com medo de que ela saísse

“machucada” dessa experiência, ficando com uma terrível “cicatriz” emocional.

- É como se aventurar a entrar numa terra desconhecida, comentou Selena.

- Mas agora, quanto mais converso com ela e com seu pai sobre o assunto, mais me

convenço de que ela está agindo certo. Vai dar um passo acertado. Acho que escrever pra

Lina foi uma ótima idéia.

- Também acho, concordou Selena, apoiando o cotovelo no travesseiro e pensando no

“tesouro” que se achava “escondido” embaixo dele. Na carta, ela pode comunicar muito do

que pensa e sente, não é? Quero dizer, a gente pode ler e reler uma carta diversas vezes e
demorar pra responder.

- Isso mesmo, replicou a mãe. Espero que Tânia esteja preparada para a possibilidade de

a outra nunca responder, se isso acontecer.

Aqui ela se inclinou e deu um tapinha de leve na perna da filha.

- O mais dificil pra mim, nisso tudo, continuou, é saber qua vocês duas já tem idade pra

tomar essas decisões importantes pra vida.

- É, interveio Selena, e nós duas estamos descobrindo que os relacionamentos humanos

às vezes podem ser muito complicados; e que nem sempre há soluções rápidas para os

problemas.

- Ah, é. E por falar nisso, como está seu problema com a Amy?

Selena abanou a cabeça.

- Tenho a sensação de que nunca vou conseguir conversar com ela, explicou.

Em seguida, contou à mãe o que acontecera na escola, n segunda-feira, quando Amy

dera a entender que não queria conversar nada com ela.

- Estou me sentindo péssima, disse. Você já perdeu uma amiga asim, mãe?

A mãe pensou uns instantes.

- Já, respondeu meio hesitante. Isso já me aconteceu várias vezes. A questão é que a

gente muda. As amizades mudam. Quando viemos morar em Portland, por exemplo, resolvi

dar um rumo diferente a uma amizade que eu tinha antes. Acho que, no meu caso, fui a

“Amy” da história. Eu simplesmente não tinha tempo nem energias para continuar o

relacionamento com essa amiga, da maneira como ela queria. Minha vida aqui é muito cheia

e, de certo modo, estou mais ocupada do que antes. E com isso, acho que acabei magoando-a.

Selena pensou se não seria isso que estava se passando com Amy. Como ela se achava

muito envolvida no namoro, não tinha mais tempo nem condições para manter a amizade com

Selena.
Quando a garota foi se deitar naquela noite, ficou pensando em Amy e no término da

amizade delas. O que a incomodava não era o fato de a colega ter um namorado, mas o modo

como o relacionamento delas se rompera. Nesse momento, Selena compreendeu que a visão

que ela tinha de um namoro era muito diferente da de sua amiga. Seus valores eram diversos.

Selena elaborara uma espécie de “credo pessoal”, esboçando o modo como deseja viver. O

problema fora que ela supusera que Amy também tinha as mesmas idéias. Achara que a amiga

só iria namorar um rapaz que fosse crente mesmo, e que ela tomara a decisão de permanecer

física e moralmente pura. Ao que parecia, porém, não era esse o pensamento da colega.

Antes de adormecer, ela teve uma idéia. Quem sabe deveria escrever para a Amy? As

cartas que recebera de Paul tinham sido tão gratificantes para ela! Tânia também resolvera

escrever para, a mãe biológica. Se lhe escrevesse um bilhete, talvez conseguisse atingir seu

objetivo de fazer as pazes com ela, mesmo que a amizade não voltasse a ser como era antes.

Entendeu porém, que teria de escolher com muito cuidado o que iria dizer. E deitada ali no

silêncio do quarto às escuras, Selena se pôs a estudar as palavras que diria a amiga. Analisava

uma por uma cuidadosamente, como se estivesse fazendo um joguinho de palavras cruzadas.

Na quinta-feira de manhã, assim que acordou, lembrou-se de que havia sonhado com a

carta. No sonho, ela tinha escrito para Amy, com muito cuidado, e entregara as folhas para a

amiga. Imediatamente, porém, a colega atirara tudo na lata de lixo, sem nem mesmo as ler. E

embora o sonho a tivesse deixado com uma sensação de desassossego, continuou achando que

era uma boa idéia escrever para Amy. Precisava apenas decidir o que iria dizer na carta e

como dizê-lo.

Nesse dia, não teria tempo para por seu plano em prática, pois após as aulas iria

trabalhar. Depois iria para a Highland House, onde ajudava a servir o jantar para os “sem-

teto” que ali compareciam. Quando afinal chegou em casa já passava de 8:00h da noite. Foi

direto para o escritório e ligou o computador do pai. Entrou no programa do e-mail, para ver
se havia chegado alguma mensagem de Paul, caso ele tivesse recebido sua carta. Não havia

nada para ela.

Abriu em outro programa para redigir a carta para Amy e se pôs a rascunhá-la.

“Prezada Amy,

Quero dizer-lhe que estou muito sentida de nossa amizade estar meio parada...”

Não, assim não estava legal. Apagou a frase e tentou de novo. Continuou refazendo a

sentença, procurando expressar o que sentia, mas sem dar um tom agressivo. Compreendeu

que escrever essa carta seria bem mais dificil do que imaginara a princípio. A certa altura, os

pais dela foram ao aposento para lhe dar boa-noite, pois iam dormir.

- Ligou uma garota pra você, quando estava trabalhando, Disse-lhe a mãe. Chama-se

Vicki. Deixei o recado e o número do telefone dela em cima da sua cama.

- Obrigada, mãe!

O pai deu uma olhada para o computador.

- Está fazendo o trabalho escolar? indagou ele.

- Daqui a pouco, explicou ela. Primeiro estou resolvendo outro problema.

- ‘Tá bom. Então não se esqueça de desligar tudo quando for dormir, concluiu ele,

colocando a mão no ombro dela e dando-lhe um beijinho no alto da cabeça.

- O.k.! replicou Selena.

Não estava gostando muito das palavras que colocara na tela. Davam a impressão de um

ultimato. Será que Amy também acharia assim? E se ela se esforçasse ao máximo e

escolhesse com todo cuidado as palavras que iria escrever, achando que estavam ótimas, mas

Amy não pensasse o mesmo?

Afinal resolveu “salvar” o rascunho que fizera. Abriu um arquivo com o nome “Amy” e

deixou a carta nele. Em seguida, abriu a mochila. O primeiro objeto que viu nela foi o livro de

Emily Dickinson.
- Ah, não! exclamou com um gemido.

Havia se esquecido totalmente do trabalho que teria de fazer para o dia seguinte. Deu

uma olhada rápida para o relógio, abanando a cabeça.

Não quero nem acreditar que estou fazendo exatamente o que a Prof.ª Charlotte disse

para não fazermos! Só vim pegar no trabalho às 10:00h da noite, na quinta-feira!

Como Selena nunca tivera muita dificuldade com os trabalhos de casa, sempre

conseguira tirar boas notas, mesmo sem se esforçar muito. Agora, porém, como estava

iniciando o último ano, queria tirar só notas altas. Não estava gostando nem um pouco de

fazer aquela análise literária assim, na última hora. Obviamente, desse modo, não estaria

começando nada bem nessa matéria.

No dia seguinte, quando entregou o trabalho, perguntou à Prof.ª Charlotte se poderia

fazer outro, para melhorar a nota. Esta olhou-a com ar sério.

- Não, respondeu. Sinto muito, mas agora só no proximo trabalho.

Essa professora não é de dar muita “colher de chá”, não, pensou a garota, procurando

fixar isso na memória. É melhor fazer os trabalhos dessa matéria imediatamente.

Encerrada a aula, Selena foi devolver o livro à mesa que ficava no fundo da sala. Vicki

aproximou-se, pôs-se ao seu lado e ficou aguardando que Selena a olhasse.

- Oi! disse a colega.

- Oi! respondeu Selena.

- Liguei pra você ontem, mas estava trabalhando. Queria saber se você gostaria de fazer

algo hoje à noite.

Selena fitou a outra direto nos olhos. Teve vontade de indagar “Por que?”, mas conteve-

se e sorriu.

- Pensei que talvez a gente pudesse ir lanchar em algum lugar ou assistir a um filme,

prosseguiu Vicki. Mas não sabia se você já tinha algum compromisso pra hoje.
- Não.

- Então o que gostaria de fazer? indagou a outra com um sorriso.

Selena deu de ombros.

- Bom, principiou e, de repente, sem mais nem menos, disse: Dá uma chegada lá em

casa!
Capítulo Nove

- Quem é que vai vir aqui? indagou Sharon Jensen à noitinha.

Selena estava sentada no chão da saleta, examinando a gaveta do móvel onde se

achavam as fitas de vídeo da família.

- Vicki Navarone, replicou sem olhar para a mãe. Ela estuda lá na minha escola. Será

que eu nunca falei nada sobre ela? No semestre passado, quando eu e o Ronny fizemos aquele

trabalho na Highland House, ela também foi.

- É, interveio a mãe. Eu me lembro de você ter falado sobre ela, mas não me recordo de

ter dito que tinha amizade com ela.

Selena ergueu o rosto.

- E não tinha, não, explicou, voltando a olhar para as fitas. Achei que a Tânia havia

colocado tudo em ordem alfabética.

- Ela colocou, quando estava aqui. Mas acho que ninguém continuou mantendo as fitas

em ordem.

Nesse instante, a campainha da porta tocou. A garota levantou-se de um salto para ir

atender.

- Deve ser a Vicki, comentou. Mãe, a gente pode mesmo assistir a um filme aqui? A

senhora não deixa os meninos virem incomodar a gente, não, ‘tá?

- O Kevin está na casa do Jason, e vou segurar o Dilton lá em cima. Divirtam-se!

Selena se sentia um pouco apreensiva ao abrir a porta. Nunca poderia ter imaginado que

a Vicki estaria sem uma atividade social, numa sexta-feira à noite, e muito menos que

quisesse vir à sua casa nesse dia.


- Oi! disse, saudando a colega. Entre, Vicki! Eu estava dando uma olhada nessas fitas de

vídeo para ver se achava um filme interessante.

- Ótimo! comentou Vicki. Sabe, adorei sua casa! Aquele balanço ali na varanda é uma

graça!

A garota estava vestida com um short e um blusão de moletom, onde se via o nome

“Georgetown”. Seu cabelo longo e sedoso estava firmado num prendedor. Parecia que ela não

passara nenhum tipo de maquiagem.

- Na verdade, esta casa é da minha avó, explicou Selena, enquanto a outra entrava e

examinava os detalhes da sala com ar de admiração. E ela mora conosco, quero dizer, nós

moramos com ela. Às vezes, ela fica com a mente um pouco confusa. Então não se assuste se

ela chegar aqui e começar a dizer ou a fazer coisas meio sem sentido, o.k.?

Vicki fez que sim. As duas foram para a saleta, onde Selena se pôs a ler os nomes de

alguns filmes.

- Ótimo! disse a colega, ouvindo Selena ler os títulos. Esse aí é muito bom! Gosto muito

dele. Na primeira vez a que o assisti, chorei feito boba!

De repente, Selena parou. Tudo aquilo estava muito estranho para ela. Então resolveu

fazer uma pergunta franca para a colega. E, sem parar para pensar, falou:

- Vicki, quero lhe fazer uma pergunta. Por que você decidiu vir aqui? Quero dizer, por

que quis vir à minha casa, sentar aqui e assistir a um filme? Sei muito bem que você poderia

agora estar com outras pessoas, e que tem uma vida social mais intensa do que a minha.

O rosto da outra avermelhou-se.

- Exatamente, o que e que você está querendo? concluiu Selena.

- Quero fazer amizade com você, explicou Vicki.

- Por quê?

- Porque eu...
- É o seguinte, principiou Selena, interrompendo-a para explicar por que tinha sido tão

franca. No ano passado, a gente não se deu muito bem!

- É, eu sei, concordou Vicki.

- Então o que foi que mudou?

- Eu, replicou a outra sem pestanejar. Tem algum tempo que quero lhe dizer algo...

Selena sentou-se e voltou toda a atenção para a colega.

- Nessas férias, fui a um acampamento da igreja e entreguei minha vida a Cristo.

Sempre frequentei a igreja, mas nunca havia entendido que precisava entregar a vida para

Deus e buscar um relacionamento com ele. Agora, sou crente, Selena.

- É mesmo? Que maravilha!

Selena teve vontade de se levantar e dar um abraço nela, mas achou que ficaria meio

sem jeito. Vicki sorriu e continuou:

- E dá pra perceber que o Senhor já começou a operar em mim, Selena. Ele está me

mudando. Por dentro, é claro. Não quero mais sair com o pessoal com quem eu saía antes.

Não quero mais essa vida de só ficar indo a festas. Quero viver para Deus e aprender mais.

Foi por isso que tive vontade de participar da sua turma.

- Minha turma? indagou a garota, contendo um pouco a alegria que sentia brotar no

coração. Eu não tenho uma turma, exatamente.

- É, mas sei que você, o Ronny, o Tre e outros caras da banda do Ronny são cristãos de

verdade, e é assim que quero ser.

Selena abaixou a cabeça e ficou a abaná-la lentamente. Momentos antes sentira intenso

gozo. Agora tinha um nó na garganta.

- Vicki, disse ela, sinto muito.

- Por quê?

- Eu nunca dei bom testemunho disso que você disse, isto é, que sou uma “cristã de
verdade”. Quero dizer, sou crente e tudo, e penso o mesmo que você. Desejo crescer e

aprofundar meu relacionamento com Deus. Mas nunca a tratei como devia, isto é, como uma

crente deveria tratá-la. Me desculpe, Vicki.

- Ah, não precisa ficar sentida não, replicou a outra, aproximando-se de Selena e dando-

lhe um leve aperto no braço. Eu também nunca a tratei bem, mas percebia que você tinha algo

diferente. Agia como se confiasse em Alguém mais poderoso. E eu queria ser assim.

- É, mas ainda tenho muito que crescer, falou Selena, abanando a cabeça.

- E eu também.

Nesse momento, um agradável silêncio envolveu as duas.

- Eu pensei que, quem sabe, poderíamos fazer esse “percurso”, esse crescimento, juntas,

propôs Vicki.

Selena sorriu. A colega também. Parecia que naquele instante a amizade que se iniciava

fora selada por toda a eternidade.

- Você ainda quer assistir a um filme? indagou Selena, apontando para as fitas que

estavam no chão.

- Você decide! respondeu a outra.

- Prefiro conversar, disse Selena, erguendo-se do chão e acomodando-se no sofá, à

frente da colega.

Pôs os pés sobre a cadeira e sentou em cima deles.

- Como foi de férias? indagou. Fale sobre o acampamento e tudo o mais.

- E eu também quero que me conte sobre suas férias, interpôs Vicki. Fiquei sabendo que

foi à Euopa.

- À Suíça, corrigiu Selena, achando que dizer que fora à “Europa” era um pouco de

exagero. Bom, e à Alemanha também. Mas foi apenas uma semana.

- Mesmo assim! exclamou a colega, arregalando um pouco os olhos. Sempre tive


vontade de ir à Europa, a qualquer lugar de lá. Comprou muita coisa legal?

Selena riu.

- Nada! replicou. Você acredita? Trouxe só um pacote de chá.

- É mesmo? Adoro chá!

- Ah, então vamos pra cozinha fazer um pouco.

E as duas ficaram a rir e conversar tomando chá, como se já tivessem feito isso centenas

de vezes. A certa altura o telefone tocou. No quarto toque, como ninguém houvesse atendido,

Selena pegou o fone.

- Oi, Selena! disse uma voz de homem.

Ao fundo a garota ouvia barulho de vasilhas e panelas.

- Ronny?

- É! Selena, o que você vai fazer amanhã de manhã?

- Vou trabalhar.

- Mas a que horas vai pegar serviço?

- Às dez. Por quê?

- Estou precisando de um favor seu. Tenho de estar aqui no restaurante amanhã às

10:30h e ainda não arranjei ninguém pra cortar os gramados. Queria que você trabalhasse pra

mim de 7:30h até 9:30h; eu lhe pago. Que tal?

- Que nada, Ronny. Você não precisa me pagar, não. Eu o ajudo, sim. Onde a gente vai

se encontrar?

- Isso depende, respondeu o rapaz meio hesitante.

Selena virou a cabeça ligeiramente e olhou para Vicki, erguendo um pouco as

sobrancelhas, com ar de quem diz:

“Espera só até você ouvir essa!”

- Depende de quê, Ronny? indagou a garota.


- Será que você pode levar o cortador de grama do seu pai? Se puder, vou querer que

faça os gramados aí de Hawthorne, e eu fico com os outros. São apenas três, e todos perto de

sua casa.

- Ah, acho que sei quais são, disse ela. Ou pelo menos conheço dois deles.

Lembrava-se de que vira o Ronny trabalhando na vizinhança e que fora conversar com

ele.

- Então, continuou, é só você me dar o endereço certinho e explicar o que é pra fazer,

que eu vou lá.

- ‘Tá bom. E fico lhe devendo essa, replicou o rapaz com gratidão.

- Posso cobrar depois?

- Claro, disse ele. Olha, depois que eu largar serviço hoje à noite, vou aí deixar os

endereços e as instruções, o.k.?

- E a que horas, mais ou menos? quis saber Selena.

- Eu largo às 10:00h. Posso deixar um papel com essas informações na caixa do correio

pra você. Lembre-se de que vai precisar começar às 7:30h, senão o tempo não dá.

- Entendi, falou a garota.

- Bom, ah, e olha aqui, Selena!

- Fala.

- Muito obrigado de novo.

- Não me agradeça ainda não, Ronny. Você não sabe se sou capaz de fazer o serviço

direito, como seus clientes desejam.

- Não esquenta, não. Esses três gramados são muito simples. Olhe, vai calçada de bota,

hein?! Não tenho seguro de trabalho para os “meus funcionários”, não.

- Mas vou ter direito a férias, né?

- É, mas não as férias que costuma tirar.


Nesse momento, Selena ouviu, ao fundo, alguém chamar o Ronny.

- Tenho de trabalhar, disse o rapaz. Então vou deixar o papel na caixa do correio, viu?

- ‘Tá bom. Depois a gente se ve então, concluiu ela, desligando em seguida.

Vicki fitou-a erguendo as sobrancelhas finas, numa indagação silenciosa. Selena

aproximou-se do balcão onde a amiga se encontrava e teve uma idéia.

- Vicki, o que você vai fazer amanhã cedinho?


Capítulo Dez

No dia seguinte, por volta de 7:15h, as du garotas iam caminhando lado a lado, subindo

a rua, para cuidar do primeiro gramado de Ronny. Selena empurrava o cortador como se fosse

um carrinho de bebê. Sua esperança era que nenhum vizinho estivesse acordado àquela hora

para vê-la numa atividade tão inusitada. Vestia uma calça jeans e uma camisa grossa de

manga comprida. Calçara a velha bota de seu pai e um antigo par de luvas de jardinagem.

Amarrara o cabelo, fazendo um rabo-de-cavalo, e pusera um boné, deixando o “rabo” sair

pela abertura de trás.

Vicki tinha uma aparência um pouco mais elegante. Também estava com uma calça

jeans, mas usava uma camisa de malha de manga curta. Estava de óculos escuros que, aliás,

pareciam muito caros. Puxara o cabelo para trás e firmara-o num prendedor, mas deixando-o

frouxo. Carregava uma tesoura de jardinagem, de cabo longo, um ancinho e um pacote de

sacos de lixo de cor preta.

- Nunca cortei grama na vida, disse Vicki, dando uma risadinha. Ainda não sei por que

concordei em vir aqui com você.

- Também não sei por que resolvi fazer isso para o Ronny, desabafou Selena. Mas acho

bom que você tenha vindo comigo. Assim acabamos mais depressa.

O que Selena deixou de dizer foi que ela também nunca havia aparado um gramado. Em

sua casa, quem cuidava do quintal eram o pai e os irmãos. Embora houvesse ajudado a eles

muitas vezes, na realidade, nunca aparara a grama.

- A primeira e esta aqui, disse, consultando o papel que trazia no bolso.

Conferiu novamente o endereço e leu em voz alta as instruções que Ronny escrevera ali.
“Cortar os gramados na frente e nos fundos. Cachorro pequeno no fundo.”

- Será que isso quer dizer que temos de “aparar” o cachorro também? indagou Vicki.

Selena riu.

- Espero que não, disse.

- Vamos começar no da frente ou no dos fundos? perguntou a colega.

- No da frente, acho. Vou ligar este negócio aqui e a gente vai revezando, o.k.?

Selena abaixou-se e deu um puxão na corda. Para sua surpresa, o aparelho funcionou

imediatamente.

- Ótimo! exclamou ela em voz baixa, como se houvesse feito isso dezenas de vezes.

Vamos lá!

Empurrou o cortador pelo gramado, em direção à escadinha da entrada da casa. Virou-

se para voltar, mas achou que ficaria melhor começar do outro lado. Assim poderia

acompanhar a linha do canteiro. Para mudar o “desenho”, resolveu cortar fazendo uma longa

diagonal. Em seguida, foi andando paralelamente ao canteiro em direção à casa.

Vicki, que ficara parada na calçada, olhando para ela, disparou a rir.

- Olhe só! gritou ela para superar o barulho do motor. Você fez o sinal do “Zorro”! e

apontou o “Z” desenhado na grama.

Selena parou para ver o que havia feito. Entrando no espírito do momento, respondeu:

- Espere aí!

Virou-se e fez outra diagonal, em sentido contrário à primeira.

- Agora é uma gravata borboleta! explicou ela, gritando também por causa do ronco do

motor.

Vicki riu, apontando para a “obra-prima” da amiga. Nesse instante, a porta da frente se

abriu e apareceu uma senhora idosa, usando um robe verde comprido e calçada de sapato

mocassim.
- O que estão fazendo aí? berrou ela.

Selena abaixou-se para desligar o cortador. O problema era que ela não tinha a mínima

idéia de como se desligava o aparelho. E o motor continuou a roncar, enquanto ela tentava

explicar tudo para a mulher que parecia bastante irritada.

- Estamos substituindo o Ronny! gritou.

- O quê? indagou, também aos berros, a senhora que as olhava com a mão na cintura.

Ao que parecia, ela nem vira a obra de arte da Selena, a “gravata borboleta”.

- Deixe que eu explico, gritou Vicki, correndo para a entrada.

Aproximou-se da dona da casa e conversou com ela. Selena continuava remexendo no

cortador, sem conseguir desligá-lo, Tentou de tudo, mas não adiantou. Viu a mulher

gesticulando muito e dizendo algo para a Vicki. Esta voltou apressadamente para junto da

amiga, enquanto a mulher permanecia na varanda.

- Ela disse que o Ronny geralmente corta a grama dela só depois de nove horas.

Reclamou que nós a acordamos. Quer que a gente faça o serviço às 9:00h.

- Às 9:00h? E como fica a nossa “gravatinha”?

- Acho que ela nem notou. Se formos embora logo, talvez ela entre também e nem veja.

Não dá pra desligar esse negócio barulhento, não?

Selena abanou a cabeça.

- Não sei desligar.

Vicki fitou-a com expressão de quem não quer acreditar no que está ouvindo.

- Acho melhor a gente dar o fora logo, disse. A outra casa não fica aqui perto?

- Fica, mas o que vou fazer com este cortador? Como vou levá-lo até lá?

Vicki deu de ombros. Virou a cabeça ligeiramente e olhou para a mulher. Em seguida,

deu um alegre aceno, despedindo-se, mostrando que já iam embora.

- Desligue esse negócio! gritou a senhora.


- Vamos lá! disse Selena. Pegue a tesoura e o resto e vamos embora daqui!

Em seguida, inclinou o aparelho para trás, firmando-o nas rodinhas traseiras, e foi se

afastando do gramado. Então, caminhando o mais depressa que podiam, as duas foram

empurrando o cortador ligado pela calçada, em direção a casa seguinte.

- Pegue aqui! disse Selena para Vicki, indicando-lhe que segurasse um lado do cabo

com a mão que estava desocupada. Segure firme, hein?

A garota enfiou a mão no bolso e tirou o papel de Ronny. Verificou o endereço e, em

seguida, ergueu o polegar e apontou para a direção da casa em que iriam trabalhar.

- É estaaqui, disse em voz alta por causa do barulho. Não tem cachorro.

Vicki fez um aceno de cabeça e pôs no chão os apetrechos que carregava. Selena pegou

o “touro bravo” pelos “chifres” e saiu empurrando-o pelo gramado. Dessa vez, resolveu ir

cortando de um lado para o outro, em fileiras paralelas, bem certinhas. A colega se pôs a

aparar a grama alta que ficava junto à linha da calçada. Ambas procuraram trabalhar rápido.

Parecia que estavam com medo de que novamente aparecesse alguém e gritasse com elas.

Contudo a porta da entrada não se abriu. E as cortinas das janelas nem se mexeram. Se os

moradores estavam ali, não pareciam perturbados com a presença delas.

Vinte minutos depois, Selena limpou o suor do rosto e tentou outra vez desligar o

aparelho. Não conseguiu.

- Deve ter agarrado em algo, gritou para Vicki. Acho melhor irmos logo para a outra

casa, antes que a gasolina acabe.

E as duas foram andando rua abaixo, mais parecendo que estavam brincando da “corrida

de três pernas”.* Cada uma empurrava o cortador com uma das mãos e com a outra carregava

os demais objetos de jardinagem.

___________________

*”Corrida de três pernas”: brincadeira em que os competidores, formando duplas, enfiam uma das
pernas num saco de pano e tentam correr até determinado ponto. (N. da T.)

- É no próximo quarteirão, explicou Selena, indicando com o queixo a direção a seguir.

Na esquina seguinte, viraram à esquerda. Aí avistaram um homem que vinha fazendo

cooper na calçada, em sentido contrário a elas. Vendo-as, ele sorriu.

- O pino agarrou? perguntou ele, gritando e parando de correr.

- Parece que sim, replicou Selena.

- Posso dar uma olhada? continuou ele, inclinando-se e começando a mexer no

aparelho.

Selena notou que havia outras pessoas na rua. Teve a sensação de que ela e Vicki

estavam dando um “espetáculo” para os vizinhos.

Por que fui concordar em fazer isso para o Ronny? Ainda bem que a Vicki está levando

tudo numa boa! Se eu estivesse sozinha, seria bem pior!

De repente, o motor parou, e o silêncio voltou a reinar no bairro.

- Muito obrigada, disse Selena. Será que ele vai desligar depois, quando eu o ligar de

novo?

- Vamos fazer uma experiência, disse o homem.

Em seguida, aquele verdadeiro “cavaleiro medieval” deu um puxão na corda e o motor

ligou, com seu irritante ruído. Depois ele girou o pino e o aparelho desligou imediatamente.

- Muito obrigada, moço! exclamou Vicki, tirando os óculos e dando um sorriso de

gratidão para ele.

O homem olhou para ela, acolhendo o agradecimento da jovem e ficou a fitá-la por

alguns instantes. Selena compreendeu bem a reação dele. Ela fizera o mesmo na primeira vez

em que vira Vicki. Nesse momento, achou que isso tinha a ver com os olhos verdes da colega,

e suas sobrancelhas finas e arqueadas. Eles lhe davam um ar de mistério. Ela parecia uma

daquelas atrizes de pele impecável, que faziam papel de espiã em filmes antigos de
espionagem. Na verdade, Selena antes não apreciava muito aquele jeito misterioso da amiga.

Contudo, depois da conversa amistosa que haviam tido na noite anterior, não se sentia mais

intimidada por sua bela aparência.

- Espero que funcione direitinho, disse o homem, com um aceno de cabeça.

E foi saindo para reiniciar o cooper. Selena empurrou o cortador até a casa em que

deveriam trabalhar. Vicki se pôs a caminhar ao lado da amiga.

- Será que ele era nosso anjo da guarda? perguntou para a colega.

- Nosso quê? quis saber Selena.

- Nosso anjo ministrador, que Deus mandou pra nos socorrer, explicou a outra.

- De tênis, Vicki? interpôs Selena. A amiga soltou uma risada.

- Diz na Biblia que a gente pode acolher anjos sem saber. Li esse texto uns dias atrás.

Está em Hebreus.

- O que você quer dizer com isso? Acha que aquele cara nos achou com jeito

“acolhedor”? comentou Selena.

A colega riu de novo.

- Talvez.

- Onde é que está esse verso?

- No livro de Hebreus. É um verso do último capítulo.

- Ah, tenho de dar uma olhada nele, afirmou Selena.

- O que você está lendo? quis saber Vicki. Quero dizer, na Bíblia. Que parte está lendo?

- Ah, eu não fico só numa parte, não. Leio saltando, explicou a outra. Antes eu estava

lendo o Velho Testamento, mas quando as aulas começaram, comecei a ler Romanos. Mas

ainda estou mais ou menos na metade, concluiu, num tom de quem confessa um erro.

- Você fala de um jeito que parece que está cometendo uma falha, comentou Vicki.

Acho que é muito bom que tenha lido até o meio. Na sua opinião, quantos colegas nossos
lêem a Bíblia sozinhos, em casa? E olha que a Royal é uma escola evangélica, hein?! Não

precisa se desculpar por estar lendo a Bíblia devagar, Selena.

- É; tem razão, concordou Selena, entrando na terceira casa em que iriam cortar a

grama. Quero sentir que leio a Bíblia por ter vontade, e não por dever. É por meio dela que

ouço a voz de Deus; e não desejo fazer isso por obrigação. Entende?

Vicki fez que sim. Colocou no chão os objetos que estava carregando e inclinou a

cabeça para um lado, dando um sorriso alegre.

- Sabe o que tenho feito ultimamente?

Selena esperou que ela explicasse e revelasse o “segredo”.

- Tenho lido a Bíblia como se ela fosse uma carta pra mim, explicou a outra. Foi a

conselheira do acampamento que ensinou isso. Entro no quarto, fecho a porta e leio cada

palavra com o coração bem aberto. Ela disse que devo imaginar que Deus escreveu aquelas

frases diretamente pra mim, pois escreveu mesmo. Ele é a Pessoa que me conhece melhor e

me ama mais do que todo mundo. E a Bíblia é isso mesmo, né? É uma carta de amor que

Deus mandou pra nós.

Selena ergueu o rosto. O Sol matutino atravessou as folhas da árvore embaixo da qual

estavam, iluminando o rosto fervoroso da amiga. Era como se estivesse derramando uma

benção sobre ela.

- “Primeiro, tranco a porta... por fim, tiro minha cartinha do envelope e devagarinho

espio pela fechadura dela”, recitou Selena, inspirada pelo encantamento daquele instante.

- Quê? indagou Vicki.

A garota sorriu e abanou a cabeça para afastar do pensamento as palavras de Emily

Dickinson.

- Entendo perfeitamente o que você está dizendo sobre ler cartas. É um delicioso

momento particular. Uma carta de amor que Deus escreveu. Gostei!


Vicki também sorriu, o rosto radiante de alegria.

Capítulo Onze

As duas garotas conseguiram terminar o segundo gramado com tempo de sobra para

voltar ao da “gravata borboleta”. Quando ali chegaram, a dona da casa já as esperava à porta

da varanda. Agora trocara de roupa, mas ainda tinha uma expressão carrancuda no rosto

enrugado.

- O que vocês estão querendo fazer comigo? indagou assim que as duas entraram. O que

fizeram com meu gramado?

- Estamos fazendo o serviço do Ronny hoje, explicou Selena quase gritando.

Provavelmente, não seria preciso ter falado tão alto, mas do jeito que a mulher gritava,

ela devia ser meio surda. Ou então estava com muita raiva delas.

- Isso eu já entendi. Mas olhem o que fizeram com a grama insistiu a dona, apontando

para o chão.

Do ponto onde a mulher se encontrava, na varanda, pensou Selena, avistava

perfeitamente a “gravatinha”.

- Desculpe, falou a garota, chegando ao primeiro degrau da escadinha que dava para a

varanda e parando ali. Vamos consertar agora mesmo. Depois, a gente faz a parte dos fundos.

Está bem assim?

- Claro que está bem assim! É pra isso que estou pagando! Ah, vê se aparam aquelas

roseiras que estão na lateral, continuou ela, olhando para Vicki com ar incrédulo. Elas estão

precisando de uma boa poda.

Parecia duvidar da capacidade da garota mais do que duvidara de Selena. Vicki fez um
aceno afirmativo, e a mulher desceu a escada para lhe mostrar onde ficavam as plantas. Selena

ligou o cortador e foi logo começando a aparar a grama. Dessa vez, trabalhava em fileiras

paralelas, como fizera nos gramados anteriores. Caminhava o mais depressa possível,

procurando fazer um serviço perfeito. Como nem Vicki nem a mulher voltaram, ela deduziu

que a dona estava dando à sua colega instruções detalhadas sobre a poda de roseiras.

Terminando o jardim, ela virou-se para ir à parte de trás.

- Já acabou? Perguntou-lhe a mulher.

Selena procurou assumir um ar alegre.

- Já. Agora vou para o gramado do fundo. Acho que a senhora vai gostar do serviço que

fiz no da frente. Posso passar por este portãozinho?

A senhora olhou-a por uns instantes.

- Não! replicou. Não pode passar por aí com esse cortador, não!

- É mesmo! Posso não, comentou Selena, reprimindo a vontade de rir.

- Então, dê a volta. Vai! falou a dona com um aceno de mão e voltando a inspecionar o

trabalho da Vicki.

O quintal dos fundos era bem pequeno. O cachorro, um vira-lata malhado de preto e

branco, correu para sua casinha, aparentemente com medo do cortador. Selena não levou nem

dez minutos para aparar a grama. E isso foi muito bom, pois já passava de 9:00h, e não havia

dúvida de que precisaria tomar um banho antes de seguir para o trabalho. A dona da casa,

porém, não dera o serviço por encerrado.

- Olhe aqui perto desta mangueira, disse ela para Selena. Aqui tem uns matinhos. Se não

arrancar hoje, sábado que vem eles estarão do tamanho de minha mão, concluiu, erguendo a

mão fechada, de juntas ossudas.

Selena dirigiu o cortador para o lugar onde ela apontava.

- Não, não, não, interveio a senhora. Tem de arrancar com a raiz, senão crescem de
novo. Vamos. Arranque. Tire com a raiz.

A garota obedeceu. Inclinou-se e, durante quase meia hora, ficou a remover os matinhos

que havia por todo o quintal. Toda vez que a mulher avistava algo que não a agradava, gritava

para Selena:

- Ali, ali! Bem ali! Não está vendo, não? Arranque aquele ali.

Vicki continuava trabalhando nas roseiras. Volta e meia a senhora olhava para ela e

gritava:

- Você está cortando em ângulo, né?

- Estou, sim, senhora, respondia a outra pacientemente.

Afinal, quando já eram 9:45h, Selena se ergueu e disse:

- Por hoje é só! Temos de ir embora agora. Se tivermos deixado algum serviço sem

fazer, o Ronny completa no sábado que vem.

A mulher fez uma expressão de surpresa.

- Ah, o Ronny não faz isso pra mim, não, disse. Ele só apara a grama.

Selena e Vicki se entreolharam com ar de perplexidade.

- O pobre coitado trabalha em dois empregos, continuou a dona. Ele não tem tempo de

arrancar os matos pra mim.

É, interpôs Selena, se nós pudéssemos, faríamos mais, mas eu também tenho outro

emprego, e vou pegar serviço às 10:00h.

A garota girou o pescoço dolorido de um lado para outro e inclinou o corpo para trás,

como quem chega a coluna no lugar.

- Então pode ir embora! Vai!

As duas recolheram o material e foram caminhando em direção à rua.

- Ah, obrigada, meninas! gritou a mulher.

Selena virou-se ligeiramente na direção dela e viu que estava sorrindo. Era a primeira
vez que a via sorrir. Tinha um jeito normal, quase agradável.

As duas foram saindo apressadamente, empurrando o cortador o mais rápido que

podiam, seguindo pela calçada. A cada desnível do passeio, era um barulhão. Quando já se

encontravam a uma quadra da casa de Selena, Vicki comentou:

- Aquele versículo de Hebreus diz que a gente deve tratar bem aos desconhecidos que

encontramos, pois poderemos estar acolhendo anjos, sem saber. Acho que nós “acolhemos”

bem aquela mulher, mas tenho sérias dúvidas de que ela seja um anjo.

As duas caíram na risada.

- Você viu aquela, quando ela disse que o Ronny não tem tempo pra arrancar o mato

porque o “pobre coitado tem dois empregos”? indagou Selena, bufando por causa da

caminhada. Eu deveria ter-lhe dito logo de cara que também tenho dois empregos.

- A que horas você tem de chegar la? indagou Vicki.

- Dentro de dois minutos.

- ‘Tá brincando! Deviamos ter parado mais cedo.

- É, eu sei, concordou a garota. Mas estava dificil escapar. Ela ficava achando matinhos

que nem existiam!

As duas subiram correndo a rampa de entrada da casa de Selena, que guardou o cortador

na garagem.

- Vou ter de voar, disse ela para Vicki. Muito obrigada, amiga, por ter me ajudado. Se

não fosse por você, não teria conseguido fazer o serviço.

- Foi até divertido, comentou a outra. Bem, bom trabalho pra você! Depois a gente se

vê. Tchau!

Selena já ia entrar correndo em casa, mas parou e se virou para a colega. Vicki já estava

abrindo a porta do carro.

- Ei! gritou Selena. Depois eu ligo!


A outra fez que sim e em seguida deu um aceno com a mão. A sensação que ela teve

naquele instante foi de que tudo parecia tão natural. Era como se já fossem amigas havia anos

e fizessem isso todo sábado. Selena estava espantada com a facilidade com que as duas

haviam se entrosado.

Afinal, ela só foi telefonar para Vicki no domingo à tarde. A ligação caiu na secretária,

e a garota deixou um recado, dizendo-lhe que telefonasse para ela quando pudesse.

Entretanto o único telefonema que recebeu, já de tardinha, foi de Tânia.

- Como está indo tudo com você? perguntou a irmã.

- Ah, muito bem, respondeu. Ontem fui aparar uns gramados para o Ronny. Foi uma

experiência e tanto.

- Ele pagou, espero!

- Não; fiz apenas um favor pra ele.

- Isso é algo que eu nunca faria, disse Tânia, aparar um gramado para fazer um favor a

alguém.

Selena acomodou-se na sua poltrona predileta da saleta, perto da porta de folha dupla.

- Bom, replicou, eu vejo a situação da seguinte maneira: uma hora dessas vou precisar

de um favor do Ronny; e aí vou lembrar a ele do dia em que lhe dei aquela força.

- Mas e aí? Já recebeu notícia do Paul? indagou Tânia.

- Eu lhe falei das duas cartas que recebi no mesmo dia, não falei?

- É, na última vez que liguei, você me contou. É por isso que estou perguntando. Já

respondeu?

- Claro. Imediatamente. Mandei-lhe o nosso e-mail. E todo dia estou verificando no

computador. Mas ele ainda não enviou nenhuma mensagem.

- Tem de dar um tempo, disse Tânia. Eu lhe contei que escrevi para Lina?

- É, mamãe me disse que você tinha resolvido escrever pra ela. E como foi? Ela já
respondeu?

- Não, ainda não. Agora já sei o que você sentiu quando estava esperando a resposta do

Paul, embora no meu caso não seja exatamente a mesma situação. É horrível ficar nesta

expectativa. Fico só pensando que deveria ter dito isso ou aquilo de outra maneira. Mas

depois que a gente pôs tudo no papel e mandou a carta, não tem mais jeito de mudar.

- Isso mesmo, concordou Selena. Mas, no seu caso, aguardar a resposta da Lina deve ser

bem mais enervante do que é pra mim esperar uma carta do Paul. O que pretende fazer se ela

não responder?

- Ainda não resolvi.

- Mas se ela escrever ou ligar lhe pedindo pra ir lá, você vai?

- Claro, respondeu Tânia. E depois de uma pequena pausa, continuou: já abri até uma

poupança para comprar uma passagem aérea, caso ela me convide para ir lá.

- Você deve estar muito nervosa, né?

- De vez em quando, fico, sim. Mas na maior parte do tempo estou tranquila. Vez por

outra, tenho uma sensação estranha. É como se não quisesse realmente vê-la nem saber como

ela é. Bastaria saber o nome e criar minha própria imagem dela. Em outros momentos, porém,

fico ansiosa para ouvir sua voz e olhar direto no rosto dela, nem que seja só uma vez.

Selena sentiu a garganta apertar de emoção. Ela nunca compreendera bem a irmã, em

nada. Agora, pela primeira vez na vida, achava que conseguia entender um pouco o que Tânia

estava dizendo. Via que essa questão da mãe biológica era bem mais importante para a outra

do que pensara.

- Espero que ela telefone pra você, disse por fim. Aliás, vou começar a orar pra que ela

ligue.

- Obrigada, replicou Tânia, com um tom de gratidão na voz. Obrigada mesmo.

- Você quer falar com mamãe ou papai?


- Não. Diga a eles que liguei e que consegui o trabalho de fazer as fotos para o tal

catálogo, explicou a jovem com voz mais natural.

- Hummm, que ótimo! exclamou Selena. E esse serviço paga bem?

- Paga!

- Mas você não está parecendo muito empolgada, não.

- É que é uma linha de roupas e acessórios do tipo western. Esqueci o nome da etiqueta.

Vou passar quatro dias usando botas e chapéu de cowboy, tendo de fazer força para sorrir com

tudo aquilo. Vai ser uma canseira para mim.

Selena riu. Apesar de a familia já ter morado numa cidadezinha típica do oeste

americano, nas proximidades do Lago Tahoe, Tânia nunca usara nada dessa linha, mesmo que

estivesse na moda. Agora pegava um serviço em que teria de fazer exatamente isso: vestir-se

como uma verdadeira garota do oeste.

- Preocupa não, interveio Selena, brincando, provavelmente vão pôr no fundo umas

belas músicas country pra ajudá-la a assumir o papel.

Tânia soltou um gemido.

- Selena, se algum dia alguém lhe disser que ser modelo é maravilhoso, não acredite,

não, viu? A gente tem de suportar cada tortura...

- Ah, você já deve saber disso muito bem, né? comentou Selena rindo.

- Sei, concordou a outra. E você é quem deveria estar fazendo essas fotos, com aquela

velha bota de cowboy do papai!

- Ei, não deboche das minhas velhas companheiras, não, viu? Ontem, quando fui cortar

grama, elas me valeram muito!

- Ah, que maravilha! disse Tânia com ironia.

Contudo, dessa vez, a jovem falou em tom de brincadeira. Não tinha mais o modo

agressivo que empregava antes, quando morava em casa, e as duas discutiam o tempo todo.
Agora falara de um jeito engraçado, como o de uma amiga “gozando” a outra. Foi até

agradável.

O único problema era que, em momentos assim, Selena se lembrava de que ainda não

resolvera o impasse no relacionamento com Amy. Aí tinha uma sensação desagradável na

boca do estômago. Um tempo atrás, elas eram assim. Brincavam e conversavam uma com a

outra sobre questões que lhes interessavam muito. Mas isso havia acabado. Agora parecia que

a Vicki é que iria tornar-se sua amiga íntima. Entretanto algo a incomodava. Como é que se

pode “trocar” de amiga sem um certo sentimento de culpa?

Depois que Tânia se despediu e desligou o telefone, Selena ainda ficou um bom tempo

sentada na confortável poltrona. Orou pela irmã. Pediu a Deus que, se ele quisesse, Lina

ligasse ou escrevesse e assim as duas pudessem iniciar um bom relacionamento. Em seguida,

orou por Amy. Então achou que já era hora de deixar que aquela amizade interrompida fosse

caindo no esquecimento.
Capítulo Doze

- O que você pretende fazer na sexta-feira? indagou Ronny.

Era a hora do almoço, e o rapaz estava deitado no gramado da escola. Chovera no dia

anterior, mas agora o céu se mostrava claro e maravilhoso. O ar estava frio. A luz do Sol

descia sobre eles em raios cor de laranja; não diretamente, como no verão, mas num ângulo de

quarenta e cinco graus. Se Selena tivesse óculos escuros, seguramente estaria usando-os nesse

instante.

- Não sei, replicou a garota. Hoje ainda é terça-feira. Além disso, nem sei se já há algo

planejado por aqui. Vai haver algum jogo de basquete ou futebol?

Nesse momento, mais seis alunos se aproximaram dos dois. Ao que parecia, eles

também preferiam lanchar no pátio, em vez de comer na cantina ou de ir a uma lanchonete.

- É, disse Ronny, o jogo de futebol é uma boa opção. Estive conversando com a Vicki e

ela contou que na sexta passada foi à sua casa. Como não estou mais trabalhando à noite,

achei que talvez a gente pudesse se reunir e dar uma saída, fazer algo.

- Pra mim está ótimo, concordou Selena. E por falar nisso, cadê a Vicki?

- Acho que ela saiu com o Drake e a Megan para comerem, explicou o rapaz.

Selena deu uma dentada na maçã que trouxera de lanche. Para ela, um bom almoço era

um pacote de chips sabor cebola, uma maçã e uma caixinha de leite bem gelado. Passou-lhe

pela cabeça perguntar se Megan e Drake - com quem, tempos atrás, ela tivera um princípio de

romance - estavam namorando. Contudo achou que não seria legal tentar “atualizar-se” com

relação ao “rol” de fãs do rapaz. O que importava mesmo era que seu nome não figurava nele.

Nem no princípio nem no fim. Não estava mesmo nessa lista.


Pensando nos “namoros” de Drake, veio-lhe à lembrança sua amiga Amy. Selena ainda

não a tinha visto nessa semana. No semestre passado, Amy tinha querido namorar o Drake e

até tentara marcar um jantar para ele. Convidara Selena para participar desse jantar com o

Ronny. Afinal, o encontro acabara não acontecendo. Para Selena, isso não tivera muita

importância, mas para sua amiga, ao que parecia, fora muito frustrante.

A garota foi mastigando a maçã devagar, ouvindo o burburinho da conversa à sua volta.

Ainda sentia um certo incômodo com relação a Amy. Falhara para com a amiga. Não soubera

enxergar o que era importante para ela nem a ajudara a obter ou realizar algo que era de tanto

valor para a colega.

- Ah, Selena, a propósito, muito obrigado por ter trabalhado pra mim no sábado, falou

Ronny, pegando uma batatinha do pacote dela. Você e a Vicki salvaram minha pele.

- É, e quando eu estiver precisando de um favor seu, vou cobrar, viu? Menino, nós

trabalhamos demais! À noite, minhas costas estavam doendo tanto! E ainda tive de passar

pano no chão lá no Mother Bear.

- A dor nas costas é de arrancar mato, explicou o rapaz, virando o pacote de chips e

sacudindo-o para aproveitar as últimas migalhas que ainda restavam ali. A D. Priscila vivia

querendo que eu limpasse os matos pra ela. Uma vez eu arranquei. Nunca mais.

Selena fitou-o com um sorriso significativo.

- E o senhor deveria ter me avisado. Priscila é aquela que tem um cachorrinho no

quintal, né?

Ronny fez que sim.

- Pois é. Ela fez a Vicki podar aquelas roseiras imensas e deu a volta no quintal todo

comigo, apontando pra tudo que era matinho. Vou lhe dizer, companheiro, arranquei foi muito

mato daquele lugar, mais do que havia nele.

- Arrancou?
- Sim, senhor, e por causa disso até cheguei atrasada no serviço. Minha sorte é que a D.

Amelia é muito compreensiva.

- Ah, então, se nos saírmos na sexta-feira à noite, terei de pagar algo pra você.

- Pra mim e pra Vicki, corrigiu Selena. Ela deu um duro tremendo, a ponto de quase

machucar os dedos.

- ‘Tá bom, então, McDonald’s para as duas, nesta sexta-feira, disse Ronny, pegando a

lata de refrigerante e tomando-a toda.

- Que McDonald’s que nada! protestou Selena. Quero ir é no Tony Roma’s. Que tal

umas costelas?

- Costelas, né? replicou o rapaz em tom pensativo.

Ele não parecia muito entusiasmado com a idéia de pagar um jantar para três num

restaurante como o Tony Roma’s.

Nesse momento, outro aluno, um rapaz alto, de nome Tyler, veio caminhando pelo

gramado e parou junto deles. Selena sempre o considerara um tipo conservador, estudioso e

até um pouco acanhado. Nessa hora, porém, sua expressão não era de um indivíduo muito

pacato, não.

- Oi, Ronny, disse ele, fiquei sabendo do ultimato que você deu sobre o seu cabelo! É

isso aí, cara!

Selena olhou para Ronny, esperando que ele desse alguma esplicação. Ele continuava

com o cabelo do mesmo jeito que estivera desde que as aula haviam iniciado - amarrado atrás,

num pequeno rabo-de-cavalo.

- Que foi que aconteceu? indagou a garota.

O colega deu de ombros.

- Nada, respondeu. Só escrevi uma carta pra junta diretora; foi só. Eles tinham me

mandado um segundo aviso, dizendo que eu tinha de cortar o cabelo. Aí escrevi pra eles,
explicando por que o estava deixando crescer.

- Ele não contou tudo, interveio Tyler, atraindo a atenção de todo mundo. Ronny deu

um ultimato ao pessoal.

- Não foi bem assim. Apenas escrevi uma carta.

- O aviso que eles deram, interveio Tyler, já era o segundo. Disseram que ele tinha de

seguir o regulamento. Se ele não cortasse até sexta-feira, poderá até ser expulso da escola.

- É mesmo? indagou um dos rapazes presentes.

- Meu pai é da junta diretora, explicou Tyler. Ele falou que fazia muitos anos que eles

não tinham nem um problema de rebeldia como este. Sempre há muitos casos de indisciplina,

mas não muitos de rebeldia.

Ronny abanou a cabeça. Seu jeito não era absolutamente o de um rebelde, como Tyler

estava dando a entender.

- E como eles decidiram não modificar o regulamento, concluiu ele, vão começar a agir

com rigor pra com os alunos que não se submeterem a ele.

- Por causa do comprimento do cabelo? indagou Selena. Que importância tem isso?

- Meu pai disse que a questão não é o cabelo, explicou Tyler. É o regulamento. Os

alunos do Royal têm de dar exemplo pra comunidade.

Selena olhou para o Ronny. O colega estava sentado, ouvindo tudo calado e

aparentemente tranquilo.

- O que você falou na carta? indagou ela.

- Apenas expus as razões por que deixei o cabelo crescer. Depois, disse que a decisão

era com eles e que eu acataria o que eles decidissem, explicou ele, dando um dos seus sorrisos

típicos, entortando a boca. Dei a eles até quinta-feira pra me responderem.

Tyler ergueu o punho cerrado, num gesto de valentia, como se aquela “briga” fosse

dele.
- É isso aí, Ronny! exclamou. Tem de agir e assim mesmo. Devolve o ultimato pra eles!

- Não entendi, interveio Selena. Pra que essa guerra de ultimatos?

Ela ficou olhando para Tyler que se sentara perto dela e dava um sorriso amplo,

parecendo muito satisfeito. A garota obsservou que o cabelo dele era bem curto e até meio

“espetado” no alto. Aliás, ele não ficava nada bem com aquele corte, pois tinha o rosto

comprido e a testa grande.

- O importante aí foi a resposta brilhante que ele deu, replicou o rapaz. Ele virou as

armas da diretoria contra ela própria. Está começando a revolução!

Uma das garotas presentes riu e atirou no rapaz um saquinho de papel amassado. Selena

virou mais o pescoço para olhar diretamente para o Tyler. Teve de fechar ligeiramente os

olhos por causa do brilho do Sol em seu rosto. Por que seria que esse rapaz, de repente,

“comprara” essa briga? Será que ele próprio tinha algum problema com o pai ou com a junta

diretora?

- Ah, fez Ronny, inclinando-se para diante e falando em voz baixa, a questão não é

assim tão importante nada. Logo que as aulas começaram, eles me mandaram um aviso,

citando um artigo do regulamento. O que eu fiz? Li o regimento todo. Nele, há uma porção de

normas que hoje em dia não tem mais nada a ver. E citei isso na minha carta.

- O que, por exemplo?

- Lá diz que todos os alunos têm de ficar em pé durante a saudação à bandeira, a leitura

da Bíblia e a oração.

- E qual o problema disso? quis saber Selena.

- Nenhum. Mas qual o professor do primeiro horário que lembra de fazer a saudação à

bandeira? Qual deles leu a Biblia no semestre passado? E quantos oram antes de começar a

aula?

Selena ficou pensativa.


- É, muito poucos, respondeu ela. Ah, entendi o que quer dizer.

- No regimento, eles citam um versículo de 1 Coríntios para dizer que o cabelo

comprido é vergonhoso para o homem, continuou o rapaz, dando de ombros. Então eu disse

que na comunidade onde vivo, trabalho e tenho meu lazer, o meu cabelo não é considerado

comprido. Só aqui na escola é que eles o vêem assim. Depois, expliquei por que deixei o

cabelo crescer. É por causa da banda. Citei um versículo de 1 Corintios 9, em que Paulo diz

que, como ele está livre da lei, está disposto a se tornar tudo para com todos, de modo que

possa ganhar alguns.

A garota se sentia espantada diante da calma com que Ronny fazia sua defesa.

- Agora eles receberam o que mereciam, falou Tyler entusiasmado. Fogo a gente

responde com fogo! Eles não têm o direito de determinar a maneira como devemos nos vestir

e o que podemos fazer!

Dava para perceber quem de fato era o “rebelde” ali.

- Depois então, prosseguiu Ronny, expliquei que o nosso grupo tem um lema

evangelístico que é alcançar nossos companheiros onde eles estão, para comunicar-lhes as

boas-novas de Cristo. E disse que, para ter sucesso nesse ideal, creio que tenho de deixar meu

cabelo do jeito que está.

- Só isso? indagou Selena. Sua carta foi só isso?

- E aí vinha o último parágrafo.

- Que era o do ultimato?

- Eu disse que, como eles são uma autoridade que Deus estabeleceu pra mim aqui na

escola, iria submeter-me a eles. Comuniquei que faria o que eles decidissem. Mas preciso ter

a resposta até quinta-feira, para poder atender à data que eles tinham determinado

previamente.

- E se eles disserem que você tem de cortar o cabelo? quis saber a garota.
- Eu corto.

- E você não se importa?

- Não muito. Parece que tem gente se importando mais que eu.

- Se eles o obrigarem a cortar o cabelo, interveio Tyler, acho que todos nós deveríamos

fazer o mesmo. Vamos todos cortar.

- É... sim..., disse outro rapaz em tom sarcástico.

- Eu não vou cortar, comentou uma garota de nome Bethany. Meu cabelo levou quatro

anos pra chegar neste ponto.

Exatamente, concordou Tyler. E é por isso que não podem obrigar o Ronny a cortar o

dele.

- Parece que você é que está querendo entrar nessa briga, disse Bethany, apontando para

Tyler. Por que não deixa o seu crescer pra ver o que seu pai diz?

O rapaz ficou imobilizado. Todos o olharam para ver qual seria sua resposta.

- Até parece que isso vai acontecer, resmungou por entre dentes.

- Acho que o Ronny encarou o problema muito bem, comentou Selena. Além disso, a

gente tem de se preocupar mais é com o interior de uma pessoa, e não com a aparência dela,

não é?

Antes que alguém respondesse, a campainha tocou, indicando que o horário de almoço

estava encerrado. Todos se levantaram e foram saindo, cada um para sua classe, ainda

conversando sobre o que aconteceria na quinta-feira, a data marcada por Ronny. Selena

pensou que aquela turminha ali não era precisamente um bando de “rebeldes” nada. E mais

ainda levando em consideração que o Ronny, o pivô do caso, mostrava-se bem relutante em

liderar qualquer movimento nesse sentido.

- O que você acha que vai acontecer, Ronny? Perguntou Selena no momento em que se

dirigiam para a sala de aula.


O rapaz deu de ombros. Apenas sorriu tranquilamente, como quem não está nem um

pouco com medo.

- Só o tempo dirá, respondeu.


Capítulo Treze

Quando as aulas terminaram, na quarta-feira, Ronny ainda não havia recebido nenhuma

resposta da diretoria com relação ao cabelo. Ao que parecia, toda a escola estava sabendo do

problema. À hora do almoço, Selena vira o amigo, perto dos escaninhos, rodeado de colegas

que o interrogavam sobre a questão. O rapaz nem conseguira chegar à cantina. A garota ficou

com a impressão de que ele não almoçara.

Terminada a aula, avistou o colega parado no estacionamento, perto da caminhonete

dele, outra vez cercado de estudantes. Aproximou-se do grupo.

- Eu acho que você deveria escrever outra carta pra eles, disse uma das garotas. E diga

que todos nós pensamos o mesmo que você. Eles não podem ir estabelecendo tantas restrições

assim.

- Será que não confiam na gente? interpôs outra menina.

- Temos de fazer um requerimento, acrescentou um rapaz.

Outros estudantes se juntaram a eles e, de repente, todos estavam falando ao mesmo

tempo, cada um dando sua opinião. Selena estava cada vez mais admirada pelo modo como

Ronny estava encarando tudo. Ficava só dizendo que ainda era quarta-feira. O PC (Poder

Constítuido, apelido que Tyler criara para a junta diretora) poderia responder até quinta. Não

havia necessidade de tomarem nenhuma medida radical.

- Vamos esperar até amanhã, disse ele em voz firme para superar o burburinho do

grupo, que parecia estar querendo uma briga. Parece que vocês esqueceram que eu disse que

vou obedecer à decisão deles, seja ela qual for. Eles são autoridade sobre nós.

- É, mas e se a decisão deles for errada? Não é certo a gente se submeter a um grupo de
lideres que se acham totalmente desligados de nossa realidade.

Quem disse isso foi um estudante baixinho, de óculos, que logo pareceu meio assustado

com o fato de todos se virarem para ele.

- Quero dizer, prosseguiu ele, acho que a gente só deve acatar a decisão deles se ela for

boa.

- Isso mesmo! concordou outro rapaz. Somos nós que estamos mais a par do que se

passa na comunidade. Eles se acham completamente desligados dela.

- E não sabem o que é mais importante, disse uma garota de voz aguda. Nós é que

deveríamos fazer todos os regulamentos, para não ter de seguir essas normas ultrapassadas.

- Pois eu acho que eles deveriam deixar cada um fazer o que achar que é certo e se

preocupar apenas com nossas notas. Afinal, é pra isso que a gente estuda, né?

- Minha tia disse que, quando ela estudava aqui, as alunas só podiam usar vestido.

- Puxa, que ditadura! exclamou alguém. Agora eles não podem mais agir desse modo,

podem?

- É, agora eles tem de observar os direitos dos alunos. E se a gente quiser usar o tipo de

roupa que achar melhor, ou cortar o cabelo da maneira que preferir, eles não podem baixar

nenhuma outra norma!

- É mesmo! disseram vários estudantes em coro.

A essa altura, já havia ali uns vinte alunos ou mais.

- Espere aí, gente! interveio Selena, que finalmente a conseguira criar coragem para

falar. Isto aqui está parecendo o pov do livro de Juízes! Nem acredito no que estão dizendo.

A garota agora estava irritada, por ela e por Ronny, já que o amigo parecia ter resolvido

assumir uma atitude passiva.

- Esqueceram aquela classe de estudo bíblico que tivemos no semestre passado?

continuou ela. O último versículo do livro de Juízes diz o seguinte: “Cada um fazia o que
achava mais reto”. E foi justamente aí que a nação desmoronou.

- Ah, mas isso foi no tempo da Bíblia! disse Tyler, adiantando-se e dando a impressão

de que queria discutir. O que isso tem a ver com nossa situação? Aquilo ali não se aplica a

nós, não.

- Aplica sim, retrucou Selena, sentindo o coração bater forte. Tudo que Deus queria

ensinar pra eles naquela época, quer ensinar pra nós hoje. Gente, vocês não estão vendo que o

Ronny está agindo certo? Ele está disposto a se submeter àqueles que são a autoridade aqui.

Mas antes, ele apresentou seu lado da questão; e o fez com muito respeito. Todos nós

devemos apoiar essa atitude dele, sem procurar fazer dele um pretexto para iniciar uma

rebelião aqui.

- Muito bem! gritou alguém batendo palmas, atrás de Selena.

A garota se virou para ver de quem era aquela voz firme e grave. Era Drake, o mais

importante atleta da escola.

- Estou do seu lado, Selena! disse ele, sorrindo para a garota.

- Do meu lado? indagou a garota, correndo os olhos pelos colegas à sua volta.

Ali agora havia cerca de trinta estudantes, a maioria eram formandos.

- Não existe nenhum “meu lado”, prosseguiu ela. Eu estava apenas falando em nome do

Ronny, porque o pessoal aqui está querendo transformar este episódio em algo diferente.

- E como o Ronny mesmo disse, interpôs Bethany, falando bem alto para que todos

ouvissem, enquanto a junta diretora não tomar a decisão dela, não existe nada pra se discutir.

Além disso, ele também falou que vai acatar a determinação deles, seja ela qual for. Por que

será que todo mundo está querendo fazer disso uma briga?

- Então vamos nos reunir amanhã depois da aula, propôs Tyler. Aí então vamos saber se

já é o momento, ou não, de tomar partido de um ou de outro. Já está passando da hora de se

fazerem algumas mudanças nesta escola. E pra mim, isso tudo é apenas o começo.
O grupo foi se dispersando lentamente, cada um tomando sua direção, todos falando ao

mesmo tempo. Selena ainda sentia o coração batendo forte. Obedecendo a um impulso, deu

um murro no braço de Ronny.

- Pra que isso? indagou o rapaz, espantado de haver levado um soco dela.

- Por que você não falou nada? perguntou ela.

- Porque sou pacifista. Não sou como certas pessoas que conheço, replicou ele,

esfregando de leve o ponto onde ela batera. Ai!

- Desculpe! interpôs a garota, fazendo um enorme esforço para se acalmar. É que fico

nervosa com esse pessoal querendo fazer uma revolução, sem nem saber direito pelo que está

lutando. Parecia que eles queriam fazer do seu caso uma espécie de “causa” pela qual devem

lutar. Você não fica nem um pouco incomodado, não?

Ronny abanou a cabeça.

- É como minha mãe sempre diz: “Isso também vai passar!”

A garota fitou-o com ar de dúvida.

- Calma, Selena! Eles vão superar isso. Não existe motivo pra briga. Se o PC disser:

“Corte o cabelo”, cortarei. E aí acaba tudo.

- Tenho minhas dúvidas, comentou a garota.

Vicki aproximou-se e parou ao lado de Selena.

- Oi, gente! O que é que está acontecendo? Ouvi alguém dizer lá no corredor que estava

havendo uma reunião aqui, e que era pra todo mundo se reunir aqui amanhã de novo.

- Nada não, respondeu Ronny.

- É, interpôs Selena, mas pode vir a acontecer.

- Isso veremos, disse o rapaz. Agora tenho de ir pra casa pôr uma bolsa de gelo no

braço, antes que ele comece a inchar.

- Alguém lhe bateu? perguntou Vicki, olhando primeiro para ele e depois para a amiga.
- Bateu, disse Ronny. Minha diretora de campanha me deu um murro.

- Não sou diretora de campanha nada, protestou a garota.

- ‘Tá bom. Então é minha defensora pessoal.

- Se você tivesse defendido sua causa, não precisaria de uma defensora pessoal.

- Qual é? Eu não tenho causa nenhuma, esqueceu?

Vicki bateu o pé no chão com força.

- Alguém, por favor, quer me explicar o que está acontecendo aqui?

- Ela me deu um murro, replicou Ronny, apontando para Selena e assumindo um ar de

garotinho. Vou pra casa contar pra minha mãe.

A garota achou muito engraçadinha sua expressão de “cãozinho” machucado.

- Calma aí, Vicki, disse ela, abanando a cabeça e olhando para o colega, eu lhe conto

tudo. Você pode se encontrar comigo na Eaton’s daqui a pouco? Prometi a minha mãe que

vou levar a Vó May lá agora, depois da aula, pra que ela saia um pouco.

- Não vai dar, não. Tenho de ir pra casa, explicou a outra. Quero ir à reunião dos jovens

hoje à noite, e meus pais disseram que só posso ir à igreja durante a semana se terminar todos

os trabalhos da escola. E estou com muito dever pra fazer.

- Então eu a encontro na reunião, e aí lhe conto tudo, concluiu Selena.

- O.k.Tchau!

Selena se encaminhou para o carro que se encontrava do outro lado do estacionamento.

Ronny já estava saindo de caminhonete e deu uma acelerada no motor, quando passou por ela.

Em seguida, fez-lhe um aceno meio desajeitado, como quem está com o braço doendo. A

garota acenou também. Teve uma sensação desagradável. Aquela reação de dar um murro no

braço dele fora meio tola. Era algo que fazia com os irmãos mais velhos. Fizera-o tão

instintivamente que nem notara que havia batido nele. Só depois é que percebera o que havia

feito. Embora visse o rapaz como um bom amigo e colega, nunca o tinha agredido daquele
jeito.

- Sabe o que mais, Selena? disse para si mesma, ligando o carro e arrancando. Tem hora

que você parece adulta, madura e muito educada. Mas, de repente, surge dentro de você uma

bola de fogo que explode tudo. Quando é que vai crescer e ficar livre dessa agressividade?

É, mas ela já sabia da resposta, que era: “Nunca!”

Já era sabido que as mulheres da família Jensen tinham a capacidade de se defender

sozinhas. E essa “bola de fogo” que havia dentro delas não “morria” nunca. A própria Vó

May era assim, antes de começar a ficar esclerosada. Selena recordou-se de um fato que

acontecera quando era criança. Achava-se no carro com a avó, e a certa altura pararam num

sinal, numa área residencial. Ali viram dois garotinhos na calçada, chupando picolés, bem

satisfeitos. De repente, apareceu um menino maior, deslizando num skate. Ele passou pelos

garotos, pegou o picolé de um deles e saiu rapidamente rua abaixo.

Vó May arrancou, “cantando pneus”, e dobrou a esquina, saindo em perseguição ao

menino. Este olhou para trás e, quando percebeu que ela vinha, tentou mais depressa. Contudo

bateu num desnível da calçada e caiu. Vó May parou o carro junto ao meio-fio. Desceu e

agarrou o menino. Fuzilando de raiva, passou-lhe uma repreensão severa. O picolé havia

caido no chão, mas ela tirou dinheiro do garoto. Em seguida, voltou onde estavam os outros

meninos e deu o dinheiro para o pequeno de quem ele roubara.

E não foi só isso. Os garotos lhe disseram que haviam comprado os picolés em uma van

grande. Ela desceu a rua e foi até onde estava o veículo - sete quarteirões abaixo. Comprou

dois sorvertes - um para ela e outro para Selena - e também um picolé. Voltou ao lugar onde o

garotinho estava e o deu a ele.

Não havia dúvida de que as mulheres da familia Jensen sempre lutavam em prol da

justiça e da verdade. Anos atrás, a mãe de Selena até brincara com a Vó May nesse sentido.

Dissera-lhe que ela devia arranjar um capacete vermelho-vivo, e aí estaria preparada para
proteger o mundo todo. A avó aceitara bem a brincadeira. Selena ficou a observar tudo e

aprendeu uma lição. Ela própria não reagia dessa maneira calma, quando a mãe “brincava”

com ela, dizendo que era igualzinha à Vó May. Selena teve a impressão de que sua mãe não

sabia o que era ter aquela “bola de fogo” dentro de si. Se já a sentira, a dela não era da mesma

intensidade das que havia no interior das mulheres da família Jensen. Era por isso, e por

outras razões também, que a garota se via muito ligada à avó, mais até do que à mãe.

Justamente pelo fato de Vó May ter sido uma mulher forte, era muito triste para os

familiares vê-la agora numa condição fragilizada. Pensavam nela como uma pessoa cheia de

força, nunca fraca.

Agora Selena entendia melhor como era doloroso para sua mãe estar cuidando da avó.

Fora exatamente por esse motivo que se oferecera para ajudar naquilo que lhe fosse possível.

Até o momento, o melhor que poderia fazer era sair com Vó May, pelo menos uma vez por

semana, levando-a aos lugares aonde ela gostava de ir. Nessa tarde, ela planejara ir a Eaton’s,

uma drugstore* que ficava perto de sua casa. Era uma loja antiga. Já existia ali antes de Vó

May ter ido morar naquela casa. Então, fazia mais de cinquenta anos que ela ia lá; e quase

sempre ao setor da lanchonete. Sempre que um dos nove filhos dela começava a estudar, ela o

levava a Eaton’s, no primeiro dia de aula, para tomar um milk-shake. E fizera o mesmo com

os netos, depois que estes se mudaram para Portland. Nesse ano, porém, ela nem se dera conta

de que as aulas já haviam começado. A garota chegou em casa à hora de sempre, pouco

depois de 3:30h. Vó May já estava pronta para sair e a esperava sentada no balanço da

varanda, junto com a mãe de Selena.

___________________

*Drugstore: uma farmácia que, além de medicamentos, vende também cosméticos e outros artigos.

Algumas possuem um setor de lanchonete. (N.da T.)


- Desculpem! falou. Estou um pouco atrasada. Já está pronta para ir à Eaton’s, tomar um

milk-shake, vó?

A senhora acenou afirmativamente. Em seu rosto, havia uma expressão tranquila, de

quem está satisfeita. Selena não tinha certeza se ela entendia bem o que haviam conversado. A

mãe deu-lhe um olhar de gratidão e disse:

- Olha, nós só vamos jantar hoje por volta de 6:30h.

Agora era Selena que não compreendia bem o que ela quisera dizer. Poderia ser:

“Por favor, saia com ela e me de um descanso pelo menos até às 6:30h.”

Ou ela poderia estar apenas informando a hora do jantar.

- ‘Tá bom, replicou ela. Voltaremos a essa hora.

Sua intenção era dar a entender que iriam passar momentos tão agradáveis na Eaton’s,

que seria até difícil se arrancarem de lá para chegar em casa às 6:30h.

No momento em que Vó May vagarosamente se sentava no banco de passageiros do

carro de Selena, a garota pensou se a amada avozinha estaria mesmo compreendendo tudo o

que faziam. Será que ela sabia aonde estavam indo? E será que isso fazia alguma diferença

para ela? Será que estava com a mente lúcida e entendia tudo, inclusive a indireta da mãe para

que ficassem fora até pelo menos às 6:30h?

A única maneira de saber era esperar que Vó May conversasse com ela para ver se a

chamaria de “Queridinha”. O problem era que, nesse momento, quando desciam a rua em

direção à Eaton’s, Vó May não parecia querer conversar.


Capítulo Quatorze

Vó May e Selena entraram na loja e se dirigiram para o setor da lanchonete. Ainda

havia ali os assentos forrados em vinil vermelho, exatamente como quando ela era criança.

Até a lista dos artigos, que ficava acima do espelho, parecia a mesma. Só os preços haviam

mudado.

Selena inclinou um pouco a cabeça e dirigiu um sorriso agradável à avó.

- O que a senhora quer, vó? Que tal um milk-shake de chocolate?

Ela própria se assustou um pouco com seu tom de voz. Falara do mesmo jeito como a

avó se dirigia a ela quando era criança. A maneira como inclinara a cabeça e como dissera

aquilo tinha sido idêntica à forma como Vó May fazia anos atrás.

O que você quer, Selena? Que tal um milk-shake de chocolate?

Sem querer, até imitara seu modo de falar “milk-shake”. E tudo isso era muito estranho.

Parecia que as duas haviam trocado de lugar. Agora fora Selena quem dirigira o carro; e era

ela quem pagaria o lanche. Vó May passara a ser “a criança”.

- Ótimo, replicou a senhora. É o que quero.

Por um momento, Selena pensou que ela iria dizer “Queridinha”, e assim poderia ficar

mais tranquila. Contudo ela só disse “quero”, muito diferente do apelido pelo qual a avó

tratava a neta.

- Dois milk-shakes de chocolate, por favor, pediu para a garçonete que viera atendê-las.

- E um café, interveio Vó May, fazendo seu pedido.

Selena sorriu.

- É, e um cafe, repetiu.
Agora ficava difícil continuar vendo a avó como criança, já que ela pedira café. A

garota ficou alegre de ver que a própria Vó May pedira o café. Isso era bom sinal.

Compreendeu que era isso que sua mãe passava todos os dias, ao cuidar da avó. Tinha

de estar constantemente procurando descobrir como a senhora estava. Será que está lúcida

hoje? O que será que ela quer? Será que poderá pedir o que quer? Será que vai ficar ofendida

se eu fizer para ela algo que normalmente faz sozinha? Sua mãe precisava observar a avó o

dia todo, tentando ver e analisar os indícios que ela dava acerca de sua condição. Tal cuidado

poderia ser tremendamente cansativo.

Alguém entrou na loja, fazendo soar o alegre sininho que havia na porta. Selena olhou

na direção da entrada. Seu coração deu um salto. Era Amy. Ao que parecia, a colega não a

vira. Foi diretamente para o balcão de medicamentos, que ficava ao fundo da loja.

Até esse momento, a garota estivera convencida de que deveria deixar sua amizade com

a colega ir “morrendo” aos poucos. Agora, porém, teve uma sensação diferente. Lembrou-se

da ocasião, quando era pequena, em que se escondera no porão, esperando que um dos irmãos

fosse procurá-la. Ocorreu-lhe que talvez Amy tivesse feito o mesmo. De certa forma, esta

também puxara um latão de lixo, cheio de enxadas e ancinhos, e se escondera atrás dele.

Provavelmente, também já começara a sentir frio a ficar com as pernas dormentes. Contudo

ainda não se dispusera a sair.

Tenho de ir conversar com ela, pensou. Mas o que vou dizer? Talvez, se eu começar, as

idéias surgirão depois.

Ergueu-se do tamborete com um movimento brusco, como se ele tivesse uma mola.

- Vó May, disse lentamente, vou dar uma chegadinha ali no fundo da loja e volto já. Se

ela trouxer o milk-shake antes de eu voltar, não me espere, não. Comece a tomar o seu.

Selena percebeu que estava falando como quem conversa com uma criança de três anos.

É que queria deixar tudo bem claro.


- Volto já, o.k.?

- O.k., respondeu a avó. Não precisa se apressar por minha causa.

- ‘Tá bom, concordou a garota.

E foi saindo, dirigindo-se para o fundo da loja. Molhou os lábios e disse para si mesma

que não precisava ficar tão nervosa. Fazia várias semanas que aguardava um momento como

esse. Obviamente, ali não era o melhor lugar para conversarem, mas ao que parecia, ela nunca

teria uma situação melhor que essa. Sua vontade era gritar para a amiga:

“Campo livre, Amy!”

Queria dar a entender que não precisava mais ficar se escondendo.

- Amy, oi!

As palavras não saíram exatamente como ela queria.

- Eu estava ali no balcão de lanches com minha avó e a vi entrar. Como está?

A colega fitou-a atentamente, sem mudar a expressão do rosto. Não parecia surpresa de

ver Selena. Tinha um olhar vazio, que não deixava entrever nada.

- Estou bem; e você?

- Muito bem. Não a vi na escola nem uma vez está semana.

A outra não respondeu, continuando a olhar para a amiga.

- Você estava doente? indagou Selena.

- Não.

- Ah, ainda bem.

Houve uns instantes de silêncio. Não havia mais ninguém no balcão de medicamentos, e

o farmacêutico se achava mais para dentro, aparentemente preparando a receita de Amy. Isso

lhes dava certa privacidade. Era um bom momento para terem a conversa que, havia tanto

tempo, Selena queria manter com a colega.

- Então, como tem passado? tentou Selena novamente.


- Muito bem.

- Ótimo!

Ao que parecia, Amy não queria ceder nem um pouquinho e aceitar o diálogo. Selena

pensou que poderia dizer algumas lavras “fortes” para “provocar” a outra, forçando-a a falar.

Essa técnica já dera certo anteriormente. Contudo hoje não devia agir assim. Ali teria de usar

de muita cautela. Tentar reconquistar uma amizade perdida era uma operação muito delicada.

- Você tem ido ao colégio, mas eu não a tenho visto, ou o quê? Arriscou-se a perguntar.

Amy baixou os olhos e depois os ergueu de novo, mas sem fitar diretamente a amiga.

- Não estou mais estudando no Royal, explicou afinal.

- É? Eu não sabia disso! Por quê?

Outra pausa.

- É por causa de seus pais? insistiu Selena com certo cuidado.

Amy fez que sim. Não demonstrava estar ressentida nem parecia querer dar mais

informações.

- Que pena!

- Tudo bem!

- Como é que está a situação entre seus pais? Melhorou?

- Acho que sim. De certo modo, sim. Na verdade, está melhor do que quando moravam

juntos. Eles estão se dando melhor um com o outro, e pelo menos passo algum tempo na

companhia de cada um. Então, está tudo bem.

Selena ficou feliz ao ver que a amiga se abria um pouco. Aproveitando isso, continuou:

- Sinto muito ter saído tanto nessas férias, quando você estava passando por tudo isso

com seus pais. Tentei ligar pra você da Califórnia, mas não consegui pegá-la em casa nem

uma vez. Deixei recado na secretária.

- Deixou?
- Várias vezes. Depois, como você sabe, viajei pra Suíça. Foi meio de repente, e não

tive tempo de ligar pra ninguém.

Amy fez um aceno afirmativo.

- Quando voltei, foi uma correria, com o meu serviço e a necessidade de arrumar tudo

pra iniciar as aulas. Um dia, fui lá no restaurante esperá-la depois do trabalho, mas você já

tinha saído. Depois, fui à sua casa com uma cesta de café da manhã.

- Quando foi isso? indagou Amy.

- Umas duas semanas atrás. Seu pai não lhe contou? Acho que ele estava dormindo e eu

o acordei. Então, quando atendeu a porta, não estava lá muito satisfeito.

- Ele não me disse nada, explicou a outra.

- Ah, pensei que ele iria lhe contar. Levei uma cesta de café da manhã pra nós. Achei

que assim a gente poderia conversar.

- Olhe aqui, Selena, falou Amy, colocando um pé à frente como que tentando se

equilibrar melhor, estou alegre de você estar me contando tudo isso. Não sabia que havia me

telefonado nem ido lá. Ninguém me falou nada.

- Eu queria muito conversar com você. Não gosto do jeito como está a situação entre

nós.

Amy ficou tensa.

- Sei que você acha que precisamos ter uma conversa e nos abrir uma com a outra,

replicou. Mas não penso assim. Tem certas coisas que é melhor a gente não dizer. Você tem

sua vida e seus novos amigos. Eu tenho a minha. Vamos deixar por isso mesmo.

- Eu não quero deixar por isso mesmo, não, afirmou Selena teimosamente.

- Sinto muito, mas acho que você não tem outra escolha, interpôs Amy, com uma faísca

de energia nos olhos escuros. Não quero mais ser sua amiga, Selena, e é isso aí!

- Não! Não tem de ser “isso aí”, não! retrucou a garota, sem saber direito como se
expressar.

Queria muito passar a Amy o que sentia com relação a ela. A colega, porém, abanou a

cabeça, desviando o olhar.

- A questão é que você tem alvos e expectativas muito elevados para si mesma e tenta

impô-los aos seus amigos. Então, vamos encarar a verdade: eu não estou à altura deles.

Selena ficou sem saber o que responder. Tentou pensar numa boa resposta. A amiga

parecia um foguete prestes a ser lançado ao espaço. Ela não queria se “queimar” na hora em

que ocorresse a explosão do lançamento. Continuou hesitando, sem saber o que dizer. Nesse

instante, o farmacêutico chegou ao balcão.

- Amy Degrassi! chamou ele.

- Pois não! respondeu Amy, virando-se para ele. Não tenho mais nada pra lhe dizer,

Selena. Tchau!

Ela falara com firmeza, sem olhar para a outra. Selena não sabia o que fazer. Se

estivesse sozinha, se não estivesse acompanhada de Vó May, iria atrás da amiga. Seu espírito

de luta iria impulsioná-la a seguir a outra até o estacionamento. Ali, sim, teria uma plataforma

mais segura para o “lançamento do foguete”. Não tinha medo de insistir com a amiga.

Tampouco temia o que esta pudesse lhe dizer. Pelo menos, elas colocariam tudo em pratos

limpos. O problema era que não poderia deixar Vó May sozinha.

Amy continuava de pé junto ao caixa, pagando sua compra. Selena virou-se e foi em

direção ao balcão de lanches. Bastava de tentativas de fazer a outra “sair do esconderijo”.

Quer dizer então que Amy não estava fazendo o “joguinho” que achei que ela estava.

Pensei que ela queria que eu ficasse atrás dela até “encontrá-la”, Como pude me enganar

tanto?

Assim que ela saiu do corredor da loja que dava para o balcão de lanches, seu coração

parou. Sobre ele estavam os dois copos de milk-shake e o café ainda intatos. O tamborete
estava vazio. Vó May desaparecera.

Capítulo Quinze

- Vó May! gritou ela nervosamente, olhando para um lado e outro. Viu aonde minha avó

foi? perguntou à garconete.

- Não. Não vi quando ela se levantou.

Selena saiu correndo para o estacionamento.

- Vó May! gritou de novo, sem se importar com o que os outros pensariam.

Nesse momento, Amy saía da loja. Ao avistar Selena, virou o rosto e continuou andando

em direção ao carro.

- Amy, chamou a outra, minha avó desapareceu! Pode me ajudar?

A colega parou e olhou-a com ar de suspeita.

- Ela estava aqui comigo, no balcão de lanches, mas quando voltei, havia desaparecido.

Ninguém aqui a viu sair. Será que você pode me ajudar a procurá-la? Você sabe como ela

fica.

Amy hesitou por uns instantes e depois soltou um suspiro de resignação.

- Onde será que ela foi?

- Não faço a mínima idéia.

- Ela morou aqui quase a vida toda, comentou Amy. Conhece bem este bairro. Tem aqui

algum lugar a que ela gosta de ir, uma praça ou algo assim?

- Creio que não. Se ela não estiver lúcida, pode ter saído caminhando por aí, sem saber

onde está. Acho que devíamos sair, cada uma no seu carro, e dar a volta nesses quarteirões

por aqui. É isso que eu e minha mãe fazemos. Será que você pode procurála nas quadras desse
lado? indagou ela, apontando numa direção. Eu procuro no lado de cá.

- Tudo bem, concordou Amy.

- Depois que você tiver dado umas voltas, a gente se encontra aqui. Ah, olhe tudo,

mesmo lugares que podem parecer estranhos, como a varanda ou o quintal das casas.

-Eu não vou ficar espiando no quintal dos outros, não, Selena, protestou Amy.

- ‘Tá bom. Então chame-a, o.k.? Ela a conhece, e se você a chamar, ela virá. A gente se

encontra aqui.

Selena entrou em seu carro e ligou o motor. Seu coração estava batendo depressa,

enquanto rodava de um lado para outro, nas ruas próximas à Eaton’s, gritando o nome da avó.

- Ei! Vó May!

Não havia nem sinal dela.

Ah, que horrível! O que e que eu vou fazer? Não devia tê-la deixado sozinhah! Nem um

minuto! O que vou fazer?

Deu a volta em mais um quarteirão, já era o sexto. Ainda não via sinal de Vó May.

Mesmo que ela estivesse boa da cabeça, não teria caminhado mais do que essa distância.

Ainda assim, Selena procurou em mais duas quadras, só para ter certeza absoluta. Não a

encontrou.

Talvez Amy a tenha achado. Oh, espero que ela a tenha encontrado!

Resolveu voltar para a loja. Estava com tanta pressa de chegar ali que, num determinado

cruzamento, quase bateu em outro carro que atravessou à sua frente em alta velocidade. Pisou

no freio, e o outro veículo passou como um jato. O motorista a olhou com cara feia, como se

ela fosse a única errada.

Calma, Selena! pensou. Sofrer um acidente agora não vai melhorar em nada a

situação.

Procurando tranqüilizar-se e dirigir com toda atenção, Selena rodou o resto do caminho
orando, com a esperança de que, assim que entrasse no estacionamento, visse Vó May no

carro de Amy.

O velho e acabado Volvo da amiga já se encontrava ali, mas a avó não estava nele.

Selena entrou numa vaga meio apertada e saltou do Fusca. Foi correndo para onde Amy se

achava. A amiga nem desligara o carro.

- Não encontrei, não, foi logo dizendo. Espero que tudo acabe bem. O que você vai

fazer agora?

Selena bateu a mão com força na lateral do Volvo, soltando um suspiro, demonstrando

temor e desalento.

- Acho que tenho de ir pra casa e contar para os meus pais, respondeu.

Amy fechou a boca apertando os lábios.

- Bom, preciso ir embora. Espero que tudo termine bem.

- Obrigada, Amy, obrigada pela ajuda. Eu agradeço muito.

As duas ficaram em silêncio e, por um instante, se fitaram nos olhos. Agora já não havia

mais bola de fogo por dentro nem foguete espacial.

- De nada. Tchau!

- Tchau! replicou Selena ainda relutante.

Em seguida, voltou para o carro. A caminho de casa, resolveu dar mais uma procurada

pelo bairro para o caso de ela ou Amy terem esquecido de olhar em algum lugar.

E se Vó May tivesse voltado para a drugstore? Selena deu meia-volta e retornou à loja.

Entrou correndo e viu que o balcão de lanches estava vazio. Passava das 5:00h, e depois dessa

hora, eles o fechavam. Andou por entre os corredores, mas nada. Perguntou ao farmacêutico

se ele havia visto sua avó. Não vira. A mulher que estivera no caixa já saíra. Agora, quem

estava ali era uma jovem. Disse que pegara serviço havia dez minutos e não vira nenhuma

senhora idosa, parecida com a descrição que Selena lhe dera.


- Obrigada, disse a garota.

Teve de reconhecer que agora só lhe restava mesmo ir para casa, contar aos pais e ligar

para a polícia. Era impossível descrever o que sentia naquele momento. Seus pais sempre a

repreendiam pelo fato de ser descuidada e viver perdendo pertences importantes, como seu

passaporte, por exemplo. Como poderia encará-los e dizer-lhes que agora não sabia do

paradeiro de Vó May?

Sentia-se como que dormente por dentro, da cabeça aos pés. Achou a volta longa

demais. Parecia que nunca iria chegar. Ao entrar na rampa da garagem, nem sentiu o impacto

da pequena lombada que havia no meio-fio. Quando girou a chave para desligar o carro, os

dedos também estavam dormentes. Teve a impressão de que, se tivesse batido a porta no pé,

no momento em que a fechara, nem iria sentir nada.

As palavras lhe corriam pela mente com uma impressão dolorosa. Cada uma delas

parecia produzir uma dor intensa, quase física. Recordou-se de que se sentira assim uma vez,

quando tinha sete anos. Trouxera para casa um ramo de flores silvestres. Ao tentar tirar do

armário um vaso da mãe, deixou-o cair e ele se quebrou. Conseguira ajuntar os cacos com

uma vassoura, sem se cortar, e os pusera num saco de papel. Depois levara o embrulho para a

garagem e o deixara ali. Resolvera que iria confessar o erro para a mãe após o jantar. Foi o

jantar mais triste de sua vida.

Hoje, porém, não dava para deixar para depois do jantar.

Subiu a escadinha da entrada de dois em dois degraus. De repente, conscientizou-se de

que a questão principal não era o erro que cometera nem o castigo que receberia por haver se

afastado de Vó May. O mais importante agora era a segurança da avó.

- Mãe! gritou ela, entrando pela porta da varanda. Pai!

- Estamos aqui, replicou a mãe em tom calmo.

A voz viera da sala.


- Mãe, eu...

Selena entrou correndo, mas parou abruptamente. Vó May estava sentada no sofá, sã e

salva. A mãe se achava ao lado dela, e o pai, do outro. Os três fitavam a garota com uma

interrogação no olhar, aguardando uma explicação.

- A senhora está bem? perguntou ela, correndo para a avó e segurando as mãos dela. O

que foi que aconteceu?

- É o que nos queremos saber, interpôs o pai. O Sr. Estevão a trouxe para casa.

- Sr. Estêvão? Por quê? indagou a garota olhando para o pai, depois para a avó e em

seguida para a mãe.

- Ele disse que ela estava sentada lá, sozinha, e ficou preocupado, explicou Harold

Jensen, fitando a filha com ar severo. Aonde você foi? Vó May disse que você tinha ido ao

banheiro, mas demorou muito. Então ela foi lá para ver o que estava acontecendo, mas não a

encontrou. Voltou ao balcão de lanches e ficou a esperá-la, mas você não apareceu.

Selena bateu a mão na testa.

- O banheiro! exclamou. Claro! Foi o único lugar em que não olhei.

A mãe inclinou-se para a frente.

- Selena, disse ela, isso é muito sério. Aonde você foi?

- Não fui ao banheiro, não. Fui ao balcão de medicamentos, só uns minutinhos. Amy

tinha ido lá, e fui conversar com ela. Achei que era a única oportunidade que teria de acertar

tudo. Conversamos alguns minutos e, em seguida, voltei para o balcão de lanches. Aí Vó May

tinha desaparecido. Eu e a Amy a procuramos pelo bairro todo, eu no meu carro e ela no dela.

- Enquanto isso, sua avó ficava lá sentada, sozinha, durante quase uma hora, falou o pai.

- Sinto muito, vó, disse a garota, olhando para a senhora e apertando-lhe de leve as

mãos.

Vó May tinha uma expressão de quem não está entendendo nada.


- Minha intenção não era largar a senhora sozinha lá, não, continuou Selena. Achei que

tinha saído.

- E por que eu iria sair? Pensei que você estava tendo algum problema no banheiro,

quando na verdade tinha desaparecido.

- É, eu sei. Me desculpe, vó. Isso não vai acontecer mais.

- É, interveio a mãe, você não vai mais fazer isso.

A voz dela tinha um tom de desalento. Selena sentiu-se péssima. A mãe quisera

“descansar” de Vó May por algumas horas, mas não pudera. Selena acabara trazendo mais

aflição para todos eles.

- Estou muito chateada de ter feito isso, disse.

Ela detestava quando aconteciam fatos assim. Tudo parecia tão simples! Iriam apenas

dar uma chegada à drugstore Eaton’s e fazer um lanche. De repente, ela vê uma chance de

conversar com Amy. No fim, tudo acabou virando contra ela.

- Não fique preocupada, não, disse Vó May, soltando a mão da neta e afastando uma

mecha de cabelo louro do rosto aflito da garota. Tudo já acabou e agora estamos aqui sãs e

salvas.

- Quer que eu leve o jantar pra senhora lá em cima? indagou Selena. Quem sabe uma

sopa bem gostosa!

Nesse instante, percebeu que estava inclinando a cabeça e empregando o mesmo tom de

voz com que falara na loja. Era o jeito como a avó lhe falava quando era criança.

- Ótimo! É o que eu quero, replicou Vó May, levantando-se para subir para o quarto.

Selena mordeu o lábio inferior. Outra vez a avó dissera a palavra “quero”, quando a

garota desejava tanto que ela falasse “queridinha”.

- Isso tudo é muito sério, disse a mãe assim que a senhora saiu. Muito mais sério do que

você pensa. Afinal de contas, em que você estava pensando?


- Já disse, mãe. Vi a Amy lá e achei que poderia conversar com ela um pouquinho.

- Não se pode deixar a Vó May sozinha assim. Nem por um minuto. Você sabe disso.

- Sei e reconheço que errei. Me perdoe.

- Tenha calma com a menina, Sharon, disse o pai, batendo de leve no braço da esposa.

Afinal, tudo acabou bem.

- Desta vez, sim; mas, e da próxima?

- Vamos tomar providência para não haver uma “próxima vez”, respondeu ele em tom

calmo, tranquilizador.

A mãe de Selena soltou um suspiro profundo, de quem está se controlando há muito

tempo.

- Se fosse fácil assim, Harold, até que seria bom, disse. Você não sabe como é isso aqui,

concluiu, levantando-se e caminhando para a cozinha.

- O que você quer dizer com isso? Como não sei? indagou ele, indo atrás dela. Também

moro aqui. Ela é minha mãe. Conheço bem essa situação.

Selena pensou em ir atrás deles. Sempre que causava algum problema para os pais, tinha

o impulso de fazer algo “para eles”. Obviamente, queria compensar o erro cometido,

prestando favores aos dois. Contudo achou melhor continuar por ali, polo menos durante

alguns instantes, e deixar que eles conversassem a sós. Daria uns cinco minutos de intervalo e

depois iria preparar a sopa da avó. Aliás, era um prato bem adequado para quem estivesse

doente ou aborrecido, não era? Entretanto reconhecia que nenhuma sopa serviria para fazê-los

sentir-se melhor nessa noite.


Capítulo Dezesseis

Poucos minutos depois que os pais saíram da sala, o telefone tocou.

- Selena, gritou a mãe, é pra você!

A garota entrou na cozinha e pegou o telefone sem fio na mão da mãe. Em seguida,

dirigiu-se para a despensa, a fim de pegar uma lata de sopa.

- Alô! disse.

- Selena, é Amy!

Parou de procurar a lata e se ergueu.

- Oi, Amy!

- Eu queria saber notícia de sua avó.

- Ela está bem. Quando cheguei, ela já estava aqui. Um vizinho nosso trouxe-a de volta.

Você não vai nem acreditar. Enquanto a procurávamos pelo bairro todo, ela estava no

banheiro.

Houve uma pausa, mas logo em seguida a amiga deu uma risada. Era tão bom ouvi-la

rindo de novo.

- E você achando que ela estava vagando pela rua, meio confusa, né?

- É. Nem pensei em procurar no banheiro.

- Ela está bem?

- Creio que sim.

Selena pôs a mão em concha sobre o bocal e continuou:

- Mas os meus pais estão muito irritados.

Os dois ainda estavam na cozinha, discutindo sobre a condição de Vó May.


- Eu só queria saber como sua avó está, disse Amy após uma pequena pausa.

- Gostei muito de você ter ligado, disse Selena. Muito obrigada.

- E queria lhe dizer também que gostei de saber que você tentou telefonar pra mim e que

veio me ver. Eu não sabia nada disso e acho que tirei conclusões apressadas.

Selena fechou a porta da despensa e acendeu a luz. Era meio apertadinha, mas queria

ficar ali sem interrupções. Nada deveria atrapalhar aquele momento que ela tanto desejara.

- Ah, eu também tirei algumas conclusões apressadas sobre você; e sei que não fui

muito justa.

- Mas ainda mantenho o que disse, Amy apressou-se a explicar. Não quero discutir

minha vida com você.

- ‘Tá bom.

Não sou como você, Selena, continuou a outra. Em alguns pontos, somos parecidas,

sim. E acho que foi isso que nos fez aproximar uma da outra no ano passado. Mas não tenho

as mesmas idéias suas. Acho que nunca tive. Eu apenas tentei me ajustar ao seu jeito, sabe?

Entretanto não quero que ninguém tenha essas expectativas a meu respeito.

- Amy...

- Não comece a pregar pra mim, não. Se começar, desligo.

- Não. Só quero dizer que está tudo bem, interveio Selena prontamente.

A colega não desligou.

- Então, vamos recomeçar a partir daqui, prosseguiu Selena. É só isso que quero dizer.

Gosto de você, Amy, e quero que a gente continue como amigas, conversando de vez em

quando. E o que você quiser está bom pra mim. Apenas não quero que a gente fique tratando

uma a outra friamente só porque, nos últimos meses, mudamos um pouco. Aliás, eu também

mudei.

A outra não respondeu, mas Selena percebia que ela ainda estava ao telefone.
- Assim está bem, disse afinal.

- Sabe, Amy, você me deu uma força e me ajudou a procurar minha avó. Só uma amiga

de verdade faria isso. Acho que não precisamos tentar ser amigas. Nós já somos.

- A questão é que não estou acostumada a ter amizades muito duradouras, explicou

Amy. Geralmente, fico algum tempo com alguém e depois passo pra outra. Arranjo outros

amigos. Então não vou garantir nada de minha parte. Não farei nada pra nanter nossa

amizade. Mas também não vou “pô-la no gelo”, não, ‘tá?

Selena teve a sensação de que lhe haviam tirado um peso dos ombros.

- Talvez essa situação seja como você me disse um tempo atrás, comentou Selena,

encostando-se à parede. Como foi mesmo que você falou? Nós circulamos em órbitas

diferentes, que vez por outra se cruzam. Mas pode ter certeza de que, quando elas se

cruzarem, estarei às suas ordens para o que precisar, como você esteve hoje comigo,

procurando a Vó May.

- Obrigada, Selena, disse a outra num tom emocionado. Muito obrigada mesmo. E eu

também estarei às suas ordens, desde que não tenha expectativas muito elevadas a meu

respeito.

- Espero que tudo corra bem pra você na outra escola.

- Obrigada.

- Ainda está trabalhando no restaurante do seu tio?

- Estou.

- Então um dia desses talvez eu dê uma chegadinha lá.

- É, pode ser.

- Bom, então uma hora dessas em que estiver chateada, ou sem ter o que fazer, ligue pra

mim, o.k.? Provavelmente estarei por aqui mesmo.

- Obrigada. Depois a gente se vê.


- Tchau, Amy!

Selena desligou e apoiou a cabeça na parede. Em seguida, deu um suspiro de alívio. A

conversa não fora exatamente como ela queria - uma abrindo o coração para a outra - nem

terminara do jeito que ela esperara. Contudo fora muito bom que tivessem conversado. Agora,

pelo menos, sentia que a tensão havia acabado.

O que a preocupava mais fora o que Amy dissera sobre suas “idéias”. Que será que ela

quisera dizer ao afirmar que não tinha as “mesmas idéias” de Selena e talvez nunca houvesse

tido? Será que se referia ao pensamento de Selena sobre namoro? Ou seria sua crença em

Deus? O que de fato se passava no coracão da amiga? A garota compreendeu que a outra não

lhe abrira o coração. Portanto não poderia “entrar” nele. Contudo poderia “visitá-lo” de vez

em quando. Por agora, teria de contentar-se com isso.

Abriu a porta da despensa e saiu. Os pais já tinham ido embora da cozinha. Será que

ainda estavam discutindo sobre a Vó May? Ou será que já haviam resolvido a questão, assim

como ela e Amy tinham solucionado a sua? Achou que, por enquanto parecia que tudo se

arranjara. Na próxima vez em que ocorresse um problema com a avó, não havia dúvida de que

o assunto voltaria a ser discutido. Isso significava que ela teria de tomar muito cuidado para

não ser a causadora de nenhum conflito entre os pais por causa de Vó May.

Pegou uma lata de minestroni e derramou a sopa numa panela, pondo-se a preparar uma

bandeja para levar à avó.

- Que dia! disse consigo mesma.

Deu uma olhada para o relógio e percebeu que não daria mais para ir à reunião dos

jovens. A mãe iria começar a fazer o jantar a qualquer momento, e seria bom se pudesse

ajudá-la. Se fosse à igreja, não teria muito tempo para fazer os trabalhos da escola; e tinha

muito dever de casa. Lembrou-se de que falara com Vicki que iria à igreja. Era melhor ligar

para a amiga. Telefonaria depois que levasse a sopa para Vó May.


O resto da noite transcorreu tranquilamente, o que foi ótimo para Selena. Ela ajudou a

mãe a preparar o jantar e a arrumar a cozinha. Parecia que tudo estava calmo e voltara ao

normal, tanto no que dizia respeito aos pais, como a Vó May.

Passava das 8:00h quando Selena se dirigiu ao escritório, carregando a mochila, com a

intenção de trabalhar nos deveres escolares. Ligou o computador e deu uma verifiada no

email. Havia quatro mensagens para o pai, uma do Wesley (seu irmão mais velho) para a mãe,

e mais duas que eram anúncios. Paul não enviara nada.

Lembrou-se da amiga, Cris Miller, que estava estudando na Suíça. Será que ela teria um

e-mail? Recordou-se de que vira computadores na biblioteca da escola. Era bem provável que

a jovem pudesse receber mensagens. Se ao menos soubesse o endereço eletrônico! Contudo

sabia o postal. Resolveu escrever a Cris, pedindo o seu e-mail. Isso significava que teria de

enviar outra carta para o exterior e aguardar pelo menos uma semana para receber a resposta.

Era horrível ter de esperar! Era péssimo ter de aguardar vários dias, e até semanas, uma

carta do Paul. Tantos fatos novos haviam acontecido depois que ela lhe escrevera! A vida

estava passando à velocidade da... bom, da vida mesmo. Essa vagarosa correspondência com

o rapaz e as demoradas respostas dele não estavam acompanhando o ritmo dos

acontecimentos.

Parou de digitar seu recado para Cris e se pôs a olhar pela janela, para a noite escura.

Que será que Paul está fazendo agora? Será que está na aula? Ou estudando?

Caminhando pelas montanhas de que tanto gosta? Será que está pensando em mim? E o que

será que está pensando?

“Oh, Pai, fico tão feliz de saber que o Senhor está em toda parte, ao mesmo tempo! Por

favor, Pai, envolve o Paul com teus braços amorosos onde ele estiver e o que quer que esteja

fazendo. Que ele possa sentir o quanto tu o amas e o quanto te interessas por tudo que lhe diz

respeito. Dirige-o em seus estudos, para que se esforce ao máximo e aprenda tudo aquilo que
lhe será proveitoso futuramente. Prepara-o para a obra que o Senhor determinou para ele.

Guarda-o, Senhor, em segurança. Peço-te que ele tenha bons amigos e que passe momentos

maravilhosos com a avó. Fortalece-o interiormente, Pai. Obrigada, meu Deus, por estares

ouvindo minhas petições e respondendo-as na hora certa, da maneira que queres. Eu te amo,

Pai. Amém.”

Selena sorriu consigo mesma. Fazia já vários meses que orava por Paul. No início, ao

fazer essas orações, experimentava uma emoção bem diferente da que sentia agora. Antes, ao

orar por ele, ao lutar por ele, com sussurros, na presença de Deus, fazia-o por obediência a

uma ordem do Senhor. Sentia-se impelida a interceder pelo rapaz. Agora que estavam se

correnpondendo, porém, tudo mudara. Ao ler as cartas dele, tinha a impressão de que estava

vendo um “pedacinho” do coração de Paul. Tendo aprofundado o relacionamento com ele, era

bem mais “gostoso” orar. Experimentava uma maravilhosa sensação de calma e

contentamento. Era impressionante como duas simples cartinhas podiam expandir um

relacionamento assim, inundando-o de calor humano.

Recordou-se de que Vicki dissera que a Bíblia era a carta de amor que Deus enviou a

todos nós.

Como eu poderia ter comunhão com Deus se não tivesse essa carta de amor? O que eu

pensaria a respeito dele? Como conversaria com ele?

Mais uma vez olhou para fora e ficou meditando nessa questão. Nunca havia pensado

nisso antes.

Deus escreveu na Bíblia tudo o que queria nos dizer. E posso ler a mensagem dele a

hora que quiser.

Nesse momento, recordou-se das crianças refugiadas que moravam no orfanato que ela

e a Cris haviam visitado na Suíça.

Será que elas já ouviram falar da Bíblia? Será que alguém já lhes disse o quanto Jesus
as ama? E como deve ser difícil para elas acreditar nisso, depois de tudo que passaram!

Voltou à carta para Cris e, escrevendo rapidamente, abriu o coração para a amiga.

“Ocorreu me, agora, que o que você está fazendo na Suíça, trabalhando com as

crianças do orfanato, também é um serviço para Deus. Quando estive aí, não o enxerguei

dessa forma. Mas agora está bem claro para mim. Se alguém não lhes falar de Deus, como é

que elas crerão nele? Se não ouvirem a leitura da Bíblia na língua delas, como ficarão

sabendo a respeito de Deus? Aqui em nosso país, a gente tem tantas facilidades que acho que

nos esquecemos de que, em outros lugares do mundo, o povo não tem a liberdade e a

oportunidade de sentar e ler a Bíblia na hora que quiser.”

A essa altura, teve de parar. Seus olhos haviam se enchido de lágrimas, e ela estava

enxergando tudo embaçado.

Por que será que nunca pensei nisso antes? Existe muita gente em todo o mundo que

não tem um exemplar da Palavra de Deus em sua própria língua!

Era tão estranho ficar emocionada daquela forma, assim, de repente! Havia anos que

escutava os missionários dizerem aquilo. Ela própria já fizera uma viagem evangelística e

também visitara, junto com a Cris, aquele orfanato da Suíça. Contudo nunca enxergara esses

fatos da maneira como os via agora. A Bíblia é a carta de amor que Deus enviou ao mundo.

No entanto havia muita gente que nunca a tinha recebido nem lido.

Selena afastou-se da mesa e limpou as lágrimas com as costas da mão. Saiu correndo do

escritório. Subiu as escadas apressadamente e entrou em seu quarto. Como sempre, estava

uma confusão geral. Sabia bem onde estavam todas as cartas de Paul, que recolocara no

envelope original. Dias atrás, atara-as com uma fita de veludo preta, um pedaço de uma

gargantilha que se arrebentara. Elas se achavam bem seguras, guardadas debaixo do

travesseiro. Enfiou as mãos ali e, de fato, todas estavam lá, bem ajeitadinhas.

Resolveu procurar a Bíblia no meio de toda aquela bagunça. Olhou entre umas roupas
sujas que se achavam a um canto. Chutou um sapato que estava no caminho. Lera-a dois dias

atrás e a colocara no chão junto com o livro de Ciências. Contudo o assoalho não era o lugar

certo para se deixar uma Bíblia, principalmente o do seu quarto. Lembrou-se de que, tempos

atrás, havia amassado uma carta de Paul e a jogara para um lado descuidadamente.

Afinal encontrou a Bíblia, debaixo de uma toalha de banho. Selena pegou-a e ficou a

olhá-la de perto.

- Nunca mais vou fazer isso, sussurrou para si mesma. Dirigiu-se para a mesinha-de-

cabeceira, ao lado da cama. Tirou dela uns copos vazios e pratos com migalhas de biscoitos.

Em seguida, colocou a Bíblia ali, bem sob o abajur.

Todas as cartas de amor são tesouros preciosos e merecem ficar num lugar de honra.

Sentindo que algo mudara em seu interior, embora não soubesse bem por que, Selena

saiu e desceu de volta para o escritório. Estava decidida a terminar os trabalhos escolares o

mais rápido possível. Esperava não ficar com muito sono, para que pudesse ler a Bíblia antes

de dormir.
Capítulo Dezessete

Quinta-feira, ao final das aulas, havia um grande grupo de alunos perto da caminhonete

de Ronny. Todos falavam ao mesmo tempo. Conversavam a respeito da decisão da diretoria e

sobre o que poderia acontecer ao colega, com relação ao cabelo dele.

- Ele ainda está lá conversando, disse Tyler, que se aproximava correndo. Talvez

demorem bastante.

Selena deu uma espiada no relógio.

- É, vou ter de ir trabalhar, falou para Vicki. Como cheguei tarde no sábado, não quero

me atrasar hoje.

- Quer que eu passe por lá pra lhe contar o que aconteceu? indagou a colega.

- Faz esse favor pra mim, respondeu Selena, dando um sorriso de gratidão. Assim vai

ser ótimo! Depois a gente se vê então.

Foi abrindo caminho por entre o grupo ali aglomerado e seguiu apressadamente para o

carro. Conversara com Ronny na hora do almoço e ele lhe dissera, tranquilamente, que estava

pensando muito em algo que o líder dos jovens mencionara na noite anterior, na reunião da

igreja. Ele não explicara o que o homem falara, mas informara apenas que era em Romanos

14. Em sua leitura bíblica, Selena ainda não chegara a esse texto.

Enquanto rodava pelas ruas em direção ao Mother Bear, ia pensando em como aquele

incidente assumira proporções exageradas. Ao que parecia, não havia uma solução que

pudesse agradar a todos.

Chegou ao trabalho alguns minutos antes da hora. E isso foi muito bom, pois a

confeitaria estava lotada. Imediatamente, alguém a chamou para ajudar a servir. Então entrou
logo em ação, preparando café para um grupo de mulheres que estavam em volta do balcão.

Teve a impressao de que estavam todas juntas, e muito alegres de estar ali reunidas. Uma

delas trazia um bebê no colo, uma criança bem gordinha. Todas falavam ao mesmo tempo.

Uma delas, uma senhora alta, de cabelo louro-avermelhado, chamou Selena. Tinha no

rosto uma expressão de curiosidade.

- Qual é a diferençaa entre todos esses tipos de café? indagou para a garota. Na minha

terra, não temos essa diversidade toda.

- Ah! E de onde você é?

- Da Holanda. Lá café é só café, e não um acontecimento especial, como parece que é

aqui, explicou a mulher sorrindo.

Selena retribuiu o sorriso e foi explicando para ela como era cada um dos tipos de café

que havia no menu. A holandesa ouviu-a atentamente e depois disse:

- Ah, obrigada, entendi. Quero só uma xícara de café puro, por favor.

A garota pegou a xícara, despejou nela o líquido e o entregou à mulher.

- Quanto é, então? indagou a cliente.

- Nada, replicou Selena. É por minha conta. Bem-vinda à nossa terra. Espero que passe

momentos bem agradáveis aqui!

O rosto da mulher abriu-se num sorriso de satisfação.

- Ah, muito obrigada! Que gentileza!

Ela se afastou, indo sentar-se com as amigas numas mesas que estas haviam ajuntado.

Selena pegou uma nota no próprio bolso e introduziu no caixa.

- Por que você fez isso? indagou Jody, sua colega de trabalho. Agora todas elas vão

querer café de graça!

- Será? contestou a garota. Acho que não. Já que não posso dar um copo de água fria a

um desconhecido em nome de Jesus, posso oferecer uma xícara de café puro, bem quentinho.
A outra abanou a cabeça.

- Não entendi nada do que você disse, replicou.

- Tive vontade de acolher um anjo, concluiu Selena.

Jody virou-se e foi andando em direção ao fundo da loja.

- Vou lá atrás e, quando voltar, espero que você esteja falando nossa língua de novo.

Selena se pôs a limpar o balcão com um pano de prato limpinho e quente. Sorriu

consigo mesma, ouvindo o grupo de mulheres conversando e rindo. Pelo jeito, era um

encontro de colegas de escola. Naquele instante, a porta da confeitaria se abriu e entrou uma

moça pequena, vestida com elegância. As outras soltaram gritinhos de alegria e várias se

levantaram para abraça-la.

Observando-as, a garota começou a pensar em como era bom ter amigos, diversos tipos

de amigos. Estava tão satisfeita de ter tido aquela conversa com Amy. Era ótimo também que

agora ela e Vicki estivessem aprofundando seu relacionamento. E Ronny também era um bom

amigo, o melhor que ela poderia ter. Além disso, apreciava muito a amizade que tinha com

Cris e as outras colegas dela. Todas a tratavam muito bem e não a depreciavam pelo fato de

ser mais nova que elas. Ademais, tinha ainda muitos amigos em Pineville, a cidade onde

morara. É verdade que não se mantivera em contato com eles, como deveria ter feito.

Entretanto sabia que, se voltasse lá, eles ficariam alegres de revê-la. Era bem provável que

renovassem a amizade, reiniciando-a do ponto em que haviam parado.

E agora, Paul. Como deveria ver o Paul? Como um amigo? Um bom amigo? Mais que

amigo? E o mais estranho era que aquilo não lhe importava muito. Nesse momento, não. Por

agora, seu relacionamento era apenas uma simples correspondência. Nada mais, nada menos.

Estava trocando cartas amistosas e bastante interessantes com um rapaz maravilhoso. Era só o

que precisava saber por enquanto.

Jody voltou com um tabuleiro cheio de pães de canela fresquinhos, assados na hora.
Selena respirou fundo para sentir o delicioso cheiro.

- Acho que vou comer um desses, comentou.

Vez por outra, ela tinha a sensação de que não agüentaria comer um daqueles pãezinhos,

pois estava enfarada do cheiro deles. Contudo, hoje, a idéia lhe pareceu agradável.

- Uns amigos meus vão dar uma passadinha aqui, disse para a colega. Você se

importaria se eu fizesse um intervalo pra lanchar, quando eles chegarem?

- De modo nenhum, desde que você não comece a dar pãezinhos de graça pra todo

mundo.

- Ah, não. Eu paguei o café daquela moça. Você viu, né?

- É, vi.

Jody trocou o coador de papel da máquina. Em seguida, apontou para o bule de líquido

fumegante e disse:

- Dá um giro por aí e serve mais café pra quem desejar.

A garota pegou a vasilha e aproximou-se do grupo de mulheres.

- Alguém quer mais café? indagou.

- Eu aceito, obrigada! disse a holandesa.

Uma outra senhora ergueu a xícara.

- Quer arranjar mais leite para nós? O que estava aqui acabou.

Selena saiu para pegar outra leiteirinha. Nesse instante a porta se abriu, e Ronny e Vicki

entraram na confeitaria. A garota virou-se e, ao vê-los, ficou toda empolgada. Estava ansiosa

para saber qual fora a decisão acerca do cabelo do colega.

- Oi, Johnny! gritou para ele, trocando o nome dele em tom de brincadeira.

Uma das mulheres, que estava sentada à mesa, ouviu-a chamá-lo e disse em voz alta:

- Ei, gente, é o Johnny!

Todas cairam na gargalhada, os olhos fitos em Ronny.


- Desculpe, interveio uma delas depois de alguns instantes. Isso é uma piadinha nossa.

“Johnny” é o nome que demos ao nosso herói imaginário.

O rapaz deu um dos seus sorrisos característicos, entortando os lábios, e levou a

brincadeira na esportiva.

- Querem comer algo? indagou Selena para os amigos. Vou já me sentar com vocês.

Levou a leiteira para a mesa das mulheres e uma delas falou:

- Desculpe se constrangemos seu amigo. Quando a gente se ajunta, fica meio

amalucada!

- Foi nada não. Ele entende bem essas brincadeiras.

Em seguida, voltou ao balcão. Jody já servira um pãozinho de canela para Ronny e uma

xícara de chá de maçã para Vicki. Os dois foram se sentar a uma mesa próxima da porta.

Selena então pegou um pãozinho e um copo de leite e foi se juntar a eles.

- Gente, tenho um intervalo de quinze minutos para o lanche, explicou, dando uma

dentada no pãozinho e limpando a calda de açúcar que lhe escorria no canto da boca. Então

me contem logo o que aconteceu.

Ronny deu de ombros, como sempre fazia.

- Ainda não sei o que vou fazer, disse.

- Mas você não se reuniu com o PC? perguntou Selena.

- É, eles conversaram comigo, mas não me deram uma resposta definitiva. Disseram

que, por causa de minha carta, decidiram estudar melhor o modo como vão resolver os

problemas na escola. Falaram que, como encarei a questão de maneira tão madura, iriam

deixar a decisão em minhas mãos.

Selena olhou para Vicki, que fez um aceno de cabeça como quem diz que também está

espantada. A garota sabia como Ronny ficava aborrecido quando seus pais deixavam uma

decisão qualquer por conta dele. Agora a junta diretora fazia o mesmo. O colega devia estar se
sentindo agoniado.

- Você precisava ter visto a turma reunida lá no estacionamento, comentou Vicki.

Parecia que tinham conquistado uma grande vitória. Eles estão garantindo que o Ronny não

vai cortar o cabelo.

- Mas você ainda não sabe se é isso mesmo que quer, afirmou Selena, olhando para o

rapaz e tentando adivinhar seu pensamento.

- Tenho de analisar bem minhas razões pra deixar o cabelo comprido, explicou ele.

Disse a eles que o motivo era que eu queria me sentir ajustado em meu grupo social e ser

aceito pela banda. Mas sabe o que mais? Pensando bem, nenhum dos caras da banda está se

importando muito com isso. Entre os músicos, ninguém quer nem saber se meu cabelo é

curto, comprido ou se eu rapei a cabeça. Só o pessoal da junta é que está se preocupando com

isso. Acho que, na realidade, não tenho uma razão muito forte para deixá-lo assim, não.

- Mas Ronny, interpôs Vicki, eles lhe deram liberdade para fazer o que quiser! Não

entendo por que você simplesmente não deixa o cabelo crescer e fica feliz de eles terem

compreendido sua posição.

- Esse é que é o problema, replicou o rapaz. Não sei se tenho mesmo uma posição.

- Então agora é um bom momento pra definir isso, diss Selena, dando uma espiada no

relógio.

Sentiu uma leve irritação ao constatar que seu intervalo já estava pela metade.

- Será, continuou ela, que não dá pra simplesmente esquecer tudo e acabar com essa

confusão?

- Não sei.

Vicki abanou a cabeça.

- Tem gente lá querendo derrubar o presidente da associação estudantil e botar o Ronny

no lugar dele, disse. Eles argumentam que ele conseguiu dobrar a diretoria e agir da maneira
que os alunos querem, isto é, deixando os estudantes tomarem as decisões.

- Não quero por nenhum tropeço pra ninguém por causa disso tudo, explicou o rapaz. É

o que diz aquele versículo de Romanos que mencionei pra você, Selena. O Shawn falou sobre

ele ontem à noite.

- É, eu me lembro, interveio Vicki.

- Que versículo era? perguntou Selena.

Ela estava se sentindo muito frustrada pelo fato de não estar por dentro do tal versículo;

e mais chateada ainda por ver que só faltavam três minutos para se encerrar seu horário do

“café”.

- Diz mais ou menos que devemos viver em paz com todos, explicou Ronny. Vou fazer

aquilo que for contribuir pra que haja paz na escola, e não divisão.

- Tenho de ir trabalhar, disse Selena, empurrando para o colega o pãozinho de canela

que mal comera. Quer o resto?

Ela se levantou e passou o braço pelos ombros dele.

- Tenho certeza de que vai tomar a decisão mais acertada, concluiu.

Ronny ergueu os olhos para fitá-la e fez um movimento rápido com as sobrancelhas,

demonstrando dúvida.

- E como é que você sabe disso? indagou ele.

- Porque vou orar por você, respondeu a garota, sorrindo para o amigo como que o

abençoando.
Capítulo Dezoito

Na quinta-feira à noite, Selena orou muito por Ronny. Além disso, estudou por um bom

tempo. Quando examinava a matéria para a prova de literatura que haveria no dia seguinte,

viu um texto sobre Emily Dickinson. Leu-o avidamente, querendo saber mais sobre essa

mulher que havia escrito um poema sobre os “Alpes imortais” e falara sobre “espiar pela

fechadura” de uma carta especial. Contudo, o que leu deixou-a perplexa.

“Quando criança, Emily frequentou a Primeira Igreja Congregacional, de Amherst, sua

cidade natal. Em meados do século XIX, houve um grande avivamento na cidade, e toda a sua

família aderiu a ele, menos Emily. Quando estava com quase trinta anos, parou de ir à igreja.

Emily tinha poucos amigos e passava a maior parte do tempo sozinha, no solar da família.

Morreu aos 56 anos de idade.”

Selena ergueu os olhos do livro, sentindo uma profunda tristeza. Pelo que Emily dizia

em algumas de suas poesias, ela tinha um grande respeito por Deus. Num de seus poemas,

falara como ele cuida dos pardais e os alimenta. Em outro, referiu-se a Cristo como “Senhor”,

e em outro mencionava o “amor do Calvário”.

Por que motivo, então, teria ela parado de ir a igreja? O que será que havia acontecido?

Como seriam seus amigos? Será que a haviam condenado? Ou a tinham amado?

Nesse momento, Selena tomou a firme decisão de que continuaria amiga de Amy, não

importava o que acontecesse. Jamais deixaria sua amizade esfriar, como se ela não lhe fosse

importante. Pensou ainda no relacionamento com Paul. Será que também continuaria amiga

dele, qualquer que fosse sua situação? Esperava que sim. Sua amizade com Ronny era assim.

Por que com Paul seria diferente?


Só terminou os deveres da escola por volta de 10:00h. Assim que se deitou, pegou a

Bíblia e abriu em Romanos 13. Queria terminar esse capítulo e chegar ao 14, onde, dissera

Ronny, estava o versículo que falava sobre esforçar-se para ter paz com todos.

E afinal demorou um pouco para concluir o 13. Esse capítulo falava sobre termos a

atitude correta para com as autoridades. Parecia aplicar-se perfeitamente aos acontecimentos

da semana interior na escola. E se encaixava bem na situação porque seu colega tomara

umaposição acertada, dizendo à junta diretora da escola que acataria a decisão deles, fosse ela

qual fosse.

Assim que leu o 14, entendeu por que Ronny estava tendo dificuldade para tomar uma

decisão. O apóstolo Paulo deixava bem claro que nem sempre a solução melhor é aquilo que

julgamos acertado. A grande prova do amor que Deus ordena que tenhamos uns para com os

outros implica ter consideração para com as fraquezas de nosso próximo. Temos de levar em

conta aquilo que pode ser uma dificuldade para ele, em sua vida cristã.

Selena estava lendo com tanto interesse que terminou o 14 e passou ao 15. Chegando

aos versículos 5 e 6, pegou uma caneta e sublinhou-os. Leu-os em voz alta, riscando-os com

uma régua.

“Ora, o Deus da paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir de uns para com

os outros, segundo Cristo Jesus, para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao Deus e

Pai de nosso Senhor Jesus Cristo.”

Embora já fosse quase 1l:00h da noite, saltou da cama e foi pé ante pé ao corredor, onde

pegou o telefone. Levou-o para o quarto e, enfiando os pés frios debaixo das cobertas, discou

o número de Ronny. Na segunda vez que tocou, o rapaz atendeu.

- Oi! Estava dormindo?

- Gostaria de estar, respondeu ele.

- Encontrei um versículo sensacional, disse Selena. Escute aqui.


A garota flexionou as pernas e colocou a Bíblia sobre os joelhos. Em seguida, pôs-se a

ler os versículos, acompanhando com a ponta do dedo.

- Entendeu essa questão de ter “o mesmo sentir de uns para com os outros”? indagou a

garota. É disso que estamos precisando na escola, e não de uma revolução. Precisamos nos

unir e falar “a uma voz”. Só assim daremos testemunho de Cristo para nossa comunidade.

Precisamos ter um espírito de unidade.

- Leia o verso de novo.

Ela leu. Pelo telefone, ouvia o barulho que o rapaz fazia passando as páginas.

Selena, disse ele, falando pausadamente, você tem razão. Você está mil por cento certa.

Pode me fazer um favor amanhã?

- Posso. O que quer que eu faça?

- Quero que, na hora do culto dos alunos, você leia esse texto.

- O quê?

- O Prof. Alfred pediu que eu desse uma palavra amanhã no culto, e aceitei, já que esse

meu problema teve muita repercussão. Mas acho que vou chegar atrasado.

- Como assim?

- Amanhã lhe explico. Faz um favor pra mim. Assim que você chegar à escola amanhã,

diga ao Prof. Alfred que eu lhe pedi pra falar em meu lugar, tá? Vou chegar assim que puder.

Ronny, que era sempre tão cordato e vivia dizendo: “Como queira!”, “Tudo bem!”, “

‘Cê que sabe!”, de repente se mostrava todo animado. Selena estava admirada de ver o quanto

ele estava empolgado.

- Será que pode me dar mais alguma informação pra me orientar? indagou.

- Amanhã você vai compreender tudo, respondeu ele. É só confiar em mim. Selena,

você é sensacional. Não imagina como estou alegre de ter me ligado! Fico lhe devendo essa.

- Isso significa que vai pagar um jantar no Tony Roma’s pra mim e pra Vicki?
O rapaz riu.

- ‘Tá bom! Pago, sim. A gente se vê na escola, disse ele, desligando em seguida, sem

dar “tchau”.

Selena ficou segurando o fone, olhando para ele, como se o aparelho a tivesse insultado.

- O que será que significa tudo isso? perguntou para o telefone mudo.

Ele não respondeu.

No dia seguinte, antes de sair para a aula, Selena tentou ligar para o colega novamente.

A mãe dele atendeu e disse que o filho já havia saído. E antes que a garota desligasse, ela

acrescentou:

- Oh, Selena, muito obrigada pela ajuda que você tem dado ao Ronny. Ele disse que,

ontem à noite, citou um versículo que esclareceu tudo. Você não faz idéia de como temos

orado por esse problema!

- A senhora pode me dizer o que está se passando com ele hoje?

- Acho que o Ronny prefere que deixemos que ele mesmo conte.

A garota foi para a escola o mais depressa que podia. Viu vários alunos parados perto

do escaninho de Ronny. Aparentemente, aguardavam que ele chegasse para cumprimentá-lo

por haver derrubado as normas do PC. Uma garota segurava diversos balões cheios. Selena

lembrou-se de que, no primeiro dia de aula, essa moça aparecera com um piercing na

sobrancelha direita. No segundo dia, ela viera com dois brinquinhos nela. A conversa geral

era que a junta diretora a tinha mandado embora para casa. Depois disso, Selena não a vira

mais com os brincos. Hoje ela voltara a usar os dois. Agora estava ali toda empolgada, na

expectativa da chegada de Ronny que, naturalmente, se tornara seu herói.

Selena teve vontade de aproximar-se do escaninho e dizer aos colegas que o rapaz só

viria mais tarde, mas resistiu ao impulso. Era provável que eles a enchessem de perguntas que

ela não saberia responder.


A primeira aula demorou a acabar. O culto era realizado entre a primeira e a segunda.

Ela apressou-se a ir para o salão, para pegar um lugar bem na frente. Já conversara com o

Prof. Alfred, e tudo estava combinado. Vicki veio sentar-se perto dela. O diretor iníciou a

reunião pedindo que os alunos se levantassem para efetuarem a saudação à bandeira. Todos

ficaram surpresos, pois ali não havia esse costume. Em seguida, ele orientou a que

continuassem de pé, pois iriam fazer a leitura da Bíblia e orar. A professora de Inglês do

primeiro ano leu um trecho do Salmo 8, e em seguida o professor de Educação Física orou,

Foi muito agradável ver os mestres participando do culto e se interessando pela vida espiritual

dos estudantes. Selena pensou que seria bom se o Ronny estivesse ali, para ver como as

sugestões que ele fizera em sua carta já haviam surtido efeito.

A seguir, o diretor fez alguns avisos de ordem geral e chamou ao pulpito um dos

membros da junta diretora que se achava presente. Era um senhor idoso, vestido com um

terno elegante.

- Ele é do PC, cochichou Vicki para a colega.

- E parece ser legal, respondeu Selena também sussurrando.

- Como muitos de vocês sabem, principiou ele, esta semana, um aluno do Royal

escreveu uma carta para a junta diretora. Aliás, essa carta causou um bocado de discussão, o

que, diga-se de passagem, foi muito bom. A junta decidiu abrir uma exceção e dar permissão

ao aluno Ronny Jenkins para usar cabelo comprido, por causa do ministério dele. Quero

avisar ainda que não alteramos nenhuma outra norma do regimento nem faremos a mesma

concessão a outros alunos.

Imediatamente os estudantes romperam em protestos. Selena teve de novo a mesma

sensação desagradável que experimenta dias antes, no estacionamento, quando os colegas

começaram a expressar o que cada um julgava mais certo. Era como se no salão houvesse

uma pequena bola de fogo. Ela se sentia incomodada, sem saber o que poderia acontecer em
seguida.

- Estou sabendo que uma estudante vai dizer umas palavras também, continuou o

homem, consultando um papel que tinha na mão. Srta. Selena Jensen, por favor, venha à

frente.

Vicki inclinou-se para Selena e deu um leve aperto no braço dela. A garota pegou a

Bíblia, sentindo as mãos molhadas de suor. Assim que chegou à plataforma, um estudante

gritou:

- Isso aí, Selena! Todos queremos direitos iguais!

O homem voltou ao microfone e pediu ordem aos alunos. Depois fez um aceno para a

garota para que se aproximasse. Ela abriu a Bíblia em Romanos 15, engoliu em seco e depois

dirigiu-se aos colegas.

- Ronny pediu que eu lesse pra vocês esses versículos aqui. É Romanos 15.5,6. “Ora, o

Deus da paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir de uns para com os outros,

segundo Cristo Jesus, para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao Deus e Pai de

nosso Senhor Jesus Cristo.”

A garota fitou o mar de rostos que a contemplavam. Estava diante do microfone e sentiu

que devia explicar por que achava que seria uma ótima idéia ler esse texto para os colegas.

- Gente, temos de ser unidos. A única maneira como vamos demonstrar para nossa

comunidade que somos verdadeiros crentes e agindo concordemente, isto é, tendo um só

coração e falando todos “a uma voz”. Não podemos ficar divididos em questões que, na

verdade, não são importantes.

Mal ela acabou de dizer as últimas palavras, Tyler se levantou. Parecia que ele iria dizer

ou fazer algo, mas antes mesmo que começasse, a porta de trás se abriu e entrou um homem.

Estava com um boné do tipo usado pelos jogadores de beisebol. Selena achou que não deveria

ser ninguém da escola, pois o regulamento dizia que os alunos não poderiam usar nenhum
tipo de chapéu nas dependências da instituição. Aliás, era uma norma que muitos

contestavam.

O homem veio apressadamente pelo corredor central, dirigindo-se para o palco. Só

quando ele chegou perto de Selena foi que esta o reconheceu: era Ronny. Tinha na cabeça um

boné preto, o rabo-de-cavalo saindo pela abertura de trás.

Assim que o corpo estudantil o reconheceu, começou a aplaudi-lo. Parecia que ele até

marcara um “gol”, a favor do “time” dos rebeldes. Além de derrubar o regulamento sobre o

comprimento do cabelo, agora, ostensivamente, quebrava o que proibia chapéus.

Selena fitou o colega sem entendê-lo. O diretor subiu ao palco em passos apressados e

dirigiu-se para o microfone. O rapaz virou-se para a garota e, dando um daqueles seus sorrisos

característicos, disse:

- Preste atenção!

Em seguida, falou:

- Sr. Diretor, colegas...

O diretor aproximou-se e se postou ao lado dele no púlpito. Selena deu um passo para

trás. A seguir, porém, percebeu que não precisava mais ficar ali. Então desceu a escadinha e

foi sentar perto de Vicki.

- O que é que ele vai fazer? indagou a amiga. Por que está com aquele boné?

- Sei la, replicou Selena.

Começou a achar que o colega iria fazer alguma loucura, que iria levar seu novo fã-

clube a aplaudi-lo de pé. Se o fizesse, poderia até ser expulso da escola.

- Não faça isso, Ronny, sussurrou ela baixinho. Não faça nada do que depois se

arrependa pelo resto da vida.

Selena leu aqueles versículos pra vocês? indagou ele, aproximando-se demais do

microfone e provocando um som estridente no aparelho.


Afastou-se um pouco. O diretor continuou de pé ao lado dele, os braços cruzados,

olhando para o aluno com uma expressão de “agente secreto”. Todos os olhos estavam fixos

em Ronny, e então ele recomeçou a falar.

- Pessoal, quero dizer a vocês que, na minha opinião, a lição mais importante que

podemos aprender neste ano é atuar unidos. Como diz aquele texto, precisamos ter o mesmo

sentir, com um espírito de unidade. Na carta que escrevi para a junta, disse que estava

deixando o cabelo crescer pra poder me ajustar melhor à comunidade musical de Portland,

onde minha banda se apresenta. Ali é o meu campo missionário. Entretanto a verdade é que

essas pessoas me aceitam do jeito como sou, independentemente de minha aparência.

Selena apertou os lábios um contra o outro e continuou atenta. Não havia dúvida de que

todos estavam com a atenção fixa em Ronny.

- Este é meu último ano, continuou ele. Vou passar apenas mais um ano no Royal. Na

verdade, mais nove meses. Quero agradecer ao Prof. Alfred e à junta diretora por terem me

dado liberdade de tomar a decisão a respeito de meu cabelo. O que decidi foi isto.

E com essas palavras, ele arrancou o bone da cabeça, e ficou ali parado. O auditório

caiu em profundo silêncio.


Capítulo Dezenove

Selena deixou cair o queixo de espanto. Ronny cortara o cabelo, bem curto. Não fizera

propriamente um corte total, do tipo militar, mas estava bem curto. De alguma forma, ele

tosara o rabo-de-cavalo e o “pregara” no boné.

- Quando eu for tocar com minha banda, vou colocar isto, explicou o rapaz, acenando o

boné bem no alto. Contudo, nos próximos meses, até o final do ano letivo, vou seguir o

regulamento do Colégio Royal e manter o cabelo curto, assim.

E aqui, ele se inclinou para diante e passou a mão esquerda no alto da cabeça,

remexendo no cabelo.

- O que quero dizer a todos é que devemos ter unidade. Será assim que os outros vão

saber que somos crentes em Jesus. E pela maneira como agimos que eles vão nos reconhecer,

e não pela nossa aparência.

Houve uma pausa. Todos estavam em silêncio, parecendo meditar nas afirmações e

atitudes de Ronny, para resolver se concordariam com ele ou não.

Selena se levantou e se pôs a aplaudi-lo. Não estava preocupada com o fato de que

talvez ninguém a seguisse. A gente tem de dar uma força para os amigos, e naquele instante

queria que todo mundo soubesse que ela dava total apoio ao colega.

Minutos depois, Vicki a imitou. Em seguida, os outros que ostavam na mesma fileira

também o fizeram. Nem todos os estudantes se ergueram. Selena notou que Tyler foi um

desses. Num determinado ponto do salão, alguns rapazes haviam se aproximado uns dos

outros e estavam murmurando algo. Parecia que debochavam de Ronny, por seu gesto

dramático.
O Prof. Alfred chegou ao microfone. Em seu rosto, estampava-se uma expressão de

alívio.

- Obrigado, Ronny, disse ele. Você e um ótimo exemplo de um jovem que possui

maturidade cristã.

Após as aulas, Selena iria escutar essa frase novamente. Só que, dessa vez, era dita em

tom sarcástico por uma garota que se achava perto do escaninho do Ronny.

- Olha ali o ótimo exemplo de um jovem com maturidade cristã! disse ela para uma

colega ao lado.

- Puxa, Ronny, a gente estava contando com você... comentou a outra. Você nos deixou

na mão.

Selena teve vontade de olhar para elas de cara feia e ir embora. Contudo viu que Ronny

se aproximara delas e se pusera a falar-lhes, enfrentando de peito aberto seus ataques verbais.

Selena achou que, se chegasse perto dos três agora, poderia dar a impressão de estar

bisbilhotando. Então dirigiu-se ao seu escaninho e tentou pensar quais os livros que precisaria

levar para casa, para estudar no final de semana. Afinal, pegou-os e fechou a portinhola.

Quando se virou, o colega ainda estava conversando com as outras alunas.

À hora do almoço, havia combinado com Ronny e Vicki que eles se encontrariam em

sua casa às 5:30h para irem jantar. Depois, iriam assistir a um jogo de futebol americano.

Portanto não tinha mais necessidade de falar nada com o colega. Ao que parecia, ele queria

continuar conversando com as duas garotas.

Selena deu mais uma espiada para ele e em seguida foi descendo corredor abaixo, em

direção ao estacionamento. Contudo algo a estava incomodando. Era o versículo, na parte que

falava sobre ter o mesmo sentimento, ter unidade uns com os outros. Reconheceu que não

estava nem tentando buscar uma unidade com aquelas colegas.

Respirou fundo para ganhar coragem e fez uma breve oração. A seguir, virou-se e
voltou ao lugar onde estavam Rouny e as garotas. Aproximou-se do grupo sorrindo.

- Você tem razão, dizia uma das meninas para o rapaz. Entendo perfeitamente o que está

dizendo, mas o ser humano não é assim. Não podemos sair dizendo a todo mundo que temos

de atuar em união, achando que isso vai acontecer automaticamente.

- Oi, gente! disse Selena, entrando na “rodinha”. Meu nome é Selena.

- Nós já sabemos. Vimos você na plataforma.

- Eu não sei o nome de vocês, replicou a garota, procurando dar um tom de sinceridade

às palavras.

As duas eram novatas na escola nesse ano, e Selena não lhes dera muita atenção.

- Meu nome e Sarah, disse uma delas, a que parecia mais calada. E ela é Jennifer.

- Vocês estão pensando em ir ao jogo hoje à noite? indagou Selena.

As meninas se entreolharam.

- Não tínhamos pensado nisso, respondeu Jennifer.

- Mas talvez a gente vá, disse a outra, ainda hesitando um pouco.

- Nós vamos, interveio Ronny. Se vocês quiserem sentar conosco, a gente pode se

encontrar lá. Podemos guardar lugar pra vocês.

- Obrigada! exclamou Sarah sorrindo.

Jennifer também sorriu, embora parecesse meio relutante.

- É, disse ela, não d´s pra ficar com raiva de um cara que está sendo tão legal com a

gente!

E em seguida, adiantou-se e esfregou de leve a cabeça do rapaz.

- Depois a gente se ve então, cabelinho espetado!

As duas garotas se viraram e foram saindo.

- Tchau! A gente se encontra no jogo, então! gritou Selena para elas.

Em seguida, virou-se para o amigo.


- Cabelinho espetado? indagou, erguendo uma sobrancelha.

Ronny deu de ombros.

- É, já me deram apelidos piores, hoje.

- Acha que o pessoal entendeu tudo o que disse? Será que alguns concordam com você?

- A maioria concorda.

- Será, então, que é possível haver certa unidade na escola?

- Não sei, mas espero que sim, respondeu o rapaz.

Os dois foram caminhando em direção ao estacionamento.

- A Vicki vai se encontrar conosco na sua casa ou no restaurante? perguntou Ronny.

- Na minha casa, esqueceu? Vamos nos encontrar lá por volta de 5:30h.

- 5:30h, repetiu o rapaz. O.k. Tchau.

Selena entrou no carro e foi para casa pensando em como tinha sido fácil conversar com

Sarah e Jennifer, depois que Ronny já havia iniciado o papo com elas. Algum tempo atrás,

nunca teria imaginado que iria se tornar amiga da Vicki. Com isso, compreendeu que, se

começasse a tomar a iniciativa de travar amizade com outras colegas, esse ano escolar poderia

ser o melhor da sua vida. E seria maravilhoso, como dissera Ronny, se o último ano de

estudos fosse marcado por um senso de unidade na escola, onde todos os alunos atuassem

com um só sentimento. Era possível que nem todos quisessem se esforçar nesse sentido.

Contudo sabia que ela queria. E devia. Não havia nenhum empecilho para ela fazer tudo que

estivesse ao seu alcance para promover a unidade entre os alunos.

Quando entrou na rampa da garagem, viu o pai sentado no balanço da varanda, tendo

Vó May ao lado dele. Sobre o colo dela, estava estendida uma colcha de retalhos, para

protegê-la da friagem. Era uma tarde fresca e agradável. No céu, havia hum fina camada de

nuvens. Seus irmãos, Kevin e Dilton, estavam sentados no chão da varanda, sobre um tapete

velho, brincando com um joguinho. Brutus, o cão da família, que, ao que parecia, pensava
fazer parte dela, achava-se amarrado a uma pilastra, por uma corda longa. Quando ele avistou

Selena, pôs-se a latir e a babar e correu na direção dela.

- Quieto, Brutus! disse a garota, passando a mão atrás das orelhas dele e coçando-lhe o

pêlo. Sou eu!

Pegou-o pela coleira e caminhou com ele até a varanda.

- Que está havendo por aqui? indagou.

- Nada, respondeu o pai.

- Cadê mamãe?

- Ela tirou a tarde de folga, explicou Kevin. Vamos pedir pizza para jantar.

- Ela foi fazer umas compras, completou o pai, dando mais detalhes além da explicação

de Kevin.

Selena tinha ouvido os pais fazerem um acordo. Eles haviam combinado que uma vez

por semana o pai voltaria do trabalho na hora do almoço. Assim a mãe teria a tarde livre para

fazer o que quisesse ou precisasse, sem se preocupar com Vó May. Isso significava que o pai

teria de trazer serviço para casa ou então trabalhar no sábado de manhã. Contudo ele afirmou

que não se importava.

- Pai, o senhor me pediu para lembrá-lo de verificar o óleo do meu carro neste final de

semana, disse a garota.

- É verdade, filha. Obrigado!

- E hoje à noite, vou jantar com Ronny e Vicki, e depois vamos ao jogo. Acho que até

10:30h devo estar de volta. ‘Tá bem?

- Se você perceber que vai passar dessa hora, dá uma ligada pra cá, disse o pai. Sabe que

tem de estar de volta até às 1 l:00h, né?

- Sei, concordou a garota.

Inclinou-se para a avó e deu um aperto de leve na mão dela. Estava aquecida.
- Passou bem o dia, vó? perguntou.

A senhora sorriu para a neta, dando a impressão de não saber quem era ela nem

entender o que ela dissera.

- Gosto muito da senhora, vó, disse a garota, dando um beijinho no dorso da mão

enrugada.

- Também gosto muito de você, replicou a senhora.

- Bom, vou me aprontar pra sair, comentou Selena. Espero que não chova.

- Pelo que diz a meteorologia, não deve chover, não, interpôs o pai. A previsão do

tempo deu céu nublado, mas sem chuva até domingo.

A garota deu um passo por cima das pernas de Kevin e abriu a porta. Assim que entrou,

o telefone tocou. Tirou a mochila das costas e pegou o aparelho sem fio, na cozinha. Era

Tânia. As duas ficaram a conversar como velhas amigas durante dez minutos. Selena contou a

irmã acerca da decisão importante que Ronny tomara. A outra falou-lhe sobre a série de fotos

que estava fazendo, com roupas e acessórios em estilo westem.

- Não aguento mais ouvir música country, disse a jovem. Tocam o dia inteiro. Já estou

com vontade de gritar.

- Não lhe falei? indagou Selena rindo.

A garota estava sentada ao balcão da cozinha, mas resolveu ir com o telefone para o

escritório e ligar o computador. Queria verificar se havia chegado algum e-mail para ela.

Talvez o Paul tivesse lhe mandado uma mensagem.

- A questão é que eles pagam muito bem, e estou satisfeita por ter arranjado esse

trabalho.

- Já recebeu alguma resposta da Lina? quis saber Selena.

Tânia ficou em silêncio por uns instantes.

- Não, respondeu afinal, mas tudo bem. É verdade que não desisti, não. Entretanto o
importante para mim é que eu lhe disse o que pretendia, isto é, queria agradecer a ela. Se eu

fosse um pouco menos egoísta, não iria querer que ela me respondesse. Mas não sou. E talvez

algum dia ela ainda responda.

- Acredito que deve ter sido um choque muito grande pra ela, comentou Selena, ligando

o computador. Dê algum tempo. Talvez ela precise de umas semanas ou meses pra pensar

bem nisso tudo.

- É, eu sei, replicou Tânia. Também já pensei nisso. Já analisei essa questão de todos os

ângulos possíveis, pode acreditar. E esperar, para mim, não é problema.

- Quer falar com papai? Mamãe saiu.

- Não, apenas dê um abraço, que eu mandei. Estou só “assinando o ponto” com a

família.

- Está com saudade de nós, né? falou a garota sorrindo, lembrando que suas perguntas

diretas sempre irritavam a irmã.

Tânia riu. Era um riso de quem quer disfarçar uma emoção. Por fim, respondeu:

- ‘Tá bom! É, estou com saudade, sim! Pronto. Agora você já sabe. Está admirada?

- Não, replicou Selena. Nós também estamos com saudade, Eu estou com saudade de

você.

Após a confissão, as duas ficaram em silêncio por uns instantes, como que se sentindo

meio sem jeito. Tânia foi a primeira a quebrá-lo.

- Bom, acho melhor desligar, senão vou gastar todo o dinheiro das fotos na conta de

telefone.

- Dê um abraço no Jeremy.

- Darei. Ele vai vir aqui agora à noite para irmos jantar fora. E hoje sou eu que vou

pagar, já que estou “mais rica” que ele. Vamos a uma churrascaria.

- Hummm, legal! exclamou Selena. Então, depois a gente se fala. Tchau!


Tânia desligou, e a garota se pôs a examinar os e-mails que haviam chegado. Eram

apenas dois; ambos para o pai. Paul não mandara nada.

A garota desligou tudo e ia sair do escritório, quando resolveu sentar-se na sua poltrona

predileta. Parecia o lugar mais adequado para se entregar a uma crise de autopiedade. Nesse

momento, notou uma foto no assento. Pegou-a. Era um cartão postal. Retratava um majestoso

castelo europeu, construido no alto de um morro, fotografado ao amanhecer. O céu, por trás

da grande construção cinzenta, apresentava-se de uma cor azul-clara, com raios rosados.

Quem teria mandado um cartão desses para seu pai? Virou-o e viu seu nome escrito em

letras grandes, em tinta preta. Leu:

Selena,

Esse é o nosso famoso Castelo de Edimburgo. Espero que um dia você possa vir aqui

para vê-lo. No final de semana, vou lhe escrever uma carta maior, mas quis mandar este

postal para agradecer pela sua cartinha. Ela me fez dar boas risadas. Olhe, acho que não

devemos nos corresponder por e-mail. Mandar carta, apesar de meio antiquado, fortalece

mais o relacionamento e tem um sentido mais permanente. Alias, até gosto de ficar esperando

sua correspondência.

Nós temos muito tempo pela frente, Selena. Vamos curtir esse ritmo mais lento.

Paul

Selena sorriu, virando o postal para dar mais uma espiada na romântica foto do castelo.

Em seguida, leu a mensagem novamente. Muito boa. Não tinha nada de emocional demais

nem era fria. Ele estivera pensando nela. Disse que depois escreveria mais. E afirmara que

tinham muito tempo pela frente. Gostou. Paul tinha razão. Corresponder-se por e-mail era

ligado a rapidez e imediatismo. Para que a pressa?


Fechou os olhos e aproximou o cartão do rosto, como se pudesse aspirar os aromas da

Escócia no retrato. Sabia que era bobagem.

Abriu os olhos e deu uma espiada à sua volta. Como aquele cartão viera parar ali na

poltrona? Dava para deduzir. Seu pai, que conhecia bem o coração da filha, fora quem

recolhera a correspondência nessa tarde. Ele devia saber que ela iria se sentar ali, na sua

cadeira predileta, e encontraria o postal - um tesouro escondido. Sorriu ao pensar nisso.

Levantou-se e subiu para o quarto, para se arrumar para sair. Enfiou o cartão debaixo do

travesseiro. Essa era a maneira certa de sonhar com um castelo. E era assim que devia

enxergar o Castelo de Edimburgo - algo distante e para o futuro.

Vicki iria chegar a qualquer momento. Essa noite, ela queria passar uns momentos

agradáveis com seus amigos que se achavam perto e pertenciam ao seu presente. E o melhor

de tudo era que quem iria pagar a conta era seu velho amigo Ronny, o “cabelinho espetado”.

Fim

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