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Um Novo Começo
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Série Selena 1
Um Novo Começo
Para meus amigos escritores, que também atuam no campo da ficção juvenil:
São eles: Lissa Halls Johnson, cujos livros, há cerca de dez anos, me
inspiram a escrever para adolescentes;
Lee Roddy, que teve a gentileza de ler os poemas que escrevi aos 19 anos;
Marian Handrick Bray, que é sempre uma amável anfitriã;
E Bill Myers que, com seu viver, está sempre demosntrando qual é a reazão
pela qual escrevemos.
“O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para salvar-te.”
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Capítulo Um
Selena Jensen olhou pela janela do trem e ficou a contemplar por uns instantes a
paisagem campestre do interior da Inglaterra. Fazia frio e chovia. Daí a uma hora ela e seus
companheiros estariam de volta ao castelo de Carnforth Hall. Ali se encontrariam com outros
jovens que, como eles, haviam passado a semana anterior ministrando o evangelho em
diversoso países da Europa. Cruzou as pernas e enfiou as mãos juntas no meio delas, na
tentativa de aquecer os dedos gelados. Pela janela, via pastos imensos, que se perdiam de
- Em que está pensando? indagou sua colega Katie, sentada ao seu lado.
Katie, que estiverra toda encolhida na poltrona, remexeu-se e se virou para fitá-la,
fazendo “dançar” o cabelo acobreado e muito liso. Embora fosse dois anos mais velha que
Selena, e as duas tivessem se conhecido apenas quinze dias antes, já haviam se tonado boas
Seus longos brincos tilintaram quando ela se virou para a outra. Selena deu um sorriso
largo e tranqüilo, mas não olhava para Katie. Seus olhos se fixavam em outro ponto - na
poltrona do outro lado do corredor. Nela se achavam Douglas, o líder da equipe evangelística,
Viu Douglas passando o braço sobre o encosto da poltrona e Trícia chegando para mais
perto dele.
namorado.
- Seria ótimo se nosso grupo pudesse trabalhar junto outra vez, numa outra viagem
dessas.
- Por que você disse "eu também"? indagou Katie. É claro que você estaria em nossa
equipe de evangelismo.
Katie desviou o olhar para ver o que atraía a atenção de Selena. Em seguida, inclinou-se
- Ué! exclamou Selena em voz sussurrada. Pensei que você, Douglas, Trícia e Cris
fossem amigos há muitos anos. Por que disse que lhe dá enjôo ver os dois juntos assim?
- É verdade que somos amigos. Mas é que... bom, olhe só para eles. Parecem tão
apaixonados!
Deu outra olhada para o casalzinho, que conversava em voz baixa, fitando um ao outro
- Não consigo me imaginar numa situação como a deles, com um rapaz me olhando
- Ah, pare com isso! exclamou Katie, afastando-se dela e dando-lhe uma olhada de alto
a baixo. Você nunca se olhou no espelho, não? Primeiro, seu cabelo é maravilhoso,
- É, interveio Selena, puxando uma mecha do longo cabelo, mas você ainda não
- Ah, é, mas só esta semana. Espere mais alguns dias. Todo mundo vai começar a fazer
permanente para ficar com o cabelo igual ao seu. E caso você ainda não saiba, seu sorriso é
digno de um prêmio. E esses seus olhos azul-acinzentados - que todo mundo acha lindos - que
mudam de tonalidade de acordo com o tempo! Além de tudo, ainda tem algumas sardas. Isso
é ótimo! Suas roupas são maravilhosas, muito originais, e você não pode reclamar do seu
corpo.
americano.
- As duas são lindas! disse Stephen, um rapaz alemão que fazia parte do grupo.
Estava sentado no banco que ficava de frente para elas e parecera estar dormindo.
Selena sentiu o rosto avermelhar-se ao se dar conta de que ele ouvira o que diziam. Era o mais
velho da equipe e usava uma barba que lhe dava uma aparência de mais adulto.
- Por que será que vocês, garotas, gostam tanto de criticar a si mesmas, umas para as
outras? indagou Stephen, inclinando-se para elas e assumindo um tom de conselheiro. Ambas
têm uma aparência maravilhosa e são belíssimas interiormente, continuou ele, apontando para
- Então por que não tem uma porção de rapazes caídos nossos pés? indagou Katie.
Numa atitude que não era típica dele, Stephen se jogou no chão e ficou aos pés delas.
- Ah, sai pra lá! gritou Katie. Você está levando na brincadeira, e eu não estou
brincando.
- Está bem, continuou a moça. Você, que é homem, de que é que mais gosta numa
garota?
Stephen deu uma olhada rápida para Trícia e logo em seguida virou-se para Selena e
Katie.
Entretanto já era tarde. Pelo gesto dele, elas entenderam qual seria a resposta.
- Eu já sabia! exclamou Katie, erguendo as mãos. Não precisa dizer nada. Todos os
homens são iguais. Dizem que o mais importante é a personalidade da moça e como ela é por
dentro. Mas o fato é que todos preferem garotas como Trícia - meigas bonitinhas,
"prestativas". Confesse! Neste mundo não há muita esperança para meninas mais
um dia aparecerá um rapaz – o cara certo - que vai achá-las maravilhosas. E só esperar em
Deus.
- É; eu sei, eu sei, disse Katie. Mas enquanto ele não aparece, vamos ficando aqui, em
Selena se lembrou de que, antes de partirem para o trabalho evangelístico, ela e Katie
haviam conversado sobre o Clube Apenas Amigos. Então ergueu a mão para Katie, batendo na
- Isso mesmo! replicou Katie. Perdemos a Trícia, mas ainda somos três: eu, você e a
Cris.
- Vocês não precisam ter nenhum clube, não, interveio Stephen. Talvez precisem é
As duas não acharam a menor graça no que ele dissera e lhe responderam com
resmungos e olhares de raiva. O rapaz cruzou os braços, fechou os olhos e fez de conta que ia
- Vamos lá, disse Katie para a amiga. Vamos tomar alguma coisa.
Levantou-se e foi andando pelo corredor do vagão. Selena segui-a. Atravessaram a porta
de saída e se dirigiram para a pequena lanchonete que ficava no carro contíguo. Compraram
- Esses caras do tipo do Stephen me irritam, disse Katie. Primeiro, são muito educados e
fazem milhares de elogios. Depois soltam umas piadinhas idiotas. Assim a gente nunca sabe
- Eu acho que ele falou sério, respondeu Selena, mudando o peso do corpo de um pé
para o outro.
Estava calçada com suas autênticas botas de cowboy, de que tanto gostava. Aliás,
estivera usando-as durante quase todo o tempo da viagem. Na verdade, elas tinham sido do
pai dela. Selena as encontrara num canto da garagem de sua casa, no ano anterior, quando
estava procurando objetos para fazerem um "bazar" caseiro*. Sua mãe logo pensara em
vendê-las.
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*No original, garage sale, literalmente "venda em garagem". É comum nos Estados Unidos, as pessoas
venderem seus objetos usados (como roupas, peças de mobiliário, livros, revistas, etc) que ainda se encontram
em bom estado de conservação, realizando um bazar na garagem da própria casa, geralmente em finais de
"Puxa!" exclamara ela. "Essas botinas ainda estão por aqui. Harold estava calçado com
Foi então que Selena achou que não poderiam mesmo desfazer-se delas. Resolveu
experimentá-las e, para sua surpresa, elas lhe serviram. A partir daquele dia, passou a usá-las
- Estou ansiosa para nos encontrarmos com as outras equipes para sabermos como foi o
trabalho delas.
- É, concordou Katie. Não vejo a hora de conversar com a Cris para perguntar como foi
a semana na Espanha.
- Pois é. E eu ainda não aceitei o jeito como eles tiraram a Cris do nosso grupo, no
último minuto, e a mandaram para Espanha. E a turma da Espanha já tinha até ido embora,
comentou Selena. Acho que não conseguiria fazer o que ela fez - viajar sozinha durante dois
- É como eu disse, interveio Katie, assumindo uma pose de mulher forte. Cris é a
própria "missionária".
Selena riu.
- Justamente quando eu estava começando a fazer amizade com ela, eles a mandaram
para lá, sem mais nem menos. E a saída da Cris deve ter sido ainda mais difícil para você, já
- Tenho certeza de que isso foi coisa de Deus, comentou Katie, bebendo o último gole
de sua Coca.
Em seguida olhou para a lixeira e atirou nela a latinha vazia, como quem joga basquete.
Acertou em cheio e levantou a mão, mostrando dois dedos, indicando uma cesta de dois
pontos.
Selena engoliu o resto do seu refrigerante e também jogou a lata na lixeira. Contudo a
o trabalho com as crianças, atuado no grupo teatral e testemunhado de Jesus nas ruas da
cidade. Haviam também orado com alguns adolescentes que decidiram consagrar a vida a
Cristo. Além disso, ainda fizeram visitas a algumas velhinhas da igreja, que lhes serviram chá
com bolo. A experiência fora muito marcante para ela. Estava satisfeita por Katie ter ficado ao
- Sabe? principiou Katie, quando as duas voltavam para o lugar. Tenho certeza de que
Deus deve ter tido um bom motivo para afastar Cris de nossa equipe. E se não houve
nenhuma outra razão, pelo menos serviu para que eu a conhecesse melhor, Selena. Estou
- Eu também, replicou Selena. Estou até começando a ficar triste ao pensar que tudo
Espere aí! falou Katie. Ainda passaremos dois dias aqui iinrs de irmos embora!
Selena olhou para Douglas e viu Trícia afastando-se dele. O rapaz então reassumiu sua
condição de líder da equipe. Era uma ótima pessoa, o Douglas. Selena aprendera a admirá-lo
muito, principalmente depois de tudo que haviam passado durante o trabalho de evangelismo.
Dava para perceber que ele e Trícia iriam continuar trabalhando juntos no ministério cristão
haviam feito dezenas de vezes, nos diversos deslocamentos que realizaram. Uns ajudavam os
outros a pegar as malas e sacolas. Todos estavam bem familiarizados com a cena.
Selena procurou dissipar a nuvem de tristeza que a envolveu quando se lembrou de que
na próxima vez em que tomasse o trem seria para ir embora. Sentia um nó na garganta todas
as vezes em que pensava na volta para casa. E não conseguira se abrir e falar do fato nem com
Katie, nem com ninguém. Talvez ainda viesse a falar. Nas vezes em que mencionara a
situação, fizera-o com a atitude alegre e descontraída que lhe era característica. Ninguém
percebera que, bem lá no fundo, estava muito tensa, pois sabia que sua vida mudaria muito
para a cidadezinha da Califórnia, onde morara desde pequena. Estavam de mudança para
O trem parou e todo o grupo foi saindo lentamente. Saltaram na plataforma da estação e
se dirigiram para um pequeno estacionamento que havia em frente dela. Era de tardinha e caía
uma chuva fina. Um furgão os aguardava, estacionado numa das vagas. Cansados da viagem,
entraram no veículo com movimentos mecânicos, mais parecendo um bando de robôs. Esta-
Selena sentou-se num dos bancos do fundo, junto à janela. Ficou a remexer os dedos
dos pés, dentro da bota. Ainda passaria mais dois dias na Inglaterra. Seria mais um tempo para
pensar nas mudanças que iria experimentar. Não se sentia prepararada para enfrentar nenhuma
delas. Aquele nervosismo relacionad com a mudança a irritava. Sempre fora uma garota forte,
de espírito livre. A verdade, porém, é que os alicerces de sua vida familiar nunca haviam
Trícia entrou no furgão e veio sentar-se ao lado dela. Douglas acomodou-se no banco da
frente e deu um tapinha no ombro do motorista, agradecendo-lhe por ter vindo buscá-los.
- Estou ansiosa para ver a Cris, disse Trícia. Espero que tudo tenha corrido bem para
ela, na Espanha.
Selena sorriu e fez um aceno de cabeça, concordando. Sentia que gostava da colega -
era difícil não gostar dela. Todos a apreciavam. E obviamente estava feliz de ver que ela e
Douglas haviam se acertado nessa viagem. Mesmo assim, sentia-se meio "deixada de fora".
Talvez estivesse com inveja porque a colega conquistara um dos poucos rapazes legais que
O furgão seguiu serpeando pelas ruas estreitas do povoado e depois pegou a estradinha
que os levaria a Carnforth Hall. A paisagem ainda era a mesma de uma semana antes, quando
haviam partido. A exceção era que agora algumas florzinhas silvestres, de cor roxa, brotavam
aqui e ali na terra gelada. Selena pensou que se ainda houvesse no mundo outros rapazes
como Douglas, eles estavam longe de Pineville, sua cidade natal. E nenhum deles participava
- Se o Douglas tem algum irmão? disse a amiga, repetindo a pergunta. Por quê?
Logo avistaram uma jovem alta, de cabelo castanho-claro, perto do enorme portão de madeira
Selena olhou para Cris e viu-a fazer uma pose de mulher forte, flexionando os músculos
do braço direito. Em seu pulso havia algo que rebrilhou à luz da lâmpada da varanda.
Capítulo Dois
- Não pode ser! exclamou Trícia. Abra a porta, gente! pediu Katie.
Selena não entendia por que a amiga parecia tão agitada. Katie foi a primeira a sair do
carro. Correu para Cris e agarrou o braço dela. Olhou para o objeto que estava nele e em
seguida para a amiga. Depois soltou um grito. Trícia ergueu-se de um salto e disse:
- Douglas, é mesmo!
A essa altura, Douglas também já estava fora do furgão e corria para junto de Katie,
Trícia e Cris. Os quatro ficaram abraçados, todos juntos. Em seguida, o rapaz perguntou algo
a Cris e depois saiu correndo, debaixo da chuva, sem sombrinha, sem nada, em direção ao
castelo.
- Você tem alguma idéia do que está acontecendo? Indagou Selena para Stephen.
- Ei! gritou ela. Eu também sou americana e não estou toda agitada feito eles.
- É, ainda não.
Os dois desceram do veículo, sob a chuva fria, e se aproximaram dos outros jovens que
- Não consigo acreditar! dizia Katie. Estou abismada. É a maior coisa de Deus que já
Cris estendeu o braço e mostrou-lhe um bracelete em seu pulso. Era uma linda pulseira
de chapinha de ouro. Selena tocou de leve na jóia e viu que nela estavam gravadas as palavras
“Para Sempre”.
- Mais ou menos, explicou Cris. Quer dizer, ganhei, mas é uma longa história.
- Ainda não acredito! repetiu Katie, que parecia fora de si e a ponto de desmaiar.
- Estou tão contente por você, Cris! exclamou Trícia, pegando o braço dela e apertando-
o de leve.
- Vamos lá! respondeu Cris, erguendo mais a sombrinha para cobrir o máximo de gente
Os membros da equipe pegaram cada um a sua bagagem - agora bem molhada - e foram
andando pelo cascalho para entrar no castelo. Os rapazes se dirigiram para seu quarto. Não
dependuraram nos cabides da entrada. Em seguida, foram para a imensa sala de estar. Ali
havia uma grande lareira de pedra, onde o fogo já estava aceso. Felizmente não havia
ninguém nos sofás próximos dela. Katie foi a primeira a se jogar num deles.
à frente delas. Selena notou que o semblante de Cris estava diferente. Quando a conhecera,
quinze dias antes, a jovem vivia com a testa franzida, o queixo tenso. Agora parecia radiante.
Seus olhos brilhavam, refletindo o movimento das chamas. Seu rosto estava rosado, cálido.
- Estou doida pra saber o que está acontecendo, disse Selena. Você parece muito
- Selena, principiou Cris, esforçando-se para falar em tom sério, estou amando tanto que
me sinto tonta!
Trícia soltou uma risada alegre. Katie recostou-se no sofá e deu um gemido.
- Ainda não consigo acreditar que isso está acontecendo! Nosso "clubinho" está
- Não estou entendendo nada, ajuntou Selena. Você está apaixonada por um cara da
- Não, quero dizer, estou. Não, não, eu não o conheci há uma semana, não, explicou
Cris, meio confusa. Lembra-se daquele dia em que lhe falei sobre o Ted?
- O tal surfista louro, lindo, que foi ser missionário numa ilha longe daqui? indagou
Selena.
-Das quatro características que você mencionou, disse ele, errou uma. Ele não foi para
ilha nenhuma.
lágrimas. Selena sentia-se meio perdida, pois não estava entendendo nada. Cris se levantou
em seguida e abraçou Douglas meio de lado. Selena também se ergueu e foi para onde eles
estavam. Sentia-se estranha ao grupo. Por que aquele encontro deixara seus novos amigos tão
empolgados? Quem seria esse Ted, afinal? E o que havia de tão importante no fato de ele
Trícia soltou-se de Ted, e ele olhou para Selena. Ela também o fitou e quase perdeu o
fôlego. O rapaz tinha os olhos azuis mais maravilhosos que ela já vira. Contudo o que
chamava atenção não era só a beleza dos olhos, não. Havia algo especial no semblante dele.
Dava para perceber que Ted era diferente dos outros rapazes. Ele era daqueles jovens que dão
a impressão que Deus poderia realizar uma obra gloriosa por seu intermédio.
- Muito prazer em conhecê-la, disse ele. Cris me falou muito sobre você.
- E pelo que ouvimos, interveio Douglas, ela lhe falou sobre o Ted também.
Selena ficou ligeiramente constrangida ao perceber que os dois haviam escutado que ela
dissera que Ted era lindo. Nesse momento, ocorreu-lhe rapidamente que se Douglas não tinha
- Nós tínhamos pensado que o Ted fora para Papua Nova Guiné, explicou Trícia. Fazia
- Mas ele estava na Espanha, explicou Cris, com um tom de triunfo na voz. Foi ele que
me buscou na estação.
E Cris tinha lágrimas nos olhos ao contar o fato. Olhou para o namorado e sorriu.
- Não diga! exclamou Katie. E o buquê era de cravos brancos, até aposto; acertei?
- Era, replicou Ted. E você não imagina a dificuldade que tive para encontrar cravos em
pleno inverno. Tive de ir a um lugar que fica a duas horas de onde eu estava e depois voltar.
- Ele deu cravos brancos para ela na época em que se conheceram, explicou Katie. Uma
dúzia. E ela tinha... e aqui ela se virou para a amiga. Quantos anos você tinha, Cris, quatorze?
- Bom, continuou Katie, como se Selena fosse a única pessoa ali, Ted deu a ela uns
cravos brancos na época em que se conheceram, quatro anos atrás. E ela guardou as flores
numa lata vazia. Eles já estão secos, amarelados e com um cheiro horrível.
- Você os guardou mesmo? indagou Ted, passando o braço nos ombros dela e dando-lhe
um aperto de leve.
- Estive para jogá-los fora umas duas vezes, confessou ela, e acabei não jogando. Mas
eles não estão com cheiro horrível, não, cocluiu Cris, fazendo uma careta para Katie.
- Estão, sim, falou Katie, virando-se para Selena. Estão com cheiro de café mofado. Mas
isso não tem muita importância. A pulseira é que é importante. Sabe, no Natal, o Ted deu a
- Não, foi no ano-novo, três anos atrás, corrigiu Trícia, após uma festa que houve na
minha casa.
- E naquele ano, interveio Douglas, Ted só me deu um livro intitulado Cento e Doze
Os dois rapazes estavam com o braço no ombro de suas respectivas namoradas, mas
conseguiram bater a palma da mão um do outro, num gesto de "Toca aqui!", lembrando-se do
- Deixem-me acabar de contar! disse Katie, batendo o pé chão. Então, Selena, eles já
estão mais ou menos namorando uns três anos. Aí, um dia, o Ted recebeu uma carta de uma
organização missionária, chamando-o para trabalhar em tempo integral. Mas ele não queria ir
- Na realidade, eu não queria era vender a minha "Kombi Nada", interrompeu Ted.
- Mas Cris terminou o namoro com ele. Deixou que ele fosse embora, sem compromisso
algum, para que ele pudesse servir a Deus sem empecilhos. E não estou exagerando, não. Foi
o mais belo gesto de desprendimento que já vi. Quando eles terminaram, ela devolveu a
pulseira pra ele. Então o Ted disse que, se um dia eles reatassem, era porque Deus queria isso,
- É, Katie, falou Ted, se algum dia eu perder a memória, vou atrás de você. Parece que
- Eu não sabia que ele estava na Espanha, explicou Cris. Acheique a missão o havia
mandado para Papua Nova Guiné, pois era pra lá que ele queria ir.
- Mas eles estavam precisando muito de alguém na Espanha, interveio Ted. Assim que
com um sorriso.
- E o Ted não fazia idéia de que eu estava na Inglaterra, disse Cris. Só ficou sabendo
que eu estava indo para a Espanha um dia antes da minha chegada. Ele recebeu um fax,
informando que teria de me buscar na estação. Foi por isso que o pessoal ficou espantado
quando nos viu. Nós mesmos nunca poderíamos ter planejado nosso reencontro desse modo.
Foi Deus que fez tudo. E a semana de evangelismo foi simplesmente fantástica.
A jovem sentia necessidade de se afastar um pouco dos colegas, e quanto mais depressa
- Muito prazer em conhecê-lo, Ted, continuou ela. Estou muito feliz por você, Cris,
pelos dois. Foi maravilhoso o modo como Deus ajeitou tudo. Vejo todos no jantar, pessoal!
- Tá bom, replicou ela, sem entender por que ele a tratava com tanta gentileza.
rosto, uma, duas, três, quatro vezes; e a cada vez as lágrimas se misturavam à água fria e
- Estou contente pela Cris, continuou. Estou mesmo. E pelo Douglas e a Trícia também.
Será que sou tão egocêntrica que não consigo participar da alegria deles só porque não
arranjei um namorado? Que atitude mais infantil! Detesto ter essa mentalidade!
Selena lavou o rosto de novo e disse a si mesma que parasse de chorar. Para sua
surpresa, as lágrimas cessaram. Sorriu para sua imagem refletida no espelho, sentindo voltar-
lhe a autoconfiança. Era a primeira vez que se via tão dominada pelas emoções assim.
Talvez eu estivesse querendo chorar como as outras, por estar contente com a
felicidade de Cris, mas achei que não tinha esse direito por não ser da turma deles. Quero
dizer, eu sou, mas há pouco tempo. Eles já se conhecem quase que a vida toda, ou '"para
sempre", como está na pulseira da Cris. Será que algum dia vou encontrar alguém que
Além disso, todos são mais velhos que eu, pensou. Cris e Katie são dois anos mais
velhas que eu. Douglas deve ser uns cinco anos e o Ted também. Então por que eu teria de
estar em situação igual à deles? Eles todos já estão na faculdade, e eu ainda tenho mais um
ano e meio no segundo grau. Além disso, eu já sabia que iria ficar meio deslocada nesta
viagem, por ser mais nova que os outros. Acho que pensei que tinha maturidade suficiente
Sorriu de novo e endireitou um dos brincos. Se Ted era mesmo um cara legal - e achava
que ele era - guardaria um lugar para ela perto deles. Então iria sentar-se com ele, Cris e os
amigos deles, ou melhor, os amigos dela. E procuraria agir como uma jovem madura, igual a
eles. E se algo desse errado, puxaria sua cadeira para perto de Katie. As duas sempre podiam
Capítulo Três
Selena acabou passando bons momentos no jantar. A certa altura, eles pararam de falar
podiam participar.
Então Selena mais uma vez se sentiu parte do grupo. Estava sentada entre Katie e
Vez por outra, ela via os dois trocarem olhares de admiração e afeição. Lembrou-se de
Cody, seu irmão. Ele começara a namorar Katrina, sua esposa, no segundo ano do segundo
grau. Haviam se casado assim que se formaram, com a aprovação dos pais de ambos. Cody e
Katrina tinham sido feitos um para o outro. Todo mundo via isso. Estavam casados havia seis
anos e ainda pareciam apaixonados um pelo outro. Tinham um lindo garotinho, chamado
Tyler.
Acho que eu queria que tudo fosse fácil assim para mim também. Talvez cu me sinta
meio "atrasada" em relação a eles, porque Cody já estava namorando quando tinha a minha
idade.
- Não sei por que estou falando disso, comentou Katie, quando já estavam terminando
de jantar, mas esse papo com vocês está me dando saudade de casa.
- Um pouco. Acho que estou mais é com saudade da adolescência, de ir à praia todo dia;
de tudo que fazíamos juntos. Os anos do segundo grau foram os melhores de nossa vida. Por
- E, eu sei o que você quer dizer, falou Cris. O David, meu irmão, está com treze anos.
E eu nem vi como ele cresceu. De repente virou adolescente, ficou alto e magricela, e eu nem
o conheço direito. Hoje à tarde liguei para lá, e foi ele que atendendeu, mnas não reconheci a
- Quase adulto! corrigiu Katie. Pra mim o David vai ser sempre um desses garotos
- E você, Ted?
Isso era o que ela mais queria saber. Seria bom se ele tivesse um irmão mais novo,
- São seis filhos ao todo? indagou Douglas. Vocês usam crachá de identificação para
- Claro que não! Seis filhos não é tanto assim, não. Na casa do meu pai eram nove.
Tenho dois irmãos acima de mim. O mais velho está estudando fora, na faculdade. O segundo
é casado e trabalha em construção. Minha irmã é dois anos mais velha que eu, e depois de
- Parece que sua mãe teve os filhos de dois em dois, comentou Katie. Mas pelo menos
- Pois eu detesto ter de dividir o quarto com Tânia, minha irmã. Ela é supermetódica
com tudo. Meu maior sonho é não ter de ficai no mesmo quarto com ela.
- Ta bom, então são nomes típicos do Oeste. Como é o nome do seu irmão mais velho?
- Wes.
- Todos riram.
- Espera aí, gente, interveio Selena, levantando as mãos para que todos olhassem para
ela. Wes é apelido. O nome dele é Wesley. Esse era o sobrenome de solteira da minha mãe.
Ela é da família de João e Carlos Wesley, que foram pregadores famosos na Inglaterra.
- E como se chama o outro irmão? quis saber Katie, que não estava interessada na
história da família de Selena e achava que iria ouvir outros nomes típicos do Oeste.
- Está vendo, comentou Katie. Todos têm nome de faroeste. Seu pai faz o quê? É
fazendeiro?
- Ele andava com aquela estrela prateada na lapela e tudo o mais? indagou Cris.
Selena fez que sim e limpou as lágrimas que lhe vieram aos olhos por causa do riso.
- É, disse, acho que somos meio do faroeste, sim. Nunca tinha pensado nisso antes. Eu
- May Jensen. Nós a tratamos por Vó May. Meu segundo nome é May. E se isso vale
- É Juliet, replicou.
- Está bem, Douglas, falou Trícia com a mão na cintura. Você está achando tudo tão
Outra risada geral. Douglas tentou explicar que Quentin também era nome de pessoas
da sua família, como May e Wesley, e que não tinha nada de engraçado.
Afinal quando os seis jovens se levantaram da mesa e se dirigiram para o salão onde se
realizaria o culto, pareciam bobos de tanto rir. Estavam cansados da viagem e era por isso que
Selena estava admirada com a rapidez com que a mente de Katie operava, soltando
respostas espirituosas para tudo que os outros diziam. Seria muito difícil ficarem sérios no
culto.
jovem à medida que entravam. Quando o grupo deles chegou, ele pegou o braço de Ted e
disse:
- O Dr. Benson teve de ir a Edimburgo para assistir a um culto fúnebre, então hoje sou
Ele soltou a mão de Cris e, juntamente com Douglas, dirigiram-se para o palco. Selena
sentou-se num banco com Cris, Katie e Trícia. Agora as garotas estavam de novo sozinhas, o
todos com instrumentos. Como ele e Douglas ainda se achavam com muita adrenalina devido
ao ambiente do jantar, iniciaram o período de cânticos com três corinhos bem animados,
cantados ao som de palmas. Contagiados por eles, todos os jovens presentes cantaram com
Selena estava adorando tudo aquilo. A pequena igreja que frequentara em Pineville era
Depois do quarto corinho, o vice-diretor foi à frente e pediu a todos que se sentassem.
- Antes de continuarmos, disse ele, quero dar alguns avisos. Em primeiro lugar, quero
quarenta jovens.
compromisso de dois anos conosco e trabalha em Castelldefels com o grupo de jovens de lá.
terminar seu compromisso conosco, também estará comando o curso. Se algum de vocês
Em seguida ele olhou para Douglas e para os outros rapazes do grupo de louvor.
- Tinha mais algum aviso? Douglas, foi você quem disse que linha um aviso?
O rapaz fez que não. Katie, que se achava sentada perto de Selena, de repente falou:
A princípio ninguém riu. Todos se voltaram para o rapaz que aceitou a piada com bom
humor. Ergueu o polegar para Katie e, em seguida, inclinou a cabeça para trás, soltando uma
- Fazia tempo que eu estava esperando essa oportunidade. Desde o primeiro dia de aula
do meu terceiro ano na escola, quando Douglas me deixou com um olho roxo.
Ted se pôs a dedilhar um cântico de ritmo mais moderado, e todo o grupo foi
silenciando. Daí a pouco, estavam cantando de novo os hinos de louvor, agora em ritmo mais
lento. Afinal, a última música foi cantada em espírito de meditação, e uma atmosfera de
silêncio tomou conta do salão. Selena fechou os olho e procurou cantar de todo o coração,
a Deus pelo trabalho realizado pelas equipes nas cidades aonde tinham ido. Muitos citaram o
nome de pessoas que haviam contactado. Selena orou por uma senhora idosa com quem
conversara em Belfast. A mulher lhe dissera que acreditava que iria para o céu porque era
uma boa pessoa. Não quisera aceitar o fato de que precisava crer em Cristo para se salvar.
Selena a achara ligeiramente parecida com Vó May, na aparência e nos gestos. A diferença
Durante uma hora, continuaram orando e dando testemunhos. Muitos relataram fatos
Encerrado o culto, Katie e Selena voltaram para o hall de entrada, para pegar suas malas
que ainda estavam lá. Levaram a passagem para o quarto e começaram a se preparar para
dormir.
- Parece que se passaram dois anos desde que saímos daqui, comentou Katie.
- Vai ser tão estranho quando formos para casa, continuou Katie. Acho que mudamos
muito nesses poucos dias. E é provável que lá esteja tudo do mesmo jeito.
Ela se enfiou debaixo das cobertas e ficou a remexer as pernas, esfregando-as contra a
- Por que você disse que "para mim" vai estar tudo do mesmo jeito? indagou Katie.
Ela empurrou sua cama para perto da de Selena e em seguida deitou se, cobrindo-se até
o queixo.
- Bom, sabe o que é, Katie? Depois que vim para cá, minha família se mudou. Mudamos
- Tá brincando?
- Não, é verdade. Foi por isso que meus pais deixaram que eu fizesse esta viagem no
meio do ano letivo. Eu já ia mesmo mudar de escola. Vou começar a estudar numa nova
- É, mais ou menos. A escola onde eu estudava é muito pequena. Pra você ter uma idéia,
as turmas do terceiro ano tinham um total de cinqüenta e sete alunos. Na escola havia cerca de
duzentos estudantes ao todo. Os professores foram muito legais comigo e deixaram que eu
Nesse momento, a porta se abriu, e Cris e Trícia entraram rindo por algum motivo.
- Foi tudo bem com vocês, meninas? indagou Selena, dando à voz um tom maternal.
- Só um pouco, replicou Selena na gozação. Acho que é assim que eu e Katie vamos
cinco anos e estiver na casa repouso para idosos, algum velhinho vai começar a correr atrás de
- Ah, tão jovem assim? brincou Selena. Pois eu vou ficar muito satisfeita se ainda tiver
alguns dentes.
- Que é isso, garotas? falou Cris, sentando-se na beirada da cama e tirando os sapatos.
entanto errou e acertou o rosto de Selena. Esta também entrou em ação. Aí Trícia pegou o seu
e atirou nelas. Foi o sinal para que se iniciasse uma guerra geral.
As quatro amigas ficaram a gritar como crianças, mandando os travesseiros umas nas
outras. Afinal o de Selena se rasgou e as penas voaram para todo lado. Elas gargalhavam a
ponto de chorar. E abanavam a mão na frente do rosto para afastar as plumas que vinham
sobre elas.
- Senhoritas, disse uma voz masculina do outro lado, o que está acontecendo? Estão
fazendo tanto barulho que está dando para ouvir na ala sul do castelo.
- Ah, estamos apenas rindo, pastor. Mas vamos dormir agora, explicou ela, ainda
mantendo o ar sério.
Elas ficaram alguns instantes ouvindo o eco dos passos que se afastavam corredor
- Puxa! Que sabidinha! exclamou Katie, afastando uma mecha de cabelo dos olhos.
- Sou de uma família numerosa, esqueceu? Tenho muita prática. Vocês precisam
- Peço trégua, gente! disse. Não agüento outro "assalto", seja ele em silêncio ou não.
Acho que nunca ri tanto em toda a minha vida. É tão bom estar de volta aqui com vocês!
- Deixe isso para amanhã, falou Selena. De manhã vai ser mais fácila arrumar tudo.
- Vou pegá-lo pra você, ofereceu-se Trícia, indo em direção ao móvel. Mas e essa
bagunça toda?
- Deixe pra lá! replicou Selena. Amanhã ainda vai estar aí do mesmo jeito. Eu sempre
digo isso para minha irmã, mas ela é muito metódica. Só consegue relaxar e dormir depois
- Aproveitando enquanto estou de pé, falou ela, alguém quer mais alguma coisa?
Ninguém respondeu.
Silêncio.
- Acho que ela já dormiu, disse Katie, ajeitando-se debaixo das cobertas.
Selena deu uma espiada para Cris. Era verdade. A amiga estava dormindo, deitada de
- Trícia, vamos dar um jeito de cobri-la, disse Selena. Se ela ficar assim, vai congelar.
Trícia, sempre muito prestativa, falou baixinho ao ouvido Cris, dizendo-lhe que se
virasse para que Selena pudesse puxar a coberta e cobri-la. A jovem virou-se, mas, ao que
Alguns minutos depois, estavam todas ajeitadas na cama. Uma última pena flutuou no
ar e pousou no rosto de Selou. Ela afastou-a com um tapa de leve e mergulhou na terra dos
sonhos.
Capítulo Quatro
No dia seguinte, Selena só acordou por volta de dez horas. As outras ainda estavam dor-
mindo. O chão achava-se coberto de penas. Selena levantou-se e foi de mansinho ao corredor.
Pegou uma vassoura no armário de limpeza e vol tou ao quarto. O mais silenciosamente
Sabendo que todos os jovens estariam cansados, os diretores da missão haviam determinado
que não haveria café da manhã. Das dez horas ao meio-dia, haveria uma refeição no estilo
self-service, que valeria pelo café da manhã e pelo almoço. Selena resolveu tomar um banho
arrumando.
- Puxa, mas como estou cansada, dizia Cris. Nem me dei conta de que dormi sem trocar
de roupa.
- Selena, você pode nos esperar? pediu Trícia. Assim podemos descer juntas para
comer.
Selena esfregou a toalha no cabelo e em seguida calçou as botas. Tirou uma bolsinha da
mala, abriu o zíper e pegou um par de brincos. Eram figuras da lua e de estrelas, presas numa
pequenina corrente prateada. A seguir, pegou uma pulseira de argolas - oito argolas de prata -
e enfiou-a no braço esquerdo. Colocou um colarzinho de contas coloridas, que mais parecia
uma fileira de confetes sobre o fundo de sua camiseta de malha verde-escura. Sentia-se
Não se importava de esperar as outras. Aproveitaria o tempo para ler a Bíblia. Tirou-a
de sua mochila marrom. Sua Bíblia era de tamanho médio e tinha uma sobrecapa de couro,
que o pai fizera para ela alguns anos atrás. Na frente estava desenhada uma árvore, ao pé da
qual se via a inscrição: “Salmo 1.3.” Esse era o verso predileto de Selena, desde pequena.
Abriu-a no livro de Salmos e se pôs a ler o de número 62, que fora o ponto em que
parara na vez anterior. O verso 8 prendeu sua atenção. Dizia: “Confiai nele, ó povo, em todo
Selena se lembrou de que estava um pouco ansiosa com relação à mudança da família,
mas guardava o problema só para si. Não desabafara com ninguém, nem mesmo com Deus.
Nesse momento, a porta do quarto se abriu e suas companheiras entraram, todas com toalhas
enroladas na cabeça. As três ficaram paradas perto da porta com ar de tontas. De repente, a
um sinal de Katie, estenderam a mão direita para a frente, puseram-se a requebrar um pouco e
Selena soltou uma gargalhada, e as três também caíram n a risada. Riram tanto que
- Anda depressa, gente! disse ela afinal. Já são quase onze e meia. Se demorarmos,
Quinze minutos depois, as quatro desciam para o refeitório. Selena encheu o prato e
comeu tudo. Afinal a hora esgotou-se, e D. Joanna, a chefe da cozinha, começou a recolher as
Parecia que Ted estava tentando convencer D. Joanna a deixar que eles raspassem o
resto que havia nas vasilhas. Trícia deu uma risada ao vê-los tentando tirar a travessa com
fatias de presunto das mãos da cozinheira. Ted conseguiu agarrar alguns ovos cozidos e
enfiou-os no bolsinho do agasalho. Douglas pegou uma cesta com pãezinhos que estava sobre
- Ela não sabe que aqueles dois são capazes de comer qualquer coisa, falou Trícia.
Principalmente o Douglas. Se ela permitisse que eles comessem todas as sobras da geladeira,
Com as mãos cheias do alimento "pilhado" e com expressão de triunfo no rosto, os dois
- Vocês vão receber o troféu "melhor tapeador do ano", falou Katie. Acho que
Ele abriu um pouco mais o sorriso. Levou o copo de suco à boca, evitando olhar para
Cris. Douglas parecia a ponto de cair na gargalhada. Olhou para o amigo e em seguida para
Trícia. Fitando Katie diretamente nos olhos, franziu as sobrancelhas e disse em voz grave:
- Senhoritas, o que está acontecendo? Estão fazendo barulho que está dando para ouvir
- Foram vocês!
Katie ergueu-se com os braços estendidos, as mãos em concha, pronta para estrangular
Douglas. Ted ria tanto que acabou se engasgando e soltando o suco de maçã pelo nariz. Ele
braços. O cérebro de vocês deve ter parado de desenvolver quando tinham doze anos. Estou
- Conosco? indagou Ted, que recuperara o fôlego. E vocês que são tão maduras, o que
estavam fazendo ontem à noite? Pra mim parecia uma bela guerra de travesseiro, bem típica
- E era mesmo! confessou Selena, rindo junto com as outras. Pena que vocês não
- Topamos. Quero ver! replicou Selena, levantando-se e empinando bem o nariz, como
- Então está bem! Hoje à noite! disse Douglas, apontando para Katie e Selena e
minutos. O diretor parecia cansado. Selena lembrou-se de que ele fora à Escócia para assistir a
Ted e Douglas mais uma vez tocaram violão no período de louvor, que durou cerca de
meia hora. Selena adorou. Em seguida, o Dr. Benson deu uma palavra sobre como eles teriam
pegar a Bíblia e procurar um canto para lê-la e meditar, preparando-se emocionalmente para a
volta.
Slena foi sentar-se num dos últimos bancos do salão. A maioria dos jovens saiu do
aposento. Ficaram apenas uns quatro ou cinco, que se espalharam por ele e se puseram a
buscar o Senhor. Ela releu o capítulo que lera mais cedo e, em seguida, orou.
“Senhor, tu queres que eu abra o coração para ti. Então vou abrir. Estou muito nervosa.
É, estou sim; com muito medo. Issp não me acontece com freqüência, mas hoje estou
temerosa. Eu não queria me mudar. Não queria ir para outra escola. Não quero dizer com isso
que não desejo conhecer outras pessoas, não. É que eu achava muito bom ser conhecida de
todo mundo na minha escola de Pineville. Nessa outra, ninguém nunca me viu. Ali vou ser
apenas mais uma aluna. Contudo, se é isso que o Senhor quer, então está bem. Mas essa
situação me deixa insegura, e tu sabes, Senhor, que não sou medrosa. E já que estou
desabafando, quero dizer também que esse negócio de todo mundo estar arranjando
namorado, menos eu, está me incomodando. Esses rapazes aqui são muito legais; são gente
muito boa. Estou com medo de não sobrar ninguém assim pra mim. Sei que tenho de confiar
em ti, mas...”
Selena abriu os olhos e releu o verso 8: “Confiai nele, ó povo, em todo tempo.”
“Está bem”, continuou orando. “Tenho de confiar em ti em tlodo o tempo, mesmo neste
momento em que não tlenho namorado. Estou tentando confiar. Mas queria que o Senhor
lembrasse que já tenho dezesseis anos, e até hoje ninguém me beijou, nem ao menos pegou na
minha mão. O Senhor entende que isso pode me deixar meio insegura com relação à minha
aparência, personalidade e tudo o mais, não é? Só quero ter certeza de que o Senhor
Selena se levantou e foi dar uma última volta pelo castelo. Sentindo que permanecia em
espírito de comunhão com Deus, continuou falando com ele enquanto caminhava.
Ela costumava conversar com o Senhor assim muitas vezes. Recebera Jesus como
Salvador quando tinha cinco anos e, desde então, procurava manter uma profunda comunhão
com Ele. Para ela, isso fora relativamente fácil, pois sua família era cristã e morava numa
cidade de vida tranqüila e pacata. Sabia que agora, mudando-se para Portland, uma cidade
Naquela noite, a equipe de Selena se reuniu pela última vez. Na noite anterior, riram
sem parar. Agora parecia que não conseguiriam parar de chorar. Mesmo depois que as garotas
estavam deitadas, a luz apagada, ainda continuavam chorando prometendo manter contato
umas com as outras. E com toda aquela onda de emoção, acabaram se esquecendo da
combinada guerra de travesseiros. Na manhã seguinte, embora Selena achasse que havia
derramado todas as lágrimas que possuía, voltou a chorar na hora de pegar o furgão, às 5:00h
da manhã, para ir para a estação de trem. Ainda estava escuro e fazia muito frio. Todo o
pessoal veio se despedir-se dela. Os abraços foram intermináveis. Kati foi a primeira.
- Pra falar a verdade, disse ela, não estou muito triste por despedir-me de você porque
sei que vou revê-la em breve. Vamos encontrar-nos nas férias, se não antes.
- É, Selena, disse ele. Acho que vamos ter de adiar nossa guerra de travesseiros.
Sentiu mais lágrimas lhe encherem os olhos. Sabia que talvez nunca mais visse Ted e
- O Senhor te abençoe e te guarde, Selena. O Senhor faça resplandecer o seu rosto sobre
ti e te dê a paz. E que você sempre ame a Jesus em primeiro lugar, acima de tudo o mais.
Selena fez um aceno para todos e entrou no carro. Os outros iriam viajar de tardinha
para Londres, onde passariam a noite numa pensão. No outro dia, pela manhã, Douglas, Cris e
Trícia pegariam um avião para Los Angeles. Ted retornaria a Barcelona. Selena estava
nuvem sombria a envolveu e permaneceu com ela até chegar ao Aeroporto de Heathrow, em
Londres. Entrou na fila do balcão da companhia aérea. Despachou sua bagagem e pediu
informação sobre o portão de embarque. Estava tudo certo. O avião partiria dentro de uma
hora.
Resolveu ligar para os pais e dizer-lhes que o vôo estava dentro do horário. Teve de
remexer na mochila para pegar o número do telefone de sua nova casa. Era estranho não saber
Chegou a um local onde havia vários aparelhos, mas todos estavam sendo usados. Ficou
de lado, aguardando pacientemente que um deles fosse desocupado. Um rapaz que estava num
dos telefones virou-se para trás e olhou para ela. Tapou o receptor com a mão e disse:
- Por favor, será que você teria umas moedas* para me arranjar? Estou precisando
demais.
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Em alguns países, os telefones públicos funcionam com moedas, e não com cartões ou fichas, como
Abriu rapidamente a mochila e ficou a procurar moedas no fundo dela. Pegou quatro.
Encaminhou-se para o rapaz e lhe entregou o dinheiro. Em seguida, pôs-se a procurar mais.
O rapaz estendeu a mão, querendo mais. Selena viu que havia várias moedas no
bolsinho da mochila e pegou nove. Não tinha certeza do valor delas nem se seriam suficientes.
Tampouco sabia quanto havia dado para o desconhecido. Ele apanhou o dinheiro
- Oi! Tenho só mais um minuto no telefone, disse ele. Vou lhe dar o número do meu
vôo. Está preparada para anotar? É o vôo 931 para San Francisco. Depois pego o 57 para
Portland. Anotou?
Selena deu uns passos para trás e, despistadamente, pegou sua passagem e olhou-a. Iria
- Foi o tempo exato, disse o rapaz. Tenho de lhe pagar. Quanto foi que você me deu?
- Não tenho a menor idéia, replicou Selena, olhando “Paul” de frente pela primeira vez.
Ele tinha cabelo castanho-escuro, e uma mecha caía sobre sua testa larga. Estava com
um blusão de couro. Trazia às costas uma mochila, à qual estava preso um chapéu tipo
“Indiana Jones”. De repente, veio-lhe à mente um pensamento que a deixou surpresa: Lute
- Com licença, disse um senhor com sotaque britânico, que chegara perto de Selena.
A moça adiantou-se, pegou o aparelho e, em seguida, fez uma chamada a cobrar para os
pais. Paul ficou parado ao lado, ainda procurando moedas para pagar-lhe. Ele estava agindo
como se os dois estivessem juntos. Selena colocou o fone no ouvido, firmando-o com o
O pai dela atendeu. Ela se aproximou mais do aparelho e se pôs a conversar com ele em
voz baixa. Disse ao pai que tudo estava bem e saindo de acordo com o planejado. Ele
- Eu também estou com saudade, pai! concluiu ela, em voz suave, desligando em
seguida.
Virou-se para o rapaz e fitou-o. Ele tinha olhos cinzentos. Não, azuis. Não, não.
- Tenho apenas dois dólares aqui, disse ele. Você se importaria de ir comigo ao guichê
de câmbio? Vou descontar um cheque de viagem e lhe pago. Está bom assim? Está com
pressa?
- Não. Tudo bem, replicou Selena, dando de ombros. Vou com você.
- Meu nome é Paul, continuou o rapaz. Peço desculpas por ter abusado da sua bondade.
por alguns instantes, sem encará-lo. Afinal virou-se para ele. Paul não desviou os olhos nem
pareceu constrangido.
Aí Selena ficou meio sem jeito. Esse cara era muito direto. Ela também agia assim e,
por diversas vezes, esse seu modo de ser lhe causara problemas.
Dessa vez Paul riu. Nesse momento, chegaram ao guichê, e Selena se pôs de lado. O
rapaz pegou seu passaporte e assinou um cheque. O caixa contou o dinheiro e passou-o por
dólares.
- Não se preocupe, replicou ele, olhando o relógio. E mai uma vez, muito obrigado.
Ele foi se afastando rapidamente, a mochila aos ombros. A jovem também saiu
caminhando em direção ao seu portão de embarque, andando alguns passos atrás de Paul.
Pensou em chamá-lo e seguir junto dele, já que iam pegar o mesmo vôo. Contudo, por um
impulso interior, conteve-se, o que não era uma atitude muito típica de Selena. Geralmente ela
Viu Paul à sua frente na fila do balcão da companhia onde apresentariam a passagem.
Havia três pessoas entre eles. O rapaz não se virou para trás nem uma vez. Assim que ele
terminou, saiu dali. Só retornou quando chamaram os passageiros para se apresentarem para o
embarque. Selena se achava perto de uma janela e viu quando ele entrou na fila.
Que coisa mais idiota! pensou. Por que estou observando os movimentos desse rapaz?
Aproximou-se da porta de entrada com a mochila às costas e a passagem na mão. Seus
olhos estavam fitos no velho chapéu “Indiana Jones”, preso à mochila do rapaz, que ia
Sorriu para a comissária de bordo e foi andando para o fundo do avião. Continuava a
ver Paul ainda caminhando à frente, o chapéu se movendo a cada passo que dava. Isso era
bom sinal – ele ainda não chegara à poltrona dele. Mais um pouco, e ele estaria na fileira dela.
Capítulo Cinco
Selena viu Paul deslizar a mochila do ombro e abaixar a cabeça para não bater no
compartimento de bagagem. Quando falara com ele no terminal, junto ao telefone, ele não lhe
parecera muito alto. Agora notava que era bem alto e de ombros largos. Como Selena tinha
apenas l,65m de altura, obviamente todos os rapazes lhe pareciam altos. Consultou de novo o
Droga! pensou. Meu lugar é três fileiras atrás da dele. Será que me verá quando eu
Foi caminhando devagar e chegou junto à fileira de Paul. O rapaz estava abaixado,
guardando a mochila sob o assento à sua frente. Selena parou momentaneamente, pensando se
deveria dizer algo. Ele se ergueu, mas continuou com os olhos baixos, ajustando o cinto de
segurança.
A moça se deu conta de que estava atrasando a fila e se pôs a andar de novo. Afinal
chegou ao seu lugar. Era junto à janela. Entrou e sentou-se. Na poltrona do corredor, estava
um senhor de idade.
Aqui bem podia ser o lugar do Paul! pensou, olhando para o assento vazio entre o dela e
o da beirada. Por outro lado, ainda não há ninguém junto dele. Talvez eu devesse arranjar
uma desculpa para ir me sentar perto dele, como quem não quer nada, como se achasse que
ali era minha poltrona. Não, isso seria muito vulgar. Talvez seja melhor eu levantar e ir
procurar um travesseiro ou pegar uma revista, para ver se ele me nota quando eu passar
perto. Aí deixo que ele tome a iniciativa. Vou ficar parada lá, conversando com ele
naturalmente. Então a comissária vem e me manda sentar, e eu me sento perto dele. Que é
- Bom dia pra você! disse o senhor que estava sentado na ponta.
Era calvo e usava uns óculos pequenos e redondos. Tinha um ar tranquilo, as mãos
juntas sobre o estômago, as pernas esticadas, os pés cruzados à altura dos tornozelos. Parecia
estar já bem acomodado. Selena não teve coragem de pedir licença para passar por ele e ir
Viu dois homens chegarem num carrinho cheio de malas e pararem junto ao avião. Iam
colocando a bagagem numa esteira rolante, que a transportava para o compartimento de carga
do avião. Selena pensou que talvez fosse preferível viajar com a carga do que passar as
próximas quinze horas olhando para a cabeça de Paul, sentado três fileiras à sua frente.
A moça forçou-se a pensar em outra coisa. Pegou uma revista no “bolso”da poltrona da
frente. Ficou a folheá-la, como se estivesse lendo-a. Sua mente estava meio confusa. Não
tinha a menor idéia de que horas eram e de quanto tempo ainda demoraria para que o avião
levantasse vôo.
e distribuindo travesseiros e cobertores aos passageiros. De repente ela ficou sonolenta. Seria
bom tirar um cochilo antes do jantar. Puxou o cobertor até o queixo e ajeitou o travesseiro
atrás da nuca.
semanas anteriores. Era a primeira vez, depois de vários dias, que tinha a chance de ficar
assim, a sós com seus pensamentos. Talvez fosse bom mesmo que não estivesse ao lado de
O avião começou a rodar pela pista e em seguida decolou. Selena olhou pela janela. Um
minuto depois, o aparelhoa atravessava as nuvens que estavam sobre o aeroporto, e agora só
se via um tapete cinzento. Tentou espiar para Paul, que se achava a frente. Será que ele
também estava olhando pela janela? Estaria lendo? Ou dormindo? Inclinou a poltrona, fechou
janela e encostar-se nele, ficando com o rosto virado para o corredor. Na verdade, sentira-se
mais confortável com o travesseiro na nuca e o queixo abaixado. Entretanto, nessa posição, o
cabelo lhe caía sobre o rosto. Do modo como estava agora, se por acaso Paul passasse no
corredor, fatalmente teria de vê-la. Só desejava que não começasse a babar enquanto estivesse
dormindo.
Quando abriu os olhos, a comissária estava lhe estendendo a bandeja do jantar. Abaixou
a mesinha de bordo, ajustou o assento e tentou ficar desperta para comer. A seguir, passaram
um filme, e Selena tentou assistir a ele, mas dormiu de novo. Ficou dormindo e acordando
havia saído. Resolveu aproveitar para ir ao banheiro, que ficava ao fundo do avião. Ali vários
outros passageiros aguardavam sua vez para usar um dos quatro sanitários. Selena se pôs a
esperar também, bocejando o tempo todo e correndo os olhos ao redor vez por outra.
Paul se achava na área de serviço, a menos de dois metros dela, pedindo à comissária
algo para beber. Mais uma vez Selena ficou paralisada. O rapaz não estava olhando em sua
direção. Parecia completamente alheio à sua presença. Por que tinha de estar tão interessada
nele? Paul pegou o copo de bebida da mão da comissária, agradeceu e foi andando para voltar
ao seu lugar. De repente, virou-se ligeiramente e olhou para trás, na direção de Selena.
Era a oportunidade que ela estava esperando. E o que fez afinal? Imediatamente ela
virou o rosto e se pôs a olhar a plaquinha da porta do banheiro, que dizia "ocupado".
Que idiota que sou! Será que ele me viu? Será que sabe que estou aqui e virou para ver
se o reconheci? Pelo visto, nunca vou ficar sabendo o que se passou na cabeça dele!
Resolveu dar uma olhadinha para trás, espiando por entre as mechas do cabelo
despenteado. Paul não estava mais ali. Agora recomeçavam aquelas tolas indagações de antes.
Será que, ao retornar ao seu lugar, deveria dar a volta pela frente e passar perto dele e olhar
Seus olhos estavam inchados, e no rosto havia uma marca do travesseiro. Pelo menos
Lembrou-se do comentário que Stephen havia feito sobre ela e Katie, dias atrás. Ele
afirmara que elas eram bonitas. Lindas. Seu pai também vivia dizendo-lhe o mesmo. No
entanto nenhum rapaz “interessante” lhe falara nada parecido. O elogio de Stephen não
contava muito, pois não se interessava por ele. Para que uma palavra dessas tivesse valor, era
está passando da conta!" Selena saiu do banheiro e voltou ao seu lugar, sem dar a volta pela
frente, isto é, sem passar pela poltrona de Paul. Sentou-se, puxou o cobertor e se cobriu. Em
seguida, resolveu orar sobre aquela incômoda obsessão com o rapaz. Não sabia se era certo ou
errado ficar pensando tanto nele. De todo modo, sabia que seria bom orar sobre a questão e
entregar tudo a Cristo. Lembrou-se do versículo que lera em Salmos, que dizia que temos de
E deu certo. Depois que orou, sentiu-se mais tranqüila com relação a Paul. Agora só
pensava no fato de que daí a algumas horas estaria chegando em Portland, e tudo seria
novidade para ela. Voltou a orar e a conversar com Deus a respeito disso.
O avião pousou em San Francisco na hora prevista, lembrou que teria de deslocar-se do
setor de vôos inteenacionais para o doméstico, onde pegaria um avião menor. Esse vôo sairia
daí a quarenta e dois minutos. Teria que passar na alfândega o mais depressa possível.
Felizmente, não fizera muitas compras e indicara no formulário que não havia nada para
declarar. Entrou numa fila que estava caminhando rapidamente. Notou que Paul não estava
nela. Teve vontade de virar-se e procurá-lo, mas resistiu ao impulso. O importante agora era
passar pelo posto de desembarque, para que carimbassem seu passaporte, e encaminhar-se
fundo de cansaço e sentindo gotas de suor na testa, Selena se acomodou em seu lugar e ficou a
- Desculpe, disse uma voz grave junto a ela, você está no meu lugar.
Virou-se e deu com os olhos azul-acinzentados de Paul. No rosto dele estampou-se uma
expressão de surpresa.
Seu tom era muito sincero, e Selena se convenceu de que ele de fato não sabia que ela
- Vim nadando, replicou com um sorriso, enquanto limpava o suor da testa e afastava o
Ainda não conseguia acreditar no que estava acontecendo. Cerca de dezesseis horas
antes, desejara tanto sentar-se ao lado de Paul, e depois acabara desistindo. Agora estava ali
- Não havia percebido que estava no lugar errado, falou, no momento em que ele se
- Não, respondeu o rapaz, está bem assim. Você merece ficar aí. Acho que ainda lhe
devo algo.
papel branco. Tinha consciência de que o rapaz a observava e, mais uma vez, sentiu o
perfume de sua loção após barba. Por alguma razão, aquele cheiro lhe lembrava o Natal em
sua cidadezinha. Dessa vez não quis corresponder ao olhar dele. Como a situação tomara um
rumo muito interessante, resolveu tirar proveito dela. Que ele olhasse, pensou. O que estaria
passando pela cabeça dele? Será que a achava bonita? Ao pensar isso, Selena teve um ligeiro
sentimento de culpa. Que atitude leviana! Não sabia nada acerca desse rapaz, a não ser que se
chamava Paul, que ia para Portland e que era meio cara-de-pau, pois pedira dinheiro
emprestado a uma pessoa desconhecida. Contudo era honesto também, pois lhe pagara; e com
juros.
chocolate? É da Finlândia.
Paul ergueu as sobrancelhas e deu uma espiada para dentro do saquinho já meio
amassado.
- Chocolate? indagou.
e jogou-o na boca.
- Ah! disse, fechando os olhos. Isso é que é chocolate! De onde é mesmo?
- Da Finlândia.
trabalho evangelístico. Uma moça do grupo era da Finlândia e deu um pouco desse chocolate
- Estava, sim!
- Não acredito!
Paul recostou-se e fechou os olhos, como se a resposta dela o tivesse deixado chateado.
- Muitas vezes, respondeu. Nem sei quantas. Meu avô era o dono do castelo. Comprou-o
pouco depois da Segunda Guerra. Antes, ali era um acampamento evangélico. Mais ou menos
- Charles? Foi, e havia mais umas oitocentas pessoas presentes. Meu avô era muito
querido.
- Por acaso, lá em Carnforth Hall, você ficou conhecendo um rapaz de San Diego,
chamado Douglas?
- Ele é amigo de meu irmão. Meu pai é pastor de uma igreja de El Cajon. Já ouviu falar?
- É muito conhecida?
- É bem grande. Tem quatro mil membros. O Douglas frequenta nossa igreja. Foi lá que
ele fez amizade com o Jeremy, meu irmão. Eles têm um grupo de estudo bíblico, chamado
estava no segundo grau. Achava muito legal conviver com aqueles caras mais velhos.
Selena entendia perfeitamente o que ele queria dizer. Tivera a mesma sensação durante
- Os círculos da vida são muito pequenos, disse Paul, parecendo estar citando algum
- Creio que foi Deus que me levou, replicou. Um primo meu me falou sobre o trabalho,
e resolvi ir.
Paul desviou os olhos dela. O avião começava a decolar. Era bem menor e mais
barulhento do que o aparelho enorme em que haviam viajado da Inglaterra para os Estados
- E posso saber por que você está indo para Portland? Você não mora em San Diego?
- Eu estudo na L e C.
- Sabe de uma coisa? falou o rapaz, abaixando a voz e aproximando-se mais dela. Ainda
- Ah, mas você sabe o mais importante, replicou Selena com vontade de brincar com
ele. Sabe que eu empresto dinheiro para desconhecidos, que não uso maquiagem e que sou
- É verdade, é verdade. Você tem essas excelentes qualidades. Mas como se chama?
Era gostoso ficar demorando, brincando com a curiosidade dele, mas ela resolveu
responder.
- Selena.
Ele fitou-a de um modo diferente, dando a impressão de que gostara do nome. Parecia
que sua pergunta era uma prova, e ela dera a resposta correta. Cem por cento correta.
Capítulo Seis
- É do meu pai.
- Sua casa?
- Na verdade, é de minha avó. Acabamos de mudar-nos para lá. Minha família fez a
mudança quando eu estava na Inglaterra. É uma velha casa de estilo vitoriano, e a Vó May
não quer vendê-la de jeito nenhum. O problema é que ela não consegue mais mantê-la nem
cuidar dela sozinha. Então meu pai resolveu mudar de profissão, e todos nós vamos morar
com vovó.
- É. Meu pai também seria capaz de uma atitude dessas. Nós morávamos numa casa
pequena e sempre tivemos carros velhos. Mas todo ano ele juntava as economias, e iam os
cinco passar as férias com nossos avós em Carnforth. Aproveite bem o tempo que lhe resta
Mais uma vez ele a fitou com admiração, como se ela tivesse dado a resposta correta.
- Muita gente não tem esse tipo de atitude para com os avós nem com outras pessoas
idosas, comentou Paul. Eu era mais chegado ao meu avô do que a meus outros parentes. Era
- Ninguém vai ocupar o lugar dele em minha vida. Parece que ficou um vazio enorme
no meu peito. Às vezes até acho quae escuto o vento assoviando nele.
A moça sentiu que compreendia esse sentimento poético que brotava do coração de
Paul. Seus olhares se encontraram. Durante alguns instantes, nenhum dos dois disse nada. O
rapaz parecia estar olhando no fundo da alma de Selena, como que retirando forças do
comunhão.
O homem riu.
- O. k.! disse. Dois sucos de laranja com gelo! Vocês são irmãos?
- Por causa dos olhos. São iguais, respondeu ele, passando em seguida a servir os
- Por que será que ele pensou isso? indagou Paul, virando-se para olhá-la.
- E eu sei? disse ela, "cruzando" os olhos para que ficassem vesgos, como se estivesse
Paul riu.
- Quê? continuou Paul. Então sou mais velho uns seis ou nove meses, talvez?
- Está brincando! falou ele. É o dia do aniversário de minha mãe. Então você fez...
- Não.
- Dezessete?
- Não.
- Dezesseis? indagou ele devagar e viu a garota acenar que sim. Então você tem só
dezesseis anos?
Selena sentiu que ele se afastou dela e, nesse momento, algo mudou entre eles. Aquela
comunhão emocional que haviam gozado até então acabou. Ela teve vontade de se defender,
de dizer que não havia nenhum problema com o fato de ter dezesseis anos, e que ela era
madura para sua idade. Entretanto ele se afastara; distanciara-se dela emocionalmente,
- Meu namorado?
- Ouvi você conversando com alguém no telefone em Londres, dizendo que estava com
saudades.
- Ah, disse Paul, olhando para o copo de suco, minha morada vai me pegar.
- Pena que ela não tenha podido ir ao enterro de seu avô. Teria sido bom para você se
Interiormente sentia-se magoada. Por que Paul mencionara a namorada? Por outro lado,
disse para si mesma, poderia tar uma atitude madura com relação à questão. Era só ficar
- Na verdade, acho que não teria sido bom que ela fosse, comentou o rapaz.
- Por quê?
- Bom, replicou ele, remexendo os cubos de gelo no copo quase vazio, Jalene é... um
pouco diferente.
Caiu um silêncio pesado entre eles. Selena estava intriga. Por que um jovem como Paul,
criado numa família evangélica com tanto potencial para o serviço cristão, iria apaixonar-se
por uma garota não-crente? Teve vontade de dizer-lhe o que pensava e, em seguida, ocorreu-
lhe que não teria nada a perder, se dissesse. Estava claro que Paul não tinha o mínimo
interesse por ela, não só porque Selena tinha dezesseis anos, mas também porque ele já tinha
- Por que você está namorando essa moça? Não está vendo que um relacionamento
desigual assim pode lhe trazer problemas? Não percebe que esse namoro, que não é o melhor
- E quem é você para me dizer o que devo fazer de minha vida? É alguma profetisa?
Você não sabe nada a meu respeito nem quem é a melhor namorada para mim.
Selena reconhecia que não estava usando de muito tato. Aliás, isso nunca fora uma de
- E o que você tem a ver com isso? Quem pensa que é, afinal?
Ele virou o rosto para outro lado, como se o mero fato de olhar para Selena o
poltrona da frente. A seguir, ergueu o braço e acendeu a luzinha no alto. Obviamente não
A moça então decidiu fazer o mesmo. Girou a cabeça para afastar-se, fingindo que a
atitude dele não a incomodava nem um pouco. Contudo uma mecha de seu cabelo ficou
- Fique quieta! falou Paul, ríspido. Está piorando o problema. Fique bem quieta!
Selena não o olhava diretamente, mas percebeu que o rapaz estava puxando fio por fio
- Puxa, você embaraçou bem aqui, hein? falou ele, com um pouco menos de irritação na
- Fique calma, está bom? ‘Güenta firme aí. Pronto. Soltou. E nem atrapalhou nada!
Selena passou a mão no cabelo para ajeitá-lo, mas não olhou para ele.
Ela virou-se ligeiramente, para ver o que o rapaz quis dizer com aquilo. Ele ainda estava
Parecia Wesley, seu irmão mais velho, quando entrava numa de lhe dar conselhos.
- Ah, está bom! exclamou Selena, com expressão de raiva. E quem é você pra me falar
que não posso arrancar com força? Não agüenta nem conversar sobre sua namorada. Dá logo
jeito de fugir!
Paul teve uma reação que ela não esperava - começou a rir. Soltou uma gargalhada
- Qual é a graça? indagou Selena, caindo na defensiva. Você sabe que estou com a
razão!
- Quem é você, afinal? perguntou Paul, ainda rindo. Meu anjo da guarda ou algo assim?
- Então é uma dessas jovens guerreiras espirituais, que foi enviada para me conduzir de
Selena se lembrou do pensamento que lhe ocorrera no momento em que conhecera Paul.
Lute por esse rapaz. Talvez houvesse mesmo uma batalha espiritual na vida dele, e o Espírito
Santo a estivesse chamando para entrar nessa luta em favor dele. Ela já ouvira falar de pessoas
que haviam sentido um forte impulso de orar por alguém sem saber por quê. Mais tarde
tinham descoberto que Deus as usara em oração para operar mudanças na vida daquele por
Aquele encontro casual com esse desconhecido realmente fora muito estranho.
- Lembre-se, continuou ela, de que foi você quem me pediu dinheiro para telefonar. Eu
Paul fitou-a, examinando-a atentamente, mas aquilo não a aborreceu. Podia olhar para
ela o quanto quisesse. Não tinha nada a esconder. O que seria que ele estava querendo ver
nela?
- Selena, disse o rapaz, você é uma jovem excepcional. Tenho pena do homem que se
- E eu tenho pena da moça que se apaixonar por você, se continuar fugindo de Deus. O
profeta Jonas tentou fugir, lembra? Se não quiser acabar no ventre de uma baleia, acho bom
desiste, não é?
Selena sentiu que devia parar por aí, como se um sinal de alarme soasse em seu interior.
inocente. Usa essa tática muito bem. Deve ter sangue escocês, comentou ele, com um sorriso.
Acho que acabará se tornando uma pessoa muito espiritual. Mas neste momento isso não
Selena ficou chateada, ao perceber que ele a estava humilhando, embora dissesse
palavras tão doces, e que sua conversa séria não adiantara nada. Ela se rebaixara, pedindo
desculpas, mas isso não valera de nada. Resolveu desligar-se dele. Pegou o pacotinho de
amendoins que o comissário distribuíra e pôs-se a mastigar demoradamente um por um, para
manter a boca fechada. Já se metera em muita encrenca por falar demais. Quando é que iria
aprender a ficar calada? Por que não tinha conversado com ele sobre temas mais normais,
como o tempo por exemplo? Por que tinha sempre que dizer o que pensava e levar tudo muito
Mas era exatamente isso que mais a incomodava - Paul não parecia ser um mero
desconhecido. Havia algo que os ligava. Ele próprio reconhecia o fato. Existia um elo entre
O avião pousou em Portland na hora prevista. Os dois jovens haviam passado os últimos
dez minutos conversando sobre caminhadas ecológicas. Ele lhe recomendara vários locais de
que gostava. Fora uma conversa calma e amistosa, como um papo de dois estranhos num
avião. Por fim ela lhe deu condolências pela morte do seu avô, e ele agradeceu educadamente.
Assim que alcançaram o terminal, Selena correu os olhos pelas pessoas que estavam ali
esperando os passageiros, na tentativa de descobrir quem era Jalene, antes que Paul fosse em
direção a ela. Identificou-a imediatamente. Era uma jovem de cabelo bem preto, cortado
curtinho. Usava uma saia longa e botas pretas. Parecia uma pessoal normal. Era engraçadinha
e tinha um ar alegre, mas trazia nos lábios um sorriso meio gaiato. Paul hesitou por um
instante, mas logo em seguida caminhou para a jovem que abriu os braços para recebê-lo.
se ligeiramente para trás, para olhar Paul mais uma vez. Achava que iria vê-lo beijando
Jalene. Contudo, pelo que percebeu, era ela quem o estava beijando.
Selena subiu pela escada rolante, procurando tirar Paul do pensamento. Ela própria já
teria muito com o que se preocupar. Nas semanas seguintes, precisaria adaptar-se a uma nova
casa e escola.
Nem mesmo sei o sobrenome dele. E não há muita probabilidade de que volte a vê-lo.
Foi apenas um estranho encontro com um desconhecido. E como sempre, falei demais.
Acabou. Pronto.
Assim que saltou da escada rolante, avistou o pai. Ele estava com um sorriso típico,
formando ruguinhas ao lado dos olhos, que ele costumava dar quando tinha vontade de
chorar. A mãe estava ao lado dele. Selena achou que ela parecia ter emagrecido um pouco.
Era uma mulher de ar jovem, que fazia Cooper regularmente. Arrumara o cabelo louro num
pequeno coque e usava uma calça preta e uma suéter vermelha, bem grande, que Selena lhe
Correu ao encontro deles. Primeiro foi o pai quem a abraçou e lhe deu um grande beijo.
Ele também tinha uma aparência jovem, a não ser no alto da testa, onde o cabelo ia
rareando. E no ponto onde o cabelo castanho dele se tornara mais ralo, formavam-se rugas de
preocupação.
Deu o braço à mãe e foram caminhando em direção à esteira rolante, onde os outros
- Mas acho que você vai gostar, disse mamãe. A Vó May já melhorou muito depois que
chegamos.
- Quase tudo. Ainda tem uma porção de caixas no porão, com meus bibelôs, livros e
alguns outros objetos. Não há lugar para eles. Eu e Vó May precisamos dar uma arrumada nas
coisas e separar algumas. Faz quatro dias que ela pergunta constantemente quando você vai
chegar. Ainda há momentos em que ela confunde as épocas. Parece que os dias e os anos se
misturaram na mente dela, e às vezes não sabe direito onde está. Não se espante se ela não a
- Ah, não! interveio Selena em tom confiante. Ela vai me reconhecer, sim. Que bom que
ela já melhorou.
Nesse momento soou uma sineta estridente e a esteira rolante entrou em movimento.
Selena adiantou-se, misturando-se aos outros passageiros, e inclinou-se, procurando ver se sua
mala estava nela. Avistou-a em seguida e já ia estender a mão para pegá-la quando alguém
- Ah, não! exclamou Paul. Não dá pra acreditar! Sua mala deve ser parecida com a
rolante.
- Tá bom, procure não se enganar mais, replicou ela, olhando direto para Jalene, que se
Um sorriso estampou-se no rosto de Paul. Empurrou o chapéu para trás, e ele ficou
caído às suas costas, preso pelo cordão que passava pelo pescoço dele.
- Espero nunca mais vê-la, disse ele. Está complicando demais a minha vida.
Selena pensou numas quatro respostas duras que poderia dar-lhe, mas refreou a língua.
Não sabia bem por quê. Talvez porque os comentários fortes que fizera no avião não haviam
adiantado de nada. Ou talvez porque seus pais estavam ali, a alguns passos deles, e Jalene
também os observava.
Selena não disse nada, mas ficou firme, fitando-o direto nos olhos, da maneira como ele
próprio já a olhara algumas vezes. Paul retribuiu o olhar. Ficaram assim uns trinta segundos,
Ela virou-se. O rapaz estava a um passo, com a mala dela na mão. Ele entregou-lhe a
valise, que aliás estava bem pesada, e sem fitá-la disse em voz baixa:
se ao povo. Para ela, isso fora a trégua final. Um simples observador que estivesse ali veria
Contudo o pai de Selena não era um simples observador. Assim que chegaram em casa,
ela recebeu os abraços e a acolhida dos dois irmãos mais novos. Em seguida, o pai chamou-a
para sentar-se um pouco na varanda com ele. A Vó May já fora dormir, aparentemente
esquecida de que a neta voltaria nesse dia. Tânia, sua irmã, ainda não retornara do shopping
Selena fez uma xícara de chá de hortelã bem quente, pegou uma manta grossa e
encaminhou-se para a varanda. A velha porta de telinha rangeu como sempre rangera desde
Só que agora era inverno, e a ampla varanda estava bem fria. O pai já a esperava no
pequeno balanço de dois lugares. Ela assentou-se junto dele, segurando a xícara, e jogou a
- Nós todos sentimos muito a sua falta, principiou ele. Estou tão contente de vê-la de
volta!
- Hortelã.
Ele gostava de café forte e bem escuro, uma tradição dos dinamarqueses, mas que
Selena não adotara. Só conseguira tomar café poucas vezes e, assim mesmo, porque colocara
muito açúcar e leite. E o leite vegetal com sabor artificial melhorava ainda mais o café. Na
- De quem?
- Daquele "Indiana Jones" com o chapelão, que não tirava os olhos de você, explicou
Era um gesto convidativo para que ela se achegasse a ele e lhe abrisse o coração. A
moça sabia que não adiantava ficar com rodeios. Harold Jensen conhecia bem seus seis filhos.
Então Selena relatou-lhe seu inusitado encontro com Paul. Falou inclusive do pensamento que
Quando ela terminou, o pai coçou o queixo e relaxou as rugas de preocupação da testa.
- Mas Deus sabe! Você só tem de orar por ele. Eu vou orar também. Todos os dias.
- Por onde começo? Foi a experiência mais maravilhosa de minha vida! Foi muito bom
ter ido.
seguida, pôs-se a dar um relato pormenorizado da viagem. Nesse instante, a mãe chegou com
um longo robe e um chinelo felpudo. Sentou-se numa cadeira de vime em frente do balanço e
se encolheu bem nela. O pai de Selena usava apenas uma suéter e a calça. Contudo não
parecia estar sentindo frio. Ele gostava demais desse tipo de clima. Talvez fosse por causa de
- Ótimo, disse a mãe, tomando um gole do café. Eu queria ouvir tudo. Mandei os
garotos irem deitar e disse para eles que a deixassem dormir até mais tarde amanhã, mesmo
- Obrigada, mãe, falou Selena. E é provável que eu durma o dia todo mesmo. Acho que
Foi então que um carro novinho em folha parou à porta da casa. Era Tânia, a irmã de
Selena. A jovem saltou do veículo, apertou um botão que desencadeou um som melódico e
varanda. Um aroma doce encheu o ar. A jovem trabalhava como balconista na seção de
- Oh, você chegou! disse ela, ao ver Selena. Foi bom por lá?
Selena levantou-se para abraçá-la, já que a irmã não parecia muito interessada em
aproximar-se dela.
garantissem que poderia tomar um banho quente de chuveiro toda manhã e que no lugar
Tânia era assim. Nunca tomava a iniciativa de gestos afetivos, mas retribuía
sinceramente os de Selena. Era uma bela jovem e parecia ser um pouco mais velha do que era
de fato. Sua beleza era realçada pela maquiagem que aplicava com muito bom gosto, pelo
cabelo louro e pelas lentes de contato azuis que usava. Tivera aparelho nos dentes durante três
anos e, desde os dez, tinha aulas de canto. Em muitos aspectos, ela e Selena eram bem
diferentes. Só combinavam porque eram irmãs. Se não o fossem, provelmente nunca seriam
amigas.
- Estou tão dura que você nem imagina, disse Tânia. Esse emprego na Nordstrom veio
na hora certa. Por enquanto estou trabalhando só quatro horas por dia, mas no início de março
- Que bom! exclamou Selena. Quer ir pegar um cobertor e o vir sentar com a gente
aqui?
- Se você não se importa, replicou ela, vou me deitar. Estou muito cansada. Amanhã
você me conta da viagem. Já viu nosso quarto? Pelo menos é um pouco maior que o de
Pineville.
- Os meninos me mostraram assim que cheguei. Minha cama é a que fica perto da
janela, né?
Selena sabia que, como Tânia já estava com tudo ajeitado no quarto, não adiantaria nada
- Não, respondeu. Está bom. O quarto é grande. Só estou achando estranho chegar em
- Bom, seja bem-vinda! falou Tânia, caminhando para a porta. Vou me deitar.
E Selena comentou:
centenas, talvez milhares de vezes: ela gostaria de descobrir um meio de mudar o jeito de
irmã. Parecia que Tânia carregava um grande peso nos ombros por ser filha adotiva.
Obviamente todos a amavam. O pai e a mãe a tratavam da mesma forma que aos outros.
Selena a considerava sua irmã, sua verdadeira irmã. Contudo, alguns anos antes, Tânia
assumira o rótulo de adotiva e passara a ter uma atitude de distanciamento para com os
familiares.
- Ainda nem perguntei o que estão achando daqui, falou Selena encolhendo-se mais
debaixo da manta.
- Claro que para o senhor é mesmo, pai. O senhor morou aqui quando era criança. Mas e
- Pra falar a verdade, replicou a mãe, está melhor do que eu esperava. Há dias em que a
Vó May está ótima. Mas há outros em que fica meio esquecida e nem sabe quem somos. Hoje
de manhã mesmo ela perguntou ao Harold se ele tinha vindo para consertar o encanamento.
- Deve ser terrível para o senhor, não é, pai, ver que a própria mãe não o reconhece,
comentou Selena.
- Não é culpa dela, respondeu ele. Eu disse que era o bombeiro, sim, que era o melhor
de Portland, e indaguei qual era o cano que estava com problema. Ela me levou lá no tanque
do porão e disse que ele estava entupido porque caíra um ioiô dentro do cano.
- E isso aconteceu mesmo, explicou mamãe. Quando seu pai era menino, ele jogou um
ioiô naquele tanque, e eles tiveram de chamar um bombeiro para retirá-lo, senão ia entupir o
encanamento todo. O serviço saiu muito caro, e Vó May ficou relembrando o problema e
- Ah, então quer dizer que agora ela está lembrando fatos que aconteceram no passado e
- Vou ficar muito chateada de vê-la assim, com essas falhas de memória, comentou
Selena. No ano passado ela estava tão bem! O que aconteceu? Será que não há um tratamento
crises, o melhor é concordar. Ela fica muito irritada quando tentamos dizer quem somos e
Selena e seus pais ficaram conversando mais uma hora. Afinal a noite esfriou mais, e a
moça estava com tanto sono que nem conseguia mais falar direito. Abraçou os pais e subiu a
Tânia deixara acesa a pequenina luz do abajur na mesa de cabeceira que ficava entre as
duas camas. Ela lançava um leve clarão amarelado na parede forrada de um papel cor-de-rosa
e nas persianas brancas da janela. Esse quarto fora de Tia Emma, a irmã mais nova de seu pai.
Anos atrás, quando ela saíra de casa, a família passara a usar o cômodo como uma espécie de
quarto de despejo, pois era bem amplo. Selena ainda se lembrava de que sempre que vinha
passar as férias ali, ia lá procurar objetos antigos. Era quase como se fosse um sótão. Agora
haviam tirado as velharias da família e arrumado nele os móveis de Tânia e Selena, e ele se
Selena percebeu que perto da janela estava bem frio. Abaixou a folha que reforçava a
vidraça e protegia o quarto da aragem noturna. Seus pés estavam gelados. Seria gostoso entrar
Antes de se deitar, porém, achou que deveria fazer algo para "batizar" seu novo quarto.
Tinha de fazer em silêncio para não incomodar a irmã. Resolveu orar. Ajoelhou-se ao lado da
cama, de costas para a janela fria, cruzou as mãos e fechou os olhos. Orou em silêncio,
suplicando a Deus em favor da avó, de seus familiares, de si mesma e dos amigos que
Assim que abriu os olhos, quase soltou um grito, mas reprimiu-o a tempo. Havia alguém
sentado em sua cama. Era uma figura vestida com uma camisola branca e em cuja cabeça
havia um halo de luz. Selena sentiu o coração bater fortemente. A figura se ergueu e puxou as
cobertas para que ela se deitasse. Afastando-se da luz, disse para Selena:
- Vó May! sussurrou.
A avó ficou parada, de pé, com sua camisola de flanela, esperando que Selena se
acomodasse. A moça se lembrou do que sua mãe dissera, que deviam agir de acordo com o
está me confundindo com tia Emma? Será que é porque estou no quarto que era dela?
seguida beijou-lhe ambas as faces, como se ela fosse uma garotinha que acabara de fazer suas
orações.
- Agora repita comigo, Emma: "O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para
salvar-te".
Selena hesitou.
- "O Senhor, teu Deus, está no meio de ti, poderoso para salvar-te", falou Selena em voz
"Ele se deleitará em ti com alegria; renovar-te-á no seu amor", continuou Vó May com
ternura.
Em seguida, com movimentos silenciosos, do mesmo jeito como entrara, Vó May foi
- Não me diga que isso é normal, mãe, disse Selena em voz abafada na manhã seguinte.
- Para ela, agora é normal, e todos nós precisamos ter muita compreensão, replicou a
A mãe desligou o fogo da chaleira que estava com água fervendo, e o botão da trempe
- Essa é a outra razão, falou. Esta casa está caindo aos pedaços. É perigoso para ela ficar
aqui sozinha.
- Mas será que não é perigoso para nós ficarmos aqui com ela?
- Claro que não. Ela está tendo crises de perda de memória, é só isso. Você agiu certo,
deixando que pensasse que você era Emma e a ajeitasse na cama. Provavelmente isso é uma
- Ela estava se referindo ao seu tio Paul. Esqueceu que seu pai tinha um irmão que
- Eu nem lembrava mais dele, replicou Selena, pegando uma tigela com um pouco de
mingau de aveia. Isso tudo me dá medo. Fiquei com a impressão de que tinha de dormir com
- Procure imaginar como isso deve estar sendo horrível para ela, disse mamãe. E trate-a
com dignidade.
- Vou tentar.
Selena misturou um pouco mais de leite no mingau, remexendo-o bem. Nesse instante,
Selena não sabia se ela estava referindo-se a ela mesma, a Emma ou a outra pessoa.
Com movimentos lentos, afastou-se da mesa e levantou-se, esperando para ver quem a
dera a cada um dos netos um apelido carinhoso. Aquele era o de Selena. Então foi com um
suspiro de alívio que se encaminhou para os braços da avó e lhe deu um beijo no rosto. Vó
A avó foi até o armário de louça e pegou uma xícara de porcelana. Em seguida, serviu-
se do café forte que estava na cafeteira elétrica. Ela sempre usava uma xícara de porcelana,
até mesmo para beber a água com que tomava o remédio. Não era preciso nem pensar que um
dia ela iria utilizar um vasilhame de plástico. Muito menos de isopor. Era sempre porcelana, e
pronto! Selena se lembrava de que quando era pequena, e a família ia fazer piquenique, além
- Quero que me conte tudo da viagem, queridinha, disse a avó. Ontem à noite eu estava
com muito sono e não conseui ficar acordada para recebê-la. Espero que você não tenha
ficado chateada.
- Claro que não vó, replicou Selena. A viagem foi maravilhosa. Adorei a Irlanda e
Durante alguns minutos, Selena ficou a falar sobre sua viagem. A avó se sentou no
banco almofadado, que havia junto à parede da cozinha, e se pôs a ouvi-la com grande
interesse. A jovem nem conseguia acreditar que se tratava da mesma pessoa que na noite
Nos três dias que se seguiram, Vó May se mostrou normal animada, com uma mente
lúcida e trabalhou bastante. As duas conversaram muito, rindo por causa de qualquer tolice.
Ajudaram a mãe a tirar os objetos das estantes de uma pequena saleta que havia no andar de
baixo da casa. Eram fotos e suvenires que pertenciam à avó, e agora elas iriam colocar no
quarto dela. O pai de Selena instalara nele algumas estantes. A avó parecia muito satisfeita de
Selena estava impressionada de ver como a avó se dispusera a deixar sua família morar
com ela, naquela casa tão tradicional, onde vivera 42 dos seus 68 anos de vida. Era muito
legal de sua parte deixar que sua nora viesse e mudasse tudo. Mamãe até comprara móveis
novos para a sala de visitas, entre os quais um grande sofá-cama. Haviam levado o pequeno
aparelho de televisão da vovó para o quarto dela. Ele só tinha antena interna, e a imagem
aqueles móveis diferentes. O pai estava remodelando um barracão que havia nos fundos da
casa. Ele montara ali sua banca de trabalho e estava transformando o cômodo em um quarto
de brinquedos de estilo antigo. Contudo o que estava fazendo ali não tinha nada de
brincadeira, pois colocara vários ganchos na parede e pendurara neles suas ferramentas.
Dilton e Kevin, os irmãos de Selena, adoravam ir para lá, com machados e serras, e também
Então, na véspera do dia em que as aulas iriam começar, Vó May teve outra crise de
memória na hora do jantar. Estavam todos sentados à bela mesa de mogno da sala de jantar
- Rapazinho, você não pode sair da mesa enquanto não comer a verdura toda.
Em seguida, ela se levantou e foi para a cozinha, com seu prato de comida ainda cheio.
Kevin, de seis anos, o rostinho coberto de sardas, olhou para a mãe com ar meio aflito:
- Eu sei, meu bem, replicou a mãe. Ela está um pouco confusa. Deixa pra lá.
Alguns instantes depois, Vó May retornou. Usando uma luva de pegar panelas, segurava
com uma das mãos uma assadeira com torta de maçã e, com a outra, uma faca.
- Olhe, gente, eu disse para o Ted que iríamos guardar um pedaço desta torta para ele,
- Acho que vou cortar para vocês, para ficar tudo igual. Só temos esta torta, portanto ela
para aquecer.
- Oh mãe, interveio Dilton, será que não é perigoso ela ficar andando assim com facas?
O garoto tinha oito anos e se parecia muito com o pai, só que com mais cabelo. Era um
menino sério, com ar responsável. Parecia achar que sua missão na vida era proteger Kevin,
seu irmão mais novo. O pequeno era muito afoito, e Dilton achava que ele só chegaria com
vida à idade adulta se estivesse sob sua proteção. Alguns anos antes, ele vira o irmão
brincando de guerreiro Ninja com uma faca de cozinha. Ao tentar tomá-la do pequeno, tivera
- Vamos ficar de olho nela, replicou a mãe, virando-se para o marido em busca de
apoio.
Ele se dirigiu para a cozinha e, por alguns instantes, ninguém ouviu nada. Todos
- Deixaram, deixaram. Agora a senhora pode subir para dormir. Vou mandar as crianças
Vó May foi arrastando os pés devagarinho corredor abaixo, e papai voltou para a mesa.
Parecia preocupado.
Papai acenou que sim e enfiou o garfo no seu purê de batatas, que a essa altura já estava
frio.
- Ela estava passando tão bem nos últimos dias. Achei que não iria mudar assim tão de
repente...
- Ela achou que éramos os filhos dela e que ela estava servindo o jantar como sempre
Selena viu a mãe dar uma olhada significativa para o marido, como se tivesse
perguntando:
Quando Selena foi se deitar, ficou um bom tempo pensando na codição da avó. Seu
organismo ainda não se adaptara ao fuso horário, e estava trocando o dia pela noite. Sentia-se
ansiosa em relação à nova escola onde iria estudar. As aulas se iniciariam no dia seguinte.
Agora havia também essa tensão relacionada com a avó. Ela não era assim tão idosa. Tinha 68
anos e ainda estava forte e com saúde. Parecia uma injustiça, uma crueldade, a avó estar com
a mente abalada e, ao mesmo tempo, com condições de viver ainda muitos anos.
Ted, o avô de Selena, falecera quando ela era criança. Tinha a vaga lembrança do
enterro dele e não sabia de quê ele morrera. Durante mais de trinta anos, ele trabalhara como
construtor, profissão que herdara do pai dele. Aliás, fora o bisavô de Selena quem, em 1915,
construíra a casa em que agora moravam. Essa era uma das razões por que Vó May não queria
vendê-la. Ademais, Selena sabia que o pai nunca iria internar a mãe numa casa de repouso
para idosos. Então, agora, aqui estavam eles, procurando adaptar-se a uma nova cidade, ao
Tânia entrou no quarto. Selena ainda estava imersa em seus pensamentos. Um perfume
- Ainda estou acordada, Tânia, disse ela. Não precisa fazei silêncio.
- A Vó May piorou hoje outra vez. Achou que todos nós éramos filhos dela.
- Você precisava ter visto no dia em que chegamos, comentou Tânia. Ela pensou que
éramos pedreiros e que tínhamos vindo para consertar a casa. Eu queria que houvesse um
- É, eu também. A gente fica tensa só de pensar que vai envelhecer e pode acabar
Provavelmente essa doença é hereditária. Você tem os genes dela; eu não. Pelo menos, você
já sabe o que pode lhe acontecer quando envelhecer. Eu não tenho a menor idéia de minha
Tânia já fizera comentários desse tipo outras vezes. Volta e meia assumia essa atitude
de mártir. Por outro lado, o que dizia era verdade. Ela não conhecia as condições de sua
Tânia.
armário.
O lado de Tânia no armário era todo muito bem arrumado. Tudo estava nos seus
Selena era bem desorganizada. Se precisasse passar, e houvesse algo no caminho, ela
simplesmente o afastava para um lado. Se não encontrasse a roupa que queria vestir, arranjava
outra. Ficou pensando no que a irmã dissera. Selena ergueu-se ligeiramente e se apoiou num
- Assim que tiver dinheiro suficiente, vou procurar minha mãe biológica, replicou
Na segunda-feira de manhã, a mãe de Selena saiu com ela para levá-la de carro até o
Colégio Evangélico Royal, que ficava cerca de dezesseis quilômetros de onde moravam.
Estava chovendo, como sempre, e Selena ficou sentada em silêncio alguns minutos no banco
carro. Olhou para sua blusa azul de malha grossa, para a saia com a estampa imitando colcha
de retalhos e para as botas de cowboy. Levou a mão à orelha para se lembrar de qual fora o
Pela primeira vez na vida, Selena se preocupava com as roupas que usava. Em Pineville
fora fácil manter sua individualidade. A escola era pequena, e ela era bastante popular, pois
todos os professores já conheciam seus irmãos mais velhos que haviam estudado ali antes
dela.
Agora iria iniciar seu primeiro dia de aula numa escola particular. Imaginava que os
outros 280 alunos eram todos clones uns dos outros. Todos deviam usar roupa azul-marinho e
meia branca.
- Mãe, disse Selena, no momento em que entravam na via expressa e ela aumentava a
velocidade. Estou começando a achar que essa idéia de estudar num colégio evangélico não
foi muito boa. Sempere frequentei escolas públicas, a não ser naquele ano em que a senhora
me deu aula em casa. Acho que não vou gostar. Não é do meu jeito.
Normalmente a mãe de Selena era muito paciente. A garota sabia que a qualquer hora
poderia chegar para ela e conversar sobre tudo. Entretanto dessa vez foi diferente. Mamãe
- Nós já conversamos sobre isso, replicou ela, com certa aspereza. Quando tomamos a
decisão de vir para cá, falamos sobre isso, e você disse que gostaria de ir para um colégio
- Eu sei, replicou Selena. Mas isso foi antes da minha viagem para a Europa. Acho que
não vou ter nada em comum com os alunos dessa escola. Não sou igual a eles.
- E como é que sabe disso, se ainda não viu a escola nem conhece nenhum dos alunos,
hein? indagou mamãe, aumentando a velocidade do limpador de pára-brisas. Isso não é típico
de você, Selena, ter medo de situações novas. Onde está seu espírito aventureiro?
- Não sei.
- Então faz uma tentativa, insistiu a mãe, no momento em que saíam da via expressa e
rodavam pela rua da escola. Só peço que você experimente uma semana. Depois voltamos a
conversar. O.k.?
Ela parou o carro em frente à entrada principal. Selena hesitou por um momento. Viu
alguns alunos entrando no prédio. Usavam roupas normais; não modelos antiquados nem
uniformes.
- Venho pegá-la às 3:00h, falou mamãe, inclinando-se para olhá-la através da janela do
Selena fez um esforço para sorrir. Não foi difícil achar a secretaria. Assim que entrou,
uma mulher de óculos e de cabelo ondulado veio para ela sorridente e lhe disse:
- Aqui está o horário das aulas, alguns papéis com informações e um anuário para você.
localização dos escaninhos e a hora do almoço. Disse também que ela poderia inscrever-se no
- O Ronny vai vir aqui, continuou a mulher. Pedi a ele que lhe servisse de cicerone hoje.
- Não! Não consegue não! A escola é muito grande e você pode se perder aqui dentro, o
Selena teve vontade de dizer-lhe que na semana anterior ela estava numa localidade na
região dos lagos, na Inglaterra, fora sozinha para o Aeroporto de Heathrow, em Londres, e em
seguida viera para Portland. Era óbvio que conseguiria encontrar o escaninho 117 sem a ajuda
de um "guia".
Nesse momento, um rapaz alto, de cabelo meio longo, entrou na secretaria. Selena ficou
surpresa. Tinha pensado que naquela escola houvesse um regulamento proibindo cabelo
comprido. Na verdade, não era longo demais; apenas uns dois centímetros abaixo da orelha.
Era louro e todo penteado para trás. Ela se surpreendeu também com a roupa de Ronny. Ele
usava uma jaqueta marrom-claro, que tinha um capuz com forro de lã. Se Selena encontrasse
um blusão igual ao dele num dos brechós de que tanto gostava, iria pensar que achara um
O rapaz apresentou-lhe o braço para que ela o segurasse, como se ambos fossem
padrinhos de um casamento e tivessem de entrar pelo corredor central da igreja. Selena fez
- Ganhei do meu pai. Ele a trouxe do Nepal. Olha, seu escaninho é aqui. Ela lhe deu o
segredo do cadeado?
Selena ficou alegre de saber que havia pelo menos uma pessoa ali que conhecia alguém
que já estivera fora do país. Pegou o papel onde estava escrito o segredo e girou os números
- É assim que damos as boas-vindas aos nossos novos colegas, disse Ronny. Agora você
Selena sentiu-se meio perdida, sem saber o que pensar. As pessoas iam passando por ela
e muitas a olhavam, mas não paravam. Ainda estava com as mãos cheias de objetos, mas teria
de pegar os balões e resolver o que fazer com eles. Ronny limitou-se a ficar de pé ao seu lado,
olhando-a. Fora uma bela surpresa. Em Pineville não faziam nada semelhante.
Ele pegou um deles, apertou-o entre os dedos e furou-o com os dentes. O ar saiu
assoviando. Em seguida, furou mais alguns, enquanto Selena tentava enfiá-los de volta dentro
do escaninho. Como ainda não tinha livros, não precisaria guardar mais nada dentro dele.
- Vamos lá. Vou lhe mostrar onde são as salas. Qual é sua primeira aula?
Ele apontou para uma sala, mas continuou caminhando corredor abaixo.
- No fim deste corredor, está o ginásio de esportes. Na hora da aula de Educação Física,
você entra naquela porta do fundo à direita. Aquele corredor ali, prosseguiu ele, apontando
para a esquerda e ainda andando, é a área do primeiro grau, as turmas de quinta a oitava
A sineta tocou, no alto da parede. Ronny virou-se e se pôs a caminhar na direção oposta
- Não. Mas não precisa se preocupar. Tenho certeza de que descubro onde fica.
Estavam de volta à sala para a aula de Inglês. Ronny parou à porta e deixou Selena
- Pessoal, esta aqui é a Selena, nossa nova colega, declarou ele em voz alta.
Selena sentou-se na primeira carteira que viu, ciente de que todos os olhares estavam
fitos nela. Não sabia bem por que mas aquela acolhida amistosa a irritava. É claro que a
escaninho, fora boa. Contudo aquilo a deixara meio incomodada. Achava que estava tendo
uma recepção por demais afetuosa. Pensara que encontraria uma escola cheia de gente esnobe,
que iria simplesmente ignorá-la. Assim teria sido mais fácil entrar e sair sem ser notada.
Facilitaria também sua mudança de escola, após a semana de experiência que a mãe
- Olhe! disse uma garota que usava um vestido de tecido tipo colcha de retalhos.
Selena ficou espantada. Suas roupas nunca eram iguais às de outros colegas. Jamais!
- Onde você comprou sua saia? Foi na Wrinkle in Time? Continuou a outra.
A garota tinha olhos castanhos bem expressivos e a pele morena azeitonada.
Não deu mais explicações, pois a professora estava iniciando a aula, e todos os colegas
A professora deu uma breve palavra de boas-vindas para Selena, que ficou aliviada ao
ver que ela o fazia com certa discrição, sem chamar demasiadamente a atenção dos outros
para a nova aluna. A maior parte da aula foi expositiva, e não debate em classe. Selena achou
Manteve-se calada e bem reservada em todas as aulas. A hora do almoço, dirigiu-se para o
refeitório da cantina e teve de sentar-se perto de Ronny e alguns amigos, pois o rapaz fez
questão disso. Contudo limitou-se a responder às perguntas dos colegas com "sim" ou "não".
Com isso, eles passaram a conversar sobre outros assuntos e se esqueceram dela. Era
Assim que ela e a mãe entraram em casa, após as aulas, ouviram a voz de Vó May,
chamando-a da cozinha.
Selena olhou para a mãe, como que pedindo uma explicação. Mamãe apenas deu de
ombros. A garota entendeu que a estava vivendo o presente, já que a tratara por “queridinha”.
Ela acabou de abotoar o paletó vermelho e levantou um pouco a gola, que era de peles.
Em seguida colocou um chapéu e encaminhou-se para a porta. Vó May estava muito elegante.
Selena foi guiando cuidadosamente até à loja. As ruas estavam bem escorregadias e,
ademais, fazia mais de um mês que ela não saía com o carro. Sentia-se meio sem jeito ao
Anteriormente, sempre que a família vinha passar as férias com a avó, esta levava os
netos à Eaton's nas tardes de verão. Ali havia uma daquelas sorveterias antigas e um balcão
com tampo de fórmica para os clientes. Ao redor dele, havia tamboretes com assentos
forrados de vermelho. Selena já tomara ali muitos sorvetes e milk-shakes. Era uma das poucas
lojas que ainda funcionavam do mesmo modo desde sua fundação, cinqüenta anos atrás.
Algumas das mais antigas da rua haviam sido demolidas ou remodeladas e transformadas em
Pararam no estacionamento e seguiram para a entrada da loja, procurando não pisar nas
guizo soou, anunciando a chegada das clientes. Selena viu sua mmente inundada de
recordações da infância.
___________________
*Nos Estados Unidos, por causa do frio rigoroso do inverno, as portas das lojas normalmente ficam
- O que a senhora vai querer hoje, Vó May? indagou Selena, encaminhando-se para o
balcão de medicamentos.
A avó foi para outra direção - para o balcão de sorvete. Selena seguiu-a e sentou-se num
tamborete ao lado da avó, ainda sem entender direito o que estava acontecendo.
- Olá. May! exclamou uma mulher uniformizada que atendeu ao balcão. Como está
passando?
Selena reconheceu-a. Ela trabalhava ali desde que Selena era pequena.
- Muito bem! respondeu Vó May. Ângela, essa aqui comigo é a filha do Harold,
- Claro! É a Selena, não é? Puxa, como você cresceu, menina! Soube que fez uma
___________________
**”Ilha Esmeralda”, nome dado à Irlanda. (N.da T.)
- Ah, acho que você irá, sim, disse a mulher em tom meigo. May sempre diz que você
tem um espírito meio aventureiro. E então, o que as duas vão querer hoje?
- Queremos o que sempre tomamos no primeiro dia de aula, dois copos. E eu quero
também uma xícara de café. Você quer mais alguma coisa, queridinha?
Como Selena não sabia o que era o que sempre tomamos no primeiro dia de aula, pediu
também um copo de água. Vó May olhou para a neta com um sorriso no rosto.
- Seu pai lhe contou que eu fazia isso com todos os meus filhos? No primeiro dia de
aula, vínhamos aqui na Eaton’s e pedíamos milk-shake de chocolate. Com isso, eles ficavam
ansiosos para chegar o dia, para que pudessem vir aqui. A última vez que fiz isso foi quando
Ângela trouxe o copo de água e o café. Logo Vó May se pôs a prepará-lo a seu modo.
Primeiro, adicionou leite de uma leiteirinha que a balconista lhe dera, derramando a
movimento de seus dedos eram leves e coordenados. Ela pegou a colher, como se fosse uma
- Houve um ano, continuou Vó May, em que trouxe todos os meus filhos, e ocupamos
Selena sabia que a avó sempre fora muito criteriosa para gastar dinheiro, e espantou-se
de saber que ela comprara sete milk-shakes só porque era o primeiro dia de aula.
- Bom, aqui é muito diferente de Pineville, principiou. A primeira diferença foi antes da
aula de Inglês. A professora leu um verso da Bíblia e fez uma oração. Aliás, uma prática
- É mesmo, disse a avó. E era assim que deveria ser em todas as escolas.
Nesse momento, Ângela trouxe os milk-shakes e colocou-os sobre a mesa. Entregou-
- E eu que costumava tomar um desses sozinha, disse Vó May, dando uma risadinha.
- Obrigada, Vó May, disse ela. Foi muita bondade sua me trazer aqui. E eu agradeço
mesmo.
Selena ficou pensando em algo para contar. No fundo, ainda estava planejando deixar
esgotar-se a semana de experiência e depois dizer aos pais que queria mudar para uma escola
pública. Contou a Vó May sobre os balões que haviam colocado no escaninho. Disse que
- Ah, e depois, em minha classe, havia uma garota com um vestido de um tecido igual
ao da minha saia. Isso não acontece com muita freqüência, não é mesmo?
- E então, quando você tiver de sair para fazer compras, deve chamá-la para ir junto.
Selena ficou meio irritada com o comentário da avó. Ninguém tinha o mesmo gosto que
ela. Suas roupas eram sua "marca registrada". Eram só dela, e de mais ninguém.
- Aliás, você deveria convidá-la para vir à nossa casa. Como é que ela se chama?
- Não sei.
Vó May olhou para a neta meio decepcionada, abaixando um pouco a pálpebra do olho
direito, que já era meio caída. Não disse nada. Com gestos leves, pegou a xícara de café e
levou-a aos lábios. Sorveu a bebida devagarinho. Selena compreendeu que precisava mudar
de assunto.
- Vó, lembra-se de Katie, aquela outra garota de que falei que conheci em Carnforth? Eu
a convidei para vir aqui. Talvez ela venha nas férias. Acho que a senhora vai gostar dela.
- Você conheceu outros colegas hoje? indagou Vó May, rejeitando o novo rumo da
conversa.
- Conheci.
- Conheci uma rapaz chamado Ronny. Estava com uma queta muito legal. E ele disse
Selena estava ciente de que não era bem sobre isso que Vó May queria conversar. Não
dava para mudar de assunto. As perguntas dela deixaram Selena com um pouco de sentimento
de culpa, embora a avó não houvesse dito nada com intenção de repreendê-la.
Ângela voltou e serviu mais café a Vó May. A garçonete conversou animadamente com
a avó, o que deixou Selena bem satisfeita. Assim ela não ficaria fazendo mais perguntas sobre
a escola. Já fora difícil ficar vasculhando a mente à procura de respostas para as indagações de
Vó May tomou outro gole de café e do milk-shake. Nesse momento, entrou um senhor
idoso que se sentou num dos tamboretes. Ele cumprimentou Vó May, e os dois trocaram
habituais perguntas formais. Ao que parecia, o velho conhecia Selena, mas ela mesma não
lembrava se ele era um vizinho ou apenas um conhecido. Com a chegada dele, Vó May parou
Quando se levantaram para sair, Vó May deixou uma moeda de vinte e cinco centavos
como gorjeta. Selena achou que era muito pouco. Se tivesse dinheiro ali, teria posto um pouco
mais no balcão.
Ao sair do prédio, viram que o sol aparecera em meio às nuvens, formando pequenos
Saíram rodando por entre as casas do bairro. Agora entendia por que Vó May teimava
em não se mudar dessa área. Além de o bairro ser muito bonito, ela tinha ali vizinhos e
amigos de muitos anos. Sua vida estava toda ligada a esse lugar. De certo modo, Selena tinha
inveja dela.
Capítulo Dez
No segundo dia de aula, Selena continuou com a mesma atitude de simples observadora
desinteressada. Durante quase todo o dia, respondeu apenas por monossílabos ao que os
outros disseram ou fizeram. Só houve um momento em que ocorreu algo diferente. Após as
aulas, quando acabava de fechar a porta do seu escaninho, viu passar alguém que levava às
costas uma mochila de couro marrom. Ela já vira uma igual, a de Paul.
Saiu andando corredor abaixo para ultrapassar o rapaz e depois virar-se para olhá-lo,
como quem não quer nada. Sabia que não poderia ser Paul, de jeito nenhum. Ele não estaria
Quando já se achava a uns três passos à frente dele, virou-se e olhou para o rapaz. Era
um colega que se sentara próximo dela na aula de Biologia. Ele a fitou e dirigiu-lhe um
sorriso tímido.
Pronto! Agora ele vai pensar que estou querendo a atenção dele!
Não que ele fosse feio ou algo assim. Não era. Era bastante comum em tudo - altura
mediana, cabelo castanho, rosto muito simples. Parecia uma pessoa cujo sorvete preferido
seria o de creme. Não era o tipo de que ela gostava. Provavelmente não possuía nenhum ponto
De repente se deu conta de que estava comparando outros rapazes com Paul, e isso a
aborreceu. Por que estava agindo assim? Nem conhecia Paul direito. Nunca mais iria vê-lo.
Selena continuou seguindo pelo corredor, saiu pela porta principal e pouco depois
- E aí? indagou ela, manobrando o veículo para sair. Hoje foi melhor?
- Amanhã não vou precisar do carro, continuou mamãe. Se quiser, pode vir com o fusca.
Selena sabia o que ela estava querendo dizer. Na noite anterior, à mesa do jantar, a mãe
sugerira que ela entrasse para um dos clubinhos da escola. A jovem replicara que a reunião
dos clubinhos era realizada sempre após as aulas, uma desculpa para rejeitar a sugestão da
mãe. Agora ela lhe apresentava um recurso para rebater sua recusa.
- Está bem, concordou Selena, para evitar mal-entendidos. Amanã venho de carro.
No restante do trajeto, ela procurou ficar atenta para aprender bem o caminho. E no dia
seguinte, de fato, não teve problemas na ida. Na volta, porém, a história foi outra. Saiu assim
que as aulas terminaram e chegou à via expressa sem dificuldades. Contudo passou do lugar
onde deveria pegar o trevo para chegar ao seu bairro e acabou encontrando um tráfego
pesado, indo para o centro da cidade. Não quis tomar a saída seguinte, pois não tinha certeza
se haveria um trevo para voltar à expressa e pegar a rota certa para chegar em casa.
Selena passou pelas duas saídas seguintes sem entrar nelas. Na primeira não havia
retorno para a expressa. Na segunda havia, mas ela só percebeu isso depois de já haver
passado dela. Daí a pouco se deu conta de que estava se aproximando de uma das grande
Com aquele carro pequeno, sentia-se meio prensada no meio dos veículos maiores que a
pensar que estava passando sobre o rio, começou a ficar nervosa. Em Pineville não havia
pontes longas como esta. E ela nunca pegara um tráfego tão intenso assim.
Selena encolheu os dedos dos pés dentro da bota e ficou a repassar as opções que tinha.
Poderia ir a um telefone público e ligar para o pai, pedindo-lhe que fosse buscá-la. Não.
Também poderia perguntar a alguém como chegar ao bairro onde morava. Era uma boa
alternativa. Contudo o melhor mesmo seria encontrar ela própria o caminho. Se pudesse pegar
um retorno e voltar pela mesma rota em que viera, tudo estaria resolvido.
cidade, onde havia várias nruas de mão única. Assim que foi possível, virou à direita e depois
novamente à direita. Estava dirigindo-se para um trevo que dava entrada para a via expressa.
- O. k.! O. k.! gritou para um motorista apressado atrás dela. Ele buzinara, pois Selena
estava rodando muito devagar. Acelerou um pouco mais, desejando que os pais já tivessem
trocado a placa do veículo. Imaginava o homem do carro de trás berrando: "Vá embora daqui,
californiano!"
Resistiu à tentação de olhar para ele pelo retrovisor. Além disso, tinha de concentrar-se
bem para decidir o que faria, como por exemplo, qual saída deveria pegar. Rodou um bom
pedaço sem ver nenhuma. A primeira que encontrou não lhe pareceu ser a certa. Resolveu
mudar de pista para não dar numa saída obrigatória. Mas era tarde. O motorista do carro que
vinha atrás dela chegara junto demais. E como o fluxo de carros estava intenso, não conseguia
passar à pista da esquerda. Não teve outra opção senão pegar a rampa de saída.
Foi rodando meio sem rumo. Em momentos como esse, porém, seu espírito aventureiro
despertava, e ela não deixava que circunstâncias difíceis a assustassem. Andou alguns
quarteirões e afinal chegou a um posto de gasolina. Estacionou numa das vagas laterais e foi à
Assim que saiu da loja, viu um carro esporte entrando no posto. Ao volante estava uma
jovem muito parecida com Jalene. Não, não havia dúvida. Aquela era mesmo a namorada de
Paul. Mas parecia estar sozinha. Pensou em conversar com ela, mas será que a moça a
reconheceria?
Enquanto debatia consigo mesma, viu chegar um jipe com o rádio ligado no último
volume. Nele havia dois rapazes com cerca de vinte anos. Lembrou-se de que já vira ali
outros jovens com jeito de estudante. Deduziu que deveria estar perto da Faculdade Lewis e
Pela primeira vez naquele dia, Selena começou a sorrir. Voltou para o carro e abriu o
mapa.
A Katie talvez dissesse que o fato de eu ter me perdido e ter acabado nas imediações da
faculdade é uma coisa de Deus. E se eu desse uma volta pelo campus e olhasse por aí? Quem
sabe Deus me trouxe até aqui para que eu topasse com o Paul?
duas quadras da escola. Sentiu o coração bater forte. Os pais não iriam se preocupar se
demorasse a chegar, pois a mãe até a incentivara a ficar no colégio após as aulas. Apesar de
tudo, tinha a sensação de estar enganando-os. Deveria ligar para casa? Seria bom. Abriu a
mochila à procura de algumas moedas e do papel onde estava o número de telefone. Incrível,
mas ainda não o decorara. Lembrar números não era o seu forte.
Pegou o papel, desdobrou-o e soltou um resmungo. Ele devia ter-se molhado, pois a
escrita estava manchada. Poderia discar diversos algarismos até chegar ao certo. Não. Tinha
dinheiro trocado, que não seria suficiente para várias ligações. Poderia discar para o auxílio à
Rasgou o invólucro do chocolate e deu uma mordida. Lembrou-se de que seu irmão
Cody certa vez lhe dissera que era melhor dizer: "Desculpe-me, mãe!" do que "Posso ir, mãe?
Essa atitude se aplicava à situação que vivia naquele momento. Se ligasse para casa e dissesse
à mãe que queria dar uma volta pelo campus da faculdade, era provável que ela lhe dissesse
para voltar imediatamente e que, mais tarde, poderia fazer uma visita à escola junto com ela.
Entretanto não fora intencionalmente que se perdera e acabara chegando ali. Fora por
acaso; não tinha culpa disso. Então poderia dar uma volta pela escola e, depois olhando o
devagar. Resolveu adotar a primeira opção: "Desculpe-me, mãe". Não estaria desobedecendo,
nem nada. Seu pai já lhe falara que na vida havia alguns fatos que se achavam na "zona de
penumbra", que eram meio imprecisos. Nesses casos, o jovem teria de tomar uma decisão
sozinho e depois arcar com as conseqüências. Essa situação era um desses fatos. Não haveria
problema algum. Que mal poderia haver em uma simples volta no campus de uma faculdade?
Começou a cair uma chuva leve. Selena colocou na boca o último pedaço do tablete de
chocolate e se pôs a manobrar o fusca para sair da vaga. Parou à entrada da rua para esperar
que os carros passassem e ela pudesse se misturar ao tráfego. Olhando pelo retrovisor, viu que
Jalene se achava logo atrás. Duvidava de que ela a tivesse visto, e se tivesse, provavelmente
não a teria reconhecido como a jovem que encontrara no aeroporto uma semana antes.
Assim que deu para sair, entrou no tráfego e rodou dois quarteirões, chegando ao portão
da universidade, com Jalene logo atrás. Selena desejou que as posições estivessem invertidas,
isto é, que ela tivesse seguindo a namorada de Paul. Quem sabe? Talvez Jalene estivesse indo
encontrar-se com o rapaz e assim ela poderia vê-lo. Isso seria bem mais interessante.
Bem lá no fundo, porém, Selena sentia que havia algo errado. Uma vozinha suave lhe
dizia que ela se afastara da "área de segurança". Entretanto, ao mesmo tempo, havia um
impulso interior que a instigava a arriscar-se. Seu espírito aventureiro veio à tona, e ela
Selena ficou de olho no carrinho da outra, que parou num estacionamento ao lado de um
prédio de seis andares. Uma das fachadas dele era só de janelas. Ela se perguntou se seriam ali
as salas de aulas. Viu Jalene sair do veículo carregando alguns livros e correr para a entrada
debaixo da chuva. Talvez fosse a biblioteca. Ela também poderia ir à biblioteca, não poderia?
Estacionou, saiu do carro e foi correndo para a porta. De fato, era a biblioteca. E dentro havia
muitos estudantes. Quais seriam as probabilidades de Paul estar ali? Perdera Jalene de vista.
Passou pela recepção e pelo arquivo de fichas e parou. Junto às janelas havia diversas
divisórias, todas ocupadas. E se Jalene tivesse vindo ali para se encontrar com o namorado? E
se os dois estivessem sentados numa daquelas repartições e Selena desse de cara com eles de
"Sua namorada veio me seguindo até aqui, e agora eu é que estou atrás dela."?
Olhou para um lado e para o outro. Sentiu vontade de ficar por ali simplesmente porque
achou o ambiente agradável. Gostava de estar entre jovens mais velhos que ela. Sentia-se
mais à vontade com eles do que com os adolescentes do segundo grau. Os estudantes do curso
superior eram mais maduros, algo que ela apreciava. Ela se via mais como universitária do
Virou-se, achando que era Paul, mas ao mesmo tempo com receio de encará-lo. Deu
com um rapaz de óculos, mais baixo que ela. Ele segurava uma pilha de livros, que mudou
- Você está com um papel de chocolate agarrado na sua... é... aí atrás, disse ele, olhando
Selena virou-se para ver o que ele quisera dizer. O invólucro do tablete de chocolate
grudara no traseiro de seu jeans. Ela andara pela biblioteca toda daquele jeito!
No ponto de onde o tirou ficou uma mancha de chocolate e caramelo. Selena virou-se e,
com passos firmes, atravessou a sala, saiu e foi direto para o carro.
Capítulo Onze
Selena não contava pegar um tráfego tão intenso. Era a hora do rush. Estudando
atentamente o mapa, descobrira como poderia chegar à via expressa. Agora, porém, a estrada
estava igual a um estacionamento - cheia de carros. Parecia que toda a população da cidade
resolvera ir na mesma direção que ela. O melhor a fazer então, era seguir devagar e ligar o
Margaret Becker, uma cantora de que Selena gostava muito. A certa altura, ela deu uma nota
Pôs-se a cantar junto com ela e, de vez em quando, dava olhadas rápidas para o mapa.
Chegou em casa às 5:10h. Assim que entrou, percebeu que ia haver "tempestade".
- Eu me perdi, foi logo dizendo, antes que a mãe tivesse tempo de explodir. Acabei indo
dar na Faculdade Lewis e Clark. Então comprei um mapa para aprender o caminho. Mas o
Ela estava com os braços cruzados e o rosto vermelho, mas parecia ligeiramente
- Selena, falou a mãe, abanando a cabeça. Não vou aceitar essa desculpa, não.
- Você já sabe ligar para o auxílio à lista. Esse papel manchado não é desculpa. Agora
Isso é que era o pior - jantar sem ter resolvido o problema. Obviamente iriam conversar
sobre ele à mesa. Preferia que a mãe ou o pai tivessem brigado com ela e terminado logo com
tudo. A verdade era que nenhum deles gritava com os filhos. Sempre resolviam as questões
por meio de diálogo. Todos tinham liberdade de se explicar e dar sua opinião a qualquer
momento.
O pai orou, dando graças pela refeição, e em seguida pediu a Selena que explicasse de
novo o que lhe acontecera. Ela repetiu a história toda. Dessa vez mencionou que tinha ido à
biblioteca.
Até esse momento, ela permanecera calada. Selena receou que ela estivesse com outra
crise de volta ao passado. Mas a avó só ficou olhando para o prato, comendo tranqüilamente.
Selena.
- Ah. sim, falou Vó May. Você tinha um tio chamado Paul. Sabia disso, queridinha?
Quando ele era garoto, certa ocasião, ele trabalhou como entregador de jornais em Laurel
Hurst. Um pneu da bicicleta furou bem antes de ele terminar o serviço. Sabe o que ele fez?
Todos ficaram a ouvi-la atentamente, contentes pelo fato de ela estar falando do passado
como passado. E Selena se sentia satisfeita porque aquilo fizera com que se esquecessem do
probelam dela.
- Em vez de ligar para casa, continuou a avó, ele foi acabar de entregar os jornais
empurrando a bicicleta. Depois voltou para casa a pé, debaixo de chuva. Chegou aqui com
uma hora e meia de atraso. A essa altura eu já estava achando que ele fora sequestrado, ou
coisa pior. Assim que ele entrou em casa, imagine só, eu gritei com ele.
Vó May cortou um pedacinho de seu frango e colocou-o na boca. Por uns instantes,
- Você devia ter telefonado, disse mamãe, já mais calma, mas ainda querendo dar seu
recado. Aqui não é Pineville. Você não pode rodar por uma cidade grande como esta, achando
- É, mas sabemos aonde vai, onde está e a que horas voltará para casa. Se ela se atrasar,
sabemos onde vamos procurá-la. Isso é completamente diferente do que você fez hoje. Não
- É claro que você pode ir para a escola de carro, falou papai. Mas quando for a outro
- Lembra que uma semana atrás eu estava do outro lado do mundo? E consegui vir da
Inglaterra até aqui sem problemas. Será que eu não saberia me virar em Portland?
- Não é essa a questão, insistiu o pai. Todos sabemos que você sabe se cuidar. Tem uma
maturidade e um senso de independência que muito jovem da sua idade não tem. Entretanto
isso não muda o fato de que você tem dezesseis anos. Deus confiou sua vida a nós. Enquanto
não for maior, eu e sua mãe teremos de estabelecer seus limites. Obviamente será você quem
bem.
- Então, disse mamãe, bem mais tranqüila, você concorda que sempre que quiser ir a
algum lugar, que não seja a escola, tem de verificar antes comigo ou com seu pai?
Selena ficou a imaginar se sua mãe sofrerá com os mesmos temores que a avó tivera
com relação a seu tio Paul. Sentiu certo remorso por ter-lhe causado aquelas preocupações.
- Ótimo! exclamou Kevin, empurrando o prato. Será que agora a senhora pode trazer a
sobremesa, mãe?
Selena dera apenas algumas garfadas em sua comida. E enquanto o restante da família
- Só dei uma olhada. É um prédio enorme. Gostaria de voltar lá algum dia, com a
Mamãe sorriu.
- Só com um cara que disse que tinha um invólucro de chocolate grudado na traseira de
minha calça.
- E você ficou andando pela biblioteca com o papel na roupa? perguntou papai.
- Fiquei.
sofrera um acidente de carro, e enquanto isso você circulava por uma faculdade com um rabo
de papel de chocolate. E o cara que lhe falou disso talvez estivesse mais sem graça que você.
Certo?
Mamãe foi à cozinha e voltou com uma travessa de biscoitos e uma leiteira. Em vez de
continuar à mesa para comer a sobremesa, Selena pediu licença e foi para o quarto,
prometendo voltar um pouco mais tarde para ajudar a lavar as vasilhas. Deitou-se na cama e
se pôs a pensar, querendo descobrir por que estava sentindo-se interiormente inquieta.
O problema com os pais estava resolvido e, ao que parecia, a avó passava bem. Além
disso, ela própria não estava tendo conflitos com Tânia. Contudo algo incomodava Selena.
Seria a preocupação com a escola? Provavelmente. Ela queria já ter terminado o segundo
grau. Isso mesmo. Desejava estar na faculdade, convivendo com estudantes universitários,
Foi então que lhe ocorreu um pensamento vago, algo que Katie falara numa das últimas
noites que haviam passado em Carnforth Hall. Ela dissera que estava com saudades dos anos
da adolescência. Naquele momento, Selena achara estranho que ela dissesse aquilo. Todavia,
agora, achava o comentário dela linda mais estranho pois ela própria estava ansiosa para se
tornar adulta.
Será que não vou me arrepender de querer correr com a vida? Será que mais tarde vou
desejar ter ido mais devagar e ter curtido melhor esta fase?
Apesar de tudo, continuava com a idéia de se transferir para uma escola pública. Desse
modo, não iria se destacar muito, já que o número de alunos seria maior. Aqui ela não tinha
necessidade de ser popular, como acontecera em Pineville. Só queria que o ano e meio que
faltava para se formar passasse o mais depressa possível. E se fosse apenas mais uma aluna
entre os milhares de estudantes de uma escola pública, o tempo iria mais rápido.
No dia seguinte, por causa da firme decisão de sair do Colégio Royal, ela continuou no
mesmo espírito de indiferença que assumira. Não falou muito. Limitou-se a conversar apenas
quando alguém se dirigia a ela, replicando com o mínimo de palavras possível. Entendia que o
que tinha a fazer era terminar aquela semana, como concordara, e depois explicar aos pais por
que achava melhor ir para uma escola pública. Eles sempre eram justos e ouviam a opinião
dela também. Não havia dúvida de que concordariam que essa era a melhor opção.
Na quinta-feira, para desfazer qualquer sentimento negativo que pudesse haver da parte
dos pais, Selena voltou da aula direto para casa. Além disso, resolveu ajudar a mãe - sem que
Brutus era um cão São Bernardo, que estava com eles havia três anos. Embora Selena
Em Pineville, ele era conhecido no bairro todo. Circulava pela rua o dia inteiro, mas
Contudo, desde que haviam se mudado para Portland, ele estava com um jeito estranho.
Ficava o dia todo rodando pela casa e pelo quintal. Por vezes queria entrar no "clubinho" dos
meninos, sempre que um deles ia para o barracão. Parecia totalmente desinteressado em andar
pelas ruas do bairro e em marcar seu território. Mamãe achou que se lhe dessem um banho
talvez ele pudesse reanimar-se. Selena não via como isso poderia resolver o problema do cão,
mas decidiu ajudá-la. Elas o colocaram na banheira grande, cheia de água com sabão, e logo
- Vamos lá, garotão, disse mamãe. Você tem de cooperar. Fique em pé para nós o
A banheira era daquelas antigas, fixadas em pés de ferro fundido, e era difícil
movimentar-se em redor dela. O corpanzil de Brutus tomava conta do espaço todo, e ele só
queria ficar lambendo a torneira com sua língua rosada. Selena e a mãe se puseram a esfregá-
lo, conversando com ele em voz calma. O cheiro do pêlo de cachorro molhado ficou
insuportável.
- A gente poderia levá-lo para a cozinha, respondeu a mãe. Mas lá ele faria mais
A mãe acabou de enxaguá-lo e fechou a torneira. Agora a dificuldade seria tirar Brutus
da banheira. Ele não queria sair, o que não era seu costume. Em Pineville, quando lhe davam
banho, assim que o soltavam, ele saia da banheira e começava a sacudir-se, espirrando água
- Olhe só! exclamou Selena. Está parecendo um neném grande! Vem cá, Brutus!
Levante as patas! Assim. Vire de lado. Agora as patas de trás. Ótimo! Fique bem quieto, que
vamos enxugá-lo.
- Como é que a gente faz um cachorro compreender que aqui agora é a casa dele?
- Acho que ele sabe, disse mamãe. É por isso que está meio quieto. Está sentindo falta
do que deixou para trás. Ele vai melhorar. Wesley chega sexta-feira à noite, e o Brutus vai se
reanimar. Pelo menos o Wesley irá levá-lo para caminhar e correr por aí.
Fora Wesley, o irmão mais velho de Selena, que trouxera Brutus para casa, três anos
atrás. Nessa época, ele era apenas um filhote engraçadinho e peludo. Ninguém fizera oposição
à chegada do cãozinho, muito menos a mãe, que sempre gostara de animais. Wesley dissera
que o bichinho era para ela. Como ele estava para ir estudar fora, queria deixá-lo com a mãe,
- O. k., seu grandalhão! disse a mãe, pegando o cão pela coleira e levando-o para fora.
Agora pode ir para o quintal. Pelo menos está com um cheiro melhor. Talvez comece a ficar
rnais animado.
Brutus foi caminhando devagar sobre o gramado e parou em frente à porta do barracão.
Não havia ninguém lá. Ele poderia entrar no seu canil, se quisesse. Entretanto preferiu deitar-
se à entrada. E ficou ali quieto, com o focinho apoiado nas patas dianteiras, agora bem
limpinhas.
Selena virou-se. Era Vó May, olhando para o cesto de frutas junto à geladeira.
- Elas estão boas, sim, vó, replicou a moça, aproximando-se para ver o que havia ali.
Havia duas laranjas, três maçãs e uma banana bem madura, com algumas manchas.
- Não tem nada de verde aí, Vó May, continuou Selena. A senhora quer uma maçã?
- Não quero maçã nenhuma, disse a avó, fitando a neta como se fosse esta que estivesse
- É duro ver a vida dela ir definhando-se assim, comentou a mãe. Seria tão bom se a
Selena pensou em responder que com ela acontecia o contrário - queria adiantar o
relógio de sua vida. Contudo não disse nada. Parecia errado expressar esse pensamento em
voz alta. E com isso ela resolveu fazer algo que estivera em sua mente durante toda a semana
- escrever para Katie. Não havia ninguém melhor do que essa amiga para entendê-la. Katie
seria sincera e explicaria a Selena por que ela estava com essa ânsia de crescer logo. Ademais,
Querida Katie,
Veja se isso que me aconteceu é ou não é "coisa de Deus". Quando cheguei ao Aeroporto de Heathrow,
fui telefonar. Fiquei esperando desocupar um telefone e, de repente, um rapaz que estava num dos aparelhos,
Na sexta-feira à tarde, Selena tirou seus objetos do escaninho para levá-los para casa
Achava que assim seria mais fácil para a mãe pegar sua transferência na segunda-feira.
Devolveria todos os livros de uma vez só. Não sentia a menor pena de sair do Colégio Royal.
Passara a semana toda procurando manter-se distante de tudo e de todos. Assim não seria
Lembrou-se de que seria bom levar também o uniforme de ginástica. Foi ao vestiário
feminino e girou os números do segredo do cadeado para abrir o escaninho. Ouviu algumas
garotas conversando do outro lado do móvel de metal, fora de sua vista. Elas estavam tão
envolvidas no assunto que nem perceberam que havia mais alguém ali.
- Olha só o modo como ela nos tratou a semana toda. Parece que se acha melhor que
Pois eu acho que devemos esperar um pouco mais. Vamos convidá-la para uma reunião
- Ela não vai se abrir, replicou Marissa. Preste atenção no que estou dizendo. Selena é
muito metida.
Selena estivera acompanhando a conversa, mas só se deu conta de que falavam dela
quando a garota mencionou seu nome. Ao ouvi-lo, gelou de alto a baixo. Quem eram aquelas
meninas? Que direito tinham de formar uma opinião tão errada a respeito dela? Como não era
de fugir de um confronto e sempre enfrentava todas as situações difíceis, deu a volta para o
respondeu nada. Selena percebeu que eram de sua turma. Sentindo que não tinha mais nada a
dizer, virou-se e saiu pisando firme. Puxou as roupas de ginástica do escaninho e foi andando
Pra mim chega! Já chega! Vou sair daqui. Quem essas "patricinhas" pensam que são
para dizer que sou convencida? Eu nunca fui convencida! Sempre fui de fazer amizades logo.
Eu me esforço ao máximo para ajudar todo mundo a se enturmar. Não sou metida, não! Elas
que aquele carro tivesse mais potência. Assim poderia arrancar a mil por hora, e aquelas
garotas iriam ouvir os pneus cantarem. Infelizmente, o veículo não fora feito para facilitar
explosões temperamentais. Só a tarefa de ligá-lo já era bem difícil. Contudo Selena saiu o
mais depressa que pôde, dizendo a si mesma que se acalmasse, que deixasse para lá e que
Quando chegou em casa, porém, estava mais irritada. Entrou pisando duro e foi direto
para o quarto. Tânia estava se aprontando para ir trabalhar, o que aumentou sua raiva. Não
tinha nem um lugar em que pudesse ficar a sós, um quarto só dela. Tirou algumas roupas da
- O que aconteceu para deixar você tão nervosa? indagou a irmã, que naquele momento
- Detesto tudo isso aqui, replicou Selena. Queria que a gente nunca tivesse mudado, que
- Você já tentou aceitar este lugar aqui como sua casa? perguntou Tânia.
- Claro! Não me diga que você gosta mais daqui do que de Pineville!
A cadeira de balanço vazia parecia convidá-la para refugiar-se nela, para se acalmar,
- Gosto. Adoro isso aqui! respondeu Tânia. E você também vai gostar. É só querer.
Portland tem muito mais oportunidades para nós do que Pineville. O que aconteceu com você,
afinal?
- Nada!
- Ah, e você acha que acredito nisso? Vamos lá! O que aconteceu?
- Está bem, replicou Selena. Quer saber? Vou dizer. Umas garotas daquele maravilhoso
- Não tenho nenhuma amiga lá, continuou Selena, rendendo-se e sentando-se na cadeira,
- Quer saber? Às vezes não a entendo. É tão inteligente e tão burra ao mesmo tempo. É
tão madura e tão infantil! Está totalmente cega com relação a essa questão, não está? Se quer
- Ah! exclamou Selena, fazendo uma leve careta para Tânia. Não quero arranjar
Não via a hora de ficar sozinha no quarto. Ao mesmo tempo, porém, não queria que a
irmã saísse. Ainda não. Primeiro precisava desabafar tudo com ela.
- Já. E depois do trabalho vou sair com umas colegas da loja com quem fiz amizade.
Abriu a porta para sair, mas antes virou-se e deu uma última alfinetada.
- E já falei com papai e mamãe que vou sair e a que horas vou coltar, embora não
Tânia a fechava.
Detestava o fato de ter só dezesseis. Detestava mesmo! Que idade horrível! Todo
mundo dizia que era tão lindo ter dezesseis anos! Era nada! Ela podia dirigir, mas só tinha
permissão para ir à escola. Não tinha amizades, não ia a lugar algum. Não tinha nada para
fazer numa sexta-feira à noite, a não ser ficar em casa, nutrindo sua autopiedade.
Em Pineville, pelo menos tinha muitos amigos com quem poderia se encontrar. E ela
tivera o mérito de esforçar-se para cultivar essas amizades, quando teria sido mais fácil deixar
para lá. Não precisava de que Tânia viesse ensinar-lhe como se faz amizade com outros.
Selena sabia tudo que dizia respeito a essa questão. Poderia até dar uma aula sobre o assunto.
Mas é claro que ninguém pede a uma garota de dezesseis anos para ensinar nada.
Ah, ótimo! Agora tenho duas para falar no meu ouvido, justamente o que eu precisava.
Selena até que gostava de conversar com a mãe. E por vezes adorava abrir-se com Vó
May também. Contudo falar com as duas ao mesmo tempo, quando se sentia meio pra baixo,
aí já era demais.
Vó May sentou-se na cama de Tânia, que aliás estava muito bem arrumada, e deu um
olhar crítico para a de Selena, toda bagunçada. Mamãe arrastou uma cadeira para perto da ilha
e ficou de frente para ela, a um metro de distância. As três formavam um pequeno triângulo, e
- Sei que meu lado do quarto está desarrumado, disse Selena, querendo uma "cortina de
fumaça" para desviar a atenção das duas do seu problema. Vou aproveitar o final de semana
- Ótimo! disse mamãe. Acho muito bom quando você arruma o quarto. Mas queria
- Tenho notado, continuou a mãe, que está sendo um pouco difícil para você adaptar-se
aqui. Quero saber se há algo que eu possa fazer para ajudá-la a ajustar-se melhor.
- Pode deixar que eu vá para uma escola pública. Não quero ficar no Colégio Royal. Fiz
experiência durante uma semana, como a senhora pediu. Mas lá não é o tipo de escola de que
eu gosto.
"Uma escola grande, com muitos alunos, onde eu não 'apareça' e possa terminar esse
- Não sei bem, replicou. Só sei que do Colégio Royal eu não gosto.
- Vamos ter de conversar com seu pai a respeito disso, falou mamãe em tom calmo.
Tenho certeza de que teremos oportunidade de acertar esse assunto durante o final de semana.
- Não.
- O Wesley vai chegar mais ou menos daqui a uma hora. Pensei em irmos a uma
que estava naquele quarto havia vários anos. Ela se inclinou para olhar-se no espelho que
ficava acima dela, preso à parede. Selena começou a imaginar se ela não estaria voltando ao
passado. Vó May tocou as ruguinhas dos cantos dos olhos e examinou-as durante alguns
segundos.
- Que estranho! exclamou. Parece que foi ontem mesmo que fiz doze anos! Tenho
certeza disso!
- Podemos também pedir as pizzas pelo telefone, continuou mamãe em voz baixa.
Selena deduziu que a mãe estava com receio de ir com Vó May a um lugar público, caso
- Sabe? disse Vó May, virando-se para as duas. O tempo passa assim, afirmou,
estalando os dedos e olhando para a neta. A velhice chega depressa demais, queridinha. Vou
que indicava claramente que estava lúcida. Então o que significava aquela olhada para o
espelho e aquele negócio de dizer que fora "ontem mesmo" que fizera doze anos? Selena se
indagou se a avó percebera sua ansiedade para se tornar adulta e, indiretamente, estava lhe
- E eu vou arrumar meu quarto, falou Selena. Creio que as duas vão ficar muito
Depois ergueu-se, foi ao espelho e olhou-se longamente como a avó fizera. Passou-lhe pela
mente que aquele espelho era mágico, e que ela iria ver nele sua imagem quando tivesse 68
anos. Entretanto viu apenas o nariz cheio de sardas, o cabelo bem anelado e os olhos azul-
Sorriu fechando um pouco os olhos, tentando fazer com a pele enrugasse, como
acontecia ao seu pai quando ele estava com vontade de chorar, mas ria, procurando reprimir o
choro. Aquilo lhe deu um ar de mais velha. Relaxou a expressão e examinou-se de novo.
Meus olhos são da mesma cor dos de Paul, pensou. Aquele comissário de bordo tinha
razão. Nossos olhos são iguais. Se ao menos ele enxergasse a vida do mesmo jeito que eu...
Nesse momento, Selena orou pelo rapaz, como já fizera diversas vezes durante a
semana.
Capítulo Treze
- Que pizza vocês vão querer, pessoal? Calabresa e o que mais? indagou Wesley, que se
Ele era parecido com a família da mãe: alto, de cabelo castanho bem ondulado e nariz
reto e comprido. Os olhos, porém, eram como os do pai, castanhos e com pequeninas rugas
nos cantos.
A pizzaria estava cheia, o que indicava que provavelmenie a pizza era boa. As três
mulheres e os meninos foram andando por entre as mesas e conseguiram encontrar uma
grande num dos cantos. Só precisariam arranjar mais uma cadeira para a ponta da mesa. Volta
e meia isso acontecia quando a família toda ia jantar fora. Parecia que na maioria dos lugares
tudo era preparado para grupos de quatro pessoas, o que acabava causando certa frustração à
família Jensen.
cobertas de toalhas xadrezes. Em cada uma delas havia bases de metal para as pizzas, com
velas vermelhas por baixo, para mantê-las aquecidas. No teto, estavam suspensas de cabeça
para baixo, uma mesa e duas cadeiras, completamente postas, com uma pizza de plástico e até
um vasinho de flores. Percebia-se que estava tudo bem preso, mas Selena logo imaginou que
aquilo poderia causar confusão na mente da Vó May. Entretanto até o momento ela estava
Kevin e Dilton, que haviam se afastado um pouco, voltaram correndo, pedindo moedas
- Eu não tenho, falou Selena, depois que os dois já haviam passado pela mãe e por Vó
May.
A moça estava usando uma bermuda comprida de cotton, com uma suéter bem larga de
gola role e suas botas de cowboy. Sua roupa não tinha bolso, e ela nunca usava bolsa. Aliás,
mais como um tio amigão do que como irmão. Como Selena previra, Wesley resolveu ir ao
Cerca de quarenta minutos mais tarde, depois de terem devorado duas pizzas tamanho
gigante, a família Jensen saiu em dois carros. Mamãe, papai, Vó May e os meninos foram
para casa. Wesley e Selena foram ver um filme a que o rapaz desejava assistir.
Ela ficou calada durante todo o percurso, e o irmão nem notou isso; pelo menos foi o
que pareceu. Ele tinha muito que contar. Falava de sua camionete, das aulas na faculdade, do
trabalho de meio expediente num supermercado. Ele tinha vinte e três anos e estava no
terceiro ano na Universidade Estadual do Oregon. O que Selena mais apreciava no irmão era
que ele a tratava como igual, e não como uma garotinha mais nova.
Wesley parecia conhecer as ruas de Portland melhor que ela. Afinal ela se pôs a falar e
lhe contou que, alguns dias antes, se perdera na cidade e fora parar na Faculdade Lewis e
Clark.
- E aí, acha que vai estudar lá no ano que vem ou prefere a minha?
- Ei, espere aí. Ainda estou no segundo ano, replicou ela. Ainda tenho um ano e meio
para decidir.
- Ah é! Esqueci. Desde que você tirou a carteira de motorista, fico pensando que já vai
- Não, ainda não, embora, para mim, quanto mais cedo melhor.
se as portas estavam bem trancadas. Meses antes, ele estacionara perto da casa de um amigo, e
seu rádio fora roubado. Agora o rapaz procurava ter o máximo cuidado com o carro, já que ele
noite estava fria e úmida. Desejou ter trazido um agasalho. Costumava sentir frio dentro de
cinemas. Talvez fosse porque sempre dava o azar de ficar debaixo do aparelho de ar
condicionado. Assim que entravam no saguão, Selena estremeceu de novo. Wesley passou o
braço em torno dela e ficou a massagear-lhe a pele de leve para aquecê-la. Teriam de esperar
ouvido:
- É tão bom rever você, Selena! Que bom que sua estada na Europa foi agradável e que
- Obrigada! replicou.
correu os olhos pelo rio de gente que ia saindo do cinema. A uns cinco passos dela, estava
Paul. O rapaz ia caminhando no meio do pessoal que saía, mas estava com a cabeça virada
-Vi.
Por uns instantes, Selena ficou indecisa. Deveria correr atrás de Paul? Ele já estava
quase saindo para a rua. E se estivesse acompanhado, por exemplo, de Jalene? Selena não vira
Então se lembrou de que, na hora em que Paul pai Wesley estava com o braço em torno
dela, cochichando algo seu ouvido. Ele deve ter pensado que o irmão era seu namorado.
- Quer que eu vá com você? indagou Wesley. Quer que espere aqui e guarde lugar para
você, ou o quê?
- Vamos entrar, replicou Selena. Acho que não consigo mais pegá-lo.
- Está brincando! Depois daquela pizza toda, você ainda tem disposição para comer
pipoca?
Pra falar a verdade, estou sentindo o estômago meio vazio. Você ainda tem algum
dinheiro aí?
Com aquele jeito de tio "amigão", Wesley tirou do bolso uma nota de 5 dólares e deu à
irmã.
- Pega um refrigerante grande também pra nós dois. Qualquer um serve, desde que não
Selena foi para a pequena lanchonete do cinema e entrou na fila. Todavia ficou olhando
para fora, para ver se por acaso Paul ainda estaria por ali. Pensou que, se ele a visse sozinha,
talvez voltasse para conversar com ela. Entretanto reconheceu que a idéia era meio absurda.
E quanto mais pensava no caso, mais achava que o próprio de tê-lo visto já era bastante
meio desinquieta por ter visto o rapaz no cinema e Jalene no posto de gasolina.
Katie talvez dissesse que aquilo era "coisa de Deus". E era mesmo, já que, quando o via,
ela se lembrava de orar por ele. Contudo Selena achava tais encontros "esquisitos" ou "muito
estranhos". Por que ela deveria ter esse tipo de ligação com o rapaz?
Pensou que as pessoas não deveriam fazer perguntas tão idiotas, principalmente quando
ela estava tão imersa em seus devaneios, pensando em Paul e nos estranhos encontros que
- Isso é um roubo! exclamou, antes de virar-se para sair. Sei que você apenas trabalha
aqui e que não é sua culpa, Mas o preço desse negócio aqui é um absurdo!
Saiu pisando firme e abanando a cabeça. Não se importava nem um pouco de as pessoas
que estavam atrás dela na fila terem ouvido sua reclamação. Agora só lhe interessava ir aonde
Nesse instante, compreendeu que não era por causa do preço da pipoca que estava
irritada. Já pagara esses mesmos valores antes e nem se importara. O que a deixara
transtornada fora o fato de ter visto Paul. Simplesmente transferira a emoção que sentira ao
- Cadê a pipoca? indagou Wesley, assim que ela passou por ele para sentar-se.
- Ei, calma! falou Wesley, inclinando-se para trás e olhando bem para a irmã. O que é
- Nada. Desculpe!
Selena acomodou-se bem na poltrona. O filme começou e ela sentiu que precisava
relaxar. Só havia um problema. Era uma história de espionagem. Primeiro, uns caras saltaram
velocidade. Havia tanto suspense que Selena ficou sentada na ponta da cadeira o tempo todo.
Quando terminou, percebeu que os dedos dos pés lhe doíam, pois inconscientemente os
- Pelo menos tinha muita ação, replicou ela. Eu não sabia que era capaz de ficar de
- Por quanto tempo? indagou ele, abrindo para ela a porta da camionete.
Wesley riu.
- Os efeitos especiais foram muito bons, principalmente na cena em que o cara caiu na
- Foi um bom filme, comentou Selena, fazendo que sim. Obrigada, Wesley.
- Claro, vamos. Eu trouxe um bocado de textos para ler no final de semana. Seria bom
Assim que entraram em casa, Selena foi direto para a cama. O quarto estava bem
arrumadinho, pois ela passara mais ou menos uma hora ajeitando tudo.
Não imaginara que, depois de guardar tudo direitinho, iria sentir-se tão mais "em casa"
assim. Enquanto estivera tudo espalhado por ali, e alguns objetos ainda dentro da maleta que
levara à Inglaterra, tinha a impressão de que sua estada naquela casa seria apenas temporária.
Mas assim que arranjou tudo e pendurou as roupas junto com as da mudança - que uma "fada
boa" organizara para ela - sentiu que estava ali para ficar. Só não tinha muita certeza se
Tânia ficaria contente de ver o quarto arrumado; isso eia bom. Ela ainda não chegara,
É claro que ela tem de gostar daqui. Ela mesma trouxe sua mudança e colocou tudo no
quarto do jeito que queria. Tânia já está aqui há um mês. Eu só estou há uma semana. Tenho
a sensação de que todo mundo está ajustado, menos eu. Quando cheguei, todos já estavam
adaptados para esta nova vida, e agora tenho de "correr" para pegá-los.
Selena se pôs a ler a Bíblia e, depois de algum tempo, sentiu as pálpebras pesadas.
Apagou a luz e ficou deitada, limpando os dentes com um fio dental com gosto de menta, que
acontecimentos. Inicialmente reviu as garotas falando dela no vestiário da escola. Depois veio
último, foram os olhares que trocara com Paul. O primeiro fora junto ao guichê de câmbio no
ainda outro, nesta noite, no cinema. Por que ele olhara para ela?
Por uns momentos, achou que, pelo fato de terem os olhos parecidos, ele via nos dela
uma espécie de espelho. Parecia que ele estava procurando algo. O que seria?
No entanto não havia nada que ela pudesse fazer, a não ser orar por ele. E orou. Como
um guerreiro destemido a empunhar uma espada, Selena pediu a Deus que o protegesse, que
ele fosse liberto das garras do inimigo, que terminasse o namoro com Jalene ou que a jovem
se convertesse. Depois pediu que ele se sentisse incomodado enquanto não voltasse a acertar
seu relacionamento com o Senhor. Orou durante um bom tempo, até sentir os ombros
começarem a relaxar. Era hora de bater em retirada. Já batalhara muito por hoje.
Selena sempre gostara da maneira de agir de seus pais com relação a questões difíceis e
até meio constrangedoras. Eles eram abertos e conversavam sobre tudo com os filhos. Então
dessa vez ela teve uma surpresa. Quando lhes disse que queria sair do Colégio Royal, eles lhe
- Mas, mãe, a senhora falou que eu poderia experimentar só uma semana. Eu tentei, mas
não gostei.
- Nós achamos que a experiência não foi muito válida, disse o pai com voz firme. Você
tinha acabado de chegar em Portland, depois de uma viagem longa. Não tinha tido tempo
suficiente nem para se adaptar ao seu quarto. Queremos que faça uma avaliação mais justa,
Selena. Precisa ser mais justa consigo mesma, com os colegas da escola e conosco. Se
tivéssemos certeza de que tinha agido assim, iríamos transferi-la para a Escola Madison hoje
mesmo. Vamos experimentar só mais uma semana. E dessa vez faça uma avaliação mais
- Vou levar o Brutus para fazer uma caminhada. Alguém quer ir comigo?
Sentia que estava a ponto de dizer algo de que mais tarde talvez se arrependesse. Como
isso já lhe acontecera inúmeras vezes, estava aprendendo que era melhor sair e penssar um
- Então vá pegar um agasalho porque está fazendo muito frio, disse o irmão. Alguém
luvas.
- Espero que você consiga dar um jeito nessa melancolia do Brutus, disse mamãe. Desde
- O que você quer dizer com isso? indagou Selena, sem saber se ele se referia a ela ou
não.
- Quero dizer que uma mudança causa um certo stress na gente, respondeu ele, olhando
para a irmã por sobre o ombro. Os psicólogos elaboraram uma lista de fatos da vida que
causam sofrimento e, ao lado de cada item, dão a escala das emoções que o ser humano pode
suportar. A mudança de um lugar para outro está quase no mesmo nível que a morte de um
ente querido e a perda do emprego. Vi esse estudo numa aula de Psicologia. É muito
interessante saber quais são os eventos que causam stress. Até a prova final está na lista. E
como essa é minha grande preocupação no momento, pensei em fazer uma caminhada com o
Brutus para dar uma relaxada e aliviar um pouco a tensão. Está pronta, Selena?
- Pense bem naquilo que conversamos, disse o pai, no instante em que os dois saíam.
- Está bem, replicou ela. Mas eu queria que o senhor e a mamãe pensassem no meu lado
também.
Oh, pai, você não usa mais esta camisa velha de flanela, falou Selena, puxando as
pontas da roupa.
Ela vestira um blusão jeans que era mais curto que a camisa do pai, e as pontas dela
- Eu a encontrei num monte de roupas que está lá no porão, continuou Selena. Pensei
- Não; aquelas peças estão ali para ser remendadas. Nessa camisa está faltando um
botão, concluiu o pai, dando um olhar meio brincalhão para sua mãe, que por sua vez deu de
ombros.
Selena vestira uma malha grossa e, sobre ela, colocara a camisa do pai, mas não a
abotoara. Por isso nem dera pela falta do botão. Mas entendeu o que o pai quisera dizer. Sua
mãe tinha muitas qualidades, mas costurar não era seu ponto forte. Selena se lembrava de que,
desde que era menina, vira o pai várias vezes sair com uma camisa faltando um botão ou com
um fecho estragado. É claro que a mãe procurava esforçar-se para fazer esses pequenos
- Então posso ficar com aquela outra, a camisa azul grossa? indagou Selena.
- Nunca pensei que um dia iria brigar com minha filha por causa de minhas roupas.
- Filha, interveio a mãe, você não deveria dar uma passada naqueles brechós que há em
Hawthorne?
Selena se lembrou de que uma de suas colegas comprara um vestido numa dessas lojas.
- É, acho que vou mesmo, depois que voltar da caminhada. Quer ir comigo, mãe?
- Não sei. Quando você estiver pronta para ir, me fale, está bem?
Selena foi para o quintal. Wesley estava alisando o pêlo de seu amigo e "rosnando" para
ele.
Prendeu a correia na coleira do cão, e este rosnou, como que concordando. Eles foram
saindo rua abaixo. Brutus parava a cada dois segundos para farejar um ou outro ponto e fazer
o reconhecimento do lugar.
Estava tão frio que ela via a respiração saindo em pequenas nuvens de fumaça. Agora
percebia que o blusão jeans era muito fino, e sentia a umidade atravessar a camisa e a malha
grossa.
- Isso vai ser ótimo para ele, falou Wesley. Creio que ele estava triste porque ainda não
De fato parecia que o cachorro estava mesmo apreciando o passeio. Algumas casas
abaixo, ele deu uma rosnada forte para um buldogue que se achava do outro lado da cerca. Os
dois se cumprimentaram na língua dos cachorros. Selena ouviu outros cão ganindo do outro
lado da rua.
Wesley deu um puxão na correia, e Brutus encerrou o papo, dando uma corridinha para
o outro lado para farejar e latir com o que estava atrás da outra cerca, um cãozinho malhado.
Wesley e Selena andaram quase uma hora acompanhando Brutus, vendo-o "aterrorizar"
os animais do bairro. Parecia que ele estava recuperando seu jeito próprio.
Selena estava batendo o queixo e tremendo de frio quando dobraram a esquina para
entrar na rua de Vó May. A casa era uma das maiores do quarteirão e possuía características
bem marcantes. Na frente dela, havia dois altos olmos, como se fossem duas sentinelas
postadas à entrada da varanda. Fazia mais de oitenta anos que aquelas árvores estavam ali, em
seu posto. No verão, davam sua sombra à casa branca, que lembrava uma elegante dama
Selena teve de reconhecer que amava aquela velha casa. Lembrou-se de que, quando era
criança, ela lhe parecia um castelo. Ela e os irmãos a chamavam de "mansão da Vó May".
Sempre que vinham passar as férias ali, Selena fingia que aquela era a sua asa e fantasiava
que vivia na época das charretes puxadas a cavalo. No meio-fio da calçada, ainda havia anéis
de ferro onde, um século atrás, eles amarravam os animais. Houve um dia em que Tânia e
Selena amarraram neles suas bicicletas, com suas cordas de pular. E Vó May entrara na
brincadeira. Viera à porta com alguns cubinhos de açúcar e fingira dá-los para os cavalinhos
imaginários.
Agora Selena estava vivendo na realidade seu sonho infantil de morar naquela
- Vamos lá, Brutus, disse Wesley, você já caminhou muito por hoje. E se pra você ainda
Ele entrou e foi direto para o quintal, tirando a correia da coleira. Brutus parecia ainda
não ter esgotado o interesse pela vizinhança. Correu para o portão do fundo e deu algumas
latidas. Em seguida, disparou para um dos lados do quintal e ficou latindo para uns esquilos
- O que vocês fizeram com ele? indagou mamãe, abrindo a porta para que os dois
Selena sentiu cheiro de canela no ar, e na mesma hora, ficou com fome.
- Fomos dar uma volta por aí para ele conhecer a vizinhança, explicou Wesley, abrindo
A habilidade que mamãe não tinha para costura. sobrava na cozinha. E torta de maçã era
- Você é a melhor mãe do mundo! exclamou o rapaz. Quando é que vai ficar pronto?
- Daqui a quinze minutos. Vocês dois vão algo comer primeiro. Na geladeira, tem fatias
- Acho que vou fazer uma sopinha bem quente, falou Selena.
Sentia a garganta meio áspera e ainda estava com frio por causa da caminhada.
- Depois que você lanchar, quer ir a alguns daqueles brechós? indagou a mãe. Vó May
subiu para deitar um pouco. Acho que agora seria uma boa hora para irmos.
Sempre tinha disposição para andar pelas lojas, principalmente pelas de roupas usadas.
- O. k.! Wesley, então você tira a torta do forno pra mim, está bem? Vou só pegar minha
Selena subiu os degraus de dois em dois e entrou no quarto quase sem fôlego.
- Aonde é que vocês vão? indagou Tânia, que estava sentada a mesa, fazendo as unhas.
Selena sabia que não adiantava convidar a irmã. Ela só fazia compras nas lojas mais
elegantes. Comprar roupa barata, para ela, só em liquidação de alguma loja sofisticada.
vestida com um casaco longo, luvas e um lenço de cabeça. Selena pensou na possibilidade de
pegar um ngasalho mais grosso, mas desistiu. Lembrou-se de que o carro estaria quente assim
Contudo não esquentou logo. Elas foram no furgão, e o sistema de aquecimento dele era
meio lento. Quando chegaram à primeira loja, ele mal soltara algumas baforadas de ar quente.
A loja tinha muitos artigos bons, mas estava muito fria. Selena sentiu o entusiasmo para
fazer compras ir morrendo devagar. No entanto, como era muito teimosa, não desistiu do
intento inicial. Foi às três lojas as quais havia planejado ir. Gastou seus quinze dólares e mais
oito da mãe.
que fora esse o nome que sua colega mencionara no primeiro dia de aula. A garota - como
seria o nome dela? - tinha razão. Havia ali uma fantástica coleção de roupas diversas, de baixo
preço, exatamente do gosto de Selena. Ela sentiu vontade de ter muito dinheiro para comprar
duas camisas de modelo masculino e uma saia longa, que tinha na cintura uma fita, nas pontas
da qual estavam presos dois pequeninos guizos. Pensou em mostrar à colega o chapéu que
comprara, mas aí se lembrou de que, se os pais concordassem, não iria voltar ao Colégio
Royal na segunda-feira. Selena subiu para o quarto com seus novos “tesouros” e colocou-os
sobre a cama.
- O que você comprou? indagou Tânia, que se achava sentada nas almofadas da ampla
A moça estava de óculos - que Selena achava muito engraçados - lendo um romance
grosso. Tânia era o tipo de pessoa que morreria de vergonha se alguém de quem ela gostasse
viesse a saber que ela usava óculos para ler. Selena colocou o chapéu na cabeça, inclinando-o
meio de lado.
- Ele até que é bonitinho, comentou Tânia. E está muito na moda agora. Comprou num
brechó?
- Era uma dessas lojas que vendem roupas reformadas. Pode até ser tudo novo; não sei.
- Não seria bom lavar tudo com um desinfetante ou algo assim? indagou a irmã, com
Selena simplesmente ignorou a sugestão dela e foi tirando da sacola os outros artigos.
- Esta aqui, disse, mostrando a saia, tem de ser lavada na mão e não se pode torcer,
senão ela perde essas preguinhas. Tem de espremê-la. Também não precisa passar. É o tipo de
- Tem um cheiro esquisito, disse Tânia. Lave bem essas roupas antes de usar, ouviu?
- Não se preocupe, replicou Selena. Vou lavá-las agora. Eu sempre lavo, não lavo?
- É, acho que sim. Ah, e por falar nisso, achei muito bom você ter arrumado o quarto
Selena tirou o chapéu, puxou o cabelo para trás e fez um rabo-de-cavalo, prendendo-o
com um passador.
- Você deve detestar ter de ficar no mesmo quarto comigo, não é? continuou Selena. No
mundo todo não wxistem duas pessoas mais diferentes do que nós duas.
Tânia ergueu a cabeça devagar e olhou para Selena por sobre os óculos. Parecia que
- Sei lá. Vou conversar com ela. Fazer algumas perguntas como, por exemplo, qual é
minha herança biológica, quem é meu pai e por que ela resolveu me entregar para ser adotada.
- Você não está pensando em ir morar com ela nem nada, está?
- Claro que não. Que idéia! Se ela não me quis dezoito anos atrás, não vai me querer
agora.
- É possível que ela quisesse sim, mas não tivesse condições de sustentá-la, comentou
Selena. Acho que, se eu fosse você, também faria isso, iria procurar minha verdadeira mãe. Só
não sei como agiria depois, que tipo de relacionamento iria ter com ela.
- Não tenho a menor idéia. Mas espero ficar sabendo muito em breve. Primeiro tenho de
ajuntar dinheiro. Com a compra do carro, minhas economias foram a zero. Você tem sorte de
não ter esse tipo de preocupação, Selena. Só tem de ir levando a vida. Os próximos dois anos
- Sei disso, concordou Selena. Mas aposto que ser mais velha não é tão ruim assim
- Pois então espere só para ver as responsabilidades que a gente tem quando se torna
adulta. Agora você está levando uma vid muito tranqüila. Não tem um carro e mais o seguro
dele para pagar. Não precisa se preocupar em arranjar emprego nem com mais nada. Então,
minha filha, aproveite bem enquanto pode. Esse tempo passa muito depressa.
Capítulo Quinze
questão da escola. Ele estava sentado à escrivaninha, preenchendo alguns cheques para fazer
pagamentos, ouvindo um CD de música de Bach. Ela não havia planejado falar com ele
naquela hora, mas, alguns minutos antes, sua irmã entrara no quarto com o telefone sem fio e
Selena estava sentada no chão, tirando alguns pertences de uma caixa, separando os que
ia conservar e os que ia jogar fora. Ao ouvir o pedido da irmã, levantou-se e foi para o quarto
da avó, no final do corredor, onde ficava a televisão. No momento, a família só tinha aquele
aparelho de TV. Estavam esperando que papai terminasse o quarto de recreação, para depois
comprarem um televisor novo, que seria colocado lá. Dilton e Kevin estavam sentados na
cama, assistindo a um desenho especial, e a Vó May cochilava, recostada num sofazinho perto
da janela.
Aquele era o cômodo mais bonito da casa. Ali havia uma pequena lareira, onde o fogo
crepitava. Selena pegou uma coberta que estava dobrada ao pé da cama e cobriu Vó May.
- "O Senhor, teu Deus," murmurou Vó May, sem abrir os olhos, "está no meio de ti,
poderoso para salvar-te; ele se deleitará em ti com alegria; renovar-te-á no seu amor."
- Meninos, quando acabarem aí, acordem a Vó May para ela ir deitar na cama.
- Eu sei. Ela não se importa, não. Acho até que está gostando da companhia de vocês.
Mas ela não pode passar a noite toda dormindo no sofá, encolhida daquele jeito.
Selena desceu para o andar de baixo. E foi aí que entrou na saleta onde estava o pai.
Deixou-se cair na poltrona junto á porta que dava para fora. Cada vez gostava mais daquela
cadeira. Era sua predileta. Ninguém da família ia muito àquela saleta que chamavam de
biblioteca. Havia um leve cheiro de mofo e de coisa velha no ar, pois as estantes estavam
cheias de livros de alto a baixo. À esquerda do lugar onde ela estava sentada, havia uma
grande lareira, com um aparador bem largo. Nele se via um relógio antigo, que tiquetaqueava
- Tudo bem com você, filha? indagou papai, sem tirar os olhos do que fazia.
- Tudo certo. Quando o senhor puder fazer uma parrada aí, quero conversar. Mas não
O pai largou a caneta, abaixou o som do CD e virou-se para ela. Recostou-se mais na
- Não tem importância. Vamos conversar agora. Posso fazer isso outra hora. Sobre o
- Sobre a escola.
compreendendo o que ele quisera dizer com sua expressão corporal, o pai estava dando a
- Eu não quero mesmo voltar para o Colégio Royal, disse a jovem. Se ficar lá mais uma
semana, só vou estar adiando o inevitável, e será mais difícil sair de lá.
A verdade era que hoje ela já não estava tão certa de que queria sair, como estivera na
sexta-feira. Durante o final de semana, pensara em alguns dos alunos da escola e ficara
imaginando como seria a vida deles. O Ronny, por exemplo; o que pai dele estaria fazendo no
Nepal quando lhe comprara aquela jaqueta? E as garotas que ouvira conversando no vestiário?
Certamente a acharam intragável, pelo jeito como agira naquele dia. Estava começando a ter
vontade de ir lá e pedir desculpas para elas. Detestava deixar os problemas assim no ar, sem
resolver.
Outra razão por que começava a mudar de idéia fora o que acontecera ao Brutus.
Percebia que a situação dela era meio parecida com a dele. Em Pineville, ele já conhecia todo
mundo da vizinhança. Em Portland, não estava reconhecendo nada. Depois que ela e Wesley
deram uma volta com ele para que "conhecesse" os cães do bairro, ele melhorara. Nessa
caminhada, ela compreendeu que ficara retraída, sentindo pena de si mesma, por uma razão
semelhante à do Brutus. Pensara que o melhor a fazer seria mudar para uma escola grande,
onde poderia passar despercebida no meio da multidão. Hoje, porém, começava a achar que
talvez também devesse "dar uma volta" para conhecer melhor os colegas. Agora seria bem
mais difícil, pois quando gritara para aquelas garotas que não era convencida, estava
- Não sei, respondeu afinal. Estou meio confusa com relação a tudo isso. Não sei mais o
que quero.
- Sabe o que é, filha? Nenhum de nós parou para pensar que essa mudança seria muito
penosa para você. Em poucos dias, você fez uma viagem à Europa - que só em si já é uma
experiência marcante - depois ainda mudou de casa e de escola. Acho até que suportou bem
esses baques.
- Ontem, quando o Wesley falou sobre aquela lista de acontecimentos da vida que
causam stress, fiquei pensando no assunto. Você teve o dobro de mudanças que nós tivemos;
não, o triplo. Nós tivemos três semanas de dianteira em relação a você. Mas, não sei por que,
ficamos querendo que você chegasse e se encaixasse aqui do mesmo modo que nós. Então é
por isso que está se sentindo meio perdida. E é por isso também que achamos que deve ficar
no Colégio Royal, como decidimos dois meses atrás. Acho que deve dar um pouco mais de
Selena soltou um suspiro. Reconhecia que o pai tinha razão, mas ainda estava tendo
dificuldade em concordar.
Foi aí que Selena se lembrou que tinha dever de casa para fazer. Como pensara que não
- Nada, filha. Sempre que quiser, estou às ordens, replicou ele, girando a cadeira para
Selena subiu rapidamente para o quarto. Tânia ainda estava falando ao telefone e fez
uma caretinha quando a irmã entrou. Selena pegou sua mochila e foi para a cozinha, pensando
quais seriam os capítulos do livro que teria de ler. Teve a sorte de encontrar um último pedaço
tamborete e espalhou os livros sobre a mesa. Aí se lembrou de que precisava fazer capas para
todos eles.
Quando eu estava decidida a não voltar para essa escola, estava tudo muito mais fácil.
Nem acredito que mudei de idéia tão depressa. Talvez papai esteja certo. Estou debaixo de
muita tensão. Foi por isso que tive uma atitude tão errada com aquelas garotas.
Selena resolveu que sua primeira tarefa no dia seguinte seria procurar as colegas e pedir
desculpas. Quando acordou de manhã, porém, sentiu a garganta dolorida, e mal conseguia
engolir.
Descera até a cozinha, não sem certa dificuldade, e pusera uma chaleira com água no
fogão.
- Minha cabeça está latejando. Meus ouvidos parecem entupidos e minha garganta dói
quando engulo.
- Você já não é mais criança, e eu não preciso decidir por você se vai à aula ou não.
- Deve ser ressaca da viagem, interveio Dilton, com jeito de grande entendido no
assunto.
- Que ressaca que nada, replicou Selena. Já faz uma semana e meia que cheguei. Estou
A água da chaleira ferveu. Selena fez um chazinho de limão com ervas e adicionou uma
colher de mel. Pegou a xícara com as mãos meio trêmulas e subiu para o quarto.
Tânia já saíra. As segundas-feiras, ela tinha uma aula às sete horas numa faculdade.
Sozinha no quarto, Selena fechou a porta e foi direto para a cama. No chão ainda estavam os
objetos que começara a separar na noite anterior - a caixa, alguns papéis e os dois montinhos.
Tânia iria ficar muito irritada, mais teria de suportar aquela bagunça mais um dia. Nesse
Quando estamos doentes, passam-se coisas estranhas pela nossa cabeça. Aquelas horas,
para Selena, acabaram se tornando uma mistura da realidade - onde tudo se passava muito
depressa, sem tempo para pensar muito - com pesadelos horríveis, onde se via nas piores
situações possíveis. Num desses pesadelos, ela sonhava com Paul. Ele estava na biblioteca
com Jalene, e ela o estava beijando, como fizera no aeroporto. Em seguida, Paul era como um
robô, que ia andando atrás da namorada, carregando os livros dela. E Jalene ia só colocando
mais livros nos braços dele, a ponto de Paul não agüentar mais.
Então, em dado momento, Selena entrou na cena. Estava num veículo enorme, que tinha
Afinal ela fez um esforço para acordar e viu que estava em seu quarto. Correu os olhos
pelos móveis e objetos do aposento. Sentindo a testa molhada de suor, teve vontade de tomar
um banho bem quente. Isso provocou um novo pesadelo, com outra série de imagens malucas.
Tentava dar banho no Brutus, mas era ele quem acabava colocando-a na banheira, passando
xampu na cabeça dela e esfregando-a com sua pata felpuda. Em seguida, o cão estava indo
com ela para a escola. Dizia lhe que deveria procurar fazer amizade com os colegas, os quais
se achavam junto à cerca do quintal das casas vizinhas, ganindo para ela. Sentiu uma mão na
certeza era um dos famosos chazinhos da avó. Selena sabia que aquilo não lhe faria mal.
Mesmo assim poderia ter um gosto horrível. Teve vontade de recusar a bebida, mas, se o
Entendendo que também não seria muito legal tapar o nariz, Selena tentou prender a
respiração e engoliu o remédio o mais depressa que pôde. O gosto que sentiu na boca lhe deu
arrepios.
Sabia que bebera todo o seu chá, mas talvez tivesse trazido um copo d'água para o
quarto.
Selena esperou um bom tempo. O remédio pareceu ficar com um sabor fermentado. Por
fim ela não agüentou mais. Foi ao banheiro e bebeu da torneira. Com a movimentação, a
tonteira aumentou. Mal chegou de volta ao quarto, sentiu uma forte dor de cabeça. Alguns
- Obrigada, mãe, disse Selena, bebendo o suco avidamente. Vó May lhe disse que eu
- Oh, que estranho. Hoje ela está meio confusa de novo. Ela a tratou como você?
indagou mamãe.
Selena procurou se lembrar.
- Tenho quase certeza de que ela me chamou de "queridinha". Ela trouxe um remédio
- Mas você não bebeu, não, bebeu? indagou mamãe meio tensa.
- Bebi.
De repente, Selena compreendeu que não poderia mais ver a avó como uma pessoa
normal. Para falar a verdade, o que ela lhe dera poderia ser um adubo para plantas ou o
- Talvez fosse melhor não ter bebido, não é? Achei que era uma das vitaminas dela, ou
um chazinho de ervas.
- Poderia ser, sim, mas agora não se pode mais ter certeza de nada com relação a ela.
- Mais ou menos.
Estava doente, mas não tanto que não pudesse aprontar uma brincadeira com a mãe.
Então arregalou os olhos e levou a mão a garganta. Fez como se não estivesse conseguindo
- Não tem graça nenhuma, disse a mãe. Mas isso mostra que está melhor.
- Ou então o remédio verde da Vó May. Será que dá para descobrir o que era aquilo?
Não sei como consegui beber aquele negócio. É que não queria ofendê-la.
- Tome, disse mamãe, entregando-lhe o termômetro. Vou procurar Vó May. Meça sua
Estava apenas com 39 graus. Era febre, mas não muito alta. Não seria necessário ir ao
médico. Selena deitou e logo caiu no sono. Dessa vez, porém, foi um sono calmo, profundo,
sem pesadelos.
Na terça-feira, ela ficou indecisa se iria à aula ou não. A mãe deixou a decisão com ela.
Tinha saudades do tempo em que era menor, e a mãe colocava o termômetro debaixo do braço
dela e ficava olhando no relógio, esperando o momento de revelar o grande segredo. Depois
ela retirava o termômetro e seu punha a olhá-lo demoradamente, para descobrir a mensagem
secreta contida naquele tubinho, que só as mães conseguiam ler. Se o resultado fosse
Aquele aparelhinho era um grande mistério para Selena, da mesma forma que era aquela
história de a marmota ver a própria sombra.* Para a garota, não era ela nem a mãe quem
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* Existe uma crença nos Estados Unidos segundo a qual a primavera começa no dia em que a marmota
termina sua hibernação. Ao final do inverno, esse animal sai da toca e, se ele vir sua sombra, não volta mais
Agora isso mudara. Hoje seria Selena quem tomaria a decisão. Estava começando a
entender o que Tânia quisera dizer quando afirmara que, à medida que vamos ficando mais
Selena resolveu ir à aula. Vestiu uma calça jeans, uma camisa de flanela, uma grossa
jaqueta de caçador e o chapéu preto de veludo. A mãe deixou-a ir para a escola de carro, para
que pudesse voltar, caso se sentisse mal. Depois que foi ao seu escaninho, ficou parada no
corredor, esperando ver uma das garotas que haviam falado dela no vestiário, na sexta-feira.
Avistou uma delas e olhou para a colega. A garota desviou o olhar e foi caminhando. Selena
- Com licença.
- Eu queria lhe pedir desculpas pelo jeito como agi na sexta-feira, continuou. Tive uma
atitude muito antipática. Vocês tinham razão. Estava esnobando todo mundo mesmo. Estou
A garota fitou-a surpresa, mas com expressão de alívio. Tinha o cabelo castanho, bem
liso e fino, partido no meio e preso atrás da orelha. Usava uns brincos pequeninos, de pérola, e
- Tudo bem, replicou. Meu nome é Victoria, ou melhor, Vicki. Não se preocupe com o
que aconteceu sexta-feira. Eu e Marissa também erramos em ficar falando de você pelas
costas. Desculpe-me.
- Está bem! falou Selena. Na verdade, tudo isso foi uma "coisa de Deus", pois me fez
- "Coisa de Deus"? repetiu Vicki. Essa é boa. Foi você quem inventou essa?
Contudo, antes que Selena respondesse, viu a colega fazendo um aceno para alguém que
estava atrás dela. Era Marissa, que se aproximou mordendo o lábio inferior, como se estivesse
receosa.
- Quero lhe pedir desculpas, foi dizendo Selena. Sexta-feira eu estava meio transtornada
- Não tem do que se desculpar, respondeu Marissa. Nós também erramos em ficar
- Em resumo, então, vamos esquecer tudo e começar de novo daqui pra frente, está
bom?
Ela era mais baixa que Selena e usava um blusão jeans. Seu cabelo castanho-claro
- Não acredito! disse em voz alta a recém-chegada. Dessa vez você não pode negar que
Selena virou-se e viu a colega que, na semana anterior, usara um vestido de tecido
imitando colcha de retalhos, parecido com o dela. Hoje estava com um chapéu de veludo
- Comprei! replicou esta rindo. No sábado. Que dia voce comprou o seu?
chapéu ficou muito bem nela. Selena se perguntou se estaria bem nela também.
- Amy, disse, quero pedir desculpas a você também. Na semana passada agi muito
errado, esnobando todo mundo. Quero apagar tudo e começar uma página nova.
- Então você está na escola certa porque o pessoal aqui é muito legal para desculpar,
explicou Amy, dando uma olhada de lado para Marissa. Isto é, quase todo o mundo.
Capítulo Dezesseis
- A senhora tinha razão, mãe, disse Selena, assim que entrou em casa ao voltar da
- Pedi desculpas a todo mundo que tratei mal. Aí eles me trataram como se eu fosse
outra pessoa.
- Muito bem. Levei sua avó ao médico hoje e, após a consulta, conversei um pouco com
ele. Ele acha que grande parte das atitudes confusas que Vó May teve na semana passada foi
causada pelas transformações na casa e no quarto dela. Agora talvez ela comece a melhorar,
- Ah, e chegou uma carta para você hoje, disse a mãe, indicando, com um aceno de
- Não, aqui está tudo sob controle, mas depois do jantar vou querer sua ajuda, sim.
Selena colocou o copo vazio no balcão da cozinha e foi buscar a carta. Achava que era
de uma de suas amigas de Pineville. Teve uma surpresa agradável - era de Katie. E aliás, uma
carta volumosa. Foi para a saleta, sentou-se na sua poltrona predileta e se pôs a lê-la.
Oi, Selena!
Como está passando? Está se reajustando bem de volta à vida real? Na primeira
semana, pra mim foi tudo muito difícil. Acho que fui uma chata pra todo mundo. Agora estou
Neste final de semana, fui a San Diego visitar o Douglas e assisti à uma reunião dos
"Amigos de Deus", que é no apartamento dele. Menina, tem uma porção de coisas que quero
lhe contar sobre aquele pessoal. Mas vou deixar isso pra depois, quando a gente se encontrar
nas férias.
Bom, o Douglas me deu uma carta para lhe entregar. É de um cara chamado Jeremy,
Dentro da carta, havia outro envelope fechado. Selena tirou-o e olhou para ele. Só havia
o nome dela, "Selena", escrito em letras grandes. Teve vontade de abri-lo, mas continuou
foi que lhe mandou esta carta misteriosa. Depois você me conta tudo, está bem?
Ah, e você me perguntou o que eu quis dizer quando falei que estava com saudade dos
anos da adolescência. Eu daria tudo para voltar aos dezesseis anos. Na época, queria tanto
ser adulta e independente que chegava a ser antipática. Meus pais costumavam me podar
bastante. Certa vez tive a chance de ser conselheira de crianças num acampamento bíblico,
mas eles não deixaram. Eu achava que eles tolhiam meu senso de independência porque não
eram crentes, e a maioria das atividades das quais eu queria participar envolvia meus
amigos da igreja ou grupo de jovens. Agora percebo que o que eles queriam era que eu
levasse a vida mais devagar e passasse mais tempo em casa. Como sou a mais nova dos três
filhos, acho que esperavam que eu ficasse um pouco mais presa a eles.
Não sei se com isso estou respondendo à sua pergunta. Mas, se quiser um conselho
meu, leve a vida o mais devagar possível. E alegre-se sempre que encontrar soluções simples
para os problemas do dia-a-dia. Acredite-me, daqui pra frente, a vida vai ficar bem mais
complicada.
Ainda está lendo minha carta? Ora, minha amiga, abra logo a outra.
Com carinho,
Selena abriu o outro envelope com gestos cautelosos. Tinha de admirar Katie. Se fosse
ela que estivesse com uma carta misteriosa para enviar a alguém, provavelmente seria vencida
pela curiosidade e daria uma espiada para ver quem era o remetente.
A carta tinha uma folha só, um papel de boa qualidade A letra era grande, às vezes
Sentindo o coração bater forte, quase saindo pela gargganta, Selena se pôs a ler
Selena
Você acabou com minha vida, sabia? Está feliz agora? Depois que cheguei em casa,
passei dois dias sem conseguir dormir. Ressaca da viagem, creio. Ou seriam os anjos
torturadores que você mandou aqui para me atormentar? Pois eles trabalharam muito bem.
Terminei o namoro com Jalene e saí de tudo com a honra intacta. No domingo passado, fui à
igreja. Fazia uns dez meses que não ia. Acho que você agora deve estar sorrindo, toda
satisfeita consigo mesma, não está? Mas não comece a se congratular ainda não. Continuo
em cima do muro. Só que agora provavelmente estou de frente para o lado certo. Minha mãe
acha que você é um anjo. Eu disse pra ela que você é apenas uma garota que fala demai, mas
Paul.
entendeu que isso era uma indicação de que ele queria uma resposta, pois, inclusive, terminara
Se ele mandou para o irmão dele em San Diego, e eu a recebi hoje, deve ter escrito na
semana passada. Então por que não falou que me viu no cinema?
Aí ela se lembrou de que no momento em que Paul a vira, Wesley estava abraçado com
ela. Obviamente ele pensou que os dois eram namorados. Gostou da idéia de Paul pensar que
ela namorava um cara bem mais velho que ela, aliás, sete anos mais velho. Ficou sentada por
Quando a mãe a chamou para jantar, Selena dobrou a carta, que havia lido pelo menos
umas quinze vezes, e correu ao quarto. Tânia não estava lá. Então guardou o envelope
debaixo do travesseiro e, nesse momento, lembrou-se de algo. Uma garota que conhecera na
Inglaterra contara que escrevia cartas para o futuro marido e as guardava numa caixa de
sapato que deixava debaixo da cama. Talvez ela também resolvesse fazer o mesmo um dia
desses.
Ao sair para descer, tropeçou no monte de pertences seus que se achavam no chão, e
Durante a refeição, volta e meia erguia os olhos para o velho candelabro dinamarquês, e
seu pensamento vagava para longe. Resolveu escrever para Paul nesse mesmo dia, antes que
mudasse de idéia. Escreveria uma carta breve e bem espirituosa. Só queria mostrar a ele que
Entretanto havia um porém, lembrou ela. Não sabia o sobrenome dele, já que ele não o
escrevera. Katie também não mencionara o sobrenome de Jeremy. Será que não haveria
problemas no correio se o omitisse? Valia a pena tentar. A carta dele para ela passara pelas
- Pode me ajudar a lavar as vasilhas? indagou a mãe, no momento em que ela estava
Quando estava colocando os pratos na máquina de lavar, pensou em contar à mãe sobre
a carta de Paul. Achava inclusive que a mãe iria mesmo fazer alguma pergunta a respeito, mas
como não o fez, Selena resolveu não tocar no assunto por algum tempo. É claro que no
momento certo contaria tudo aos pais, mas ainda não. Era um segredo muito gostoso, que não
queria compartilhar com ninguém. Talvez até esperasse alguns dias antes de responder a
Katie. Com um gesto firme, ligou o botão da lavadora. Afastou-se e enxugou as mãos.
Leu-a de novo, e depois mais duas vezes. Agora sentia que estava preparada para responder.
Contudo não tinha papel, ou melhor, não tinha um papel bonito. Talvez Tânia tivesse. Olhou
- Será que a senhora tem uma folha de papel de carta para me arranjar?
Felizmente nesse momento entrou um comercial. Vó May se levantou devagar e
caminhou lentamente até a velha escrivaninha que ficava num canto do quarto.
- Não, não, queridinha. Tenho diversos tipos de papel de carta, um para cada caso. É
- Um rapaz, replicou Selena, achando estranho falar disso pela primeira vez.
- Então tenho um papel bem apropriado, disse Vó May. Ela remexeu numa gaveta onde
estavam diversas folhas de papel de carta que ela devia ter ido guardando ao longo do tempo.
Havia folhas com timbre de hotéis que nem existiam mais, outras de cor rosada e outras
verde-água. Afinal ela pegou uma que era branco-trigo e entregou-a à neta. No canto inferior
- Era nesse papel que eu escrevia para Paul todos os dias, falou ela. Esse está bom para
você, queridinha?
A coincidência deixou Selena meio desconcertada. Será que Vó May sabia que ela
que fico completamente aturdida contigo. Será que este papel é meio sagrado?
Selena não precisou procurar na Bíblia o versículo cuja referência estava ao pé da folha.
Sabia que era o texto que Vó May a fizera recitar na noite em que fora ao seu quarto,
pensando que ela era Emma. Por um instante, passou-lhe pela mente a idéia de que Vó May
era mais lúcida que todos eles. Será que ela não estava fingindo essa perda da memória para
chamar a atenção dos outros para si e, assim, poder expressar seus pontos de vista sem se
Deitou-se, pegou a caneta e o papel e começou a escrever devagar. Não poderia cometer
nenhum erro.
Paul,
Puxa, como você foi esperto, mandando uma mensagem por intermédio do seu irmão!
Aliás, é muito legal ter um irmão mais velho. É o meu caso, por exemplo. Na sexta-feira
passada, meu irmão me levou ao cinema. E o mais engraçado é que tive a impressão de que
vi lá um rapaz parecido com você. Talvez devesse tê-lo cumprimentado. Afinal, sempre se
espera que uma garota que fala demais diga algo, não é mesmo?
Ah, e com relação à sua vida, parece-me que não está assim tão acabada. Obviamente
ainda é difícil saber. E de cima do muro você deve estar com uma excelente visão de tudo.
Diga a sua mãe que ela é uma santa por ter agüentado você e a carga de erros que
você vem cometendo nesses últimos meses. Quantos mesmo? Dez meses? Ah, é. E eu vôo, sim.
Selena
de fechá-la, porém, teve uma idéia. Ao pé da folha, do lado oposto do versículo, escreveu seu
endereço em letras miúdas, como Paul havia posto o número de sua caixa postal.
Pensou no quanto sua vida mudara nas últimas semanas. Fora à Inglaterra e voltara,
sozinha. Vira sua fé se fortalecer durante o trabalho evangelístico na Irlanda do Nortte. Fizera
amizade com pessoas maravilhosas. Conhecera Paul. Mudara para uma nova casa, o velho
solar da família. Fora morar com uma avó que estava experimentando alterações de saúde a
cada dia. Passara a estudar numa nova escola. Deixara que Deus quebrasse sua teimosa
resistência e acabara gostando do Colégio Royal e dos colegas. Parecia que agora suas
Olhando mais uma vez para a carta, reparou que havia um espaço abaixo do seu nome.
Resolveu acrescentar mais um comentário que, aliás, sintetizava sua vida naquele momento.