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Pensei no tempo, e era tempo demais

Você olhou sorrindo pra mim


Me acenou um beijo de paz
Virou minha cabeça
— Quem sabe isso quer dizer amor (Milton Nascimento)
Dezoito anos antes
— Elisa, é perigoso! — gritei ao perceber o que a outra menina
tentava fazer escondido de nossos pais.
Era um domingo ensolarado e nossas famílias tinham resolvido passar
o fim de semana na roça. A casa de três quartos ficava em um terreno grande,
comprada em conjunto por nossos pais antes de nascermos. Aos fundos, um
pequeno córrego cortava a propriedade.
Era nas margens desse córrego que eu permanecia de pé, com as mãos
na cintura, em uma pose adulta demais para os meus doze anos. Eu encarava
Elisa com uma expressão séria e emburrada, enquanto ela, com a mesma
idade que eu, sorria debochada. Nós tínhamos inventado uma desculpa
qualquer para nossos pais, que estavam distraídos demais preparando um
churrasco, e nos afastamos o suficiente para que eles não conseguissem nos
enxergar.
Minha melhor amiga estava empoleirada em uma árvore, encarando
as águas que corriam abaixo dela. Eu, por outro lado, estava completamente
apavorada com a possibilidade de Elisa se machucar assim que pulasse do
tronco onde se apoiava diretamente para o córrego.
— Eu não me importo, Carol!
Ela deu de ombros e voltou a encarar as águas. Estávamos ali há
alguns minutos e eu sabia que o único motivo que a segurava era que nossa
conversa ainda não tinha terminado. Era assim que as coisas funcionavam
entre nós: ela enfrentava seus medos e eu os pegava para mim.
Até tínhamos algumas semelhanças físicas que faziam desconhecidos
acharem que éramos parentes – nossa pele era escura (embora Elisa fosse
mais clara que eu), nosso cabelo era crespo (o dela mais cacheado) e éramos
exatamente da mesma altura. Mas, na verdade, Elisa e eu éramos
completamente diferentes, tanto na personalidade como na forma de ver o
mundo.
— Mas eu sim — respondi e bufei, batendo o pé direito na lama. Elisa
soltou uma risada, aquela que adorava soltar quando se sentia a dona do
mundo ou, apenas, quando achava que estava certa e eu, errada. Minha
melhor amiga desceu da árvore e caminhou em minha direção. Nossos
olhares se encontraram e ela sorriu.
— Por que?
— Porque eu me importo com você — disse, chutando uma pedrinha
que tinha encontrado segundos antes diretamente para a água. Eu sabia o que
viria em seguida. Elisa diria aquela frase, a mesma que sempre fazia com que
eu desistisse de insistir e a deixasse fazer o que queria. Ela tinha esse jeitinho
especial.
Tínhamos apenas doze anos, mas já naquele tempo parecia que
sabíamos muito mais do que os adultos nos contavam apenas pelas nossas
conversas. Com Elisa, eu não me sentia uma criança. Eu sabia que era um
pensamento bobo, porque eu era uma criança; mas quando estava com ela, o
mundo parecia pequeno demais para nossos olhos infantis.
— Então… — disse ela, com um sorriso que exibia aqueles dentes
brancos contrastando com a pele escura. Elisa olhou das águas para mim,
enquanto passava a mãozinha pelas mechas cacheadas do seu cabelo escuro e
grosso. — Você vai estar ao meu lado depois?
Sorri ao mesmo tempo que ela. Era difícil conseguir dizer não a
qualquer pedido de Elisa. Às vezes sentia que estava completamente
encantada por ela de uma forma que eu não conseguia entender e, talvez,
nunca fosse capaz. Eu olhava para ela e apenas sentia. Elisa encantava a
todos, mas, para mim, parecia guardar uma luz especial.
— Sempre — respondi depois de algum tempo. Era a resposta que ela
esperava, a resposta que ela sabia que eu iria dar. Elisa deu uma piscadinha
para mim, enquanto corria de volta para a árvore em que estava pouco antes.
Quando ela encontrou a posição certa e encarou novamente as águas, eu
fechei os olhos para o que viria a seguir.
Escutei o baque do seu corpo se chocando com a água clara e fria à
nossa frente. Só abri os olhos para checar se estava tudo bem. E estava. Elisa
me encarava a poucos metros com um sorriso gigante no rosto que dizia “Eu
sabia que não daria problema algum”.
Doze anos antes
— Elisa, eu realmente acho que você não deveria misturar tanta
bebida assim — falei ao ver minha amiga virar um copinho de tequila,
enquanto segurava um copo cheio de cerveja na outra mão.
Estávamos no final do nosso primeiro ano da faculdade e
continuávamos sendo duas pessoas muito diferentes. Enquanto Elisa era
conhecida como uma das garotas mais animadas e gostava de ir em todas as
festas dos fins de semana, eu preferia passar o meu sábado lendo um livro ou
assistindo a um seriado. Eu arrumava qualquer desculpa para não ter que sair
do meu mundo e encarar a realidade.
Porém, desde que entramos para a faculdade – ela no curso de
Engenharia Química, eu no curso de Administração –, a nossa rotina era a
mesma. Aos sábados, Elisa me arrastava para qualquer festa que ela
descobrisse – porque nem sempre minhas desculpas colavam – e no domingo
passávamos o dia deitadas no sofá do pequeno apartamento, que dividíamos
com mais duas garotas, fazendo exatamente nada.
— Carolina… Carol — respondeu Elisa com a voz enrolada,
limpando os cantos da boca enquanto sorria. Seus olhos tinham pupilas
dilatadas e eu sabia que ela já estava muito mais alegre do que o normal. —
Você diz isso desde a primeira festa. Relaxa, eu tô bem.
Minha melhor amiga segurou minha mão e me puxou em direção a
pista de dança do grande salão em que estávamos. O DJ tinha acabado de
colocar um funk do momento para tocar e eu sabia que seria questão de
tempo até que Elisa quisesse dançar. Não me entenda mal, eu até gostava de
dançar e beber uma cervejinha, mas eu detestava tanta gente desconhecida ao
meu redor.
Elisa começou a dançar ao som da batida que ecoava no volume
máximo das várias caixas de som espalhadas pelo salão. Ela rebolava, sorria
e balançava os cabelos enquanto me puxava pelas mãos e colava seu corpo no
meu. Eu sabia que Elisa não estava em seu juízo perfeito, que já não era lá
grande coisa quando sóbria, mas isso não impedia que meu coração
acelerasse quando ficávamos tão próximas.
Naquele momento, era como se só existisse nós duas no mundo. Sabe
aquela cena de filme em que a luz batia em um casal na pista de dança e o
tempo parava? Eu me sentia assim. Elisa despertava em mim sentimentos que
eu não conseguia entender, mas quando ela soltava aquele sorriso, aquele que
eu gostava de acreditar ser o meu sorriso, eu não me importava com minhas
dúvidas e inseguranças.
— Você é muito teimosa — falei, emburrada, quando vi Elisa
bebendo mais uma dose de tequila.
Elisa sorriu e colocou o copo de cerveja em cima do balcão, jogando
os braços ao redor do meu pescoço e me abraçando forte. Ela deu um beijo
estalado na minha bochecha, enquanto me olhava com uma expressão
curiosa. Minha melhor amiga balançou a cabeça e depois de alguns segundos,
me soltou e encostou suas costas no balcão.
Não me preocupei, Elisa era assim. Às vezes parecia que ela tinha
uma conversa inteira acontecendo dentro da cabeça. Seu corpo denunciava as
engrenagens funcionando em seu cérebro, sem que ela mesma percebesse. Eu
amava aquilo nela. Elisa não era tão pragmática como eu. Nos conhecíamos
desde que nascemos e, dezoito anos depois, ainda éramos polos opostos.
— Eu sei — disse. Ela sorriu e segurou minha mão. Eu sabia – sabia
que era a hora em que ela diria aquela frase, a nossa frase. Elisa pegou seu
copo de cerveja e deu um longo gole, enquanto eu cruzava os braços e
fechava ainda mais a cara. Minha melhor amiga soltou uma risada enquanto
me observava e completou. — Você vai estar ao meu lado depois?
— Sempre — bufei, tomei o copo de cerveja da sua mão e bebi um
pouco, enquanto toda a minha expressão corporal denunciava o quanto eu
estava impaciente. Conviver com Elisa me fazia me sentir um vulcão em
erupção, meus sentimentos eram a lava que teimava em escapulir. — Sua
idiota.
Ela gargalhou e me abraçou de novo, e ficamos assim durante uns
instantes. Dessa vez parecia que eu não era a única que desejava que o tempo
parasse.
Sete anos antes
Eu tinha planejado um dia perfeito.
Combinei com a minha chefe que trabalharia somente no período da
manhã, porque queria deixar minha tarde livre para aproveitar com Elisa. Era
o dia de sua festa de formatura e, como presente, dei a ela algumas horas em
um spa com salão de beleza caro e famoso. A ideia era sair do trabalho, pegar
minha melhor amiga no antigo apartamento que dividíamos juntas enquanto
eu ainda estudava, e depois desfrutar do presente que, no fim das contas,
também era um pouco para mim.
Mas, como uma pegadinha do destino, todo o meu planejamento foi
por água abaixo.
Eu trabalhava na mesma empresa de marketing há dois anos, quando
ainda estava na faculdade e onde fui contratada antes mesmo de me formar.
Naquele dia, eles perderam um cliente importante. Então, não apenas não
pude sair cedo, como também trabalhei o dia inteiro.
Elisa, depois de muita insistência da minha parte e reclamações dela,
acabou indo para o spa com Gustavo, seu namorado há pouco menos de um
ano. Era com ele que, à noite, ela estava se agarrando na pista de dança, no
meio de todos os convidados da grande festa que sua turma tinha organizado.
— Você está bem? — perguntou Fernanda, minha namorada há seis
meses, entregando-me uma taça de vinho. A verdade era que eu não estava
bem. Estava cansada e estressada por causa do trabalho, tentando lutar contra
os ciúmes que surgiam sempre que via Elisa e Gustavo juntos, e chateada
com Fernanda pela nossa briga na noite anterior.
Como a maior parte das nossas discussões, Elisa tinha sido o principal
motivo, embora nenhuma de nós duas admitíssemos. Dessa vez, Fernanda
tinha ficado chateada porque, de acordo com ela, eu estava dedicando todos
os meus dias da última semana para a minha melhor amiga. E eu realmente
estava. Era a formatura dela e nós éramos amigas há anos. Não via problema
algum em dedicar minha atenção a ela.
Mas Fernanda via. E, no fundo, eu sabia o motivo. Só não queria dizer
em voz alta, com medo de que fosse realmente verdade. Em todos aqueles
anos, eu nunca admiti em alto e bom som. Bebi um pequeno gole do vinho
seco e sorri, segurando a mão da minha namorada. Dei um pequeno beijo em
sua bochecha e vi um sorrisinho teimoso se formar no canto do seu lábio.
— Estou sim — respondi.
Fernanda deu de ombros e começou a me puxar para a pista de dança,
e, estranhamente, aquela cena me trouxe lembranças de um passado não
muito distante, onde quem segurava minha mão não era Fernanda, mas Elisa.
Minha namorada caminhou para perto de Elisa e Gustavo. Eu sorri para
minha melhor amiga quando nossos olhares se encontraram. Ela retribuiu o
sorriso, mas sua expressão mudou quando percebeu quem estava ao meu
lado.
Eu conhecia Gustavo desde os tempos da faculdade, mas Elisa e
Fernanda não tinham muito contato. Eu havia conhecido a minha namorada
em um workshop realizado em conjunto entre a empresa em que eu
trabalhava e aquela onde ela era assessora de imprensa. Tudo começou como
uma brincadeira. Ficamos próximas, amigas, mas logo a amizade passou para
algo mais e em poucas semanas eu já estava apresentando-a para meus pais.
Meus pais foram simpáticos e cordiais, embora ainda estivessem se
acostumando com a ideia de ter uma filha lésbica, recém-assumida. Mas eu
não podia dizer o mesmo de Elisa, que tinha sido fria, distante e gélida. Era
quase como se ela não conseguisse suportar a presença de Fernanda. Desde
então, eu evitava estar no mesmo lugar que as duas – e não era como se isso
acontecesse com frequência.
Fernanda trabalhava muito, então ficávamos dias sem nos ver. Por
outro lado, Elisa fazia questão de dar um pulo em meu apartamento a cada
dois dias, apenas para dizer um oi ou roubar minha comida. Às vezes, eu
sentia que era como se eu estivesse em dois relacionamentos, com pessoas
completamente diferentes, tanto fisicamente quanto na personalidade.
— Posso roubar minha melhor amiga um pouco? — disse Elisa, já me
puxando pela mão para o outro lado da pista de dança, não dando tempo de
Fernanda sequer responder verbalmente. Vi minha namorada fechar a cara e
caminhar para o balcão de bebidas, enquanto eu lançava uma expressão que
gritava um pedido de desculpas. Minha melhor amiga segurava um copo de
cerveja em uma mão e uma taça de champanhe na outra, e sorria enquanto
grudava o corpo no meu.
— Você tinha que fazer isso? — perguntei enquanto seguia os passos
de Elisa, que gargalhou e deu de ombros. Ela jogou os braços em volta do
meu pescoço e ficou ainda mais perto. Sentia sua respiração tão próxima que
poderia jurar que ela estava ansiosa, nervosa, como se seu corpo denunciasse
alguma coisa. Eu só não conseguia ler o que ele me dizia.
— Carol, eu não tô nem aí pra sua namorada. Agora, dança comigo
— pediu.
E eu dancei. Dancei a noite toda com Elisa e não com Fernanda.
Minha melhor amiga tinha, inclusive, resolvido ignorar completamente o seu
próprio namorado, que acabou desistindo de ficar até o final da festa e foi
embora mais cedo.
Fernanda, quando percebeu que eu não iria me desgrudar de Elisa,
também voltou para casa. E então sobramos nós duas. E continuou assim até
a última música. Nós duas dançando juntas e coladas durante uma música
lenta. Nós duas nos encarando enquanto o DJ se despedia. Nós duas entrando
num táxi e indo para o meu apartamento, já que Elisa não tinha condições de
sequer abrir uma porta sozinha.
— Carol… — chamou Elisa, bem mais tarde, quando já estávamos
deitadas em minha cama há quase uma hora. Eu podia jurar que ela já tinha
pego no sono, mas minha amiga parecia lutar contra a leseira que tomava
conta do seu corpo sempre que bebia demais.
— O que? — perguntei, sonolenta, enquanto me remexia na cama. Eu
não conseguia me acostumar a dividir minha cama com alguém, mesmo
sendo Elisa, mesmo quando já dividimos até uma cama de solteiro juntas. Era
engraçado, mas eu sempre sonhei em ter uma cama de casal só para ter
aquele espaço gigante para mim.
— Eu acho…
— Acha o que, Elisa? — perguntei. Me virei de frente para minha
melhor amiga e vi que seus olhos estavam fechados. Sua respiração era lenta,
sua expressão, serena, e eu só sabia que ela não estava dormindo, porque
senti sua mão segurando a minha. — Vai dormir! — falei depois de alguns
segundos de silêncio, em que só dava para escutar o barulho dos primeiros
carros que passavam na rua, anunciando que uma nova manhã estava se
aproximando.
— Eu acho que estou apaixonada por minha melhor amiga.
Cinco anos antes
— Eu sinto falta deles, Carol — disse Elisa, enquanto virava o corpo
e ficava de frente para mim na cama.
Tínhamos acabado de desligar a televisão depois de passar o dia
inteiro fazendo maratona do nosso seriado policial favorito. Mesmo sem dizer
quem era, eu sabia que Elisa falava sobre seus pais, que eram os melhores
amigos dos meus, mas tiveram uma reação muito diferente da deles quando
ela contou sobre sua sexualidade.
Meus pais não ficaram muito felizes quando me assumi, mas nunca
me trataram mal, me xingaram ou sequer pensaram na possibilidade de me
proibir de fazer qualquer coisa. Assim que eu contei, o silêncio imperou no
local, e isso durou algumas horas. Eu calada, eles calados. Até que minha
mãe se levantou, foi para a cozinha e retornou com uma fatia de bolo de
chocolate para meu pai e eu.
Demorou um pouco para realmente falarem sobre o assunto, mas,
depois de um tempo, falaram.
Com os pais de Elisa foi tudo diferente. Eles não só gritaram e
brigaram quando ela contou, como também a proibiram de se encontrar
comigo. O que poderia ter até funcionado se Elisa não fosse uma adulta que
nem mesmo morava com eles.
— Eu sei — disse. Segurei a mão da minha namorada e fiz um
carinho de leve. Nós não morávamos juntas, mas ela passava tanto tempo
comigo que eu tinha certeza que Han Solo, meu gato, achava que ela também
era sua dona. — Sua mãe disse mais alguma coisa?
Elisa levou as costas da minha mão até a sua boca e depositou um
beijo rápido. Eu sorri instantaneamente com a demonstração de carinho.
— Disse que ia conversar com ele, mas não falou mais nada. —
Minha melhor amiga sorriu tristemente e respirou fundo. — Eu realmente
achei que com o tempo ele ia aceitar.
Eu nunca imaginei que os pais de Elisa teriam aquela reação, mas eles
a trataram tão mal que até mesmos os meus pais entraram na briga. Eles não
falavam com seus melhores amigos há alguns meses. E eu sabia que era
questão de tempo até que os pais dela entendessem que não tinha nada de
errado no nosso namoro, mas queria que eles não demorassem tanto.
Acho que eles não conseguiam entender como Elisa podia ter se
apaixonado por uma garota depois de ter namorado tantos rapazes. Durante
muito tempo pensaram que era só uma “fase”, mas logo perceberam que os
nossos sentimentos não eram passageiros. Era difícil fazê-los compreender
que a sexualidade de alguém não precisava caber em uma caixinha e que
pessoas amavam de formas diferentes.
— Amor, ele vai — afirmei. Dei um pequeno beijo em seu ombro e
sorri. — Eles precisam de tempo e você também. Não é bom você ficar na
presença deles enquanto eles acharem que o que somos é errado — disse.
Soltei sua mão e, agora com minha mão livre, passei os dedos pelas mechas
do seu cabelo. — Nós não somos erradas. O que a gente sente uma pela outra
não é errado.
— E se eles nunca aceitarem? — perguntou, fechando os olhos para
aproveitar o carinho que recebia. Era uma questão que já tinha passado por
minha cabeça. O que fazer quando os pais da sua namorada, que eram
melhores amigos dos seus próprios pais e com quem você tinha uma relação
próxima há anos, não conseguiam aceitar que amor era amor, independente
dos envolvidos?
— Se eles nunca aceitarem e eu for a pessoa com quem você quer
dividir sua vida, nós teremos que… — Elisa abriu os olhos e me encarou. Eu
ainda acariciava seus cabelos, mas agora ela parecia mais concentrada em
saber o que eu tinha a dizer. — Nós teremos que aprender a viver sem eles.
Se seus pais nunca conseguirem entender que nosso amor é como qualquer
outro, não acho que precisamos insistir para tê-los em nossas vidas.
Elisa passou um braço pela minha cintura e me puxou para mais
perto, colocando seu queixo na curva do meu pescoço. Ela me abraçou mais
forte e eu retribuí. Senti Elisa esfregar a ponta do nariz pelo meu pescoço e
depositar um beijo rápido. Ela começou um carinho lento enquanto passeava
com a mão pelas minhas costas e eu quase adormeci, quando fui surpreendida
por sua voz calma, levemente sonolenta, mas ainda assim, cheia de amor.
— Você é. — Minha namorada deu um beijo suave em minha
bochecha e eu sorri de olhos fechados. — Você é a pessoa com quem eu
quero passar o resto da vida.
Nós ficamos naquela posição até pegarmos no sono, com Han Solo
deitado no pé da cama, junto com a gente.
Presente
— Discurso! Discurso! Discurso! — gritaram os convidados.
Entre eles, eu conseguia enxergar Gustavo, ex-namorado de Elisa, e
Fernanda, minha ex-namorada que tinha se tornado uma grande amiga.
Também estavam presentes nossos amigos de faculdade, nossos pais, minha
avó e o avô de Elisa, nossos primos próximos e distantes, alguns colegas de
trabalho… estava todo mundo lá.
Todos que fizeram ou faziam parte da nossa vida, que viram nossa
história acontecer. Todo mundo que tinha acompanhado minha melhor amiga
se tornar uma outra parte importante da minha vida. De namorada a esposa.
De melhor amiga à pessoa que iria acordar ao meu lado para o resto da vida.
A pessoa que tinha me ensinado que dividir uma cama de casal com alguém
que você era completamente apaixonada podia ser a melhor coisa do mundo.
— Ok, ok. Vou fazer um discurso — disse Elisa, entregando-me sua
taça e subindo em cima de uma cadeira, com o microfone em uma mão. Eu
sabia que eu tinha uma expressão abobalhada no rosto. Eu tinha me casado
com minha melhor amiga, com a pessoa que eu amei desde sempre e nunca
consegui dizer. Eu não conseguia esconder minha felicidade.
— Primeiro, obrigada a todos que vieram, acho que todos vocês
sabem o quanto esse dia é importante para nós duas. — Ela sorriu e recebeu
um “uhul” dos convidados. — Segundo, meu discurso vai ser todo dedicado a
essa pessoa linda e incrível que agora eu posso chamar de minha esposa. —
Elisa sorriu para mim e eu retribuí. Ela estava tão linda, em um macaquinho
longo e branco, diferente do meu vestido tomara-que-caia também na cor
branca.
— Amor, obrigada. Eu sempre soube que você era minha alma
gêmea, mas eu demorei muito tempo a perceber que você também era o amor
da minha vida. Mas desde aquele dia em que eu estava bêbada na festa da
minha formatura… — disse, deixando a frase pairar no ar. Eu me juntei às
risadas dos convidados: Elisa bêbada em alguma festa não era exatamente
uma novidade para a maioria. Ela prosseguiu: — … e disse que amava você,
tudo mudou para melhor. Poucas pessoas sabem, mas exatamente no dia
seguinte, eu e Carol percebemos que nossa amizade sempre teve algo a mais.
— Elisa apontou para algum lugar entre os convidados que eu não conseguia
enxergar e sorriu. — Acho que é a hora de agradecer o Gustavo e a Fernanda
por terem nos deixado sozinhas na festa.
Eu gargalhei com Elisa e os convidados, e sabia que Gustavo e
Fernanda tinham feito o mesmo. Na época, tudo foi um grande drama. Elisa
terminou com Gustavo dois dias depois da festa, eu terminei com Fernanda
uma semana depois, mas só porque não queria fazer por telefone. Foram
términos traumáticos, mas, estranhamente, os dois permaneceram em nossas
vidas.
— Acho que nós somos sortudas, Carol. Eu e você. — Elisa desceu
da cadeira e passou o seu braço livre por minha cintura. — Poucas pessoas
podem dizer que conheceram o amor da vida delas assim que chegam ao
mundo.
Nós sorrimos uma para outra e nos beijamos. Eu podia ouvir a gritaria
de todos os convidados, que comemoravam aquele momento. Muitos
acompanharam de perto algumas dificuldades do nosso relacionamento.
Estávamos com trinta anos, juntas há praticamente sete anos. Elisa
tinha um cargo seguro em uma empresa de engenharia, eu tinha aberto a
minha própria empresa de marketing. No campo financeiro e profissional,
estávamos bem. Emocionalmente, estávamos ainda melhor. Mas nem sempre
tinha sido tudo tão bom.
Ela só voltou a frequentar a casa dos pais dois anos depois de se
assumir e de contar sobre nós duas. E aquilo só aconteceu depois de inúmeras
conversas longas entre todos nós. O restante da minha família também não
foi muito receptiva, então nós passamos alguns natais sozinhas, em meu
apartamento com Han Solo, que acabou sendo adotado por ela também.
— Então… — disse Elisa enquanto me puxava para a pista de dança.
Uma cena que tinha se tornado nossa tradição em todas as festas que
participávamos. Não seria diferente na festa do nosso casamento. — Você vai
estar ao meu lado depois?
Ela me abraçou forte, enquanto arriscávamos os primeiros passos da
nossa primeira dança como casadas. Eu tinha colocado os braços ao redor do
pescoço dela e sentia o hálito quente de Elisa em minha bochecha. Mesmo
sem vê-la, podia jurar que ela sorria.
— Sempre.
Autora

Foto: Iris Figueiredo

Olívia Pilar começou a se arriscar na ficção através das fanfics.


Formada em Jornalismo pela PUC-MG, a mineira hoje atua como freelancer
em gestão de mídias sociais. É apaixonada por futebol, celebridades teen e
séries de televisão. Tem cinco cachorros e nas horas livres pode ser
encontrada nas redes sociais debatendo a importância da representatividade
da mulher negra na mídia – isso sem abandonar seu lado fangirl, é claro.
Também é autora do conto “Entre estantes”.
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Outros títulos da autora

Entre Estantes
Isabel quer provar para todos que pode ser boa no curso que escolheu.
Mas o que ela não imaginava ao ir buscar um livro na biblioteca da faculdade
é que, antes de provar qualquer coisa, ela precisa conhecer a si mesma.
Dezoito anos antes
Doze anos antes
Sete anos antes
Cinco anos antes
Presente
Autora
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Copyright © 2017 by Olívia Pilar
Todos os direitos reservados à autora

Esta é uma obra de ficção. Nenhuma parte desta publicação poderá ser
reproduzida por qualquer meio sem permissão por escrito, exceto no caso de
breves trechos em críticas.

Capa:
Iris Figueiredo
Ilustrações de capa:
Freepik
Ilustrações do miolo:
Freepik
Diagramação:
Iris Figueiredo
Revisão:
Iris Figueiredo
Nathália Campos

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