Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
O Tempo Dirá
www.semeadoresdapalavra.net
nervosamente a unha do polegar. Sentiu frio. Vestia um short, uma camiseta e estava de
sandália. Encostada no carro da amiga, olhava fixamente para a porta dos fundos, esperando
que a qualquer momento ela aparecesse ali. Geralmente a colega saía as 8:00h. Deu uma
Reunindo coragem, foi até lá e abriu a porta devagar. Havia planejado conversar com a
amiga ali no carro, quando ela saísse. Assim poderiam resolver o problema calmamente. Não
Correu os olhos pelo aposento. A amiga não se encontrava em seu lugar de sempre, no
posto de recepcionista. Também não havia fregueses ali, aguardando o momento de serem
conduzidos à mesa. Tudo estava em silêncio, exatamente como ela imaginara que estaria
numa noite de meio de semana, nesse mês de setembro. Fora por isso que tivera certeza de
Uns passos mais adiante, avistou Ronny, seu amigo, que também trabalhava no
restaurante. Estava limpando uma mesa perto da entrada. Selena veio por trás, aproximou-se
O rapaz virou-se, dando aquele seu sorriso característico, entortando a boca. A garota
- Vim aqui pra falar com a Amy. Viu se ela já foi embora?
- Já. Saiu junto com o Nathan. Acho que foram para o The Beet.
O The Beet era um ponto novo, próprio para jovens, que fora inaugurado alguns meses
atrás, no centro de Portland. Nele não se vendia bebida alcoólica, e havia música ao vivo, com
conjuntos da própria cidade. Fora o Ronny e seus companheiros da banda que, na primeira
semana de aula, haviam lhe informado sobre o lugar. Aliás, eles também estavam na agenda
do pessoal lá, para se apresentarem no mês de outubro. Isso significava que, finalmente, iriam
- É, eles saíram pela porta da frente. Provavelmente vão para lá a pé. A esta altura, todas
as vagas nas proximidades do The Beet já devem estar ocupadas. Só resta estacionamento
pago.
- E bem que tentei, disse. Mas todo dia na escola parecia que ela tinha de conversar com
alguém, ou então precisava ir a algum lugar após a aula. Liguei pra ela. Deixei bilhete no
cabeça.
O cabelo dele, que era louro e liso, havia crescido bem durante as férias, e Ronny o
estava usando amarrado atrás, num rabo-de-cavalo curtinho. Eles estudavam num colégio
evangélico, Academia Royal. A junta diretora da escola já havia lhe mandado um aviso
dizendo que seu cabelo estava passando do comprimento permitido pelo regulamento da
- Já sei, principiou Selena, você me acha uma coitada, andando atrás dela desse jeito. A
questão é que não consigo dar nossa amizade por terminada, enquanto não tiver pelo menos
A garota acenou que não, e a ponta de seu brinco comprido esbarrou no queixo.
- Desanima não, interveio o rapaz, pondo a mão em seu ombro e apertando-o de leve.
Lembre-se daquele versículo que você vivia repetindo pra mim quando chegou da Suíça.
- “Tende amor intenso uns para com os outros, porque o amor cobre multidão de
pecados”, disse ela mecanicamente, como uma criança cansada de repetir algo.
- Exatamente! Fique falando a si mesma que tenha amor intenso pela Amy. Uma hora,
Nesse momento, um casal idoso que estava sentado numa mesa próxima levantou-se, e
- Bom, acho que vou embora pra você poder trabalhar, disse.
carro e o ligou, acionando também o sistema de aquecimento. Estava fazendo bastante frio
para aquela época do ano. E isso era estranho, pois a aparência da natureza ainda era de verão.
Ela não queria que a estação quente terminasse. Sem dúvida nenhuma, essas férias tinham
sido as melhores de sua vida. Viajara muito. Vira muitos amigos. Vivera experiências
diferentes e quase começara um namoro. E assim como não queria que o verão acabasse, não
O desentendimento entre elas fora até muito simples. Sua colega demonstrara interesse
convidara para sairem. Mais tarde, ela ligara para Selena e contara que os dois tinham
“ficado” no carro do rapaz. Imediatamente, Selena criticara a colega por ter feito isso. No
final, a amiga desligara o telefone meio zangada. A partir desse dia, as duas quase não haviam
conversado.
Selena ficou fora algumas semanas e, quando voltou, teve de “correr” para preparar
tudo para o início das aulas. Então já fazia mais de um mês que elas não tinham contato. E, ao
Entrou na estreita rampa da garagem de sua casa, uma velha mansão vitoriana. Desligou
o carro, um fusca 79, que agora era só dela, e ficou ali sentada por uns instantes. No ano
anterior ela o compartilhara com a mãe. Isso significava que o pai pagava o seguro dele.
Agora, eles o tinham dado para ela. Era muito bom ter o veículo só para ela, mas também
implicava mais despesas. E que além da gasolina, teria de arcar também com o seguro.*
Enquanto ela tirasse boas notas, os pais permitiriam que trabalhasse. Então, com o salário que
recebia na confeitaria Mother Bear, dispunha do suficiente para suas despesas. Contudo não
teria mais condições de fazer uma poupança e guardar um dinheirinho para passeios
maravilhosos como o que fizera nessas férias.
___________________
*Nos Estádos Unidos, todos os carros têm de pagar seguro obrigatório, que em alguns casos, é muito
Será que sou eu que estou errada? pensou. Será que estou dando muito valor a essa
necessidade de ter uma conversa cara a cara com a Amy? Devo deixar pra lá? Mas quero
provar pra ela que sou sua amiga em qualquer circunstância. E como vou fazer isso se ela
não me da atenção?
Saiu do carro e o trancou. Foi andando devagar pelo gramado molhado em direção à
varanda. Uma luz amarela, no alto da porta, parecia dar-lhe as boas-vindas. Certa vez, Amy
lhe dissera, em tom meio agressivo, que sua família era “certinha”, e seu lar, maravilhoso. E
nesse momento, de fato, tudo parecia perfeito. Seus pais, após vinte e sete anos de casados,
ainda se amavam muito. Sua avozinha, a Vó May, morava com eles. Ou melhor, eles
moravam com ela - a casa era a residência dela. E seus cinco irmãos - quatro homens e uma
- Antes de entrar, limpou os pés no capacho. Lembrou-se de dez dias atrás, quando, ali
mesmo, com os olhos cheios de lágrimas, despedira-se de Wesley, o irmão de que mais
gostava. Ele estava de saída para Corvallis, onde estudava. Ia no carro novo dele, que
mandara equipar todinho. Ela amava muito aquele irmão. E nessas férias, tinha se ligado
Fora a ele que falara sobre Alex, um rapaz russo, alto e simpático, que conhecera na
viagem à Suíça. Também lhe contara da carta que recebera de Paul, três semanas antes. Paul
era um amigo seu, um cara meio enigmático, de olhos azul-acinzentados, que estava
estudando na Escócia. Ela não mostrara a carta ao irmão, mas lhe contara que o rapaz dissera
que costumava fazer caminhadas nas montanhas daquele país, cantando louvores a Deus, em
voz alta. Wesley não rira, mas cruzara os bracos, fizera um aceno positivo de cabeça e
comentara:
___________________
*Uma alusão ao personagem central do filme Coração Valente, que é escocês. (N. da T.)
Ela aceitara o conselho dele e não somente continuara a orar pelo Paul, mas também lhe
Assim que abriu a porta, sua mãe, que se encontrava na cozinha, deu uma olhada na
direção da entrada para ver quem era. Sharon Jensen estava ao telefone e tinha uma expressão
A garota dirigiu-se para a saleta, o cômodo da casa de que mais gostava. Ali era também
o escritório do pai e a biblioteca da avó. Gostava de fazer os deveres da escola nesse aposento,
sentindo o aroma característico dele - uma mistura de couro e livros velhos. Havia deixado a
mochila ali, de tarde, quando começara os trabalhos escolares. Entrou e deu com o pai sentado
Selena pegou seus objetos rapidamente e os enfiou na mochila. Foi então que ouviu o
pai dizer:
- Está bem, querida, dentro de mais alguns dias a gente conversa de novo. Você sabe
que eu e sua mãe lhe damos todo apoio na decisão que tomar, não sabe?... ‘Tá bom... ótimo...
Havia apenas três pessoas que Harold Jensen chamava de “querida”. E duas - ela e sua
mãe - estavam em casa. A outra era Tânia, a irmã de Selena, que alguns meses antes fora
morar na Califórnia, para ficar mais perto de Jeremy, seu namorado. Ouvindo o pai despedir-
se da irmã e desligar o aparelho, a garota começou a sentir-se um pouco tensa com relação a
Tânia.
Selena observou que o olhar dele, normalmente tranquilo, agora trazia uma expressão de
preocupação. Nesse momento, a mãe de Selena chegou à saleta. Ela não percebeu que a filha
- Não estou gostando nada disso, Harold, comentou ela. O que você acha?
O pai de Selena dirigiu os olhos para a garota, e sua esposa virou-se naquela direção.
- Oh, não a vi aí, Selena! disse. Como é que foi lá com a Amy?
- Não deu pra conversar com ela, não, replicou a garota. Ela já havia saído. Acho que
Selena percebia nitidamente que a mãe não estava com o pensamento em sua amiga.
- Tudo bem com a Tânia? indagou, numa tentativa de descobrir o que se passava.
Puxa! pensou Selena. Tem algum problema por aí, mas eles não querem me dizer. Será
Olhou para o relógio e em seguida voltou a fitar os pais. Notou que eles se
E teve vontade de acrescentar: “Pra que vocês possam conversar à vontade sobre esse
grande segredo da Tânia, sem a minha presença”. Contudo não disse nada e saiu, fechando a
porta. Sabia que deveria estar feliz pelo fato de seus pais fazerem segredo da situação de
Tânia. Se fosse com ela, iria querer muito que eles não contassem nada para ninguém.
“Que chatice! Tudo pra mim agora é esperar! Esperar outra oportunidade pra conversar
com Amy. Esperar a resposta de Paul. Esperar que mamãe e papai me falem do problema da
Entrou no quarto e jogou a mochila no chão, perto do armário. O quarto estava bem
bagunçado, demonstrando que ela não tinha mesmo muita preocupação em arrumá-lo. Não
tinha nem onde sentar para se entregar à sua crise de autopiedade, que era o que desejava
naquele momento. Teve de reconhecer que o aposento estava mesmo horrível. Por toda a
parte, viam-se roupas, livros, sacolas, meias, vasilhas, CDs, bonés, papéis e vários outros itens
espalhados. E o cômodo era bem amplo, mas não tinha o menor vestígio de arrumação.
Apesar disso, ela sempre conseguia encontrar o que queria. Ademais, achava que havia algo
Todavia, do dia seguinte acabou deixando para o outro dia, e para o outro, até que
chegou a sexta-feira à noite. Selena entrou no quarto e começou a sentir que precisava dar um
jeito naquela confusão. Todos os outros aspectos de sua vida ainda estavam em desordem.
Perguntara aos pais sobre Tânia, mas eles lhe disseram que preferiam que a própria jovem
contasse para ela e para os irmãos. Com isso, entendeu que a tal decisão não tinha nada a ver
com casamento ou com a volta dela para casa. Se fosse algo assim tão radical, os pais
Além disso, não recebera nem uma linha de Paul. E Amy, por outro lado, parecia estar
fugindo dela. Desaparecia pelo corredor da escola todas as vezes que Selena tentava
aproximar-se.
Só lhe restava, então, tomar alguma providência com relação ao quarto. Resolveu dar
uma arrumada nele. Começou a recolher os objetos espalhados e a colocá-los nos devidos
lugares. Afinal, o efeito foi mais positivo do que imaginara. No momento em que guardava
algumas roupas na cômoda, teve uma idéia para conseguir conversar com Amy. No dia
seguinte, pegaria serviço na confeitaria Mother Bear só às 10:00h. Então decidiu preparar uma
cesta de café da manhã e ir à casa de Amy “acordá-la”. Assim tomariam o café juntas, no
quarto da amiga. Dentro da própria casa, a colega não teria como fugir dela.
Selena enfiou a mão na lixeira, empurrando o lixo mais para o fundo e colocou mais um
punhado nela. Empilhou os livros no chão, perto da cama, e em seguida esticou a colcha do
outro leito, que pertencera a Tânia. Pegou uma braçada de roupas sujas e desceu para o porão,
onde ficava a lavadora. Colocou as de cor escura na máquina. Aquela era apenas a primeira
trouxa. Calculava que o que restara ainda daria mais duas lavadas. Isso significava que iria
Quando era criança, e a familia vinha ali visitar a Vó May, o porão era um ótimo lugar para se
esconder. Certa vez, Selena, que era muito magrinha, entrara atrás de uma pilha de caixas que
havia ali. Em seguida, puxara para perto de si uma velha lata de lixo, onde estavam algumas
pás e uns ancinhos, fechando com ela a entrada do seu “esconderijo”. Nos primeiros cinco
minutos - mais ou menos - achara maravilhoso ficar ali quietinha, sem ser vista. Permanecera
sentada no chão, abraçando as pernas e sorrindo consigo mesma à espera de que viessem
procurá-la.
cimentado estava gelado e ela ficou com o traseiro dormente. O cheiro de mofo, que a
princípio lhe parecera exótico, acabou deixando-lhe o nariz entupido e os olhos irritados.
Afinal, não suportando mais ficar ali escondida, empurrou a lata de lixo, levantou e pôs-
se a agitar as pernas para se livrar do formigamento. Depois foi subindo a escada devagar e se
dirigiu ao jardim. Então encontrou a irmã e os quatro irmãos olhando para dentro de uma
caixa de papelão. Ali estavam seis gatinhos, filhotes, miando sem parar.
ocasião, não tivera o menor interesse pelos bichanos. Queria saber por que ninguém fora
Deu um sorriso ao recordar-se de que Tânia suplicara ao pai que a deixasse ficar com
um dos gatinhos. Ele recusara. O Sr. Jesen não gostava de gatos; preferia cães. Tânia pegara
um deles, tão peludinho, cor de caramelo, e o chegara bem junto do rosto do pai. A menina
tinha os olhos cheios de lágrimas e o bichinho parecia tão indefeso! Nem isso o fizera mudar
de idéia. Contudo, no Natal, a garotinha ganhara um gatinho todo branco. Dera-lhe o nome de
Selena subiu as escadas de dois em dois degraus, largando para trás o cheiro de mofo e
as recordações da infância. Resolveu preparar a cesta agora, enquanto esperava que a máquina
de lavar terminasse o ciclo. Pegou uns pãezinhos de trigo integral e os colocou numa cesta de
vime da mãe, que se achava pendurada num gancho, na cozinha. Tirou da geladeira um vidro
de geléia de amora, duas laranjas e dois ovos nos quais estavam desenhados duas carinhas
risonhas. Era a mãe de Selena que marcava os ovos dessa maneira. Isso significava que se
tratava de ovos cozidos. Ela fazia os desenhos por causa de Kevin e Dilton, os dois filhos
mais novos. Dois anos antes, Kevin pegara um ovo que, dissera ele, achava que estava cozido,
e o quebrara na cabeça do irmão. Estava cru. Depois que os meninos brigaram e choraram, a
Afinal a cesta ficou cheia e Selena cobriu-a com um pano de prato. Sentia-se feliz com a
idéia que tivera, e muito satisfeita com sua cesta. Nesse instante, os dois irmãos entraram ali
acompanhados do pai. Cada um estava com uma miniatura de automóvel feita de madeira e os
mostraram a irmã.
- Vou pintar o meu amanhã, anunciou Kevin. De vermelho vivo, pra correr mais
depressa.
carro de Dilton.
Os dois garotos haviam se inscrito num concurso de miniaturas que era realizado no
parque municipal. A mãe entrou na cozinha com uma bandeja cheia de vasilhas sujas do
jantar.
- A Vó May já está dormindo, gente, avisou ela. Acho que está na hora de vocês
- Em silêncio, para não acordar a Vó May! Disse-lhes, cochichando, mas com voz forte.
- É mesmo? indagou a outra com uma expressão alegre no olhar. Que bom!
- Pus algumas roupas na máquina e preparei uma cesta de café da manhã pra mim e a
- Não, e isso está me incomodando, como se fosse um trabalho de escola que ainda não
entreguei.
- Espero que resolva logo essa situação, disse a mãe, examinando umas vasilhas que
Nesse momento, o Sr. Jensen entrou de volta na cozinha e escutou o final da conversa.
- Imediatamente Selena e a mãe ergueram os olhos para ele. Esta, com a expressão do
olhar, parecia dizer: Cuidado com o que vai dizer. A filha, por outro lado, suplicava: Conte
logo!
Ele foi bebendo devagar, olhando para as duas. Quando terminou, colocou-o sobre a
mesa, sem explicar nada. Em seguida, deu um sorriso meio sem graça para a esposa e disse:
- Está acontecendo algo com a Tânia que eu preciso saber? indagou Selena assim que o
pai se afastou. Quero dizer, já sei que ela tem de tomar uma decisão muito importante nestes
dias. Agora entendi que tem relação com um rompimento de relacionamento. É com o
Jeremy? Ela não vai terminar o namoro com ele, não, vai?
A mãe de Selena concluíra que as vasilhas que estavam na máquina ainda não haviam
sido lavadas e começou a colocar nela mais alguns copos. Não respondeu nada, concentrada
- Não sei ao certo o que devo lhe dizer, querida. Acho que Tânia prefere que não
falemos nada, enquanto ela não tomar a decisão final. Faltam poucos dias, e creio que ela
prefere assim.
- Mas mãe, insistiu Selena, a gente é irmã. Por que temos de guardar segredo para um
membro da família?
- Você tem razão. Sempre agimos assim. Em nossa famiília, somos sempre francos e
sinceros uns com os outros. Mas creio que é melhor esperar a Tânia tomar a decisão dela e
Selena não conseguia imaginar o que poderia ser essa decisão que tinha de ficar em
segredo. Voltou ao porão, onde retirou a primeira “trouxa” da máquina, passando-a para a
secadora e colocando outra braçada na lavadora. Tinha esperança de que o segredo da irmã
fosse algo muito bom, como o gatinho que ela ganhara no Natal, quando era pequena. É,
talvez a novidade que Tânia teria para revelar fosse algo assim.
Na amanhã seguinte, às 7:30h, Selena se aprontou para ir trabalhar e pegou a cesta que
preparara. Dirigiu para a casa de Amy, orando silenciosamente, pedindo a Deus que lhe desse
uma reconciliação pacífica com a amiga. Teve de tocar a campainha três vezes. Afinal, o pai
de Amy veio abrir. Estava vestido com um roupão e tinha um aspecto sonolento e mal-
humorado.
- Oh, desculpe! foi logo dizendo a garota. Devo ter acordado o senhor! Vim fazer uma
surpresa pra Amy. Trouxe uma cesta de café da manhã pra nós.
- Meu nome é Selena. Selena Jensen. Sei que faz muito tempo que não venho aqui...
E sem dar maiores explicações, fechou a porta. Selena quase deixou a cesta cair.
Na casa da mãe dela? O que está acontecendo? A mãe da Amy mudou-se daqui?
Voltou para o carro andando lentamente e aí se deu conta do quanto estivera “desligada”
de tudo que dizia respeito a amiga. No começo das férias, a colega lhe confidenciara que os
pais estavam brigando muito e falando em divorciar-se. Selena tentara tranquilizála, dizendo
que não devia ser nada sério. Todos os casais têm suas desavenças. Tudo acabaria bem,
Meio aturdida, entrou no carro para voltar para casa. Quando virou a esquina da rua 52,
avistou Ronny, que estava cortando a grama no quintal de um de seus clientes. No início do
ano ele começara esse trabalho de aparar gramados e, nas férias, pegara o emprego de “tirar
mesas” no restaurante. Com esses dois serviços e ainda o tempo que dedicava à sua banda -
qua ensaiava duas vezes por semana na garagem da casa do rapaz - ele estava sempre
ocupado.
Selena parou o carro junto ao meio-fio e desligou-o. Pegou a cesta e foi andando em
direção ao Ronny, acenando e chamando-o. Ele estava com um fone de ouvido, ligado a um
walkmam que se achava afixado ao cós da calça. Quando já se encontrava a poucos passos,
gritou de novo.
- Oi!
Dessa vez, ele ergueu a cabeça e avistou-a. Desligou o cortador de grama e tirou o fone.
- Sabia.
- Eu não tinha conhecimento disso, explicou a garota. Fui lá agora, e o pai dela me
- É, replicou Selena. Tive essa bela idéia de fazer uma surpresa pra Amy, mas só que ela
dormiu na casa da mãe ontem. Puxa, não dá pra acreditar! Como é que ela está encarando
tudo isso?
- Não sei. Lá no restaurante, ela não conversa muito e, depois, ao terminar o serviço, sai
com o Nathan. Parece que a mãe dela se mudou para um apartamento em Halsey. Ouvi a Amy
O rapaz deu um leve sorriso, dando a entender que era uma pergunta tola.
- Espero que tenha aí uns pãezinhos de canela fresquinhos, lá do Mother Bear, insinuou
ele.
- Não, sinto muito. Só uns pãezinhos de trigo integral, replicou Selena. Lembre-se de
- ‘Tá bom, replicou ele, pegando a cesta da mão dela. Pão integral é bom.
Em seguida, saiu caminhando em direção a uma parte do gramado que já havia aparado.
- Não.
Ergueu-se de um salto e foi ao veículo. Voltou com duas latas de refrigerante. Não
parecia combinar muito com pão integral e ovos cozidos, mas Selena não reclamou. Estava
satisfeita de, pelo menos, poder conversar com o Ronny. Tinha a impressão de que, no
- O que é isso? Será uma variação daquela velha pergunta: “Quem veio primeiro, o ovo
ou o pão integral?”
E o próprio rapaz riu de sua piada.
Tirou do bolso o canivete, abriu-o e limpou a lamina na calça. A seguir, fez o seu
Selena deu uma olhada pelos arredores, para as casas silenciosas que começavam a
despertar.
- Será que não tem importância a gente estar sentado aqui no gramado desse pessoal,
A garota cortou seu pãozinho e passou geleéia nele. No alto, em meio às copas das
As flores, com a “carinha” engraçada, pareciam contemplar aqueles dois ali, deliciando-se
com seu banquete matinal. Infelizmente, porém, aquele cenário tão agradável e cheio de paz
não se harmonizava com os sentimentos de Selena. Contudo ela fez força para se acalmar e
tentar “curtir” esses momentos que passava ali com o Ronny. Talvez ele fosse o único amigo
de verdade que ela teria na escola, nesse ano. Foi então que se lembrou de perguntar-lhe algo
que, sem dúvida nenhuma, faria com que o colega começasse a falar sem parar.
- A Vicki foi ao nosso ensaio ontem à noite, replicou ele, abrindo a latinha de
Fazia algum tempo que Selena não assistia a um ensaio da turma dele. Um dia ela fora
lá, mas acabara ficando nervosa de ouvi-los tocar a mesma música várias e várias vezes.
- Hummm, que bom! comentou. E vocês já arranjaram um nome que agrade a todos?
- Quase.
- Você quer dizer que o nome do conjunto é “Quase” ou que quase arranjaram o nome?
Ronny deu uma risada.
- É, podemos colocar esse aí na lista. “Quase”. Seria bem radical. Não. O que quero
dizer é que quase escolhemos “Cavalo Branco”. Mas o Ben acha que já existe um grupo com
esse nome. A Vicki falou que dá pra checar isso na Intemet. Então ela vai verificar pra nós.
relação a Vicki. No início do ano, a garota havia convidado o Ronny para ir com ela a um
jantar beneficente de gala, e Selena logo a havia rotulado de “namoradeira”. Talvez não fosse
uma avaliação muito justa, mas o relacionamento das duas já começara errado. Pouco depois
que Selena se mudara para Portland, ela ouvira Vicki conversando com outra garota no
vestiário da escola, na primeira semana de aula. Estavam falando dela. A outra menina dissera
que Selena era “metida”. Esta, que escutara tudo do outro lado, dera a volta e as encarara,
dizendo que não era metida, não. Em seguida, saíra do vestiário pisando duro.
Recordando o episódio agora, reconhecia que não fora a maneira certa de resolver a
questão. Com aquela atitude intempestiva, ela apenas provara que as duas estavam com a
razão. Infelizmente, por causa disso, Selena ficara com a impressão de que não deveria
relacionar-se com Vicki. Depois, a outra ainda convidara o Ronny para aquele jantar, o que
piorara mais a situação. Naquela ocasião, Selena estava comecando a aprofundar a amizade
com o rapaz. Então teve a impressao de que Vicki estava se intrometendo entre os dois.
Já quase no final do ano letivo, Ronny e Selena haviam recebido uma tarefa escolar
especial. Teriam de trabalhar na Highland House, uma casa que dava assistência aos sem-teto,
e onde Selena ainda agora, vez por outra, prestava serviços. Vicki também fora designada
para atuar ali. Entretanto ela não se empenhara muito no trabalho. Houve dias em que nem
De repente, Selena sentiu vontade de assistir ao ensaio da banda de Ronny. Sabia que
era tolice dela. Reconhecia que o faria apenas porque Vicki parecia estar muito interessada em
Talvez, se Vicki não fosse tão bonita, Selena não tivesse tais sentimentos. A moça tinha
cabelo castanho-claro, bem liso, que lhe caía pelas costas. Ela o penteava partido ao meio e
ficava constantemente jogando-o para trás. Tinha sobrancelhas finas e arqueadas, e belos
olhos verdes, que chamavam atenção para seu rosto. Quando alguém olhava para ela, o
Selena tinha complexo de inferioridade em relação a essa colega. O que mais chamava a
atenção nela, para quem a visse pela primeira vez, era seu cabelo rebelde. Sabia que tinha
olhos bonitos. Eram azul-acinzentados, e alguém lhe dissera que eles mudavam de cor, de
acordo com o tempo. Seu corpo também sempre fora mais semelhante ao de um “meninão”
do que propriamente de uma “senhorita”. Contudo notara que ultimamente suas roupas lhe
pareciam mais justas no busto. Ou haviam todas encolhido, ou seu corpo finalmente entrara
em seu estágio final de desenvolvimento. Esperava que a explicação certa fosse a segunda.
De repente, se deu conta de que havia um bom tempo que estava calada. Então afastou
os pensamentos voltados para si mesma e perguntou ao Ronny como estava indo o serviço de
aparar gramados. Ao que parecia, o rapaz, que estivera preocupado em comer, nem notara que
- Tive de largar alguns, por causa da escola, principiou ele. E acho que vou ter de deixar
o restaurante também. Eles aumentaram minhas horas, passando para dezesseis horas por
semana. Mas, com a escola e os gramados que ainda tenho, não sobre tempo para a banda.
- Não. Hoje de manhã eu estava até pensando e orando sobre isso. O que você acha?
- Acho que não vai dar conta de tudo. Vai ter de largar um deles.
- Ganho mais cortando grama. E quando trabalho sábado o dia todo, dá pra terminar
tudo. Assim fico com as noites da semana livres para ensaiar com a banda.
- É, parece que você pode largar o restaurante, e mesmo assim não terá muita perda
- Ontem à noite, pedi a opinião de meus pais e eles disseram que isso era comigo.
- Detesto isso; você não? interveio a garota. Ás vezes eu gostaria que meus pais me
- É mesmo. Engraçado, né? Uns anos atrás, eu reclamava que meus pais não me davam
muita liberdade para tomar minhas decisões. Agora eles dão, e ainda reclamo.
Ronny jogou na boca o último pedaço de pão. Uma migalha de gema de ovo ficou presa
no canto da boca. Selena lhe fez um gesto indicando que a limpasse. Ele passou a mão no
- Oito.
- Alguns são, respondeu. Outros são menores. Sei lá. Gasta mais ou menos uma hora em
cada casa, menos em algumas daqui de perto. Nessas, gasto mais ou menos meia hora. No
sábado, faço dez casas. Tenho de trabalhar o dia inteiro, mas como eu disse, ganho um bom
dinheiro.
- Então é melhor eu deixar você trabalhar um pouco, disse Selena. Obrigada por ter
- De nada, replicou o rapaz, rindo. Sempre que quiser, estou às ordens. Que pena que
Amy não estava na casa do pai dela! Mas com isso eu saí lucrando, completou ele, batendo de
leve na barriga, com ar satisfeito.
Selena pegou a cesta, entrou no carro e foi para o trabalho. Quando ali chegou, já havia
uma fila longa. Lavou as mãos, colocou o avental e foi substituir a Jody no caixa. No ar,
que alguém abria a porta, deixando escapar um pouco daquele cheiro, mais gente se sentia
atraída a entrar.
A garota reconhecia que tinha um ótimo emprego. Gostava muito dos colegas de
quando Selena pedira uma licença para ir à Califórnia, nas férias. Depois, de lá, ela ligara para
a patroa, avisando que iria ficar mais uma semana fora. É que recebera um convite para viajar
à Europa com sua amiga Cris. D. Amélia lhe respondera que estava bem e que não precisava
se preocupar. Nessa “fugida” para a Alemanha e a Suíça - que apesar de curta fora muito
importante - Selena aprendera algumas lições preciosas. Ela entendera melhor um aspecto do
pré-fabricadas, nas quais elas não cabem. Ainda não sabia bem aplicar esse princípio no dia-a-
dia, mas iria tentar. E Amy era uma das pessoas com quem queria tentar aplicá-lo.
No mometo em que lavava o coador da máquina de café expresso, viu dois clientes
entrarem correndo pela porta. Uma chuva começara a cair de repente, e os dois estavam
Selena não chegava a detestar a chuva, mas também não gostava dela. Era algo a que já
se acostumara ali em Portland. Às vezes, achava gostoso escutar o leve tamborilar das gotas
na janela do quarto. Esse ruído tinha um efeito tranqüilizante. Em outras, porém, a chuva
significava que não poderia ir ao jogo de beisebol nem passear com Brutus, o cão São
Bernardo da família.
Encerrado o período de trabalho, foi para casa e subiu imediatamente para o quarto,
ainda meio desarrumado. Pegou uma calça jeans, um moletom velho do irmão do qual se
apossara sem o perceber e foi para a banheira. Fazia um bom tempo que não tomava um
banho de imersão.
Pôs-se a esfregar a pele para remover o cheiro de café e de canela que se impregnara
nela, tentando não pensar em nada. Já verificara a caixa do correio; não chegara nenhuma
carta de Paul. Grande novidade! Também não queria começar a especular com relação ao
segredo de Tânia. E quanto a Amy, achava-se muito desanimada de tentar contactar a amiga.
Amizade é uma rua de mão dupla, não é? Então não sou só eu quem deve ficar
correndo atrás!
Não tinha muita certeza se estava pensando nisso com relação à Amy ou ao Paul. Não
tinha importância. Os dois pareciam ter adotado atitude igual: o silêncio. E o mesmo se
Quem disse que o silêncio é de ouro nunca deve ter tido amigos e parentes iguais aos
meus, pensou.
Afinal ela se cansou do sossego do banheiro e saiu da água. Vestiu as roupas caseiras
confortáveis. Em seguida, desceu para o andar de baixo, desejando um pouco do barulho e da
agitação da família.
Sua mãe, Vó May e Dilton se encontravam na cozinha. A mãe estava colocando uns
pratos no balcão, e o garoto olhava para sua miniatura de carro para ver se a tinta se secara.
- Se pegar, vai deixar marca de dedo nele, avisou Selena. É melhor largar quieto aí a
Ao que parecia, era uma decisão dificil para o menino. Não sabia se seguia o conselho
espiou para um lado e para outro meio sem graça, para ver se alguém o havia notado. Selena
E foi saindo dali, limpando despistadamente a tinta vermelha que lhe manchara o dedo.
- O que foi? indagou Vó May que estava na pia lavando uma xícara.
- Eu estava conversando com Dilton, vó, explicou a garota. Mãe, o que vai ter no jantar?
- Ah! fez Vó May, contraindo a rosto com desprazer. Acho que não quero comida
- Mas o Harold, seu filho, é meu marido, explicou calmamente a mãe da garota. É
minha sogra, mas pra mim é como se a senhora fosse minha mãe.
- E está casa é minha. Vocês estão todos morando comigo e não querem deixar que eu
A mãe de Selena afastou-se. A garota sabia que, quando a avó ficava confusa, era
melhor não conversar muito. Contudo, naquele momento, ela não parecia estar com a mente
embaralhada. Tudo que dissera era verdade. A casa era dela, sim. A família de Selena viera da
Califórnia para morar com Vó May, porque haviam sentido que esta não tinha mais condições
de viver sozinha. E todos eles tinham precisado se adaptar. Entretanto, desde que moravam
ali, havia quase um ano, Selena nunca ouvira a avó afirmar que a casa era dela, como se
queria ajudar.
- Ajudar a abrir uma lata de sopa? Acho que não preciso disso. A vida toda, nunca
gaveta. Pegou-o e ficou tentando ajustá-lo na beirada da lata. Contudo essa atividade simples
para qualquer um era problemática para ela que tinha mãos trêmulas. Afinal, conseguiu
ajustá-lo e foi abrindo a lata com enorme esforço. Selena teve vontade de auxiliá-la, mas sabia
Finalmente, com a lata aberta e a tampa segura apenas por um fiapo de metal, Vó May
foi pegar uma panela. Tirou uma do armário e derramou nela a sopa. Em seguida, com gestos
lentos, girou o botão da trempe para acender o fogo. Selena ficou admirada ao perceber como
Deixando a sopa no fogo, Vó May voltou a despensa para pegar um pacote de biscoitos
cream cracker. Tirou uma tigela no armário e uma colher na gaveta. Parecia estar envolvida
com seu pequeno mundo particular. Selena não tentou conversar com ela nem procurou ajudá-
la. Ficou conversando com a mãe e pegou um pano para dar uma limpada na pia, como fazia
no seu serviço. Contudo ambas, com o canto dos olhos, se achavam atentas aos movimentos
de Vó May.
dirigiu-se à sala de jantar, deixando Selena e a mãe sozinhas na cozinha. Foi então que Selena
começou a compreender a tensão em que a mãe estava vivendo todos esses meses, desde que,
carinhosamente, havia passado a cuidar da sogra. Muitas vezes tinha de ir atrás dela, pela
casa, atenta para que a senhora não fizesse nada que pudesse causar dificuldades a outros ou a
si mesma. Vó May lhe dava mais trabalho do que os filhos pequenos, quando estavam
aprendendo a caminhar. É que, sempre que quisesse, ela podia encerrar os meninos no
cercadinho, mas não poderia fazer o mesmo com a sogra. A Vó May andava aonde queria,
- Será que tem algo que eu possa fazer pra ajudar? perguntou a garota para a mãe.
- Para o jantar?
- Não, replicou Selena, com essa trabalheira que a senhora tem com a Vó May.
- É, eu sei. Mas a senhora não tem de ficar de olho nela o tempo todo?
A mãe fez que sim.
- Quem sabe eu poderia sair com ela, passar uma tarde fora de casa, para a senhora não
- Precisa não, Selena. Sua vida também está muito cheia. Você está no último ano da
- Mesmo assim posso fazer algo por Vó May, insistiu a garota, falando alto, mas
- Vamos comer logo enquanto está quente, disse o Sr. Jensen. Eu e o Kevin quase
A mãe de Selena foi pegar umas colheres de servir ao mesmo tempo em que dizia para a
filha:
- Se você quiser planejar um passeio com ela, pra mim tudo bem. Mas converse antes
com Vó May. Ela gosta de ter tempo para pensar bem em tudo e analisar as mudanças que
A garota foi para a copa, onde a avó estava se levantando da cadeira. Sentiu um impulso
- Tem certeza de que não quer mesmo a comida chinesa, vó? indagou. Está com um
- Não, não Isso aqui está bom pra mim. Mas a sopa está quente demais. Vou para o meu
Com um movimento rápido, Selena se aproximou dela e pegou a tigela antes que a avó
“Queridinha” estava com a mente lpucida. Ouvir esse nome, para Selena, significava o
mesmo que escutar o grito: “campo livre!” Quando eles eram pequenos e brincavam de pique,
era assim que anunciavam uns para os outros que poderiam sair do esconderijo, pois o
A garota foi seguindo a avó, enquanto esta subia a escada. Parecia que cada degrau
exigia um esforço maior da senhora. E mais uma vez Selena ficou impressionada ao constatar
o quanto a vida diária era penosa para sua amada avozinha. Afinal as duas chegaram ao quarto
- Mais alguma coisa, vó? indagou Selena assim que Vó May acabou de se ajeitar.
- Não, não. Aqui está ótimo. Obrigada! concluiu ela, dando um sorriso agradável e com
Descendo a escada, a garota se lembrou de que, pouco depois que haviam se mudado
para aquela casa, ela criticara os pais mentalmente. É que eles, às vezes, não chamavam Vó
May para se sentar à mesa com a família. Agora começava a compreender a razão disso.
Como todos eles juntos normalmente eram meio agitados e barulhentos, era melhor para a avó
ficar sozinha no quarto grande e confortável. Assim ela gozava de um ambiente mais calmo e
tranquilo.
torno da mesa da sala de jantar. Aí se recordou de que havia pensado em convidar Vó May
para sair com ela um dia, só as duas. Deixaria isso para depois. Agora aquela cheirosa comida
Selena serviu-se de arroz com carne. Era o resto que ficara na caixa. Ficou satisfeita ao
ver que Dilton não pusera tudo no prato dele, já que essa era sua comida predileta. A garota
desembrulhou os “palitos” que tinham vindo junto com a refeição e ia levar à boca o primeiro
pedaço de came, quando o telefone tocou. Ainda com o prato na mão, pegou o fone. Era sua
irmã.
- Oi, Tânia! disse a garota, imitando o jeitão de seu amigo Ronny cumprimentar. O que
- Você deve estar querendo falar com papai ou mamãe, né? disse Selena, equilibrando o
- Não; acho até bom ter sido você quem atendeu. Gostaria de saber sua opinião sobre
uma questão.
Selena deixou a carne cair de volta no prato. Pôs a comida sobre o balcão e se encostou
no móvel. Estava boquiaberta; quase não acreditava no que ouvia. Em toda a vida, a irmã
- O.k., disse ela em tom controlado, procurando não demonstrar o espanto nem a
satisfação que sentia pelo fato de finalmente ficar sabendo do grande segredo. O que é que
- Nada.
- Os melhores pais do mundo, explicou a irmã. Achei que eles poderiam ter contado
algo para você. Mas já deveria saber que guardariam segredo. Sou tão agradecida a eles. Você
vai ver, quando sair de casa. Aí compreenderá como em casa tudo é bom demais!
Selena pensara que a irmã iria revelar-lhe o grande segredo, mas agora ela parecia
interessada em falar só sobre os pais. A garota já sabia o quanto eles eram maravilhosos. Isso
não era novidade para ela. Pegou os palitos de novo e, fmalmente, conseguiu pôr na boca a
primeira “garfada”.
- Eu preciso tomar uma decisão muito importante, continuou Tânia. Já conversei com
mamãe e papai sobre a questão uns dias atrás. Já falei com Jeremy também, é claro. Aliás,
muitas vezes. Comentei ainda com alguns amigos. Agora queria sua opinião, antes de dar o
passo seguinte.
- Oh! fez Tânia, dando um suspiro. É daquele restaurante chinês que fica no centro da
- Desta vez eles não vieram. Ou então todo mundo já os pegou antes de mim. Mas ainda
E com isso, Selena enfiou o “palito” numa caixa e pegou um pedaço de frango.
- Então estamos quites, interveio Selena, quase sem parar para pensar. Estou passando
Tânia fez uma pequena pausa e em seguida soltou tudo de uma vez:
- Encontrei a minha mãe biological Ela mora em Reno. Tenho vontade de conhecê-la,
para uma das matérias da escola. Uma noite, o pessoal da nossa turma estava sentado
conversando e, de repente, eu disse: “Você poderia descobrir a minha mãe. Assim eu não
preciso pagar um detetive particular e economizo uma grana”. Ele achou a idéia ótima. E
Selena quis que a irmã continuasse, mas parecia que esta preferia que ela fizesse
Imediatamente, a garota imaginou uma mulher de meia idade, talvez uma bailarina, o
___________________
*A cidade de Reno, como Las Vegas, vive da industria do jogo, e ali existiu muitos cassinos e clubes
- Muito pouco, replicou a jovem, falando devagar. Ela tinha quinze anos quando eu
nasci.
- Só quinze! Puxa! Coitada! Foi por isso que ela a entregou para ser adotada!
No instante em que Selena fez esse comentário impensado, arrependeu-se. Tânia sempre
- Não, replicou a jovem. Tudo bem. O Jeremy também disse mais ou menos o mesmo.
Falou que, considerando a outra alternativa, fora até muito bom que Lina tivesse resolvido me
- Sei, falou Selena. Você quer dizer que a outra alternativa seria abortar?
- Ih, dei outro “fora”! Desculpe de novo, Tânia. Estou falando demais. É que fiquei
- Não esquenta, não, replicou Tânia. Você tem razão. Lina poderia ter abortado, e aí
hoje eu não estaria aqui. Aliás, essa é uma das razões por que quero vê-la, continuou a jovem
em tom emocionado. Quero agradecer-lhe pessoalmente por ter me deixado viver. Vou lhe
- Sei que esse negócio de procurar os pais biológicos nem sempre dá muito certo,
prosseguiu Tânia. Uma colega de trabalho me contou que sua prima descobriu o pai biológico
e depois ligou para ele. O homem lhe bateu o telefone na cara. Então ela lhe escreveu uma
carta, mas ele não respondeu. Parece que tem gente que quer esquecer completamente o fato
de que gerou aquele filho. E não gosta quando alguém os relembra disso
- Não sei ainda. É por isso que quero sua opinião. Conversei com papai e mamãe para
me orientarem sobre como devo agir, mas eles disseram que isso é comigo. Depois mamãe me
ligou e disse que ela e papai tinham opiniões diferentes. Ela acha que devo escrever. Papai
- Estou indecisa. Jeremy é de opinião que devo ir procurá-la. Assim ela não vai poder
- É, mas assim você estaria “forçando a barra”, comentou Selena. Quero dizer, imagine
só uma garota passando o que ela passou aos quinze anos. Aí, quase vinte anos depois, você
- É verdade. Por isso é que gostei da sugestão de mamãe, escrever para ela primeiro.
Assim posso dizer aquilo que realmente quero e agradecer por ter me dado vida. E se ela não
sentir vontade de responder, pelo menos fiz o que queria: dizer para ela tudo o que penso.
- Será que isso tudo não deixa papai e mamãe aborrecidos, não? indagou Selena.
- Sei lá. No começo, eles ficaram um pouco espantados, mas me deram total apoio.
Você sabe como eles são, né? Mas hoje, já não tenho muita certeza. Mamãe disse algo que me
deu a impressão de que está um pouco incomodada, sim. Deu a entender que quer que eu
- Sei, interveio Tânia. E é por essa razão que, quando falei de Lina, não disse que era
minha “verdadeira” mãe. Para mim, ela é apenas mãe biológica. A verdadeira é a mamãe. E já
- É, concordou, e sei que fazia muito tempo que você queria procurar sua mãe. Uma vez
você me disse que iria contratar um detetive para isso. Mas parece que Deus está resolvendo
- Também penso assim, disse Tânia. E parece que o Jeremy está mais empolgado do que
- Que é isso?
- Eu preciso ficar bem certa sobre quem sou e como Deus quer que eu seja. Mas eu
mesma ainda não sei direito o que acho de toda essa questão, falou Tânia com um suspiro.
Tenho uns conhecidos que são adotivos e disseram que raramente pensam nos pais biológicos.
Eu não sou assim. Há muito tempo que esse assunto vem me perturbando. Quero ver se meus
olhos são iguais aos dela. E talvez ela me diga que minha risada lembra a do meu pai. Quando
eu era pequena, volta e meia alguém - que não nos conhecia bem - dizia: “Você não se parece
nem com seu pai nem com sua mãe”. Ou às vezes eu escutava comentários assim: “Os filhos
do Harold e da Sharon se parecem tanto uns com os outros, menos a garota mais velha!” Isso
- É, interveio Selena, mas “a senhora” não deve ter escutado os outros comentários que
eu ouvia. Eles diziam: “Essa Tânia é muito mais bonita que a irmã dela”. Foi isso que tive de
aguentar a vida toda. Sempre estive em segundo plano com relação a você.
- Selena! exclamou Tânia em tom de espanto. Logo você, que sabe muito bem que não
exatamente por esse motivo que ele afirmou que preciso consolidar meu senso de identidade.
Teoricamente, sei que meu senso de identidade deve vir de Jesus. Eu deveria estar procurando
saber como Deus quer que eu seja. Mas creio que ainda não apliquei isso na realidade.
Selena fez que sim. Entendia muito bem essa questão. Estava achando maravilhoso a
irmã abrir o coração para ela. Por uns instantes, ambas permaneceram em silêncio. Selena
- Tem hora que acho que sim, explicou a irmã. Outras vezes fico meio em dúvida. Ele
nunca me falou em casamento, se é o que você quer saber. É que primeiro pretende terminar a
faculdade, mas quer muito que continuemos o namoro. Nos não conversamos sobre nenhuma
outra possibilidade. Ah, e por fallar nisso, como vai seu relacionamento com o Paul? Um
tempo atrás, você me disse que ele lhe escreveu. Já recebeu mais cartas dele?
- Não. Escrevi duas vezes pra ele, mas ele não respondeu. Então decidi esperar um
pouco e ver se ele manda uma resposta. Só depois é que vou escrever de novo. Num
relacionamento com um rapaz é muito dificil ter certeza de algo, né? Uma hora a gente pensa
que está com “luz verde” e, de repente, ela fica “amarela”. Nunca sei se o sinal está aberto e
Tânia soltou uma risadinha alegre, revelando que compreendia muito bem o que a irmã
dissera.
- É, disse ela, você expressou tudo com muita clareza. Rapaz é assim mesmo.
- Quero dizer, eu abri o coração pra ele e falei coisas que não digo pra quase ninguém,
- É, concordou Tânia, a gente sente que se expôs. É como se tivéssemos dado o coração
- Isso mesmo!
- Mas vai dar tudo certo, Selena, interveio Tânia prontamente. Ainda que ele não
responda as cartas, está tudo bem. Não se feche, não, viu? Não perca nunca essa
espontaneidade, esse jeito franco. Seja sempre como você é, mesmo que uma hora diga algo
olhos.
antecipadamente tudo que irá acontecer, comentou a garota, pensando em Paul e também em
Amy. E se tivesse conhecimento de antemão do que o outro estava pensando e do que iria
- Infelizmente, Selena, a vida não é assim. Muitas vezes a gente conhece muito pouco a
respeito dos outros; e tem de agir com base nesse pouco. Dessa forma, temos de confiar mais
em Deus.
- É, concordou ela. E isso se aplica ao meu relacionamento com Paul e a decisão que
você tem de tomar com relação à sua mãe biológica, se vai telefonar ou escrever, né?
Tânia permaneceu uns instantes em silêncio e depois respondeu:
- É, tem razão.
- Todo mundo pode dizer que você deve ligar pra ela, que o sinal está aberto. Mas
depois você pode descobrir que ele está fechado; e se avançar, tera um monte de problemas.
- É verdade, disse Tânia em voz baixa. É isso mesmo. Creio que vou ter de seguir o que
eu mesma disse. Tenho de agir com base no pouco que sei. Nessa questão, tenho de confiar
totalmente em Deus.
Selena entrou na classe no momento exato em que a campainha acabava de tocar. Era
aula de Literatura. A Prof.ª Charlotte olhou-a com uma expressão séria, como que a
Havia avistado a amiga perto do escaninho pouco antes da hora de a aula iniciar.
Resolvera seguir o conselho de Tânia, pois tinha a impressão de que o “sinal estava aberto”.
- Tudo bem!
Selena então lhe sugerira que as duas se encontrassem ali, perto do escaninho. E ficara
- Vou dar um trabalho para sexta-feira, disse a Prof.ª Charlotte, distribuindo umas folhas
de papel. Isto é uma lista de escritores, com o título de algumas obras de cada um. Vocês vão
escolher um dos livros de um autor e fazer uma análise literária. Quem quiser créditos a mais
pode fazer dois trabalhos. Na outra folha, estão as perguntas que vão responder para a análise.
Selena correu os olhos pela lista e reconheceu apenas metade dos nomes.
- Olhe aqui, gente, continuou a professora, encostando-se na ponta da mesa, não deixem
para fazer o trabalho lá pelas 10:00h da noite de quinta-feira, não. Vão logo à biblioteca, tirem
o livro e leiam o capítulo marcado. Naquela mesa no fundo da sala, há algumas das obras da
Selena foi à mesa, pois decidira pegar um deles. Escolheu uma coletânea dos poemas de
Emily Dickinson. Vicki também se aproximou e pegou uma obra de Henry Wadsworth
Longfellow.
- Selena, disse ela, eu estava pensando que poderíamos dar uma saída juntas, pra fazer
algo.
- Fazer o quê?
- Então amanhã.
- ‘Tá bom, outra hora então, prosseguiu a colega. Quando você tiver uma folga me
avise, ‘tá?
Em seguida, enfiou os braços nas alças da mochila, firmando-as nos ombros. Dirigiu à
Achei que ela não ia muito com a minha cava, pensou. Será que está pretendendo algo?
Pondo de lado as indagações com relação a Vicki, Selena passou o resto das aulas
pensando em como conversaria com Amy na saída. Planejou tudo direitinho, mas, quando
chegou junto ao escaninho para esperar a amiga, percebeu que estava um pouco nervosa.
Ronny aproximou-se.
- Dei, retrucou o rapaz. Falei duas semanas, mas o cara disse que, se eu trabalhar no
A garota notou que ele amarrara o cabelo atrás, como num rabo-de-cavalo, e enfiara a
- E no que deu o aviso que a secretaria lhe deu com relação ao comprimento do seu
- Nada.
- Vai cortar?
- Não sei. Hoje no almoço, todo mundo estava dizendo que essa norma é meio sem
sentido. Disseram que eu deveria fazer um requerimento pedindo para a mudarem. Acham
que o regulamento deve exigir apenas que a gente esteja com o cabelo sempre limpo e bem
- Mas será que eles não estão achando isso, pelo fato de ter deixado o cabelo crescer?
- Deixei comprido por causa da nossa banda, explicou Ronny. Acho que assim a gente
fica mais de acordo com o pessoal que frequenta o The Beet. O que você acha?
- Sei lá, replicou a garota. Nunca fui ao The Beet. Também não prestei atenção ao
cabelo do pessoal da banda. Tem certeza de que vai ficar de “pé firme” nessa questão?
- Não sei.
- Pretende conversar com seus pais sobre isso? quis saber Selena.
- É, talvez eu devesse.
- Precisa não, interveio Amy. Pode ficar. Se for por minha causa, não precisa ir embora,
não. Vim aqui só pra lhe dizer, Selena, que esqueci que tinha de sair agora.
- Hoje à noite vou trabalhar e depois tenho muito dever da escola pra fazer.
- Quando é que você vai poder então? insistiu Selena. Preciso muito conversar com
você.
- Não sei, respondeu, sorrindo para Ronny e evitando fitar a amiga diretamente. ‘Tá
E saiu apressada. Selena acompanhou com o olhar a colega que desceu o corredor
praticamente correndo, saiu pela porta de folha dupla que dava para o estacionamento e se foi.
- Mais um tempo? repetiu ela. Por que será que a gente tem de dar mais um tempo a
tudo na vida? Estou cansada de esperar! Por que nossos relacionamentos não podem ser mais
- Vida, concluiu o rapaz com ar sério. Isso é da vida, Selena. Não é igual nos livros, é?
- Pois não estou gostando nada disso! exclamou a garota, fazendo uma careta. Por que
- Vamos, disse Ronny, puxando-a pela manga da blusa. Vamos comer tacos* e tomar
___________________
*Tacos: uma comida típica mexicana, constituída de uma espécie de panqueca, recheada com carne
moída, alface picada, queijo picado ou ralado e outros ingredientes. (N. da T.)
- ‘Tá bom, concordou ele e comentou: Você é a única pessoa que conheço que toma
Quando já se dirigiam para a lanchonete Lotsa Tacos, que ficava a duas quadras dali,
Ronny indagou:
- A Prof.a Charlotte deu pra vocês a mesma tarefa que deu pra minha turma?
- Ela mandou fazer análise literária de uma obra de um escritor americano. Você pegou
- Peguei.
- Será que ela acharia ruim se eu fizesse do mesmo autor que você? quis saber o rapaz.
- Creio que não. Estou pensando em fazer meu trabalho hoje à noite. Então posso passar
o livro pra você amanhã. Mas tem de devolvê-lo até sexta-feira, viu? Está no meu nome.
Resolveram entrar na lanchonete em vez de utilizar o sistema drive thru. * Selena levou
consigo a mochila e, enquanto Ronny fazia o pedido, retirou o livro de Emily Dickinson. Leu
___________________
*Drive thru: um sistema de comércio pelo qual o cliente compra sem sair do carro. Ele para o veículo
junto a um guichê onde faz o pedido. Em seguida, passa a outro guichê, onde paga. Afinal, recebe a compra em
Ronny sentou-se.
de Emily Dickinson.
- Poesia? repetiu ele. Pensei que tínhamos de ler contos, ou algo assim.
- Poesia é melhor do que conto, explicou Selena. Um poema é uma idéia apresentada
rasgar o invólucro de papel. Sempre sonhei em fazer uma análise literária de uma idéia
- Ei! Não fale assim! protestou a garota, saindo em defesa da poetisa. E as músicas que
vocês compõem? O que são? A letra de uma música é como uma pequena poesia.
- Hummm, o quê?
- Espere aí. Vou ler uma pra você. Talvez fique mais inspirado.
- Inspirado?
- É. Olhe o que diz aqui. “Emily Dickinson escreveu mais de 1.700 poemas, mas
publicou apenas dez em vida. O primeiro volume de versos dela só saiu impresso depois de
sua morte.”
Selena sentiu uma emoção diferente, ao pensar que iria ler palavras que haviam sido
escritas mais de cem anos atrás. E a mulher que as escrevera nem sabia que um dia iria se
tornar famosa.
- Olhe, disse ela, apoiando-se na mesa, vou ler um aqui pra você.
- O que ela quer dizer com isso? quis saber Ronny, mastigando um pedaço de taco.
emoção de contemplar os “Alpes imortais”, cujo “chapéu” toca o céu e cujos “pés” estão na
aldeia embaixo. E num dia de agosto, ela estivera lá, numa colina cheia de margaridinhas. E
até fizera um piquenique ali. O “senhor” do seu poético passeio era Alex. E, como Emily, ela
Olhou pela janela, fitando o claro céu de outono. Naquele momento, parecia
completamente alheia ao ronco dos motores dos carros parados no sinal ali perto. Em agosto,
ela abrira o coração para Alex. Abrira só um pouquinho, mas fora uma experiência
De repente, compreendeu que não errara em ter aberto o coração para Paul, nas duas
cartas que lhe escrevera. Mesmo que ele nunca as respondesse, agora reconhecia que havia
“crescido”, pelo fato de havê-las escrito. E talvez até tivesse podido ajudar o Paul também. E
era isso que queria. Era possível que, em certos relacionamentos, algumas perguntas nunca
fossem respondidas.
- Oi, Selena! chamou Ronny, passando a mão diante do rosto dela e tapando-lhe a visão
do céu. Com isso, ela voltou à realidade, dando-se conta de que estava na barulhenta
lanchonete.
E a poesia continuava, mas Ronny a interrompeu. Agora era ele que estava olhando para
fora, parecendo ter sido levado para outro mundo.
- Olha só! exclamou ele. É o novo diesel turbo 780! Aquele preto ali! Faz pouco tempo
Selena virou a cabeça e olhou para a fileira de carros na rua. Não tinha a menor idéia de
qual veículo ele estava falando. E também nem queria ter. Estava mais interessada em ler os
pensamentos daquela mulher que sabia o que era esperar uma carta e depois ir fechar-se no
quarto para “espiar pela fechadura” dela e “saboreá-la” sozinha. Esse pensamento fez com
que sorrisse.
- Vai comer isso aí? indagou Ronny, apontando para o tacos em que ela nem tocara.
- Não, replicou. Pode ficar pra você, respondeu, voltando a atenção para o livro e lendo
- Sabe o que mais? perguntou ela depois de alguns instantes. Mudei de idéia. Não vou
lhe emprestar este livro, não. Quero ficar mais um tempo com ele.
- Você entende mesmo o que ela está dizendo ai? quis saber ele.
- Tudo, não. Mas há umas partes dele que se aplicam a fatos que me dizem respeito.
Ronny amassou os papéis dos invólucros dos tacos e levou tudo para a lixeira, sem fazer
nenhum comentário. Selena atrás dele, carregando sua caixinha de leite, do qual tomara muito
pouco.
- Amanhã eu pego outro livro, disse o rapaz. Pode ficar com essa Emma só pra você.
volta para casa, Selena ia pensando nos poemas. Iria tentar ler o restante do livro agora à noite
hábito que cultivara ultimamente. Abriu a portinhola de tela e dirigiu-se para a cozinha,
algumas contas, impressos publicitários, uma carta para Vó May e mais dois envelopes.
Aqui ela parou, de fôlego suspenso. Os dois estavam endereçados a ela, em tinta preta,
numa caligrafia grande que ela conhecia bem. Os selos traziam o perfil da rainha da Inglaterra
e estavam carimbados com a data de 12 de setembro. Olhou o remetente. Era o nome que, nos
meses anteriores, ela sussurrara muitas vezes em suas orações: Paul Mackenzie.
Então ele não me esqueceu, pensou. Pôs estas cartas no correio mais de uma semana
Seu coração batia apressado, lembrando uma borboleta apanhada numa rede. E não
conseguia parar de sorrir. Não havia ninguém por perto. Então pegou as duas cartas e foi
Entrou e trancou a porta, como no poema que lera instantes atrás. Puxou a cadeira para
perto da porta de vidro, através da qual o Sol outonal derramava sua luz maravilhosa. E ali, ao
brilho daquele clarão suave, sentou-se, segurando uma carta em cada mão.
Qual delas abro primeiro? Talvez ele tenha posto a data na carta.
Rasgando o envelope, Selena abriu uma delas. Tinha uma página só. Era um papel bem
fino e delicado, que fez um barulhinho característico quando ela o desdobrou. Olhou aquela
letra grande que já conhecia tão bem. A data marcada era 7 de setembro.
Selena não sabia se teria coragem de deixar de ler essa e abrir a outra. Contudo teria
mais sentido lê-las na ordem em que tinham sido escritas. Abriu a segunda rapidamente.
Prezada Selena,
Ainda não recebi a resposta da carta que lhe escrevi e entendo que você pode até nem
responder. Como disse em minha ultima carta, se você não quiser se corresponder comigo,
entenderei perfeitamente.
- Ele não recebeu minhas cartas! exclamou ela, erguendo os olhos e fitando os
cisquinhos de poeira que “dançavam” no feixe de luz que entrava pela vidraça.
Continuou a ler.
Eu ainda queria lhe dizer mais uma coisa e depois não a incomodarei mais. Uns meses
atrás, quando estávamos no avião, você falou algo que nunca mais esqueci. E quero lhe dizer
isso. Você me perguntou como eu me sentia com a morte do meu avô. Você foi a única pessoa
que me fez essa pergunta. Muita gente me disse como “eu devia me sentir”. E ainda fazem
isso. Muitos me dizem: “Ah, isso passa. Depois você supera isso”. Outros comentam: “Você
Selena, você foi a única que perguntou o que eu sentia. Quero agradecer muito. Aquilo
Paul
A garota aproximou a folha do próprio peito e, erguendo os olhos para o teto, mordeu o
um buquê de lírios amarelos, e ele a avistara ali. Depois fizera uma pequena gozação dela.
Agora, porém, o “título”que ele lhe dera tinha um “sabor” diferente, bem mais doce.
Já li e reli suas duas maravilhosas cartas umas dez vezes; e ainda continuo rindo delas.
Você tem um jeito tão gostoso de escrever! Tive a impressão de que estava “vendo” os casos
que me contou. “Vi” seu pai levando-a ao restaurante, onde seus amigos trabalham, e ali lhe
Ri às gargalhadas quando contou que você e sua amiga derrubaram uma estante de
cartões na lojinha elegante de Basiléia. E sei exatamente como ela é. Aqui tem uma casa de
chá, aonde minha avó vai toda quarta e sábado, para lanchar com umas amigas. Logo que
cheguei aqui, um dia ela me levou a essa confeitária. Acredito que a intenção dela era me
“exibir” para as outras senhoras do lugar, para elas verem se eu poderia ser um bom
candidato a marido das netas delas. Sentamos a uma mesinha próxima da janela. Assim que
o garçom serviu o chá com os pãezinhos, tivemos um pequeno “acidente”. Sem querer, dei
um chute na perna da mesa, que aliás é bem velha, e tudo caiu no chão: o bulê de chá, as
xícaras e a toalha!
Selena não pôde conter uma risada. Inclinou a cabeça para trás e soltou uma boa
gargalhada. Estava praticamente “enxergando” a cena. Sabia como eram essas casas de chá,
que certa vez, quando estava na Irlanda, fora lanchar numa delas. E sabia como aquelas
mulheres inglesas levavam a sério a “hora do chá”, que para elas deve ser cercado de muita
elegância e tranquilidade. Coitado do Paul! Que vergonha ele deve ter sentido!
consiste em estudar, estudar e estudar. Talvez seja por isso que gostei tanto de suas cartinhas
alegres.
E você? Como foi na primeira semana de aula? Você contou que estava tendo um
No ano passado, eu tinha muitos amigos na escola. Sempre havia algum com quem se
podia sair. Aqui, porém, tenho poucos colegas que são amigos. Não sei se o problema é
comigo ou com eles. A verdade é que no ano passado, não tive muitos amigos que, como se
diz, eram “boa companhia”. E aqui ainda não conheci ninguém que tenha os mesmos valores
que agora assumi. Então fico sozinho a maior parte do tempo, em vez de ir para os barzinhos
com os colegas. Aliás, isso está sendo bom para mim. Até o momento, tenho tirado só notas
boas. Nos finais de semana, geralmente, vou para a casa da minha avó, onde faço uns
Já lhe falei da casa de minha avó? É uma residência muito antiga, do tipo chalé. O
alicerce dela tem mais de duzentos anos. Mas a estrutura já foi remodelada uma porção de
vezes. Os melhoramentos mais recentes datam de quatro anos atrás. Minha avó possui um
forno de microondas e já instalou uma fornalha à lenha, que aquece a casa toda. Mas não
quer nem ouvir falar em lavadora de pratos nem triturador de lixo. O terreno da propriedade
É grande, mas cheio de morros e com muitas pedras. Pertence à nossa família há várias
gerações. Antigamente, eles criavam ovelhas aqui. Agora não criam mais. Minha avó
conserva apenas uma cadela da raça collie, chamada “Laddie”. Tem ainda um jardim e uma
horta, que neste verão não deu muita coisa, pois fez calor demais.
Estou escrevendo no trem, indo para a casa de minha avó. Vou descer na próxima
estação, então tenho de concluir esta carta. Já estou esperado ansiosamente sua próxima
correspondência. Talvez até já tenha uma lá no chalé à minha espera. Por favor, conte-me
ainda está quente e o céu com aquele tom azul brilhante que ele tem quando as folhas das
árvores começam a amarelar? Aqui tem chovido muito pouco, e todo mundo está desejando a
estação chuvosa.
Então, um abraço para você, Selena. Estou orando por você. Que a paz de Cristo reine
em seu coração.
Paul
Selena baixou no colo as mãos com a carta, sentindo as batidas do coração irem se
acalmando. A luz do Sol “brincava” na vidraça da porta de folha dupla, aquecendo seus
braços do mesmo modo que a carta de Paul aquecera seu coração. Sua vontade era ficar
parada ali naquela cadeira, imóvel. Não queria deixar escapar aquela sensação maravilhosa.
Nunca.
Capítulo Oito
Sentada no silêncio de seu quarto, Selena deu uma “espiada pela fechadura” das
maravilhosas cartas de Paul. Já devia ser a décima vez que fazia isso, desde que as recebera,
dias atrás. Depois de relê-las, orou pelo rapaz, como fizera muitas vezes. Pediu a Deus que
endireitasse mesmo o caminho de Paul, e que este tivesse um coração aberto ao Senhor, para
aprender tudo que Deus quisesse lhe ensinar. Sentiu um grande conforto em lembrar que,
embora estivessem muito distantes um do outro, estavam próximos em espírito. Paul estava
elaborar uma resposta que a satisfizesse. Enviara para ele seu email, com a sugestão de que se
correspedessem pelo correio eletrônico, que seria bem mais rápido. Na terça-feira, após as
aulas, passara no correio e mandara a cartinha por via aérea. Agora tinha de ficar aguardando
a resposta. E como isso era difícil! Se pudessem se corresponder pelo e-mail, poderiam
Já era quase quarta-feira à noite, e ela acabara de chegar do estudo bíblico dos jovens,
que havia na igreja. Subiu direto para o quarto, onde fechou a porta e releu as cartas,
totalmente a sós. A caligrafia de Paul tinha características bem firmes e definidas. Cada letra,
escita em tinta negra, se destacava claramente no papel fino. Selena notou que ele cortava o t,
fazendo um risco de baixo para cima. Isso dava ao conjunto um ar de otimismo. As cartas
Sharon Jensen entrou e se sentou na beirada da cama de Tânia. Metade do leito estava
tomado com um monte de roupas que Selena lavara na segunda-feira, mas ainda não dobrara.
Selena fez um aceno afirmativo, esperando que ela continuasse. Antes de ela entrar, a
garota havia dobrado as cartas de Paul e guardado debaixo do travesseiro. Aliás, era aí que as
- Ela resolveu escrever uma carta pra mãe biológica e esperar a resposta dela. Tânia
Selena acenou de novo. Estava tentando “sentir”, pelo semplanite da mãe, como esta
- Como é que você está se sentindo com tudo isso? Indagou afinal.
Parecia-lhe estranho conversar com a mãe de igual para igual, perguntando-lhe o que
sentia.
- Pra ser sincera, no começo, fiquei muito chateada. É que, nessas situações, podem
acontecer muitos fatos desagradáveis. Uma ou a outra pode dizer algo negativo, coisas que a
gente nunca mais esquece. E a Tânia é muito sensível. Estava com medo de que ela saísse
- Mas agora, quanto mais converso com ela e com seu pai sobre o assunto, mais me
convenço de que ela está agindo certo. Vai dar um passo acertado. Acho que escrever pra
“tesouro” que se achava “escondido” embaixo dele. Na carta, ela pode comunicar muito do
que pensa e sente, não é? Quero dizer, a gente pode ler e reler uma carta diversas vezes e
demorar pra responder.
- Isso mesmo, replicou a mãe. Espero que Tânia esteja preparada para a possibilidade de
- O mais dificil pra mim, nisso tudo, continuou, é saber qua vocês duas já tem idade pra
às vezes podem ser muito complicados; e que nem sempre há soluções rápidas para os
problemas.
- Ah, é. E por falar nisso, como está seu problema com a Amy?
- Tenho a sensação de que nunca vou conseguir conversar com ela, explicou.
- Estou me sentindo péssima, disse. Você já perdeu uma amiga asim, mãe?
- Já, respondeu meio hesitante. Isso já me aconteceu várias vezes. A questão é que a
gente muda. As amizades mudam. Quando viemos morar em Portland, por exemplo, resolvi
dar um rumo diferente a uma amizade que eu tinha antes. Acho que, no meu caso, fui a
“Amy” da história. Eu simplesmente não tinha tempo nem energias para continuar o
relacionamento com essa amiga, da maneira como ela queria. Minha vida aqui é muito cheia
e, de certo modo, estou mais ocupada do que antes. E com isso, acho que acabei magoando-a.
Selena pensou se não seria isso que estava se passando com Amy. Como ela se achava
muito envolvida no namoro, não tinha mais tempo nem condições para manter a amizade com
Selena.
Quando a garota foi se deitar naquela noite, ficou pensando em Amy e no término da
amizade delas. O que a incomodava não era o fato de a colega ter um namorado, mas o modo
como o relacionamento delas se rompera. Nesse momento, Selena compreendeu que a visão
que ela tinha de um namoro era muito diferente da de sua amiga. Seus valores eram diversos.
Selena elaborara uma espécie de “credo pessoal”, esboçando o modo como deseja viver. O
problema fora que ela supusera que Amy também tinha as mesmas idéias. Achara que a amiga
só iria namorar um rapaz que fosse crente mesmo, e que ela tomara a decisão de permanecer
física e moralmente pura. Ao que parecia, porém, não era esse o pensamento da colega.
Antes de adormecer, ela teve uma idéia. Quem sabe deveria escrever para a Amy? As
cartas que recebera de Paul tinham sido tão gratificantes para ela! Tânia também resolvera
escrever para, a mãe biológica. Se lhe escrevesse um bilhete, talvez conseguisse atingir seu
objetivo de fazer as pazes com ela, mesmo que a amizade não voltasse a ser como era antes.
Entendeu porém, que teria de escolher com muito cuidado o que iria dizer. E deitada ali no
silêncio do quarto às escuras, Selena se pôs a estudar as palavras que diria a amiga. Analisava
uma por uma cuidadosamente, como se estivesse fazendo um joguinho de palavras cruzadas.
Na quinta-feira de manhã, assim que acordou, lembrou-se de que havia sonhado com a
carta. No sonho, ela tinha escrito para Amy, com muito cuidado, e entregara as folhas para a
amiga. Imediatamente, porém, a colega atirara tudo na lata de lixo, sem nem mesmo as ler. E
embora o sonho a tivesse deixado com uma sensação de desassossego, continuou achando que
era uma boa idéia escrever para Amy. Precisava apenas decidir o que iria dizer na carta e
como dizê-lo.
Nesse dia, não teria tempo para por seu plano em prática, pois após as aulas iria
trabalhar. Depois iria para a Highland House, onde ajudava a servir o jantar para os “sem-
teto” que ali compareciam. Quando afinal chegou em casa já passava de 8:00h da noite. Foi
direto para o escritório e ligou o computador do pai. Entrou no programa do e-mail, para ver
se havia chegado alguma mensagem de Paul, caso ele tivesse recebido sua carta. Não havia
Abriu em outro programa para redigir a carta para Amy e se pôs a rascunhá-la.
“Prezada Amy,
Quero dizer-lhe que estou muito sentida de nossa amizade estar meio parada...”
Não, assim não estava legal. Apagou a frase e tentou de novo. Continuou refazendo a
sentença, procurando expressar o que sentia, mas sem dar um tom agressivo. Compreendeu
que escrever essa carta seria bem mais dificil do que imaginara a princípio. A certa altura, os
pais dela foram ao aposento para lhe dar boa-noite, pois iam dormir.
- Ligou uma garota pra você, quando estava trabalhando, Disse-lhe a mãe. Chama-se
- Obrigada, mãe!
- ‘Tá bom. Então não se esqueça de desligar tudo quando for dormir, concluiu ele,
Não estava gostando muito das palavras que colocara na tela. Davam a impressão de um
ultimato. Será que Amy também acharia assim? E se ela se esforçasse ao máximo e
escolhesse com todo cuidado as palavras que iria escrever, achando que estavam ótimas, mas
Afinal resolveu “salvar” o rascunho que fizera. Abriu um arquivo com o nome “Amy” e
deixou a carta nele. Em seguida, abriu a mochila. O primeiro objeto que viu nela foi o livro de
Emily Dickinson.
- Ah, não! exclamou com um gemido.
Havia se esquecido totalmente do trabalho que teria de fazer para o dia seguinte. Deu
Não quero nem acreditar que estou fazendo exatamente o que a Prof.ª Charlotte disse
Como Selena nunca tivera muita dificuldade com os trabalhos de casa, sempre
conseguira tirar boas notas, mesmo sem se esforçar muito. Agora, porém, como estava
iniciando o último ano, queria tirar só notas altas. Não estava gostando nem um pouco de
fazer aquela análise literária assim, na última hora. Obviamente, desse modo, não estaria
Essa professora não é de dar muita “colher de chá”, não, pensou a garota, procurando
Encerrada a aula, Selena foi devolver o livro à mesa que ficava no fundo da sala. Vicki
- Liguei pra você ontem, mas estava trabalhando. Queria saber se você gostaria de fazer
Selena fitou a outra direto nos olhos. Teve vontade de indagar “Por que?”, mas conteve-
se e sorriu.
- Pensei que talvez a gente pudesse ir lanchar em algum lugar ou assistir a um filme,
prosseguiu Vicki. Mas não sabia se você já tinha algum compromisso pra hoje.
- Não.
- Bom, principiou e, de repente, sem mais nem menos, disse: Dá uma chegada lá em
casa!
Capítulo Nove
- Vicki Navarone, replicou sem olhar para a mãe. Ela estuda lá na minha escola. Será
que eu nunca falei nada sobre ela? No semestre passado, quando eu e o Ronny fizemos aquele
- É, interveio a mãe. Eu me lembro de você ter falado sobre ela, mas não me recordo de
- E não tinha, não, explicou, voltando a olhar para as fitas. Achei que a Tânia havia
- Ela colocou, quando estava aqui. Mas acho que ninguém continuou mantendo as fitas
em ordem.
atender.
- Deve ser a Vicki, comentou. Mãe, a gente pode mesmo assistir a um filme aqui? A
Selena se sentia um pouco apreensiva ao abrir a porta. Nunca poderia ter imaginado que
a Vicki estaria sem uma atividade social, numa sexta-feira à noite, e muito menos que
- Ótimo! comentou Vicki. Sabe, adorei sua casa! Aquele balanço ali na varanda é uma
graça!
A garota estava vestida com um short e um blusão de moletom, onde se via o nome
“Georgetown”. Seu cabelo longo e sedoso estava firmado num prendedor. Parecia que ela não
- Na verdade, esta casa é da minha avó, explicou Selena, enquanto a outra entrava e
examinava os detalhes da sala com ar de admiração. E ela mora conosco, quero dizer, nós
moramos com ela. Às vezes, ela fica com a mente um pouco confusa. Então não se assuste se
ela chegar aqui e começar a dizer ou a fazer coisas meio sem sentido, o.k.?
Vicki fez que sim. As duas foram para a saleta, onde Selena se pôs a ler os nomes de
alguns filmes.
- Ótimo! disse a colega, ouvindo Selena ler os títulos. Esse aí é muito bom! Gosto muito
De repente, Selena parou. Tudo aquilo estava muito estranho para ela. Então resolveu
fazer uma pergunta franca para a colega. E, sem parar para pensar, falou:
- Vicki, quero lhe fazer uma pergunta. Por que você decidiu vir aqui? Quero dizer, por
que quis vir à minha casa, sentar aqui e assistir a um filme? Sei muito bem que você poderia
agora estar com outras pessoas, e que tem uma vida social mais intensa do que a minha.
- Por quê?
- Porque eu...
- É o seguinte, principiou Selena, interrompendo-a para explicar por que tinha sido tão
- Eu, replicou a outra sem pestanejar. Tem algum tempo que quero lhe dizer algo...
Sempre frequentei a igreja, mas nunca havia entendido que precisava entregar a vida para
Selena teve vontade de se levantar e dar um abraço nela, mas achou que ficaria meio
- E dá pra perceber que o Senhor já começou a operar em mim, Selena. Ele está me
mudando. Por dentro, é claro. Não quero mais sair com o pessoal com quem eu saía antes.
Não quero mais essa vida de só ficar indo a festas. Quero viver para Deus e aprender mais.
- Minha turma? indagou a garota, contendo um pouco a alegria que sentia brotar no
- É, mas sei que você, o Ronny, o Tre e outros caras da banda do Ronny são cristãos de
Selena abaixou a cabeça e ficou a abaná-la lentamente. Momentos antes sentira intenso
- Por quê?
- Eu nunca dei bom testemunho disso que você disse, isto é, que sou uma “cristã de
verdade”. Quero dizer, sou crente e tudo, e penso o mesmo que você. Desejo crescer e
aprofundar meu relacionamento com Deus. Mas nunca a tratei como devia, isto é, como uma
- Ah, não precisa ficar sentida não, replicou a outra, aproximando-se de Selena e dando-
lhe um leve aperto no braço. Eu também nunca a tratei bem, mas percebia que você tinha algo
diferente. Agia como se confiasse em Alguém mais poderoso. E eu queria ser assim.
- É, mas ainda tenho muito que crescer, falou Selena, abanando a cabeça.
- E eu também.
- Eu pensei que, quem sabe, poderíamos fazer esse “percurso”, esse crescimento, juntas,
propôs Vicki.
Selena sorriu. A colega também. Parecia que naquele instante a amizade que se iniciava
- Você ainda quer assistir a um filme? indagou Selena, apontando para as fitas que
estavam no chão.
frente da colega.
- E eu também quero que me conte sobre suas férias, interpôs Vicki. Fiquei sabendo que
foi à Euopa.
- À Suíça, corrigiu Selena, achando que dizer que fora à “Europa” era um pouco de
Selena riu.
E as duas ficaram a rir e conversar tomando chá, como se já tivessem feito isso centenas
de vezes. A certa altura o telefone tocou. No quarto toque, como ninguém houvesse atendido,
- Ronny?
- Vou trabalhar.
10:30h e ainda não arranjei ninguém pra cortar os gramados. Queria que você trabalhasse pra
- Que nada, Ronny. Você não precisa me pagar, não. Eu o ajudo, sim. Onde a gente vai
se encontrar?
faça os gramados aí de Hawthorne, e eu fico com os outros. São apenas três, e todos perto de
sua casa.
- Ah, acho que sei quais são, disse ela. Ou pelo menos conheço dois deles.
Lembrava-se de que vira o Ronny trabalhando na vizinhança e que fora conversar com
ele.
- Então, continuou, é só você me dar o endereço certinho e explicar o que é pra fazer,
- ‘Tá bom. E fico lhe devendo essa, replicou o rapaz com gratidão.
- Claro, disse ele. Olha, depois que eu largar serviço hoje à noite, vou aí deixar os
- Eu largo às 10:00h. Posso deixar um papel com essas informações na caixa do correio
pra você. Lembre-se de que vai precisar começar às 7:30h, senão o tempo não dá.
- Fala.
- Não me agradeça ainda não, Ronny. Você não sabe se sou capaz de fazer o serviço
- Não esquenta, não. Esses três gramados são muito simples. Olhe, vai calçada de bota,
- Tenho de trabalhar, disse o rapaz. Então vou deixar o papel na caixa do correio, viu?
No dia seguinte, por volta de 7:15h, as du garotas iam caminhando lado a lado, subindo
a rua, para cuidar do primeiro gramado de Ronny. Selena empurrava o cortador como se fosse
um carrinho de bebê. Sua esperança era que nenhum vizinho estivesse acordado àquela hora
para vê-la numa atividade tão inusitada. Vestia uma calça jeans e uma camisa grossa de
manga comprida. Calçara a velha bota de seu pai e um antigo par de luvas de jardinagem.
Vicki tinha uma aparência um pouco mais elegante. Também estava com uma calça
jeans, mas usava uma camisa de malha de manga curta. Estava de óculos escuros que, aliás,
pareciam muito caros. Puxara o cabelo para trás e firmara-o num prendedor, mas deixando-o
- Nunca cortei grama na vida, disse Vicki, dando uma risadinha. Ainda não sei por que
- Também não sei por que resolvi fazer isso para o Ronny, desabafou Selena. Mas acho
bom que você tenha vindo comigo. Assim acabamos mais depressa.
O que Selena deixou de dizer foi que ela também nunca havia aparado um gramado. Em
sua casa, quem cuidava do quintal eram o pai e os irmãos. Embora houvesse ajudado a eles
Conferiu novamente o endereço e leu em voz alta as instruções que Ronny escrevera ali.
“Cortar os gramados na frente e nos fundos. Cachorro pequeno no fundo.”
- Será que isso quer dizer que temos de “aparar” o cachorro também? indagou Vicki.
Selena riu.
- No da frente, acho. Vou ligar este negócio aqui e a gente vai revezando, o.k.?
Selena abaixou-se e deu um puxão na corda. Para sua surpresa, o aparelho funcionou
imediatamente.
- Ótimo! exclamou ela em voz baixa, como se houvesse feito isso dezenas de vezes.
Vamos lá!
se para voltar, mas achou que ficaria melhor começar do outro lado. Assim poderia
acompanhar a linha do canteiro. Para mudar o “desenho”, resolveu cortar fazendo uma longa
Vicki, que ficara parada na calçada, olhando para ela, disparou a rir.
- Olhe só! gritou ela para superar o barulho do motor. Você fez o sinal do “Zorro”! e
Selena parou para ver o que havia feito. Entrando no espírito do momento, respondeu:
- Espere aí!
- Agora é uma gravata borboleta! explicou ela, gritando também por causa do ronco do
motor.
Vicki riu, apontando para a “obra-prima” da amiga. Nesse instante, a porta da frente se
abriu e apareceu uma senhora idosa, usando um robe verde comprido e calçada de sapato
mocassim.
- O que estão fazendo aí? berrou ela.
Selena abaixou-se para desligar o cortador. O problema era que ela não tinha a mínima
idéia de como se desligava o aparelho. E o motor continuou a roncar, enquanto ela tentava
- O quê? indagou, também aos berros, a senhora que as olhava com a mão na cintura.
Ao que parecia, ela nem vira a obra de arte da Selena, a “gravata borboleta”.
cortador, sem conseguir desligá-lo, Tentou de tudo, mas não adiantou. Viu a mulher
gesticulando muito e dizendo algo para a Vicki. Esta voltou apressadamente para junto da
- Ela disse que o Ronny geralmente corta a grama dela só depois de nove horas.
Reclamou que nós a acordamos. Quer que a gente faça o serviço às 9:00h.
- Acho que ela nem notou. Se formos embora logo, talvez ela entre também e nem veja.
Vicki fitou-a com expressão de quem não quer acreditar no que está ouvindo.
- Acho melhor a gente dar o fora logo, disse. A outra casa não fica aqui perto?
- Fica, mas o que vou fazer com este cortador? Como vou levá-lo até lá?
Vicki deu de ombros. Virou a cabeça ligeiramente e olhou para a mulher. Em seguida,
Em seguida, inclinou o aparelho para trás, firmando-o nas rodinhas traseiras, e foi se
afastando do gramado. Então, caminhando o mais depressa que podiam, as duas foram
- Pegue aqui! disse Selena para Vicki, indicando-lhe que segurasse um lado do cabo
seguida, ergueu o polegar e apontou para a direção da casa em que iriam trabalhar.
- É estaaqui, disse em voz alta por causa do barulho. Não tem cachorro.
Vicki fez um aceno de cabeça e pôs no chão os apetrechos que carregava. Selena pegou
o “touro bravo” pelos “chifres” e saiu empurrando-o pelo gramado. Dessa vez, resolveu ir
cortando de um lado para o outro, em fileiras paralelas, bem certinhas. A colega se pôs a
aparar a grama alta que ficava junto à linha da calçada. Ambas procuraram trabalhar rápido.
Parecia que estavam com medo de que novamente aparecesse alguém e gritasse com elas.
Contudo a porta da entrada não se abriu. E as cortinas das janelas nem se mexeram. Se os
Vinte minutos depois, Selena limpou o suor do rosto e tentou outra vez desligar o
- Deve ter agarrado em algo, gritou para Vicki. Acho melhor irmos logo para a outra
E as duas foram andando rua abaixo, mais parecendo que estavam brincando da “corrida
de três pernas”.* Cada uma empurrava o cortador com uma das mãos e com a outra carregava
___________________
*”Corrida de três pernas”: brincadeira em que os competidores, formando duplas, enfiam uma das
pernas num saco de pano e tentam correr até determinado ponto. (N. da T.)
aparelho.
Selena notou que havia outras pessoas na rua. Teve a sensação de que ela e Vicki
Por que fui concordar em fazer isso para o Ronny? Ainda bem que a Vicki está levando
- Muito obrigada, disse Selena. Será que ele vai desligar depois, quando eu o ligar de
novo?
ligou, com seu irritante ruído. Depois ele girou o pino e o aparelho desligou imediatamente.
O homem olhou para ela, acolhendo o agradecimento da jovem e ficou a fitá-la por
alguns instantes. Selena compreendeu bem a reação dele. Ela fizera o mesmo na primeira vez
em que vira Vicki. Nesse momento, achou que isso tinha a ver com os olhos verdes da colega,
e suas sobrancelhas finas e arqueadas. Eles lhe davam um ar de mistério. Ela parecia uma
daquelas atrizes de pele impecável, que faziam papel de espiã em filmes antigos de
espionagem. Na verdade, Selena antes não apreciava muito aquele jeito misterioso da amiga.
Contudo, depois da conversa amistosa que haviam tido na noite anterior, não se sentia mais
E foi saindo para reiniciar o cooper. Selena empurrou o cortador até a casa em que
- Será que ele era nosso anjo da guarda? perguntou para a colega.
- Nosso anjo ministrador, que Deus mandou pra nos socorrer, explicou a outra.
- Diz na Biblia que a gente pode acolher anjos sem saber. Li esse texto uns dias atrás.
Está em Hebreus.
- O que você quer dizer com isso? Acha que aquele cara nos achou com jeito
- Talvez.
- O que você está lendo? quis saber Vicki. Quero dizer, na Bíblia. Que parte está lendo?
- Ah, eu não fico só numa parte, não. Leio saltando, explicou a outra. Antes eu estava
lendo o Velho Testamento, mas quando as aulas começaram, comecei a ler Romanos. Mas
ainda estou mais ou menos na metade, concluiu, num tom de quem confessa um erro.
- Você fala de um jeito que parece que está cometendo uma falha, comentou Vicki.
Acho que é muito bom que tenha lido até o meio. Na sua opinião, quantos colegas nossos
lêem a Bíblia sozinhos, em casa? E olha que a Royal é uma escola evangélica, hein?! Não
- É; tem razão, concordou Selena, entrando na terceira casa em que iriam cortar a
grama. Quero sentir que leio a Bíblia por ter vontade, e não por dever. É por meio dela que
ouço a voz de Deus; e não desejo fazer isso por obrigação. Entende?
Vicki fez que sim. Colocou no chão os objetos que estava carregando e inclinou a
- Tenho lido a Bíblia como se ela fosse uma carta pra mim, explicou a outra. Foi a
conselheira do acampamento que ensinou isso. Entro no quarto, fecho a porta e leio cada
palavra com o coração bem aberto. Ela disse que devo imaginar que Deus escreveu aquelas
frases diretamente pra mim, pois escreveu mesmo. Ele é a Pessoa que me conhece melhor e
me ama mais do que todo mundo. E a Bíblia é isso mesmo, né? É uma carta de amor que
Selena ergueu o rosto. O Sol matutino atravessou as folhas da árvore embaixo da qual
estavam, iluminando o rosto fervoroso da amiga. Era como se estivesse derramando uma
- “Primeiro, tranco a porta... por fim, tiro minha cartinha do envelope e devagarinho
espio pela fechadura dela”, recitou Selena, inspirada pelo encantamento daquele instante.
Dickinson.
- Entendo perfeitamente o que você está dizendo sobre ler cartas. É um delicioso
Capítulo Onze
As duas garotas conseguiram terminar o segundo gramado com tempo de sobra para
voltar ao da “gravata borboleta”. Quando ali chegaram, a dona da casa já as esperava à porta
da varanda. Agora trocara de roupa, mas ainda tinha uma expressão carrancuda no rosto
enrugado.
- O que vocês estão querendo fazer comigo? indagou assim que as duas entraram. O que
Provavelmente, não seria preciso ter falado tão alto, mas do jeito que a mulher gritava,
ela devia ser meio surda. Ou então estava com muita raiva delas.
- Isso eu já entendi. Mas olhem o que fizeram com a grama insistiu a dona, apontando
para o chão.
perfeitamente a “gravatinha”.
- Desculpe, falou a garota, chegando ao primeiro degrau da escadinha que dava para a
varanda e parando ali. Vamos consertar agora mesmo. Depois, a gente faz a parte dos fundos.
- Claro que está bem assim! É pra isso que estou pagando! Ah, vê se aparam aquelas
roseiras que estão na lateral, continuou ela, olhando para Vicki com ar incrédulo. Elas estão
Parecia duvidar da capacidade da garota mais do que duvidara de Selena. Vicki fez um
aceno afirmativo, e a mulher desceu a escada para lhe mostrar onde ficavam as plantas. Selena
ligou o cortador e foi logo começando a aparar a grama. Dessa vez, trabalhava em fileiras
paralelas, como fizera nos gramados anteriores. Caminhava o mais depressa possível,
procurando fazer um serviço perfeito. Como nem Vicki nem a mulher voltaram, ela deduziu
que a dona estava dando à sua colega instruções detalhadas sobre a poda de roseiras.
- Já. Agora vou para o gramado do fundo. Acho que a senhora vai gostar do serviço que
- Não! replicou. Não pode passar por aí com esse cortador, não!
- Então, dê a volta. Vai! falou a dona com um aceno de mão e voltando a inspecionar o
trabalho da Vicki.
O quintal dos fundos era bem pequeno. O cachorro, um vira-lata malhado de preto e
branco, correu para sua casinha, aparentemente com medo do cortador. Selena não levou nem
dez minutos para aparar a grama. E isso foi muito bom, pois já passava de 9:00h, e não havia
dúvida de que precisaria tomar um banho antes de seguir para o trabalho. A dona da casa,
- Olhe aqui perto desta mangueira, disse ela para Selena. Aqui tem uns matinhos. Se não
arrancar hoje, sábado que vem eles estarão do tamanho de minha mão, concluiu, erguendo a
- Não, não, não, interveio a senhora. Tem de arrancar com a raiz, senão crescem de
novo. Vamos. Arranque. Tire com a raiz.
A garota obedeceu. Inclinou-se e, durante quase meia hora, ficou a remover os matinhos
que havia por todo o quintal. Toda vez que a mulher avistava algo que não a agradava, gritava
para Selena:
- Ali, ali! Bem ali! Não está vendo, não? Arranque aquele ali.
Vicki continuava trabalhando nas roseiras. Volta e meia a senhora olhava para ela e
gritava:
- Por hoje é só! Temos de ir embora agora. Se tivermos deixado algum serviço sem
- Ah, o Ronny não faz isso pra mim, não, disse. Ele só apara a grama.
- O pobre coitado trabalha em dois empregos, continuou a dona. Ele não tem tempo de
É, interpôs Selena, se nós pudéssemos, faríamos mais, mas eu também tenho outro
A garota girou o pescoço dolorido de um lado para outro e inclinou o corpo para trás,
Selena virou-se ligeiramente na direção dela e viu que estava sorrindo. Era a primeira
vez que a via sorrir. Tinha um jeito normal, quase agradável.
podiam, seguindo pela calçada. A cada desnível do passeio, era um barulhão. Quando já se
- Aquele versículo de Hebreus diz que a gente deve tratar bem aos desconhecidos que
encontramos, pois poderemos estar acolhendo anjos, sem saber. Acho que nós “acolhemos”
bem aquela mulher, mas tenho sérias dúvidas de que ela seja um anjo.
- Você viu aquela, quando ela disse que o Ronny não tem tempo pra arrancar o mato
porque o “pobre coitado tem dois empregos”? indagou Selena, bufando por causa da
caminhada. Eu deveria ter-lhe dito logo de cara que também tenho dois empregos.
- É, eu sei, concordou a garota. Mas estava dificil escapar. Ela ficava achando matinhos
As duas subiram correndo a rampa de entrada da casa de Selena, que guardou o cortador
na garagem.
- Vou ter de voar, disse ela para Vicki. Muito obrigada, amiga, por ter me ajudado. Se
- Foi até divertido, comentou a outra. Bem, bom trabalho pra você! Depois a gente se
vê. Tchau!
Selena já ia entrar correndo em casa, mas parou e se virou para a colega. Vicki já estava
naquele instante foi de que tudo parecia tão natural. Era como se já fossem amigas havia anos
e fizessem isso todo sábado. Selena estava espantada com a facilidade com que as duas
haviam se entrosado.
Afinal, ela só foi telefonar para Vicki no domingo à tarde. A ligação caiu na secretária,
e a garota deixou um recado, dizendo-lhe que telefonasse para ela quando pudesse.
- Ah, muito bem, respondeu. Ontem fui aparar uns gramados para o Ronny. Foi uma
experiência e tanto.
- Isso é algo que eu nunca faria, disse Tânia, aparar um gramado para fazer um favor a
alguém.
Selena acomodou-se na sua poltrona predileta da saleta, perto da porta de folha dupla.
- Bom, replicou, eu vejo a situação da seguinte maneira: uma hora dessas vou precisar
de um favor do Ronny; e aí vou lembrar a ele do dia em que lhe dei aquela força.
- Eu lhe falei das duas cartas que recebi no mesmo dia, não falei?
- É, na última vez que liguei, você me contou. É por isso que estou perguntando. Já
respondeu?
- Tem de dar um tempo, disse Tânia. Eu lhe contei que escrevi para Lina?
- É, mamãe me disse que você tinha resolvido escrever pra ela. E como foi? Ela já
respondeu?
- Não, ainda não. Agora já sei o que você sentiu quando estava esperando a resposta do
Paul, embora no meu caso não seja exatamente a mesma situação. É horrível ficar nesta
expectativa. Fico só pensando que deveria ter dito isso ou aquilo de outra maneira. Mas
depois que a gente pôs tudo no papel e mandou a carta, não tem mais jeito de mudar.
- Isso mesmo, concordou Selena. Mas, no seu caso, aguardar a resposta da Lina deve ser
bem mais enervante do que é pra mim esperar uma carta do Paul. O que pretende fazer se ela
não responder?
- Mas se ela escrever ou ligar lhe pedindo pra ir lá, você vai?
- Claro, respondeu Tânia. E depois de uma pequena pausa, continuou: já abri até uma
poupança para comprar uma passagem aérea, caso ela me convide para ir lá.
- De vez em quando, fico, sim. Mas na maior parte do tempo estou tranquila. Vez por
outra, tenho uma sensação estranha. É como se não quisesse realmente vê-la nem saber como
ela é. Bastaria saber o nome e criar minha própria imagem dela. Em outros momentos, porém,
fico ansiosa para ouvir sua voz e olhar direto no rosto dela, nem que seja só uma vez.
Selena sentiu a garganta apertar de emoção. Ela nunca compreendera bem a irmã, em
nada. Agora, pela primeira vez na vida, achava que conseguia entender um pouco o que Tânia
estava dizendo. Via que essa questão da mãe biológica era bem mais importante para a outra
do que pensara.
- Espero que ela telefone pra você, disse por fim. Aliás, vou começar a orar pra que ela
ligue.
- Paga!
- É que é uma linha de roupas e acessórios do tipo western. Esqueci o nome da etiqueta.
Vou passar quatro dias usando botas e chapéu de cowboy, tendo de fazer força para sorrir com
Selena riu. Apesar de a familia já ter morado numa cidadezinha típica do oeste
americano, nas proximidades do Lago Tahoe, Tânia nunca usara nada dessa linha, mesmo que
estivesse na moda. Agora pegava um serviço em que teria de fazer exatamente isso: vestir-se
- Preocupa não, interveio Selena, brincando, provavelmente vão pôr no fundo umas
- Selena, se algum dia alguém lhe disser que ser modelo é maravilhoso, não acredite,
- Ah, você já deve saber disso muito bem, né? comentou Selena rindo.
- Sei, concordou a outra. E você é quem deveria estar fazendo essas fotos, com aquela
- Ei, não deboche das minhas velhas companheiras, não, viu? Ontem, quando fui cortar
Contudo, dessa vez, a jovem falou em tom de brincadeira. Não tinha mais o modo
agressivo que empregava antes, quando morava em casa, e as duas discutiam o tempo todo.
Agora falara de um jeito engraçado, como o de uma amiga “gozando” a outra. Foi até
agradável.
O único problema era que, em momentos assim, Selena se lembrava de que ainda não
boca do estômago. Um tempo atrás, elas eram assim. Brincavam e conversavam uma com a
outra sobre questões que lhes interessavam muito. Mas isso havia acabado. Agora parecia que
a Vicki é que iria tornar-se sua amiga íntima. Entretanto algo a incomodava. Como é que se
Depois que Tânia se despediu e desligou o telefone, Selena ainda ficou um bom tempo
sentada na confortável poltrona. Orou pela irmã. Pediu a Deus que, se ele quisesse, Lina
orou por Amy. Então achou que já era hora de deixar que aquela amizade interrompida fosse
caindo no esquecimento.
Capítulo Doze
Era a hora do almoço, e o rapaz estava deitado no gramado da escola. Chovera no dia
anterior, mas agora o céu se mostrava claro e maravilhoso. O ar estava frio. A luz do Sol
descia sobre eles em raios cor de laranja; não diretamente, como no verão, mas num ângulo de
quarenta e cinco graus. Se Selena tivesse óculos escuros, seguramente estaria usando-os nesse
instante.
- Não sei, replicou a garota. Hoje ainda é terça-feira. Além disso, nem sei se já há algo
Nesse momento, mais seis alunos se aproximaram dos dois. Ao que parecia, eles
- É, disse Ronny, o jogo de futebol é uma boa opção. Estive conversando com a Vicki e
ela contou que na sexta passada foi à sua casa. Como não estou mais trabalhando à noite,
achei que talvez a gente pudesse se reunir e dar uma saída, fazer algo.
- Pra mim está ótimo, concordou Selena. E por falar nisso, cadê a Vicki?
- Acho que ela saiu com o Drake e a Megan para comerem, explicou o rapaz.
Selena deu uma dentada na maçã que trouxera de lanche. Para ela, um bom almoço era
um pacote de chips sabor cebola, uma maçã e uma caixinha de leite bem gelado. Passou-lhe
pela cabeça perguntar se Megan e Drake - com quem, tempos atrás, ela tivera um princípio de
romance - estavam namorando. Contudo achou que não seria legal tentar “atualizar-se” com
relação ao “rol” de fãs do rapaz. O que importava mesmo era que seu nome não figurava nele.
não a tinha visto nessa semana. No semestre passado, Amy tinha querido namorar o Drake e
até tentara marcar um jantar para ele. Convidara Selena para participar desse jantar com o
Ronny. Afinal, o encontro acabara não acontecendo. Para Selena, isso não tivera muita
importância, mas para sua amiga, ao que parecia, fora muito frustrante.
A garota foi mastigando a maçã devagar, ouvindo o burburinho da conversa à sua volta.
Ainda sentia um certo incômodo com relação a Amy. Falhara para com a amiga. Não soubera
enxergar o que era importante para ela nem a ajudara a obter ou realizar algo que era de tanto
- Ah, Selena, a propósito, muito obrigado por ter trabalhado pra mim no sábado, falou
Ronny, pegando uma batatinha do pacote dela. Você e a Vicki salvaram minha pele.
- É, e quando eu estiver precisando de um favor seu, vou cobrar, viu? Menino, nós
trabalhamos demais! À noite, minhas costas estavam doendo tanto! E ainda tive de passar
- A dor nas costas é de arrancar mato, explicou o rapaz, virando o pacote de chips e
sacudindo-o para aproveitar as últimas migalhas que ainda restavam ali. A D. Priscila vivia
querendo que eu limpasse os matos pra ela. Uma vez eu arranquei. Nunca mais.
quintal, né?
- Pois é. Ela fez a Vicki podar aquelas roseiras imensas e deu a volta no quintal todo
comigo, apontando pra tudo que era matinho. Vou lhe dizer, companheiro, arranquei foi muito
- Arrancou?
- Sim, senhor, e por causa disso até cheguei atrasada no serviço. Minha sorte é que a D.
- Ah, então, se nos saírmos na sexta-feira à noite, terei de pagar algo pra você.
- Pra mim e pra Vicki, corrigiu Selena. Ela deu um duro tremendo, a ponto de quase
machucar os dedos.
- ‘Tá bom, então, McDonald’s para as duas, nesta sexta-feira, disse Ronny, pegando a
- Que McDonald’s que nada! protestou Selena. Quero ir é no Tony Roma’s. Que tal
umas costelas?
Ele não parecia muito entusiasmado com a idéia de pagar um jantar para três num
Nesse momento, outro aluno, um rapaz alto, de nome Tyler, veio caminhando pelo
gramado e parou junto deles. Selena sempre o considerara um tipo conservador, estudioso e
até um pouco acanhado. Nessa hora, porém, sua expressão não era de um indivíduo muito
pacato, não.
- Oi, Ronny, disse ele, fiquei sabendo do ultimato que você deu sobre o seu cabelo! É
Selena olhou para Ronny, esperando que ele desse alguma esplicação. Ele continuava
com o cabelo do mesmo jeito que estivera desde que as aula haviam iniciado - amarrado atrás,
- Nada, respondeu. Só escrevi uma carta pra junta diretora; foi só. Eles tinham me
mandado um segundo aviso, dizendo que eu tinha de cortar o cabelo. Aí escrevi pra eles,
explicando por que o estava deixando crescer.
- Ele não contou tudo, interveio Tyler, atraindo a atenção de todo mundo. Ronny deu
um ultimato ao pessoal.
- O aviso que eles deram, interveio Tyler, já era o segundo. Disseram que ele tinha de
seguir o regulamento. Se ele não cortasse até sexta-feira, poderá até ser expulso da escola.
- Meu pai é da junta diretora, explicou Tyler. Ele falou que fazia muitos anos que eles
não tinham nem um problema de rebeldia como este. Sempre há muitos casos de indisciplina,
Ronny abanou a cabeça. Seu jeito não era absolutamente o de um rebelde, como Tyler
- E como eles decidiram não modificar o regulamento, concluiu ele, vão começar a agir
- Por causa do comprimento do cabelo? indagou Selena. Que importância tem isso?
- Meu pai disse que a questão não é o cabelo, explicou Tyler. É o regulamento. Os
Selena olhou para o Ronny. O colega estava sentado, ouvindo tudo calado e
aparentemente tranquilo.
- Apenas expus as razões por que deixei o cabelo crescer. Depois, disse que a decisão
era com eles e que eu acataria o que eles decidissem, explicou ele, dando um dos seus sorrisos
Tyler ergueu o punho cerrado, num gesto de valentia, como se aquela “briga” fosse
dele.
- É isso aí, Ronny! exclamou. Tem de agir e assim mesmo. Devolve o ultimato pra eles!
Ela ficou olhando para Tyler que se sentara perto dela e dava um sorriso amplo,
parecendo muito satisfeito. A garota obsservou que o cabelo dele era bem curto e até meio
“espetado” no alto. Aliás, ele não ficava nada bem com aquele corte, pois tinha o rosto
- O importante aí foi a resposta brilhante que ele deu, replicou o rapaz. Ele virou as
Uma das garotas presentes riu e atirou no rapaz um saquinho de papel amassado. Selena
virou mais o pescoço para olhar diretamente para o Tyler. Teve de fechar ligeiramente os
olhos por causa do brilho do Sol em seu rosto. Por que seria que esse rapaz, de repente,
“comprara” essa briga? Será que ele próprio tinha algum problema com o pai ou com a junta
diretora?
- Ah, fez Ronny, inclinando-se para diante e falando em voz baixa, a questão não é
assim tão importante nada. Logo que as aulas começaram, eles me mandaram um aviso,
citando um artigo do regulamento. O que eu fiz? Li o regimento todo. Nele, há uma porção de
normas que hoje em dia não tem mais nada a ver. E citei isso na minha carta.
- Lá diz que todos os alunos têm de ficar em pé durante a saudação à bandeira, a leitura
da Bíblia e a oração.
- Nenhum. Mas qual o professor do primeiro horário que lembra de fazer a saudação à
bandeira? Qual deles leu a Biblia no semestre passado? E quantos oram antes de começar a
aula?
comprido é vergonhoso para o homem, continuou o rapaz, dando de ombros. Então eu disse
que na comunidade onde vivo, trabalho e tenho meu lazer, o meu cabelo não é considerado
comprido. Só aqui na escola é que eles o vêem assim. Depois, expliquei por que deixei o
cabelo crescer. É por causa da banda. Citei um versículo de 1 Corintios 9, em que Paulo diz
que, como ele está livre da lei, está disposto a se tornar tudo para com todos, de modo que
A garota se sentia espantada diante da calma com que Ronny fazia sua defesa.
- Agora eles receberam o que mereciam, falou Tyler entusiasmado. Fogo a gente
responde com fogo! Eles não têm o direito de determinar a maneira como devemos nos vestir
- Depois então, prosseguiu Ronny, expliquei que o nosso grupo tem um lema
evangelístico que é alcançar nossos companheiros onde eles estão, para comunicar-lhes as
boas-novas de Cristo. E disse que, para ter sucesso nesse ideal, creio que tenho de deixar meu
- Eu disse que, como eles são uma autoridade que Deus estabeleceu pra mim aqui na
escola, iria submeter-me a eles. Comuniquei que faria o que eles decidissem. Mas preciso ter
a resposta até quinta-feira, para poder atender à data que eles tinham determinado
previamente.
- E se eles disserem que você tem de cortar o cabelo? quis saber a garota.
- Eu corto.
- Não muito. Parece que tem gente se importando mais que eu.
- Se eles o obrigarem a cortar o cabelo, interveio Tyler, acho que todos nós deveríamos
- Eu não vou cortar, comentou uma garota de nome Bethany. Meu cabelo levou quatro
Exatamente, concordou Tyler. E é por isso que não podem obrigar o Ronny a cortar o
dele.
- Parece que você é que está querendo entrar nessa briga, disse Bethany, apontando para
Tyler. Por que não deixa o seu crescer pra ver o que seu pai diz?
O rapaz ficou imobilizado. Todos o olharam para ver qual seria sua resposta.
- Até parece que isso vai acontecer, resmungou por entre dentes.
- Acho que o Ronny encarou o problema muito bem, comentou Selena. Além disso, a
gente tem de se preocupar mais é com o interior de uma pessoa, e não com a aparência dela,
não é?
Antes que alguém respondesse, a campainha tocou, indicando que o horário de almoço
estava encerrado. Todos se levantaram e foram saindo, cada um para sua classe, ainda
conversando sobre o que aconteceria na quinta-feira, a data marcada por Ronny. Selena
pensou que aquela turminha ali não era precisamente um bando de “rebeldes” nada. E mais
ainda levando em consideração que o Ronny, o pivô do caso, mostrava-se bem relutante em
- O que você acha que vai acontecer, Ronny? Perguntou Selena no momento em que se
Quando as aulas terminaram, na quarta-feira, Ronny ainda não havia recebido nenhuma
resposta da diretoria com relação ao cabelo. Ao que parecia, toda a escola estava sabendo do
problema. À hora do almoço, Selena vira o amigo, perto dos escaninhos, rodeado de colegas
que o interrogavam sobre a questão. O rapaz nem conseguira chegar à cantina. A garota ficou
- Eu acho que você deveria escrever outra carta pra eles, disse uma das garotas. E diga
que todos nós pensamos o mesmo que você. Eles não podem ir estabelecendo tantas restrições
assim.
tempo, cada um dando sua opinião. Selena estava cada vez mais admirada pelo modo como
Ronny estava encarando tudo. Ficava só dizendo que ainda era quarta-feira. O PC (Poder
Constítuido, apelido que Tyler criara para a junta diretora) poderia responder até quinta. Não
- Vamos esperar até amanhã, disse ele em voz firme para superar o burburinho do
grupo, que parecia estar querendo uma briga. Parece que vocês esqueceram que eu disse que
vou obedecer à decisão deles, seja ela qual for. Eles são autoridade sobre nós.
- É, mas e se a decisão deles for errada? Não é certo a gente se submeter a um grupo de
lideres que se acham totalmente desligados de nossa realidade.
Quem disse isso foi um estudante baixinho, de óculos, que logo pareceu meio assustado
- Quero dizer, prosseguiu ele, acho que a gente só deve acatar a decisão deles se ela for
boa.
- Isso mesmo! concordou outro rapaz. Somos nós que estamos mais a par do que se
- E não sabem o que é mais importante, disse uma garota de voz aguda. Nós é que
deveríamos fazer todos os regulamentos, para não ter de seguir essas normas ultrapassadas.
- Pois eu acho que eles deveriam deixar cada um fazer o que achar que é certo e se
preocupar apenas com nossas notas. Afinal, é pra isso que a gente estuda, né?
- Minha tia disse que, quando ela estudava aqui, as alunas só podiam usar vestido.
- Puxa, que ditadura! exclamou alguém. Agora eles não podem mais agir desse modo,
podem?
- É, agora eles tem de observar os direitos dos alunos. E se a gente quiser usar o tipo de
roupa que achar melhor, ou cortar o cabelo da maneira que preferir, eles não podem baixar
- Espere aí, gente! interveio Selena, que finalmente a conseguira criar coragem para
falar. Isto aqui está parecendo o pov do livro de Juízes! Nem acredito no que estão dizendo.
A garota agora estava irritada, por ela e por Ronny, já que o amigo parecia ter resolvido
continuou ela. O último versículo do livro de Juízes diz o seguinte: “Cada um fazia o que
achava mais reto”. E foi justamente aí que a nação desmoronou.
- Ah, mas isso foi no tempo da Bíblia! disse Tyler, adiantando-se e dando a impressão
de que queria discutir. O que isso tem a ver com nossa situação? Aquilo ali não se aplica a
nós, não.
- Aplica sim, retrucou Selena, sentindo o coração bater forte. Tudo que Deus queria
ensinar pra eles naquela época, quer ensinar pra nós hoje. Gente, vocês não estão vendo que o
Ronny está agindo certo? Ele está disposto a se submeter àqueles que são a autoridade aqui.
Mas antes, ele apresentou seu lado da questão; e o fez com muito respeito. Todos nós
devemos apoiar essa atitude dele, sem procurar fazer dele um pretexto para iniciar uma
rebelião aqui.
A garota se virou para ver de quem era aquela voz firme e grave. Era Drake, o mais
- Do meu lado? indagou a garota, correndo os olhos pelos colegas à sua volta.
- Não existe nenhum “meu lado”, prosseguiu ela. Eu estava apenas falando em nome do
Ronny, porque o pessoal aqui está querendo transformar este episódio em algo diferente.
- E como o Ronny mesmo disse, interpôs Bethany, falando bem alto para que todos
ouvissem, enquanto a junta diretora não tomar a decisão dela, não existe nada pra se discutir.
Além disso, ele também falou que vai acatar a determinação deles, seja ela qual for. Por que
será que todo mundo está querendo fazer disso uma briga?
- Então vamos nos reunir amanhã depois da aula, propôs Tyler. Aí então vamos saber se
fazerem algumas mudanças nesta escola. E pra mim, isso tudo é apenas o começo.
O grupo foi se dispersando lentamente, cada um tomando sua direção, todos falando ao
mesmo tempo. Selena ainda sentia o coração batendo forte. Obedecendo a um impulso, deu
- Pra que isso? indagou o rapaz, espantado de haver levado um soco dela.
- Porque sou pacifista. Não sou como certas pessoas que conheço, replicou ele,
- Desculpe! interpôs a garota, fazendo um enorme esforço para se acalmar. É que fico
nervosa com esse pessoal querendo fazer uma revolução, sem nem saber direito pelo que está
lutando. Parecia que eles queriam fazer do seu caso uma espécie de “causa” pela qual devem
- Calma, Selena! Eles vão superar isso. Não existe motivo pra briga. Se o PC disser:
- Oi, gente! O que é que está acontecendo? Ouvi alguém dizer lá no corredor que estava
havendo uma reunião aqui, e que era pra todo mundo se reunir aqui amanhã de novo.
- Isso veremos, disse o rapaz. Agora tenho de ir pra casa pôr uma bolsa de gelo no
- Alguém lhe bateu? perguntou Vicki, olhando primeiro para ele e depois para a amiga.
- Bateu, disse Ronny. Minha diretora de campanha me deu um murro.
- Se você tivesse defendido sua causa, não precisaria de uma defensora pessoal.
- Calma aí, Vicki, disse ela, abanando a cabeça e olhando para o colega, eu lhe conto
tudo. Você pode se encontrar comigo na Eaton’s daqui a pouco? Prometi a minha mãe que
vou levar a Vó May lá agora, depois da aula, pra que ela saia um pouco.
- Não vai dar, não. Tenho de ir pra casa, explicou a outra. Quero ir à reunião dos jovens
hoje à noite, e meus pais disseram que só posso ir à igreja durante a semana se terminar todos
- O.k.Tchau!
Ronny já estava saindo de caminhonete e deu uma acelerada no motor, quando passou por ela.
Em seguida, fez-lhe um aceno meio desajeitado, como quem está com o braço doendo. A
garota acenou também. Teve uma sensação desagradável. Aquela reação de dar um murro no
braço dele fora meio tola. Era algo que fazia com os irmãos mais velhos. Fizera-o tão
instintivamente que nem notara que havia batido nele. Só depois é que percebera o que havia
feito. Embora visse o rapaz como um bom amigo e colega, nunca o tinha agredido daquele
jeito.
- Sabe o que mais, Selena? disse para si mesma, ligando o carro e arrancando. Tem hora
que você parece adulta, madura e muito educada. Mas, de repente, surge dentro de você uma
bola de fogo que explode tudo. Quando é que vai crescer e ficar livre dessa agressividade?
sozinhas. E essa “bola de fogo” que havia dentro delas não “morria” nunca. A própria Vó
May era assim, antes de começar a ficar esclerosada. Selena recordou-se de um fato que
acontecera quando era criança. Achava-se no carro com a avó, e a certa altura pararam num
sinal, numa área residencial. Ali viram dois garotinhos na calçada, chupando picolés, bem
satisfeitos. De repente, apareceu um menino maior, deslizando num skate. Ele passou pelos
menino. Este olhou para trás e, quando percebeu que ela vinha, tentou mais depressa. Contudo
bateu num desnível da calçada e caiu. Vó May parou o carro junto ao meio-fio. Desceu e
agarrou o menino. Fuzilando de raiva, passou-lhe uma repreensão severa. O picolé havia
caido no chão, mas ela tirou dinheiro do garoto. Em seguida, voltou onde estavam os outros
E não foi só isso. Os garotos lhe disseram que haviam comprado os picolés em uma van
grande. Ela desceu a rua e foi até onde estava o veículo - sete quarteirões abaixo. Comprou
dois sorvertes - um para ela e outro para Selena - e também um picolé. Voltou ao lugar onde o
Não havia dúvida de que as mulheres da familia Jensen sempre lutavam em prol da
justiça e da verdade. Anos atrás, a mãe de Selena até brincara com a Vó May nesse sentido.
Dissera-lhe que ela devia arranjar um capacete vermelho-vivo, e aí estaria preparada para
proteger o mundo todo. A avó aceitara bem a brincadeira. Selena ficou a observar tudo e
aprendeu uma lição. Ela própria não reagia dessa maneira calma, quando a mãe “brincava”
com ela, dizendo que era igualzinha à Vó May. Selena teve a impressão de que sua mãe não
sabia o que era ter aquela “bola de fogo” dentro de si. Se já a sentira, a dela não era da mesma
intensidade das que havia no interior das mulheres da família Jensen. Era por isso, e por
outras razões também, que a garota se via muito ligada à avó, mais até do que à mãe.
Justamente pelo fato de Vó May ter sido uma mulher forte, era muito triste para os
familiares vê-la agora numa condição fragilizada. Pensavam nela como uma pessoa cheia de
Agora Selena entendia melhor como era doloroso para sua mãe estar cuidando da avó.
Fora exatamente por esse motivo que se oferecera para ajudar naquilo que lhe fosse possível.
Até o momento, o melhor que poderia fazer era sair com Vó May, pelo menos uma vez por
semana, levando-a aos lugares aonde ela gostava de ir. Nessa tarde, ela planejara ir a Eaton’s,
uma drugstore* que ficava perto de sua casa. Era uma loja antiga. Já existia ali antes de Vó
May ter ido morar naquela casa. Então, fazia mais de cinquenta anos que ela ia lá; e quase
sempre ao setor da lanchonete. Sempre que um dos nove filhos dela começava a estudar, ela o
levava a Eaton’s, no primeiro dia de aula, para tomar um milk-shake. E fizera o mesmo com
os netos, depois que estes se mudaram para Portland. Nesse ano, porém, ela nem se dera conta
de que as aulas já haviam começado. A garota chegou em casa à hora de sempre, pouco
depois de 3:30h. Vó May já estava pronta para sair e a esperava sentada no balanço da
___________________
*Drugstore: uma farmácia que, além de medicamentos, vende também cosméticos e outros artigos.
milk-shake, vó?
quem está satisfeita. Selena não tinha certeza se ela entendia bem o que haviam conversado. A
Agora era Selena que não compreendia bem o que ela quisera dizer. Poderia ser:
“Por favor, saia com ela e me de um descanso pelo menos até às 6:30h.”
Sua intenção era dar a entender que iriam passar momentos tão agradáveis na Eaton’s,
carro de Selena, a garota pensou se a amada avozinha estaria mesmo compreendendo tudo o
que faziam. Será que ela sabia aonde estavam indo? E será que isso fazia alguma diferença
para ela? Será que estava com a mente lúcida e entendia tudo, inclusive a indireta da mãe para
A única maneira de saber era esperar que Vó May conversasse com ela para ver se a
chamaria de “Queridinha”. O problem era que, nesse momento, quando desciam a rua em
havia ali os assentos forrados em vinil vermelho, exatamente como quando ela era criança.
Até a lista dos artigos, que ficava acima do espelho, parecia a mesma. Só os preços haviam
mudado.
Ela própria se assustou um pouco com seu tom de voz. Falara do mesmo jeito como a
avó se dirigia a ela quando era criança. A maneira como inclinara a cabeça e como dissera
aquilo tinha sido idêntica à forma como Vó May fazia anos atrás.
Sem querer, até imitara seu modo de falar “milk-shake”. E tudo isso era muito estranho.
Parecia que as duas haviam trocado de lugar. Agora fora Selena quem dirigira o carro; e era
Por um momento, Selena pensou que ela iria dizer “Queridinha”, e assim poderia ficar
mais tranquila. Contudo ela só disse “quero”, muito diferente do apelido pelo qual a avó
tratava a neta.
- Dois milk-shakes de chocolate, por favor, pediu para a garçonete que viera atendê-las.
Selena sorriu.
- É, e um cafe, repetiu.
Agora ficava difícil continuar vendo a avó como criança, já que ela pedira café. A
garota ficou alegre de ver que a própria Vó May pedira o café. Isso era bom sinal.
Compreendeu que era isso que sua mãe passava todos os dias, ao cuidar da avó. Tinha
de estar constantemente procurando descobrir como a senhora estava. Será que está lúcida
hoje? O que será que ela quer? Será que poderá pedir o que quer? Será que vai ficar ofendida
se eu fizer para ela algo que normalmente faz sozinha? Sua mãe precisava observar a avó o
dia todo, tentando ver e analisar os indícios que ela dava acerca de sua condição. Tal cuidado
Alguém entrou na loja, fazendo soar o alegre sininho que havia na porta. Selena olhou
na direção da entrada. Seu coração deu um salto. Era Amy. Ao que parecia, a colega não a
vira. Foi diretamente para o balcão de medicamentos, que ficava ao fundo da loja.
Até esse momento, a garota estivera convencida de que deveria deixar sua amizade com
a colega ir “morrendo” aos poucos. Agora, porém, teve uma sensação diferente. Lembrou-se
da ocasião, quando era pequena, em que se escondera no porão, esperando que um dos irmãos
fosse procurá-la. Ocorreu-lhe que talvez Amy tivesse feito o mesmo. De certa forma, esta
também puxara um latão de lixo, cheio de enxadas e ancinhos, e se escondera atrás dele.
Provavelmente, também já começara a sentir frio a ficar com as pernas dormentes. Contudo
Tenho de ir conversar com ela, pensou. Mas o que vou dizer? Talvez, se eu começar, as
Ergueu-se do tamborete com um movimento brusco, como se ele tivesse uma mola.
- Vó May, disse lentamente, vou dar uma chegadinha ali no fundo da loja e volto já. Se
ela trouxer o milk-shake antes de eu voltar, não me espere, não. Comece a tomar o seu.
Selena percebeu que estava falando como quem conversa com uma criança de três anos.
E foi saindo, dirigindo-se para o fundo da loja. Molhou os lábios e disse para si mesma
que não precisava ficar tão nervosa. Fazia várias semanas que aguardava um momento como
esse. Obviamente, ali não era o melhor lugar para conversarem, mas ao que parecia, ela nunca
teria uma situação melhor que essa. Sua vontade era gritar para a amiga:
- Amy, oi!
- Eu estava ali no balcão de lanches com minha avó e a vi entrar. Como está?
A colega fitou-a atentamente, sem mudar a expressão do rosto. Não parecia surpresa de
ver Selena. Tinha um olhar vazio, que não deixava entrever nada.
- Não.
Houve uns instantes de silêncio. Não havia mais ninguém no balcão de medicamentos, e
o farmacêutico se achava mais para dentro, aparentemente preparando a receita de Amy. Isso
lhes dava certa privacidade. Era um bom momento para terem a conversa que, havia tanto
- Ótimo!
Ao que parecia, Amy não queria ceder nem um pouquinho e aceitar o diálogo. Selena
pensou que poderia dizer algumas lavras “fortes” para “provocar” a outra, forçando-a a falar.
Essa técnica já dera certo anteriormente. Contudo hoje não devia agir assim. Ali teria de usar
de muita cautela. Tentar reconquistar uma amizade perdida era uma operação muito delicada.
- Você tem ido ao colégio, mas eu não a tenho visto, ou o quê? Arriscou-se a perguntar.
Amy baixou os olhos e depois os ergueu de novo, mas sem fitar diretamente a amiga.
Outra pausa.
Amy fez que sim. Não demonstrava estar ressentida nem parecia querer dar mais
informações.
- Que pena!
- Tudo bem!
- Acho que sim. De certo modo, sim. Na verdade, está melhor do que quando moravam
juntos. Eles estão se dando melhor um com o outro, e pelo menos passo algum tempo na
Selena ficou feliz ao ver que a amiga se abria um pouco. Aproveitando isso, continuou:
- Sinto muito ter saído tanto nessas férias, quando você estava passando por tudo isso
com seus pais. Tentei ligar pra você da Califórnia, mas não consegui pegá-la em casa nem
- Deixou?
- Várias vezes. Depois, como você sabe, viajei pra Suíça. Foi meio de repente, e não
- Quando voltei, foi uma correria, com o meu serviço e a necessidade de arrumar tudo
pra iniciar as aulas. Um dia, fui lá no restaurante esperá-la depois do trabalho, mas você já
tinha saído. Depois, fui à sua casa com uma cesta de café da manhã.
- Umas duas semanas atrás. Seu pai não lhe contou? Acho que ele estava dormindo e eu
- Ah, pensei que ele iria lhe contar. Levei uma cesta de café da manhã pra nós. Achei
- Olhe aqui, Selena, falou Amy, colocando um pé à frente como que tentando se
equilibrar melhor, estou alegre de você estar me contando tudo isso. Não sabia que havia me
- Eu queria muito conversar com você. Não gosto do jeito como está a situação entre
nós.
- Sei que você acha que precisamos ter uma conversa e nos abrir uma com a outra,
replicou. Mas não penso assim. Tem certas coisas que é melhor a gente não dizer. Você tem
sua vida e seus novos amigos. Eu tenho a minha. Vamos deixar por isso mesmo.
- Eu não quero deixar por isso mesmo, não, afirmou Selena teimosamente.
- Sinto muito, mas acho que você não tem outra escolha, interpôs Amy, com uma faísca
de energia nos olhos escuros. Não quero mais ser sua amiga, Selena, e é isso aí!
- Não! Não tem de ser “isso aí”, não! retrucou a garota, sem saber direito como se
expressar.
Queria muito passar a Amy o que sentia com relação a ela. A colega, porém, abanou a
- A questão é que você tem alvos e expectativas muito elevados para si mesma e tenta
impô-los aos seus amigos. Então, vamos encarar a verdade: eu não estou à altura deles.
Selena ficou sem saber o que responder. Tentou pensar numa boa resposta. A amiga
parecia um foguete prestes a ser lançado ao espaço. Ela não queria se “queimar” na hora em
que ocorresse a explosão do lançamento. Continuou hesitando, sem saber o que dizer. Nesse
- Pois não! respondeu Amy, virando-se para ele. Não tenho mais nada pra lhe dizer,
Selena. Tchau!
Ela falara com firmeza, sem olhar para a outra. Selena não sabia o que fazer. Se
estivesse sozinha, se não estivesse acompanhada de Vó May, iria atrás da amiga. Seu espírito
de luta iria impulsioná-la a seguir a outra até o estacionamento. Ali, sim, teria uma plataforma
mais segura para o “lançamento do foguete”. Não tinha medo de insistir com a amiga.
Tampouco temia o que esta pudesse lhe dizer. Pelo menos, elas colocariam tudo em pratos
Amy continuava de pé junto ao caixa, pagando sua compra. Selena virou-se e foi em
Quer dizer então que Amy não estava fazendo o “joguinho” que achei que ela estava.
Pensei que ela queria que eu ficasse atrás dela até “encontrá-la”, Como pude me enganar
tanto?
Assim que ela saiu do corredor da loja que dava para o balcão de lanches, seu coração
parou. Sobre ele estavam os dois copos de milk-shake e o café ainda intatos. O tamborete
estava vazio. Vó May desaparecera.
Capítulo Quinze
- Vó May! gritou ela nervosamente, olhando para um lado e outro. Viu aonde minha avó
Nesse momento, Amy saía da loja. Ao avistar Selena, virou o rosto e continuou andando
em direção ao carro.
- Ela estava aqui comigo, no balcão de lanches, mas quando voltei, havia desaparecido.
Ninguém aqui a viu sair. Será que você pode me ajudar a procurá-la? Você sabe como ela
fica.
- Ela morou aqui quase a vida toda, comentou Amy. Conhece bem este bairro. Tem aqui
algum lugar a que ela gosta de ir, uma praça ou algo assim?
- Creio que não. Se ela não estiver lúcida, pode ter saído caminhando por aí, sem saber
onde está. Acho que devíamos sair, cada uma no seu carro, e dar a volta nesses quarteirões
por aqui. É isso que eu e minha mãe fazemos. Será que você pode procurála nas quadras desse
lado? indagou ela, apontando numa direção. Eu procuro no lado de cá.
- Depois que você tiver dado umas voltas, a gente se encontra aqui. Ah, olhe tudo,
mesmo lugares que podem parecer estranhos, como a varanda ou o quintal das casas.
-Eu não vou ficar espiando no quintal dos outros, não, Selena, protestou Amy.
- ‘Tá bom. Então chame-a, o.k.? Ela a conhece, e se você a chamar, ela virá. A gente se
encontra aqui.
Selena entrou em seu carro e ligou o motor. Seu coração estava batendo depressa,
enquanto rodava de um lado para outro, nas ruas próximas à Eaton’s, gritando o nome da avó.
- Ei! Vó May!
Ah, que horrível! O que e que eu vou fazer? Não devia tê-la deixado sozinhah! Nem um
Deu a volta em mais um quarteirão, já era o sexto. Ainda não via sinal de Vó May.
Mesmo que ela estivesse boa da cabeça, não teria caminhado mais do que essa distância.
Ainda assim, Selena procurou em mais duas quadras, só para ter certeza absoluta. Não a
encontrou.
Talvez Amy a tenha achado. Oh, espero que ela a tenha encontrado!
Resolveu voltar para a loja. Estava com tanta pressa de chegar ali que, num determinado
cruzamento, quase bateu em outro carro que atravessou à sua frente em alta velocidade. Pisou
no freio, e o outro veículo passou como um jato. O motorista a olhou com cara feia, como se
Calma, Selena! pensou. Sofrer um acidente agora não vai melhorar em nada a
situação.
Procurando tranqüilizar-se e dirigir com toda atenção, Selena rodou o resto do caminho
orando, com a esperança de que, assim que entrasse no estacionamento, visse Vó May no
carro de Amy.
O velho e acabado Volvo da amiga já se encontrava ali, mas a avó não estava nele.
Selena entrou numa vaga meio apertada e saltou do Fusca. Foi correndo para onde Amy se
- Não encontrei, não, foi logo dizendo. Espero que tudo acabe bem. O que você vai
fazer agora?
Selena bateu a mão com força na lateral do Volvo, soltando um suspiro, demonstrando
temor e desalento.
- Acho que tenho de ir pra casa e contar para os meus pais, respondeu.
As duas ficaram em silêncio e, por um instante, se fitaram nos olhos. Agora já não havia
- De nada. Tchau!
Em seguida, voltou para o carro. A caminho de casa, resolveu dar mais uma procurada
pelo bairro para o caso de ela ou Amy terem esquecido de olhar em algum lugar.
E se Vó May tivesse voltado para a drugstore? Selena deu meia-volta e retornou à loja.
Entrou correndo e viu que o balcão de lanches estava vazio. Passava das 5:00h, e depois dessa
hora, eles o fechavam. Andou por entre os corredores, mas nada. Perguntou ao farmacêutico
se ele havia visto sua avó. Não vira. A mulher que estivera no caixa já saíra. Agora, quem
estava ali era uma jovem. Disse que pegara serviço havia dez minutos e não vira nenhuma
Teve de reconhecer que agora só lhe restava mesmo ir para casa, contar aos pais e ligar
para a polícia. Era impossível descrever o que sentia naquele momento. Seus pais sempre a
repreendiam pelo fato de ser descuidada e viver perdendo pertences importantes, como seu
passaporte, por exemplo. Como poderia encará-los e dizer-lhes que agora não sabia do
paradeiro de Vó May?
Sentia-se como que dormente por dentro, da cabeça aos pés. Achou a volta longa
demais. Parecia que nunca iria chegar. Ao entrar na rampa da garagem, nem sentiu o impacto
da pequena lombada que havia no meio-fio. Quando girou a chave para desligar o carro, os
dedos também estavam dormentes. Teve a impressão de que, se tivesse batido a porta no pé,
As palavras lhe corriam pela mente com uma impressão dolorosa. Cada uma delas
parecia produzir uma dor intensa, quase física. Recordou-se de que se sentira assim uma vez,
quando tinha sete anos. Trouxera para casa um ramo de flores silvestres. Ao tentar tirar do
armário um vaso da mãe, deixou-o cair e ele se quebrou. Conseguira ajuntar os cacos com
uma vassoura, sem se cortar, e os pusera num saco de papel. Depois levara o embrulho para a
garagem e o deixara ali. Resolvera que iria confessar o erro para a mãe após o jantar. Foi o
que a questão principal não era o erro que cometera nem o castigo que receberia por haver se
Selena entrou correndo, mas parou abruptamente. Vó May estava sentada no sofá, sã e
salva. A mãe se achava ao lado dela, e o pai, do outro. Os três fitavam a garota com uma
- A senhora está bem? perguntou ela, correndo para a avó e segurando as mãos dela. O
- É o que nos queremos saber, interpôs o pai. O Sr. Estevão a trouxe para casa.
- Sr. Estêvão? Por quê? indagou a garota olhando para o pai, depois para a avó e em
- Ele disse que ela estava sentada lá, sozinha, e ficou preocupado, explicou Harold
Jensen, fitando a filha com ar severo. Aonde você foi? Vó May disse que você tinha ido ao
banheiro, mas demorou muito. Então ela foi lá para ver o que estava acontecendo, mas não a
encontrou. Voltou ao balcão de lanches e ficou a esperá-la, mas você não apareceu.
- Não fui ao banheiro, não. Fui ao balcão de medicamentos, só uns minutinhos. Amy
tinha ido lá, e fui conversar com ela. Achei que era a única oportunidade que teria de acertar
tudo. Conversamos alguns minutos e, em seguida, voltei para o balcão de lanches. Aí Vó May
tinha desaparecido. Eu e a Amy a procuramos pelo bairro todo, eu no meu carro e ela no dela.
- Enquanto isso, sua avó ficava lá sentada, sozinha, durante quase uma hora, falou o pai.
- Sinto muito, vó, disse a garota, olhando para a senhora e apertando-lhe de leve as
mãos.
tinha saído.
- E por que eu iria sair? Pensei que você estava tendo algum problema no banheiro,
A voz dela tinha um tom de desalento. Selena sentiu-se péssima. A mãe quisera
“descansar” de Vó May por algumas horas, mas não pudera. Selena acabara trazendo mais
Ela detestava quando aconteciam fatos assim. Tudo parecia tão simples! Iriam apenas
dar uma chegada à drugstore Eaton’s e fazer um lanche. De repente, ela vê uma chance de
- Não fique preocupada, não, disse Vó May, soltando a mão da neta e afastando uma
mecha de cabelo louro do rosto aflito da garota. Tudo já acabou e agora estamos aqui sãs e
salvas.
- Quer que eu leve o jantar pra senhora lá em cima? indagou Selena. Quem sabe uma
Nesse instante, percebeu que estava inclinando a cabeça e empregando o mesmo tom de
voz com que falara na loja. Era o jeito como a avó lhe falava quando era criança.
- Ótimo! É o que eu quero, replicou Vó May, levantando-se para subir para o quarto.
Selena mordeu o lábio inferior. Outra vez a avó dissera a palavra “quero”, quando a
- Isso tudo é muito sério, disse a mãe assim que a senhora saiu. Muito mais sério do que
- Não se pode deixar a Vó May sozinha assim. Nem por um minuto. Você sabe disso.
- Tenha calma com a menina, Sharon, disse o pai, batendo de leve no braço da esposa.
- Vamos tomar providência para não haver uma “próxima vez”, respondeu ele em tom
calmo, tranquilizador.
tempo.
- Se fosse fácil assim, Harold, até que seria bom, disse. Você não sabe como é isso aqui,
- O que você quer dizer com isso? Como não sei? indagou ele, indo atrás dela. Também
Selena pensou em ir atrás deles. Sempre que causava algum problema para os pais, tinha
o impulso de fazer algo “para eles”. Obviamente, queria compensar o erro cometido,
prestando favores aos dois. Contudo achou melhor continuar por ali, polo menos durante
alguns instantes, e deixar que eles conversassem a sós. Daria uns cinco minutos de intervalo e
depois iria preparar a sopa da avó. Aliás, era um prato bem adequado para quem estivesse
doente ou aborrecido, não era? Entretanto reconhecia que nenhuma sopa serviria para fazê-los
A garota entrou na cozinha e pegou o telefone sem fio na mão da mãe. Em seguida,
- Alô! disse.
- Selena, é Amy!
- Oi, Amy!
- Ela está bem. Quando cheguei, ela já estava aqui. Um vizinho nosso trouxe-a de volta.
Você não vai nem acreditar. Enquanto a procurávamos pelo bairro todo, ela estava no
banheiro.
Houve uma pausa, mas logo em seguida a amiga deu uma risada. Era tão bom ouvi-la
rindo de novo.
- E você achando que ela estava vagando pela rua, meio confusa, né?
- E queria lhe dizer também que gostei de saber que você tentou telefonar pra mim e que
veio me ver. Eu não sabia nada disso e acho que tirei conclusões apressadas.
Selena fechou a porta da despensa e acendeu a luz. Era meio apertadinha, mas queria
ficar ali sem interrupções. Nada deveria atrapalhar aquele momento que ela tanto desejara.
- Ah, eu também tirei algumas conclusões apressadas sobre você; e sei que não fui
muito justa.
- Mas ainda mantenho o que disse, Amy apressou-se a explicar. Não quero discutir
- ‘Tá bom.
Não sou como você, Selena, continuou a outra. Em alguns pontos, somos parecidas,
sim. E acho que foi isso que nos fez aproximar uma da outra no ano passado. Mas não tenho
as mesmas idéias suas. Acho que nunca tive. Eu apenas tentei me ajustar ao seu jeito, sabe?
Entretanto não quero que ninguém tenha essas expectativas a meu respeito.
- Amy...
- Não. Só quero dizer que está tudo bem, interveio Selena prontamente.
- Então, vamos recomeçar a partir daqui, prosseguiu Selena. É só isso que quero dizer.
Gosto de você, Amy, e quero que a gente continue como amigas, conversando de vez em
quando. E o que você quiser está bom pra mim. Apenas não quero que a gente fique tratando
uma a outra friamente só porque, nos últimos meses, mudamos um pouco. Aliás, eu também
mudei.
A outra não respondeu, mas Selena percebia que ela ainda estava ao telefone.
- Assim está bem, disse afinal.
- Sabe, Amy, você me deu uma força e me ajudou a procurar minha avó. Só uma amiga
de verdade faria isso. Acho que não precisamos tentar ser amigas. Nós já somos.
- A questão é que não estou acostumada a ter amizades muito duradouras, explicou
Amy. Geralmente, fico algum tempo com alguém e depois passo pra outra. Arranjo outros
amigos. Então não vou garantir nada de minha parte. Não farei nada pra nanter nossa
Selena teve a sensação de que lhe haviam tirado um peso dos ombros.
- Talvez essa situação seja como você me disse um tempo atrás, comentou Selena,
encostando-se à parede. Como foi mesmo que você falou? Nós circulamos em órbitas
diferentes, que vez por outra se cruzam. Mas pode ter certeza de que, quando elas se
cruzarem, estarei às suas ordens para o que precisar, como você esteve hoje comigo,
procurando a Vó May.
- Obrigada, Selena, disse a outra num tom emocionado. Muito obrigada mesmo. E eu
também estarei às suas ordens, desde que não tenha expectativas muito elevadas a meu
respeito.
- Obrigada.
- Estou.
- É, pode ser.
- Bom, então uma hora dessas em que estiver chateada, ou sem ter o que fazer, ligue pra
conversa não fora exatamente como ela queria - uma abrindo o coração para a outra - nem
terminara do jeito que ela esperara. Contudo fora muito bom que tivessem conversado. Agora,
O que a preocupava mais fora o que Amy dissera sobre suas “idéias”. Que será que ela
quisera dizer ao afirmar que não tinha as “mesmas idéias” de Selena e talvez nunca houvesse
tido? Será que se referia ao pensamento de Selena sobre namoro? Ou seria sua crença em
Deus? O que de fato se passava no coracão da amiga? A garota compreendeu que a outra não
lhe abrira o coração. Portanto não poderia “entrar” nele. Contudo poderia “visitá-lo” de vez
Abriu a porta da despensa e saiu. Os pais já tinham ido embora da cozinha. Será que
ainda estavam discutindo sobre a Vó May? Ou será que já haviam resolvido a questão, assim
como ela e Amy tinham solucionado a sua? Achou que, por enquanto parecia que tudo se
arranjara. Na próxima vez em que ocorresse um problema com a avó, não havia dúvida de que
o assunto voltaria a ser discutido. Isso significava que ela teria de tomar muito cuidado para
não ser a causadora de nenhum conflito entre os pais por causa de Vó May.
Pegou uma lata de minestroni e derramou a sopa numa panela, pondo-se a preparar uma
Deu uma olhada para o relógio e percebeu que não daria mais para ir à reunião dos
jovens. A mãe iria começar a fazer o jantar a qualquer momento, e seria bom se pudesse
ajudá-la. Se fosse à igreja, não teria muito tempo para fazer os trabalhos da escola; e tinha
muito dever de casa. Lembrou-se de que falara com Vicki que iria à igreja. Era melhor ligar
mãe a preparar o jantar e a arrumar a cozinha. Parecia que tudo estava calmo e voltara ao
Passava das 8:00h quando Selena se dirigiu ao escritório, carregando a mochila, com a
intenção de trabalhar nos deveres escolares. Ligou o computador e deu uma verifiada no
email. Havia quatro mensagens para o pai, uma do Wesley (seu irmão mais velho) para a mãe,
Lembrou-se da amiga, Cris Miller, que estava estudando na Suíça. Será que ela teria um
e-mail? Recordou-se de que vira computadores na biblioteca da escola. Era bem provável que
sabia o postal. Resolveu escrever a Cris, pedindo o seu e-mail. Isso significava que teria de
enviar outra carta para o exterior e aguardar pelo menos uma semana para receber a resposta.
Era horrível ter de esperar! Era péssimo ter de aguardar vários dias, e até semanas, uma
carta do Paul. Tantos fatos novos haviam acontecido depois que ela lhe escrevera! A vida
estava passando à velocidade da... bom, da vida mesmo. Essa vagarosa correspondência com
acontecimentos.
Parou de digitar seu recado para Cris e se pôs a olhar pela janela, para a noite escura.
Que será que Paul está fazendo agora? Será que está na aula? Ou estudando?
Caminhando pelas montanhas de que tanto gosta? Será que está pensando em mim? E o que
“Oh, Pai, fico tão feliz de saber que o Senhor está em toda parte, ao mesmo tempo! Por
favor, Pai, envolve o Paul com teus braços amorosos onde ele estiver e o que quer que esteja
fazendo. Que ele possa sentir o quanto tu o amas e o quanto te interessas por tudo que lhe diz
respeito. Dirige-o em seus estudos, para que se esforce ao máximo e aprenda tudo aquilo que
lhe será proveitoso futuramente. Prepara-o para a obra que o Senhor determinou para ele.
Guarda-o, Senhor, em segurança. Peço-te que ele tenha bons amigos e que passe momentos
maravilhosos com a avó. Fortalece-o interiormente, Pai. Obrigada, meu Deus, por estares
ouvindo minhas petições e respondendo-as na hora certa, da maneira que queres. Eu te amo,
Pai. Amém.”
Selena sorriu consigo mesma. Fazia já vários meses que orava por Paul. No início, ao
fazer essas orações, experimentava uma emoção bem diferente da que sentia agora. Antes, ao
orar por ele, ao lutar por ele, com sussurros, na presença de Deus, fazia-o por obediência a
uma ordem do Senhor. Sentia-se impelida a interceder pelo rapaz. Agora que estavam se
correnpondendo, porém, tudo mudara. Ao ler as cartas dele, tinha a impressão de que estava
vendo um “pedacinho” do coração de Paul. Tendo aprofundado o relacionamento com ele, era
Recordou-se de que Vicki dissera que a Bíblia era a carta de amor que Deus enviou a
todos nós.
Como eu poderia ter comunhão com Deus se não tivesse essa carta de amor? O que eu
Mais uma vez olhou para fora e ficou meditando nessa questão. Nunca havia pensado
nisso antes.
Deus escreveu na Bíblia tudo o que queria nos dizer. E posso ler a mensagem dele a
Nesse momento, recordou-se das crianças refugiadas que moravam no orfanato que ela
Será que elas já ouviram falar da Bíblia? Será que alguém já lhes disse o quanto Jesus
as ama? E como deve ser difícil para elas acreditar nisso, depois de tudo que passaram!
Voltou à carta para Cris e, escrevendo rapidamente, abriu o coração para a amiga.
“Ocorreu me, agora, que o que você está fazendo na Suíça, trabalhando com as
crianças do orfanato, também é um serviço para Deus. Quando estive aí, não o enxerguei
dessa forma. Mas agora está bem claro para mim. Se alguém não lhes falar de Deus, como é
que elas crerão nele? Se não ouvirem a leitura da Bíblia na língua delas, como ficarão
sabendo a respeito de Deus? Aqui em nosso país, a gente tem tantas facilidades que acho que
nos esquecemos de que, em outros lugares do mundo, o povo não tem a liberdade e a
A essa altura, teve de parar. Seus olhos haviam se enchido de lágrimas, e ela estava
Por que será que nunca pensei nisso antes? Existe muita gente em todo o mundo que
Era tão estranho ficar emocionada daquela forma, assim, de repente! Havia anos que
escutava os missionários dizerem aquilo. Ela própria já fizera uma viagem evangelística e
também visitara, junto com a Cris, aquele orfanato da Suíça. Contudo nunca enxergara esses
fatos da maneira como os via agora. A Bíblia é a carta de amor que Deus enviou ao mundo.
No entanto havia muita gente que nunca a tinha recebido nem lido.
Selena afastou-se da mesa e limpou as lágrimas com as costas da mão. Saiu correndo do
escritório. Subiu as escadas apressadamente e entrou em seu quarto. Como sempre, estava
uma confusão geral. Sabia bem onde estavam todas as cartas de Paul, que recolocara no
envelope original. Dias atrás, atara-as com uma fita de veludo preta, um pedaço de uma
travesseiro. Enfiou as mãos ali e, de fato, todas estavam lá, bem ajeitadinhas.
Resolveu procurar a Bíblia no meio de toda aquela bagunça. Olhou entre umas roupas
sujas que se achavam a um canto. Chutou um sapato que estava no caminho. Lera-a dois dias
atrás e a colocara no chão junto com o livro de Ciências. Contudo o assoalho não era o lugar
certo para se deixar uma Bíblia, principalmente o do seu quarto. Lembrou-se de que, tempos
atrás, havia amassado uma carta de Paul e a jogara para um lado descuidadamente.
Afinal encontrou a Bíblia, debaixo de uma toalha de banho. Selena pegou-a e ficou a
olhá-la de perto.
- Nunca mais vou fazer isso, sussurrou para si mesma. Dirigiu-se para a mesinha-de-
cabeceira, ao lado da cama. Tirou dela uns copos vazios e pratos com migalhas de biscoitos.
Todas as cartas de amor são tesouros preciosos e merecem ficar num lugar de honra.
Sentindo que algo mudara em seu interior, embora não soubesse bem por que, Selena
saiu e desceu de volta para o escritório. Estava decidida a terminar os trabalhos escolares o
mais rápido possível. Esperava não ficar com muito sono, para que pudesse ler a Bíblia antes
de dormir.
Capítulo Dezessete
Quinta-feira, ao final das aulas, havia um grande grupo de alunos perto da caminhonete
- Ele ainda está lá conversando, disse Tyler, que se aproximava correndo. Talvez
demorem bastante.
- É, vou ter de ir trabalhar, falou para Vicki. Como cheguei tarde no sábado, não quero
me atrasar hoje.
- Quer que eu passe por lá pra lhe contar o que aconteceu? indagou a colega.
- Faz esse favor pra mim, respondeu Selena, dando um sorriso de gratidão. Assim vai
Foi abrindo caminho por entre o grupo ali aglomerado e seguiu apressadamente para o
carro. Conversara com Ronny na hora do almoço e ele lhe dissera, tranquilamente, que estava
pensando muito em algo que o líder dos jovens mencionara na noite anterior, na reunião da
igreja. Ele não explicara o que o homem falara, mas informara apenas que era em Romanos
14. Em sua leitura bíblica, Selena ainda não chegara a esse texto.
Enquanto rodava pelas ruas em direção ao Mother Bear, ia pensando em como aquele
incidente assumira proporções exageradas. Ao que parecia, não havia uma solução que
Chegou ao trabalho alguns minutos antes da hora. E isso foi muito bom, pois a
confeitaria estava lotada. Imediatamente, alguém a chamou para ajudar a servir. Então entrou
logo em ação, preparando café para um grupo de mulheres que estavam em volta do balcão.
Teve a impressao de que estavam todas juntas, e muito alegres de estar ali reunidas. Uma
delas trazia um bebê no colo, uma criança bem gordinha. Todas falavam ao mesmo tempo.
Uma delas, uma senhora alta, de cabelo louro-avermelhado, chamou Selena. Tinha no
- Qual é a diferençaa entre todos esses tipos de café? indagou para a garota. Na minha
Selena retribuiu o sorriso e foi explicando para ela como era cada um dos tipos de café
- Ah, obrigada, entendi. Quero só uma xícara de café puro, por favor.
- Nada, replicou Selena. É por minha conta. Bem-vinda à nossa terra. Espero que passe
Ela se afastou, indo sentar-se com as amigas numas mesas que estas haviam ajuntado.
- Por que você fez isso? indagou Jody, sua colega de trabalho. Agora todas elas vão
- Será? contestou a garota. Acho que não. Já que não posso dar um copo de água fria a
um desconhecido em nome de Jesus, posso oferecer uma xícara de café puro, bem quentinho.
A outra abanou a cabeça.
- Vou lá atrás e, quando voltar, espero que você esteja falando nossa língua de novo.
Selena se pôs a limpar o balcão com um pano de prato limpinho e quente. Sorriu
consigo mesma, ouvindo o grupo de mulheres conversando e rindo. Pelo jeito, era um
encontro de colegas de escola. Naquele instante, a porta da confeitaria se abriu e entrou uma
moça pequena, vestida com elegância. As outras soltaram gritinhos de alegria e várias se
Observando-as, a garota começou a pensar em como era bom ter amigos, diversos tipos
de amigos. Estava tão satisfeita de ter tido aquela conversa com Amy. Era ótimo também que
agora ela e Vicki estivessem aprofundando seu relacionamento. E Ronny também era um bom
amigo, o melhor que ela poderia ter. Além disso, apreciava muito a amizade que tinha com
Cris e as outras colegas dela. Todas a tratavam muito bem e não a depreciavam pelo fato de
ser mais nova que elas. Ademais, tinha ainda muitos amigos em Pineville, a cidade onde
morara. É verdade que não se mantivera em contato com eles, como deveria ter feito.
Entretanto sabia que, se voltasse lá, eles ficariam alegres de revê-la. Era bem provável que
E agora, Paul. Como deveria ver o Paul? Como um amigo? Um bom amigo? Mais que
amigo? E o mais estranho era que aquilo não lhe importava muito. Nesse momento, não. Por
agora, seu relacionamento era apenas uma simples correspondência. Nada mais, nada menos.
Estava trocando cartas amistosas e bastante interessantes com um rapaz maravilhoso. Era só o
Jody voltou com um tabuleiro cheio de pães de canela fresquinhos, assados na hora.
Selena respirou fundo para sentir o delicioso cheiro.
Vez por outra, ela tinha a sensação de que não agüentaria comer um daqueles pãezinhos,
pois estava enfarada do cheiro deles. Contudo, hoje, a idéia lhe pareceu agradável.
- Uns amigos meus vão dar uma passadinha aqui, disse para a colega. Você se
- De modo nenhum, desde que você não comece a dar pãezinhos de graça pra todo
mundo.
- É, vi.
Jody trocou o coador de papel da máquina. Em seguida, apontou para o bule de líquido
fumegante e disse:
- Quer arranjar mais leite para nós? O que estava aqui acabou.
Selena saiu para pegar outra leiteirinha. Nesse instante a porta se abriu, e Ronny e Vicki
entraram na confeitaria. A garota virou-se e, ao vê-los, ficou toda empolgada. Estava ansiosa
- Oi, Johnny! gritou para ele, trocando o nome dele em tom de brincadeira.
Uma das mulheres, que estava sentada à mesa, ouviu-a chamá-lo e disse em voz alta:
brincadeira na esportiva.
- Querem comer algo? indagou Selena para os amigos. Vou já me sentar com vocês.
amalucada!
Em seguida, voltou ao balcão. Jody já servira um pãozinho de canela para Ronny e uma
xícara de chá de maçã para Vicki. Os dois foram se sentar a uma mesa próxima da porta.
- Gente, tenho um intervalo de quinze minutos para o lanche, explicou, dando uma
dentada no pãozinho e limpando a calda de açúcar que lhe escorria no canto da boca. Então
- É, eles conversaram comigo, mas não me deram uma resposta definitiva. Disseram
que, por causa de minha carta, decidiram estudar melhor o modo como vão resolver os
problemas na escola. Falaram que, como encarei a questão de maneira tão madura, iriam
Selena olhou para Vicki, que fez um aceno de cabeça como quem diz que também está
espantada. A garota sabia como Ronny ficava aborrecido quando seus pais deixavam uma
decisão qualquer por conta dele. Agora a junta diretora fazia o mesmo. O colega devia estar se
sentindo agoniado.
Parecia que tinham conquistado uma grande vitória. Eles estão garantindo que o Ronny não
- Mas você ainda não sabe se é isso mesmo que quer, afirmou Selena, olhando para o
- Tenho de analisar bem minhas razões pra deixar o cabelo comprido, explicou ele.
Disse a eles que o motivo era que eu queria me sentir ajustado em meu grupo social e ser
aceito pela banda. Mas sabe o que mais? Pensando bem, nenhum dos caras da banda está se
importando muito com isso. Entre os músicos, ninguém quer nem saber se meu cabelo é
curto, comprido ou se eu rapei a cabeça. Só o pessoal da junta é que está se preocupando com
isso. Acho que, na realidade, não tenho uma razão muito forte para deixá-lo assim, não.
- Mas Ronny, interpôs Vicki, eles lhe deram liberdade para fazer o que quiser! Não
entendo por que você simplesmente não deixa o cabelo crescer e fica feliz de eles terem
- Esse é que é o problema, replicou o rapaz. Não sei se tenho mesmo uma posição.
- Então agora é um bom momento pra definir isso, diss Selena, dando uma espiada no
relógio.
Sentiu uma leve irritação ao constatar que seu intervalo já estava pela metade.
- Será, continuou ela, que não dá pra simplesmente esquecer tudo e acabar com essa
confusão?
- Não sei.
no lugar dele, disse. Eles argumentam que ele conseguiu dobrar a diretoria e agir da maneira
que os alunos querem, isto é, deixando os estudantes tomarem as decisões.
- Não quero por nenhum tropeço pra ninguém por causa disso tudo, explicou o rapaz. É
o que diz aquele versículo de Romanos que mencionei pra você, Selena. O Shawn falou sobre
Ela estava se sentindo muito frustrada pelo fato de não estar por dentro do tal versículo;
e mais chateada ainda por ver que só faltavam três minutos para se encerrar seu horário do
“café”.
- Diz mais ou menos que devemos viver em paz com todos, explicou Ronny. Vou fazer
aquilo que for contribuir pra que haja paz na escola, e não divisão.
Ronny ergueu os olhos para fitá-la e fez um movimento rápido com as sobrancelhas,
demonstrando dúvida.
- Porque vou orar por você, respondeu a garota, sorrindo para o amigo como que o
abençoando.
Capítulo Dezoito
Na quinta-feira à noite, Selena orou muito por Ronny. Além disso, estudou por um bom
tempo. Quando examinava a matéria para a prova de literatura que haveria no dia seguinte,
viu um texto sobre Emily Dickinson. Leu-o avidamente, querendo saber mais sobre essa
mulher que havia escrito um poema sobre os “Alpes imortais” e falara sobre “espiar pela
cidade natal. Em meados do século XIX, houve um grande avivamento na cidade, e toda a sua
família aderiu a ele, menos Emily. Quando estava com quase trinta anos, parou de ir à igreja.
Emily tinha poucos amigos e passava a maior parte do tempo sozinha, no solar da família.
Selena ergueu os olhos do livro, sentindo uma profunda tristeza. Pelo que Emily dizia
em algumas de suas poesias, ela tinha um grande respeito por Deus. Num de seus poemas,
falara como ele cuida dos pardais e os alimenta. Em outro, referiu-se a Cristo como “Senhor”,
Por que motivo, então, teria ela parado de ir a igreja? O que será que havia acontecido?
Como seriam seus amigos? Será que a haviam condenado? Ou a tinham amado?
Nesse momento, Selena tomou a firme decisão de que continuaria amiga de Amy, não
importava o que acontecesse. Jamais deixaria sua amizade esfriar, como se ela não lhe fosse
importante. Pensou ainda no relacionamento com Paul. Será que também continuaria amiga
dele, qualquer que fosse sua situação? Esperava que sim. Sua amizade com Ronny era assim.
Bíblia e abriu em Romanos 13. Queria terminar esse capítulo e chegar ao 14, onde, dissera
Ronny, estava o versículo que falava sobre esforçar-se para ter paz com todos.
E afinal demorou um pouco para concluir o 13. Esse capítulo falava sobre termos a
atitude correta para com as autoridades. Parecia aplicar-se perfeitamente aos acontecimentos
da semana interior na escola. E se encaixava bem na situação porque seu colega tomara
umaposição acertada, dizendo à junta diretora da escola que acataria a decisão deles, fosse ela
qual fosse.
Assim que leu o 14, entendeu por que Ronny estava tendo dificuldade para tomar uma
decisão. O apóstolo Paulo deixava bem claro que nem sempre a solução melhor é aquilo que
julgamos acertado. A grande prova do amor que Deus ordena que tenhamos uns para com os
outros implica ter consideração para com as fraquezas de nosso próximo. Temos de levar em
conta aquilo que pode ser uma dificuldade para ele, em sua vida cristã.
Selena estava lendo com tanto interesse que terminou o 14 e passou ao 15. Chegando
aos versículos 5 e 6, pegou uma caneta e sublinhou-os. Leu-os em voz alta, riscando-os com
uma régua.
“Ora, o Deus da paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir de uns para com
os outros, segundo Cristo Jesus, para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao Deus e
Embora já fosse quase 1l:00h da noite, saltou da cama e foi pé ante pé ao corredor, onde
pegou o telefone. Levou-o para o quarto e, enfiando os pés frios debaixo das cobertas, discou
- Entendeu essa questão de ter “o mesmo sentir de uns para com os outros”? indagou a
garota. É disso que estamos precisando na escola, e não de uma revolução. Precisamos nos
unir e falar “a uma voz”. Só assim daremos testemunho de Cristo para nossa comunidade.
Ela leu. Pelo telefone, ouvia o barulho que o rapaz fazia passando as páginas.
Selena, disse ele, falando pausadamente, você tem razão. Você está mil por cento certa.
- Quero que, na hora do culto dos alunos, você leia esse texto.
- O quê?
- O Prof. Alfred pediu que eu desse uma palavra amanhã no culto, e aceitei, já que esse
meu problema teve muita repercussão. Mas acho que vou chegar atrasado.
- Como assim?
- Amanhã lhe explico. Faz um favor pra mim. Assim que você chegar à escola amanhã,
diga ao Prof. Alfred que eu lhe pedi pra falar em meu lugar, tá? Vou chegar assim que puder.
Ronny, que era sempre tão cordato e vivia dizendo: “Como queira!”, “Tudo bem!”, “
‘Cê que sabe!”, de repente se mostrava todo animado. Selena estava admirada de ver o quanto
- Será que pode me dar mais alguma informação pra me orientar? indagou.
- Amanhã você vai compreender tudo, respondeu ele. É só confiar em mim. Selena,
você é sensacional. Não imagina como estou alegre de ter me ligado! Fico lhe devendo essa.
- Isso significa que vai pagar um jantar no Tony Roma’s pra mim e pra Vicki?
O rapaz riu.
- ‘Tá bom! Pago, sim. A gente se vê na escola, disse ele, desligando em seguida, sem
dar “tchau”.
Selena ficou segurando o fone, olhando para ele, como se o aparelho a tivesse insultado.
- O que será que significa tudo isso? perguntou para o telefone mudo.
No dia seguinte, antes de sair para a aula, Selena tentou ligar para o colega novamente.
A mãe dele atendeu e disse que o filho já havia saído. E antes que a garota desligasse, ela
acrescentou:
- Oh, Selena, muito obrigada pela ajuda que você tem dado ao Ronny. Ele disse que,
ontem à noite, citou um versículo que esclareceu tudo. Você não faz idéia de como temos
- Acho que o Ronny prefere que deixemos que ele mesmo conte.
A garota foi para a escola o mais depressa que podia. Viu vários alunos parados perto
por haver derrubado as normas do PC. Uma garota segurava diversos balões cheios. Selena
lembrou-se de que, no primeiro dia de aula, essa moça aparecera com um piercing na
sobrancelha direita. No segundo dia, ela viera com dois brinquinhos nela. A conversa geral
era que a junta diretora a tinha mandado embora para casa. Depois disso, Selena não a vira
mais com os brincos. Hoje ela voltara a usar os dois. Agora estava ali toda empolgada, na
Selena teve vontade de aproximar-se do escaninho e dizer aos colegas que o rapaz só
viria mais tarde, mas resistiu ao impulso. Era provável que eles a enchessem de perguntas que
Ela apressou-se a ir para o salão, para pegar um lugar bem na frente. Já conversara com o
Prof. Alfred, e tudo estava combinado. Vicki veio sentar-se perto dela. O diretor iníciou a
reunião pedindo que os alunos se levantassem para efetuarem a saudação à bandeira. Todos
ficaram surpresos, pois ali não havia esse costume. Em seguida, ele orientou a que
continuassem de pé, pois iriam fazer a leitura da Bíblia e orar. A professora de Inglês do
primeiro ano leu um trecho do Salmo 8, e em seguida o professor de Educação Física orou,
Foi muito agradável ver os mestres participando do culto e se interessando pela vida espiritual
dos estudantes. Selena pensou que seria bom se o Ronny estivesse ali, para ver como as
A seguir, o diretor fez alguns avisos de ordem geral e chamou ao pulpito um dos
membros da junta diretora que se achava presente. Era um senhor idoso, vestido com um
terno elegante.
- Como muitos de vocês sabem, principiou ele, esta semana, um aluno do Royal
escreveu uma carta para a junta diretora. Aliás, essa carta causou um bocado de discussão, o
que, diga-se de passagem, foi muito bom. A junta decidiu abrir uma exceção e dar permissão
ao aluno Ronny Jenkins para usar cabelo comprido, por causa do ministério dele. Quero
avisar ainda que não alteramos nenhuma outra norma do regimento nem faremos a mesma
começaram a expressar o que cada um julgava mais certo. Era como se no salão houvesse
uma pequena bola de fogo. Ela se sentia incomodada, sem saber o que poderia acontecer em
seguida.
- Estou sabendo que uma estudante vai dizer umas palavras também, continuou o
homem, consultando um papel que tinha na mão. Srta. Selena Jensen, por favor, venha à
frente.
Vicki inclinou-se para Selena e deu um leve aperto no braço dela. A garota pegou a
Bíblia, sentindo as mãos molhadas de suor. Assim que chegou à plataforma, um estudante
gritou:
O homem voltou ao microfone e pediu ordem aos alunos. Depois fez um aceno para a
garota para que se aproximasse. Ela abriu a Bíblia em Romanos 15, engoliu em seco e depois
- Ronny pediu que eu lesse pra vocês esses versículos aqui. É Romanos 15.5,6. “Ora, o
Deus da paciência e da consolação vos conceda o mesmo sentir de uns para com os outros,
segundo Cristo Jesus, para que concordemente e a uma voz glorifiqueis ao Deus e Pai de
A garota fitou o mar de rostos que a contemplavam. Estava diante do microfone e sentiu
que devia explicar por que achava que seria uma ótima idéia ler esse texto para os colegas.
- Gente, temos de ser unidos. A única maneira como vamos demonstrar para nossa
coração e falando todos “a uma voz”. Não podemos ficar divididos em questões que, na
Mal ela acabou de dizer as últimas palavras, Tyler se levantou. Parecia que ele iria dizer
ou fazer algo, mas antes mesmo que começasse, a porta de trás se abriu e entrou um homem.
Estava com um boné do tipo usado pelos jogadores de beisebol. Selena achou que não deveria
ser ninguém da escola, pois o regulamento dizia que os alunos não poderiam usar nenhum
tipo de chapéu nas dependências da instituição. Aliás, era uma norma que muitos
contestavam.
quando ele chegou perto de Selena foi que esta o reconheceu: era Ronny. Tinha na cabeça um
Assim que o corpo estudantil o reconheceu, começou a aplaudi-lo. Parecia que ele até
marcara um “gol”, a favor do “time” dos rebeldes. Além de derrubar o regulamento sobre o
Selena fitou o colega sem entendê-lo. O diretor subiu ao palco em passos apressados e
dirigiu-se para o microfone. O rapaz virou-se para a garota e, dando um daqueles seus sorrisos
característicos, disse:
- Preste atenção!
Em seguida, falou:
O diretor aproximou-se e se postou ao lado dele no púlpito. Selena deu um passo para
trás. A seguir, porém, percebeu que não precisava mais ficar ali. Então desceu a escadinha e
- O que é que ele vai fazer? indagou a amiga. Por que está com aquele boné?
Começou a achar que o colega iria fazer alguma loucura, que iria levar seu novo fã-
- Não faça isso, Ronny, sussurrou ela baixinho. Não faça nada do que depois se
Selena leu aqueles versículos pra vocês? indagou ele, aproximando-se demais do
olhando para o aluno com uma expressão de “agente secreto”. Todos os olhos estavam fixos
- Pessoal, quero dizer a vocês que, na minha opinião, a lição mais importante que
podemos aprender neste ano é atuar unidos. Como diz aquele texto, precisamos ter o mesmo
sentir, com um espírito de unidade. Na carta que escrevi para a junta, disse que estava
deixando o cabelo crescer pra poder me ajustar melhor à comunidade musical de Portland,
onde minha banda se apresenta. Ali é o meu campo missionário. Entretanto a verdade é que
Selena apertou os lábios um contra o outro e continuou atenta. Não havia dúvida de que
- Este é meu último ano, continuou ele. Vou passar apenas mais um ano no Royal. Na
verdade, mais nove meses. Quero agradecer ao Prof. Alfred e à junta diretora por terem me
dado liberdade de tomar a decisão a respeito de meu cabelo. O que decidi foi isto.
E com essas palavras, ele arrancou o bone da cabeça, e ficou ali parado. O auditório
Selena deixou cair o queixo de espanto. Ronny cortara o cabelo, bem curto. Não fizera
propriamente um corte total, do tipo militar, mas estava bem curto. De alguma forma, ele
- Quando eu for tocar com minha banda, vou colocar isto, explicou o rapaz, acenando o
boné bem no alto. Contudo, nos próximos meses, até o final do ano letivo, vou seguir o
E aqui, ele se inclinou para diante e passou a mão esquerda no alto da cabeça,
remexendo no cabelo.
- O que quero dizer a todos é que devemos ter unidade. Será assim que os outros vão
saber que somos crentes em Jesus. E pela maneira como agimos que eles vão nos reconhecer,
Houve uma pausa. Todos estavam em silêncio, parecendo meditar nas afirmações e
Selena se levantou e se pôs a aplaudi-lo. Não estava preocupada com o fato de que
talvez ninguém a seguisse. A gente tem de dar uma força para os amigos, e naquele instante
queria que todo mundo soubesse que ela dava total apoio ao colega.
Minutos depois, Vicki a imitou. Em seguida, os outros que ostavam na mesma fileira
também o fizeram. Nem todos os estudantes se ergueram. Selena notou que Tyler foi um
desses. Num determinado ponto do salão, alguns rapazes haviam se aproximado uns dos
outros e estavam murmurando algo. Parecia que debochavam de Ronny, por seu gesto
dramático.
O Prof. Alfred chegou ao microfone. Em seu rosto, estampava-se uma expressão de
alívio.
- Obrigado, Ronny, disse ele. Você e um ótimo exemplo de um jovem que possui
maturidade cristã.
Após as aulas, Selena iria escutar essa frase novamente. Só que, dessa vez, era dita em
tom sarcástico por uma garota que se achava perto do escaninho do Ronny.
- Olha ali o ótimo exemplo de um jovem com maturidade cristã! disse ela para uma
colega ao lado.
- Puxa, Ronny, a gente estava contando com você... comentou a outra. Você nos deixou
na mão.
Selena teve vontade de olhar para elas de cara feia e ir embora. Contudo viu que Ronny
se aproximara delas e se pusera a falar-lhes, enfrentando de peito aberto seus ataques verbais.
Selena achou que, se chegasse perto dos três agora, poderia dar a impressão de estar
bisbilhotando. Então dirigiu-se ao seu escaninho e tentou pensar quais os livros que precisaria
levar para casa, para estudar no final de semana. Afinal, pegou-os e fechou a portinhola.
À hora do almoço, havia combinado com Ronny e Vicki que eles se encontrariam em
sua casa às 5:30h para irem jantar. Depois, iriam assistir a um jogo de futebol americano.
Portanto não tinha mais necessidade de falar nada com o colega. Ao que parecia, ele queria
Selena deu mais uma espiada para ele e em seguida foi descendo corredor abaixo, em
direção ao estacionamento. Contudo algo a estava incomodando. Era o versículo, na parte que
falava sobre ter o mesmo sentimento, ter unidade uns com os outros. Reconheceu que não
Respirou fundo para ganhar coragem e fez uma breve oração. A seguir, virou-se e
voltou ao lugar onde estavam Rouny e as garotas. Aproximou-se do grupo sorrindo.
- Você tem razão, dizia uma das meninas para o rapaz. Entendo perfeitamente o que está
dizendo, mas o ser humano não é assim. Não podemos sair dizendo a todo mundo que temos
- Eu não sei o nome de vocês, replicou a garota, procurando dar um tom de sinceridade
às palavras.
As duas eram novatas na escola nesse ano, e Selena não lhes dera muita atenção.
- Meu nome e Sarah, disse uma delas, a que parecia mais calada. E ela é Jennifer.
As meninas se entreolharam.
- Nós vamos, interveio Ronny. Se vocês quiserem sentar conosco, a gente pode se
- É, disse ela, não d´s pra ficar com raiva de um cara que está sendo tão legal com a
gente!
- Acha que o pessoal entendeu tudo o que disse? Será que alguns concordam com você?
- A maioria concorda.
Selena entrou no carro e foi para casa pensando em como tinha sido fácil conversar com
Sarah e Jennifer, depois que Ronny já havia iniciado o papo com elas. Algum tempo atrás,
nunca teria imaginado que iria se tornar amiga da Vicki. Com isso, compreendeu que, se
começasse a tomar a iniciativa de travar amizade com outras colegas, esse ano escolar poderia
ser o melhor da sua vida. E seria maravilhoso, como dissera Ronny, se o último ano de
estudos fosse marcado por um senso de unidade na escola, onde todos os alunos atuassem
com um só sentimento. Era possível que nem todos quisessem se esforçar nesse sentido.
Contudo sabia que ela queria. E devia. Não havia nenhum empecilho para ela fazer tudo que
Quando entrou na rampa da garagem, viu o pai sentado no balanço da varanda, tendo
Vó May ao lado dele. Sobre o colo dela, estava estendida uma colcha de retalhos, para
protegê-la da friagem. Era uma tarde fresca e agradável. No céu, havia hum fina camada de
nuvens. Seus irmãos, Kevin e Dilton, estavam sentados no chão da varanda, sobre um tapete
velho, brincando com um joguinho. Brutus, o cão da família, que, ao que parecia, pensava
fazer parte dela, achava-se amarrado a uma pilastra, por uma corda longa. Quando ele avistou
- Quieto, Brutus! disse a garota, passando a mão atrás das orelhas dele e coçando-lhe o
- Cadê mamãe?
- Ela tirou a tarde de folga, explicou Kevin. Vamos pedir pizza para jantar.
- Ela foi fazer umas compras, completou o pai, dando mais detalhes além da explicação
de Kevin.
Selena tinha ouvido os pais fazerem um acordo. Eles haviam combinado que uma vez
por semana o pai voltaria do trabalho na hora do almoço. Assim a mãe teria a tarde livre para
fazer o que quisesse ou precisasse, sem se preocupar com Vó May. Isso significava que o pai
teria de trazer serviço para casa ou então trabalhar no sábado de manhã. Contudo ele afirmou
- Pai, o senhor me pediu para lembrá-lo de verificar o óleo do meu carro neste final de
- E hoje à noite, vou jantar com Ronny e Vicki, e depois vamos ao jogo. Acho que até
- Se você perceber que vai passar dessa hora, dá uma ligada pra cá, disse o pai. Sabe que
Inclinou-se para a avó e deu um aperto de leve na mão dela. Estava aquecida.
- Passou bem o dia, vó? perguntou.
A senhora sorriu para a neta, dando a impressão de não saber quem era ela nem
- Gosto muito da senhora, vó, disse a garota, dando um beijinho no dorso da mão
enrugada.
- Bom, vou me aprontar pra sair, comentou Selena. Espero que não chova.
- Pelo que diz a meteorologia, não deve chover, não, interpôs o pai. A previsão do
A garota deu um passo por cima das pernas de Kevin e abriu a porta. Assim que entrou,
o telefone tocou. Tirou a mochila das costas e pegou o aparelho sem fio, na cozinha. Era
Tânia. As duas ficaram a conversar como velhas amigas durante dez minutos. Selena contou a
irmã acerca da decisão importante que Ronny tomara. A outra falou-lhe sobre a série de fotos
- Não aguento mais ouvir música country, disse a jovem. Tocam o dia inteiro. Já estou
A garota estava sentada ao balcão da cozinha, mas resolveu ir com o telefone para o
escritório e ligar o computador. Queria verificar se havia chegado algum e-mail para ela.
- A questão é que eles pagam muito bem, e estou satisfeita por ter arranjado esse
trabalho.
- Não, respondeu afinal, mas tudo bem. É verdade que não desisti, não. Entretanto o
importante para mim é que eu lhe disse o que pretendia, isto é, queria agradecer a ela. Se eu
fosse um pouco menos egoísta, não iria querer que ela me respondesse. Mas não sou. E talvez
- Acredito que deve ter sido um choque muito grande pra ela, comentou Selena, ligando
o computador. Dê algum tempo. Talvez ela precise de umas semanas ou meses pra pensar
- É, eu sei, replicou Tânia. Também já pensei nisso. Já analisei essa questão de todos os
família.
- Está com saudade de nós, né? falou a garota sorrindo, lembrando que suas perguntas
Tânia riu. Era um riso de quem quer disfarçar uma emoção. Por fim, respondeu:
- ‘Tá bom! É, estou com saudade, sim! Pronto. Agora você já sabe. Está admirada?
- Não, replicou Selena. Nós também estamos com saudade, Eu estou com saudade de
você.
Após a confissão, as duas ficaram em silêncio por uns instantes, como que se sentindo
- Bom, acho melhor desligar, senão vou gastar todo o dinheiro das fotos na conta de
telefone.
- Dê um abraço no Jeremy.
- Darei. Ele vai vir aqui agora à noite para irmos jantar fora. E hoje sou eu que vou
pagar, já que estou “mais rica” que ele. Vamos a uma churrascaria.
A garota desligou tudo e ia sair do escritório, quando resolveu sentar-se na sua poltrona
predileta. Parecia o lugar mais adequado para se entregar a uma crise de autopiedade. Nesse
momento, notou uma foto no assento. Pegou-a. Era um cartão postal. Retratava um majestoso
castelo europeu, construido no alto de um morro, fotografado ao amanhecer. O céu, por trás
da grande construção cinzenta, apresentava-se de uma cor azul-clara, com raios rosados.
Quem teria mandado um cartão desses para seu pai? Virou-o e viu seu nome escrito em
Selena,
Esse é o nosso famoso Castelo de Edimburgo. Espero que um dia você possa vir aqui
para vê-lo. No final de semana, vou lhe escrever uma carta maior, mas quis mandar este
postal para agradecer pela sua cartinha. Ela me fez dar boas risadas. Olhe, acho que não
devemos nos corresponder por e-mail. Mandar carta, apesar de meio antiquado, fortalece
mais o relacionamento e tem um sentido mais permanente. Alias, até gosto de ficar esperando
sua correspondência.
Nós temos muito tempo pela frente, Selena. Vamos curtir esse ritmo mais lento.
Paul
Selena sorriu, virando o postal para dar mais uma espiada na romântica foto do castelo.
Em seguida, leu a mensagem novamente. Muito boa. Não tinha nada de emocional demais
nem era fria. Ele estivera pensando nela. Disse que depois escreveria mais. E afirmara que
tinham muito tempo pela frente. Gostou. Paul tinha razão. Corresponder-se por e-mail era
Abriu os olhos e deu uma espiada à sua volta. Como aquele cartão viera parar ali na
poltrona? Dava para deduzir. Seu pai, que conhecia bem o coração da filha, fora quem
recolhera a correspondência nessa tarde. Ele devia saber que ela iria se sentar ali, na sua
Levantou-se e subiu para o quarto, para se arrumar para sair. Enfiou o cartão debaixo do
travesseiro. Essa era a maneira certa de sonhar com um castelo. E era assim que devia
Vicki iria chegar a qualquer momento. Essa noite, ela queria passar uns momentos
agradáveis com seus amigos que se achavam perto e pertenciam ao seu presente. E o melhor
de tudo era que quem iria pagar a conta era seu velho amigo Ronny, o “cabelinho espetado”.
Fim