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Isabella estava sem paciência. Hoje, especificamente, o trânsito estava pior.

Talvez por ser


sexta-feira.

Pegar ônibus para ir e voltar dos ensaios era uma irritação só, principalmente perto do Natal. Ela
se irritava cada vez mais com a energia natalina pairando no ar. Não é que ela não goste da data -
ela gosta muito. O que a deixa irritada é nunca poder comemorar como gostaria.

Todos os anos, ela chega em casa e precisa se contentar com as partes do Peru que ninguém
quis, colocar o arroz no microondas, raspar o refratário de salpicão e de vez em quando ela
consegue um restinho de bacalhau. Os ursos polares na embalagem da Coca Cola a observam
com ar de triunfo enquanto ela murcha ainda mais ao despejar o refrigerante sem gás na única taça
limpa da mesa.

Sua mãe sempre faz questão de separar um pedaço generoso de pavê e umas duas ou três
rabanadas. Por pena, provavelmente. Todos já estavam acostumados com sua ausência durante a
ceia, durante a troca de presentes, durante os discursos e discussões. O que é uma ceia de natal
em família sem pelo menos uma pequena discussão, não é mesmo?

"Vou direto do trabalho, vó." Ela sempre respondia, quando sua vó ligava na noite anterior. "Esse
ano acho que consigo chegar mais cedo." E não chegava.

Isabella estava com as pregas vocais cansadas, a memória quase falhando de tanto decorar novas
harmonias. Certamente precisaria de horas de repouso vocal para encarar mais uma semana cheia
de ensaios. Ela ama cantar, e ama que essa seja sua profissão, mas é inegável o quanto esse
ofício é exigente.

Como artista, Bella faz parte do grupo que está trabalhando quando outras pessoas não estão. A
partir da segunda semana de Outubro já começam os ensaios frenéticos para as inúmeras
performances de fim de ano: festas corporativas, formaturas, confraternizações de todos os tipos.

Esse ano, ela passaria o Natal cantando na ceia do hotel Copacabana Palace. Isso significa que
sequer valeria a pena ir depois para a casa da sua avó, pois provavelmente o show terminaria tarde
da noite.

Após o último ensaio da semana, que resultou em uma discussão sobre valores de cachês e a
duração do show, Bella estava sentada sozinha no banco do ônibus com os fones no ouvido e a
cara enfiada numa pasta de partituras com as mesmas músicas de sempre, porém com arranjos
diferentes. Ela se perguntava qual roupagem All I want For Christmas Is You teria dessa vez.

Ela saltou no ponto final e percorreu o curto caminho que levaria até seu prédio com a rua mais
iluminada que o normal - luzes amareladas, verdes e vermelhas piscavam quase em sintonia
enquanto muitos papais noéis infláveis se penduravam por uma das mãos nas sacadas dos
apartamentos.

Alguém se empolgou demais e colocou dois bonecos de neve, uma rena e um sino em uma
varanda minúscula, além de uma quantidade excessiva de pisca-pisca. Por mais que o dono da
casa tivesse muito mau gosto, o que fez Isabella dar uma risadinha foram os bonecos de neve.
Ela não entende o porquê de se usar bonecos de neve como decoração em pleno Rio de Janeiro.

Ao entrar pelo portão de ferro do seu prédio, Isabella puxou o celular do bolso para dar pause na
voz de Michael Bublé cantando “It’s Beginning To Look A Lot Like Christmas". Enquanto puxava a
porta pesada de vidro que lhe permitiria entrar na portaria, ela deu uma boa olhada na decoração
de natal escolhida para esse ano.

A árvore de natal do seu prédio precisava urgentemente ser substituída. Ou ao menos receber
novos enfeites. As bolas de tamanhos desiguais e os laços coloridos não combinavam com os
ursinhos vestidos de azul que não combinavam com as estrelas douradas, que não combinavam,
de forma alguma, com o anjo prateado pedindo socorro no topo da árvore. O pisca pisca de led
amarelo reproduzia um ciclo esquisito que deixava metade das lâmpadas desligadas e a outra
metade piscando excessivamente.

- Boa noite, seu Carlos! - Ela disse em tom de alívio por finalmente ter chegado em casa.
- Opa, dona Isabella! Aqui, chegou pra você! - O porteiro pegou uma pilha de envelopes brancos e
entregou a ela. - Esse aqui não tem nome, mas é pro seu apartamento. Pode ser pra sua amiga. -
Bella dividia apartamento com uma amiga e tinha certeza que todos os porteiros achavam que elas
eram namoradas.
- Não aguento mais pagar conta, Seu Carlos. Essa fase acaba ou a vida é só isso mesmo? - Bella
fez uma voz dramática enquanto dava uma olhada rápida nos envelopes.
- Se você descobrir me avisa, viu? - O homem deu uma gargalhada alta.

Ela se despediu e apertou o botão do elevador. Procurou no bolso da frente da mochila o chaveiro
de unicórnio que ainda tinha as chaves de todos os lugares que ela já morou na vida: a chave da
casa da sua mãe, da casa do seu pai, da sua vó, do apartamento onde alugou um quarto minúsculo
quando saiu de casa, do apartamento que dividiu com seu ex namorado, e finalmente, a chave do
apartamento atual. O mais engraçado é que, mesmo sem nada que as diferenciassem, ela
simplesmente sabia qual chave abria qual fechadura.

O elevador abriu a porta no 3º andar e ela deu passos curtos até o número 303. Colocou a chave
na fechadura enquanto ajeitava com o pé o capacho que dizia “Sinta-se em casa mas lembre-se
que não está”.

Juliana, sua amiga e companheira de apartamento, trabalha no turno da noite e era comum que
elas se esbarrassem na portaria do prédio (e algumas vezes até dentro do ônibus) voltando para
casa após suas respectivas jornadas de trabalho.

Já passava das nove da noite e Bella estava faminta. Deixou na porta o velho par do All Star
vermelho que usava quase todos os dias, largou a mochila e os envelopes no sofá, e foi direto para
a cozinha. Conectou seu celular à caixinha de som que ficava na bancada e a voz de Michael Bublé
voltou a cantar enquanto ela tirava uma cerveja da geladeira e procurava os ingredientes para fazer
um strogonoff.

Isabella pensava demais, o tempo todo. Seu último término havia sido decidido por ela, por achar
que não sentia mais: não sentia mais vontade de estar em um relacionamento, não sentia mais
vontade de fazer esforço para ver qualquer pessoa, não sentia mais vontade de passar o pouco
tempo que tinha livre acompanhada.

Agora, seis meses depois, ela voltara a se perguntar se essa foi a decisão certa a ser tomada. Não
estava deprimida, só andava questionando muito sobre suas escolhas e seu futuro em geral. “Se eu
me organizar melhor, consigo ter mais tempo livre”; “Se eu recusar uma gig ou outra, o dinheiro não
vai fazer tanta falta assim”; “A Ju consegue trabalhar, estudar e namorar”; "Será que se eu
trabalhasse com outra coisa eu teria mais tempo para aproveitar a vida?”
“Putz, esqueci o alho… Ah, agora vai sem alho mesmo.” Ela suspirou e encarou a geladeira.

Pausa no fluxo de pensamentos para identificar a música que enchia o ambiente:Enya, cantando
Adeste Fidelis.

"Essa vai ser em Latim mesmo ou vai ser a versão em inglês? Temos que resolver isso.” Jogou o
molho de tomate.

“Tomara que o arranjo seja mais animado que o do ano passado”. Jogou o creme de leite.

“E se a gente cantasse em português? Mas a métrica ficou tão feia… Eu comprei batata palha
ontem?” Abriu a despensa.

“Ufa, comprei sim.” Abriu a geladeira.

“A versão do Pentatonix dessa música ficou tão foda, talvez a gente consiga adaptar e reproduzir
com as backings.” Procurou o tupperware com arroz.

"Cadê a menina que vai tocar violino, hein… Ela não apareceu hoje.” Abaixou o fogo.

“Esse é o barulho da porta. Ju chegou”.

- Bella, cheguei! O bar tava fechado, acredita?! Acho que eles ficaram sem luz” - Juliana sempre
chega falando alto e fazendo barulho. Enquanto pegava dois pratos e colocava uma boa quantidade
de arroz em cada um, Bella deu uma risadinha.
- Você já jantou? Não, né?
- Não. - Juliana entrou na cozinha e pegou uma garrafa de água da geladeira - Você fez janta! Meu
Deus, você é perfeita.

Bella riu novamente. Nenhuma das duas cozinhava muito bem, mas pelo menos eram esforçadas.

Geralmente, quem chegava em casa primeiro fazia alguma coisa pra comer. Era uma boa dinâmica
e elas sempre cozinhavam em grande quantidade, pra sobrar: o strogonoff de hoje daria para mais
uns dois dias.

Bella mexeu a colher de pau na panela mais um pouco e desligou o fogo, enquanto a amiga
alternava os pratos no microondas. As duas sentaram na mesa pequena da cozinha e falaram
pouco. Através das olheiras escuras e piscadas longas, o cansaço de cada uma era visível.
Conversaram sobre os planos de cada uma para o fim de semana e antes da meia noite já estavam
prontas para dormir.
- Cara, hoje é sexta feira. Acho que vou ver um filme. Não, melhor: vou terminar o Dorama que eu
comecei semana passada. - Disse Juliana, entre um bocejo e outro, se espreguiçando e procurando
o controle da televisão.

Ela deitou no sofá e percebeu os envelopes, agora amassados, debaixo de seu corpo. Deu uma
olhada rápida e reparou no envelope sem nada escrito além do número "303". Deu uma sacudida
no envelope olhando para Bella, com cara de dúvida.

- Também não sei, o porteiro me entregou quando cheguei. - Isabella mandou um beijinho para a
amiga enquanto pegava a mochila e se dirigia para o quarto. Juliana jogou os envelopes na mesa
de centro, antes de se deixar levar pelo romance que estava prestes a dar o play na televisão.

***

Bella sonhou com a árvore de natal da portaria.

Sonhou que havia comprado um pisca-pisca decente e uma estrela para tentar amenizar o caos
criado pelos enfeites. Obviamente nem ela nem ninguém faria nada a respeito, mas foi engraçado
perceber o quanto seu subconsciente se importou com a aparência daquela árvore.

Ela esqueceu de desativar o despertador, e como consequência, foi acordada pontualmente às


7:30. Mexeu no celular, respondeu algumas mensagens e tentou sem sucesso voltar a dormir.
Frustrada por ter perdido a oportunidade de acordar tarde no seu último fim de semana livre, ela se
espreguiçou devagar enquanto dava um bocejo longo.

Resolveu então levantar e organizar a agenda das próximas semanas. Bufou e puxou o lençol para
o lado, fazendo movimentos bruscos ao levantar. Abriu o laptop velho (porém resistente) na
mesinha de centro da sala e seus olhos imediatamente focaram no único envelope amarelado sem
nenhuma informação além dos três números que indicavam seu apartamento. Muito relutante,
estendeu o braço para alcançá-lo. “Aposto que é a síndica reclamando de alguma coisa ou
chamando para a reunião de condomínio“, pensou.

O envelope tinha um cheiro que lhe remetia a álbuns de fotografia, daqueles que ficam guardados
dentro de alguma caixa entulhada no fundo do armário; era velho; parecia ter sido dobrado e
desdobrado inúmeras vezes.

A cola que o lacrava era bastante resistente, de modo que Isabella precisou rasgá-lo para abrir.
Duas folhas também amareladas e com o aspecto de cansadas estavam dobradas ao meio, e ela
pode identificar uma letra fina e delicada que não lhe era familiar no verso delas.

O cheiro de guardado ficou ainda mais forte, e ela podia jurar que aqueles papéis ficaram por muito
tempo em algum lugar pequeno e pouco arejado.

Estava extremamente curiosa. Sentia que aquele envelope estar em suas mãos pudesse ser algum
engano e olhou novamente o verso, quase desejando que um remetente ou destinatário tivesse
aparecido magicamente durante a noite. Porém, ainda lia-se apenas “303”.
Ela desdobrou as folhas sem pressa e seus olhos miraram nos escritos em um post it grampeado
no canto superior direito.

“De mim, para mim mesma.


Que em alguns anos
A vida tenha ficado ainda mais leve.
Dezembro, 2001
H.F.”

Bella franziu as sobrancelhas. Definitivamente, aquele envelope não era pra estar com ela. Sua
curiosidade rapidamente se transformou em um misto de dúvida e confusão. Vinte anos se
passaram desde que a carta foi escrita.

Durante vinte anos esse envelope esteve existindo e sobrevivendo por aí, desafiando todas as
circunstâncias e possibilidades. Agora sua aparência abatida passou a fazer muito sentido.

Ela não sabia se podia ler tais palavras, que pareciam ser tão pessoais para quem as escreveu.
Não sabia se deveria mergulhar nos escritos de outra pessoa. Simplesmente não sabia. Contudo,
por qualquer que fosse o motivo, a carta havia parado em suas mãos.

Foi até a cozinha, encheu sua caneca de café, acomodou-se no sofá e com um pouco de receio,
mas sem pensar muito, abriu o coração para imergir-se naquelas palavras.

“Queridos,

Em meio a todo o caos que vem se formando em minha mente, hoje, dia 21 de Dezembro
de 2000, cheguei a uma conclusão: não vale mais a pena. Estou cansada. Todos os dias
eu tento e não vejo solução. Sou uma mulher de 46 anos extremamente infeliz. Divorciada,
sem filhos, sem grandes conquistas profissionais, uma formação que de nada me serviu.

Creio que os poucos amigos que me restam estão cansados de me ver cabisbaixa,
humilhada pelas minhas próprias escolhas e sentimentos. E eu não quero mais existir.
Peço desculpas a todos que me amam e irão sentir minha falta. Mas a vida não foi
feita pra mim. Ou eu não fui feita para viver. O mundo não tem espaço pra mim.
Eu não caibo, não me encaixo, não me vejo nesse planeta. Não me vejo viva.
Não me sinto viva. Não sinto mais nada. Agora mesmo, o imaginar de meus familiares e
conhecidos velando meu corpo não me desperta culpa nem remorso. Apenas alívio.

A meu ex marido, que levou embora o pouco construído em mim, por favor saiba:
Você é capaz de destruir uma pessoa. Com palavras, ações e não ações,
olhares e não olhares, com tantas idas e vindas. Eu levantei todas as minhas
defesas para tentar me poupar de você e suas atitudes afiadas. Te ataquei de
volta mas você teve defesas melhores que as minhas. Você e sua negligência
têm minha benção para viverem juntos. Espero que você encontre outro alguém
que lhe faça feliz como eu sempre quis. (Na verdade, eu desejo que você encontre
outro alguém que te coloque em pedaços, assim como você fez comigo.)
A meus familiares, amigos, conhecidos e colegas de profissão:
Sinto muitíssimo. Peço desculpas e peço perdão. E acima de tudo,
Peço que não julguem minha escolha, pois sinto que minha presença
neste mundo tem sido um erro desde o início.
Nos vemos em outra vida, talvez.

Um Feliz Natal e um bom Ano Novo a todos


Com muito amor,
H.F.”

Isabella sentiu-se desolada; uma tristeza imensurável tomou conta de todo seu corpo. Não conhecia
aquela mulher, não sabia nada a respeito de sua vida e sequer sabia seu nome. As informações
contidas naquela carta de despedida foram suficientes para que fosse criada uma conexão com
uma pessoa que já não estava mais presente.

Releu a carta com cuidado, analisando cada curva de cada letra, cada palavra escolhida para estar
ali, e imaginou a fraqueza nas mãos de sua autora, que tinha toda sua energia sendo drenada aos
poucos e depositada na ponta da caneta com tinta preta responsável por eternizar toda sua
angústia.

Nenhuma pessoa deveria sentir que sua existência é um erro, e que não há lugar para ela no
mundo. Era doloroso pensar que em um mundo com infinitas possibilidades, qualquer pessoa
deseje não mais existir.

Isabella sentiu que estava invadindo o mais profundo abismo entre a desarmonia e a desolação
presentes em um indivíduo cuja melancolia tomou conta de seu inteiro. Ela ficou alguns minutos em
silêncio, sentindo todo aquele pesar que havia se formado em seu peito.

Ela desmontou no sofá, segurando a carta em uma das mãos, sentindo sua garganta seca e os
olhos marejados. Pegou a caneca de café e deu goles longos, voltando a si aos poucos.

Seu lado racional achava que não fazia sentido sentir-se triste por uma pessoa cuja existência lhe
era desconhecida até poucos minutos atrás; já seu lado emocional não conseguia não pensar na
dor causada pela perda da existência daquela pessoa no mundo.

Bella olhou no relógio e embora sentisse que o tempo havia parado, ela ficou por quase 40 minutos
lidando com aquelas sensações. Ainda havia mais uma carta dobrada dentro do envelope, mas ela
escolheu ficar com as mãos vazias por ora, aceitando que havia se sensibilizado com tudo isso. Se
deu permissão para terminar seu café com calma.

“Será que H gostava de café? Com o que ela trabalhava? Muitas vezes não sabemos os danos que
causamos a determinadas pessoas até que elas nos digam; será que seu ex marido sabia de todo o
dano causado por ele? Será que ela lhe disse como se sentia? Quantas pessoas estiveram
presentes no seu funeral? O envelope tinha o número 303 porque ela morou naquele apartamento?
Morava sozinha? Gostava de assistir televisão? Costumava passar mais tempo na cozinha ou na
sala? Preferia vinho branco ou vinho tinto? Tinha um cachorro? Ou será que tinha um gato? “

Em meio a esse turbilhão de indagações, seu cérebro formulou a única pergunta que talvez
pudesse ser respondida: será que algum dos porteiros teria mais informações sobre os antigos
moradores daquele apartamento?

Bella ponderou por pouco tempo se valia a pena perguntar e achou que faria sentido, afinal, o
envelope tinha o número do seu apartamento.

Colocou a xícara de café estampada com a silhueta dos Beatles na mesa de centro e foi até seu
quarto trocar de roupa. Jogou no corpo o mesmo macaquinho xadrez que usou na noite anterior,
enfiou os pés na Havaiana preta surrada, pegou o envelope e se dirigiu até o elevador.

Antes de apertar o botão que a levaria até a portaria, ela parou e pensou que talvez estivesse
levando essa situação a sério demais. Quando o elevador abriu a porta, ela entrou sem muita
certeza.

O porteiro que trabalhava no turno da manhã durante os fins de semana era o menos simpático de
todos. Mesmo assim, Bella decidiu arriscar, achando que valeria a pena tentar conseguir qualquer
informação.

Ao chegar no térreo, ela pôde ver o homem assistindo qualquer coisa na televisão minúscula que
ficava na velha mesa de madeira. Seu olhar pousou imediatamente na árvore de natal que parecia
ainda mais desarrumada, se é que era possível.

- Bom dia, seu Manuel! - Sua voz saiu rouca e falhada.


- Bom dia. - O homem respondeu sem olhar para ela. Com os cabelos desgrenhados e os olhos
caídos, ele parecia ter acordado de um cochilo.
- Escuta, queria ver se você pode me ajudar. - Bella se aproximou, fazendo esforço para que a voz
saísse menos arranhada. - Ontem o Carlos me entregou umas contas e esse envelope estava junto.
Não tem remetente nem destinatário, só o número do meu apartamento.

Ela fez uma pausa, esperando que o porteiro fizesse algum comentário, porém ele apenas diminuiu
o volume da televisão e levantou o rosto para encará-la.

- Tem algum jeito de saber quem morou no apartamento 303 antes de mim? - Bella tinha certeza
que não receberia uma resposta útil. Ela deu uma olhada rápida na televisão e notou os âncoras
sorridentes. Tentou sem sucesso ler a chamada do noticiário.

Em silêncio, o porteiro abriu uma gaveta, que fez um rangido alto e tirou um molho de chaves. Ele
levantou, soltando um grunhido e caminhou lentamente até uma porta pequena que ficava ao lado
da árvore e passou a chave na fechadura.

- 301? - Ele perguntou, de forma quase inaudível, com o tronco enfiado no que parecia um pequeno
armário de arquivos. Se Bella não tivesse a audição tão aguçada, talvez não tivesse escutado.
- 303. - Ela respondeu, impaciente. Chegou mais perto da árvore de natal e ficou encarando aquele
caos enquanto roía a unha do dedo indicador. - Precisa de ajuda? - Ela perguntou, ao ver que o
homem pegou uma pasta verde surrada com papéis saindo pelos lados.
O homem fez que não com a cabeça e jogou a pasta na mesa. Bella revirou os olhos diante da má
vontade que ele manifestava.

- Não sei se vou conseguir achar porque a síndica mandou organizar tudo aqui. Tá tudo zoneado.
Tem coisa que a gente vai achando quando os apartamentos ficam vazios e jogamos tudo aqui. Tá
uma bagunça. É 501, né? - O porteiro perguntou mais uma vez.

Isabella respirou fundo antes de responder.

- Não. 303. Três, zero, três. - Ela mostrou o envelope e apontou para os números escritos no verso.

Ainda em silêncio e demonstrando uma imensa falta de interesse, o porteiro folheou as muitas
páginas daquela pasta. As divisórias estavam rasgadas e manchadas, as folhas amassadas e
empoeiradas. Ele parou em uma divisória onde lia-se “Terceiro Andar” rasurado. Ele continuou a
virar as páginas e parou ao notar um marcador azul desbotado cobrindo o número 303.
Bella se sentiu vitoriosa.

- Antes de você morou uma tal de Juliana. - Ele disparou com voz de indiferença.

Bella se sentiu derrotada.

- Juliana ainda mora lá. É minha amiga. A gente divide o apartamento. - Bella tentou, mas não
conseguiu não soar agressiva. “Meu Deus do céu, não é possível”, ela reclamou mentalmente
movendo os lábios sem emitir som algum.
- Hm. - O porteiro colocou os óculos que estavam espalhados na mesa e se jogou na cadeira que
fez um barulho alto.

A garota suspirou pensando que ter saído de casa fora uma enorme perda de tempo.

- Morou um monte de gente. Foi comprado e vendido algumas vezes, alugaram pra uma porrada de
gente. Pera aí.

Ela não sabia o que fazer com essas informações. Tentou formular alguma pergunta mas já estava
de saco cheio de estar ali.

- De 1992 a 2003 teve a dona Heloyze... - Bella arregalou os olhos e imediatamente voltou a prestar
atenção. - Aí ela vendeu. Compraram em 2005, venderam em 2012, alugaram por 7 anos…
- Perdão, qual o nome? - Ela interrompeu o porteiro, que seguia falando datas e nomes que não
mais lhe interessavam.
- Eu falei alguns. Tem o primeiro dono, Seu Roberto. Ele era ricaço. Tinha uns 4 apartamentos aqui.
Depois veio a dona Heloyze… - Ele continuou com a cara enfiada naqueles papéis.
- Ela! - Bella o interrompeu novamente e falou mais alto do que pretendia. - Ela morou aqui de
quando a quando?
- 1992 a 2003. - O homem virou a pasta para ela e tirou os óculos, colocando-os na mesa e se
espreguiçando.

Bella lembrou que a carta foi escrita perto do natal do ano 2000 e assinada com as iniciais “H.F.”.
Poderia perguntar o sobrenome da mulher que o porteiro havia mencionado, mas apenas o nome já
lhe foi suficiente. Ela se sentiu satisfeita e realizada. Ter ido até lá não foi, de fato, uma perda de
tempo.

- Muito obrigada! Me ajudou muito! - Ela disse em um tom alegre, pronta para pegar o elevador.
- Por nada. - O porteiro juntou os papéis e jogou-os de volta dentro da pasta, fechando o pequeno
lacre. Parecia feliz e ansioso para retomar seu cochilo.

Ele pegou o controle da televisão e aumentou o volume, ignorando completamente a presença de


Isabella, que deu uma última olhada para a árvore de natal e fez o caminho em direção ao elevador.

***

Ao pisar no terceiro andar, Isabella andou devagar até seu apartamento. Tentou criar as feições e
características de Heloyze em sua mente.

Achava que ela tinha cabelos escuros e gostava de se vestir bem. Um estilo mais neutro e
tradicional com roupas sóbrias, tecidos macios e sem muita textura. Não usava estampas. Gostava
de sapatos com saltos quadrados, saias pretas longas, blusas de botão com decote em V. Tomava
café sem açúcar e gostava de jogar cartas. Lia Cecília Meireles e Paulo Leminski.

Bella criou uma imagem nítida e vívida dessa mulher. Achava que deveria ser uma pessoa divertida.
Já dentro do apartamento, quis personifica-la sentada no sofá com as pernas cruzadas, pronta para
uma longa conversa sobre qualquer assunto. Por um segundo, foi como se sentisse falta dela.

Voltando de seus devaneios, ela quis imediatamente ler a outra carta. Não sabia o que esperar, mas
queria descobrir mais sobre Heloyze. Queria se sentir próxima, queria entendê-la.

Deu um gole do café já frio e fez uma careta. Abriu o envelope mais uma vez e tirou de dentro o
outro papel dobrado. Esperou alguns segundos, como quem se enche de coragem, e respirou
fundo.

“Hoje eu redescobri o amor.

Hoje eu redescobri a alegria, redescobri a leveza, redescobri a vontade de permanecer!


Escrevo na véspera do Natal de 2000. Três dias depois de redigir minha despedida
deste mundo, digo que o ímpeto de não mais viver me deixou completamente.
Não sei se conseguirei deixar claro o que foi que encheu meu coração de vontade.

Irei tentar, pois minha intenção é deixar registrado para mim mesma como minha
vida passou a fazer sentido após tantos anos.

Não havia decidido como, mas havia decidido partir. A dor de ser era tamanha,
me impedindo de apreciar meus sentidos. Eu apenas olhava o meu entorno, sem ver
o que me era apresentado. Eu apenas ouvia, sem escutar o que me era dito e o que
me rodeava.
O macio da seda em contato com minha pele me causava a mesma
sensação que um canelado. A grama debaixo dos meus pés me causava aflição.
O cheiro do mar me causava enjoo. A lista de coisa que deveriam ser prazerosas
porém acabaram tornando-se dolorosas é extensa. E não é sobre isso que quero falar.

Após tomar a decisão de ir embora, eu resolvi que gostaria de ter uma última imagem
do Rio de Janeiro, cidade onde nasci e vivi minha vida inteira.

Não me pergunte como, mas encontrei uma forma de multiplicar a pouca vontade
que havia em mim e me vesti para então sair de casa em direção a um dos bairros
mais vivos dessa cidade, e também onde passei bons momentos de minha juventude:
A Lapa. Acho que dentro de mim, afogada por toda a minha angústia, ainda havia uma
ponta de esperança, um desejo de tentar encontrar qualquer motivo que me fizesse
querer ficar.

Caminhando sem rumo e sem direção pelas ruas da Lapa, eu observava e me via
nas outras mulheres sentadas com seus respectivos namorados e amigos.
Os sorrisos largos e as gargalhadas altas tomavam conta de todos os estabelecimentos
por onde passava. E eu apenas passava, sem prestar atenção.

Então, eu a ouvi.

Em um boteco de estrutura duvidosa com uma decoração de Natal extremamente cafona e


inadequada, algo despertou dentro de mim ao observar aquela mulher que mais parecia uma
força da natureza entoando uma melodia melancólica. Não entendo de música, mas arrisco
dizer que seria um Jazz. Ou seria talvez um Blues? Nunca fui capaz de diferenciá-los.

O estabelecimento estava vazio, com apenas um pequeno grupo de pessoas ocupando as frágeis
mesas e cadeiras de madeira. E que bom que estava vazio. Não acho que caberia mais ninguém
ali, pois aquela mulher preenchia cada canto daquele lugar. Eu não havia visto nada igual em
toda a minha vida. Era como se eu pudesse ver seu coração pulsando.

Seus olhos brilhavam. Seu corpo inteiro se movia a cada sílaba cantada. Sua respiração era
controlada, pacífica, plena. Era como se ela estivesse flutuando. Era como se sua vida dependesse
daquela música e daquele momento; aquela voz que invadia meus ouvidos era o som mais puro e
visceral; pintava cenários completos apenas com suas nuances, me transportando exatamente para
onde queria que eu fosse.

Os alcances agudos daquela mulher me faziam presenciar uma emoção tão íntima, fazendo meu
corpo amolecer. Suas notas graves me levaram ao encontro da razão que há muito pareceu
estar perdida.

Ela me fez sentir.

Entende? Eu pude sentir. Antes de presenciar uma completa desconhecida exercendo o que
claramente era sua vocação e missão, eu não lembro a última vez que simplesmente senti.
E naquele dia, através de uma voz cantada, eu senti acender dentro de mim uma coisa que
acredito ter sido acesa pela primeira vez: o amor. Não um amor qualquer. Não um amor vazio.
O amor pelo sentir. Amor pelo ser e estar.

Que sorte a minha presenciar aquela mulher naquele momento. Que sorte a minha presenciar o
amor que ela sente pelo seu ofício. Que sorte a minha descobrir através de outra pessoa que
o amor ainda existe, pois eu o vi se manifestando pela primeira vez em tantos anos. Que sorte a
minha entender que o amor nunca me deixou, e nunca vai me deixar pois ele está presente em
tantas coisas ao meu redor.

Que sorte a minha viver no mesmo mundo que ela, uma alma tãoforte que foi capaz de me fazer
enxergar após tantos anos cega.

Eu voltei para casa decidida a continuar.

Ao chegar na portaria do edifício, notei que havia uma árvore de Natal em um canto.
Preciso ser honesta, não fizeram um bom trabalho. Tenho certeza que todos os
enfeites foram doados por moradores querendo se livrar deles. Então, pensei:
Por que não fazer minha contribuição? Eu não tenho o costume de montar
árvores de Natal, mas minha querida avó seguiu essa tradição até não poder
mais. Porque me trazia boas lembranças, eu guardava o anjo que ela costumava
colocar no topo da árvore.

Era um anjo com expressões tranquilas, cabelos castanhos encaracolados,


vestimentas prateadas e segurava uma lira de tom amadeirado em uma de
suas mãozinhas.

Procurei em todas as minhas caixas e ao encontrá-lo,


me enchi de felicidade! Vovó ficaria feliz. Não havia nada no topo daquela
árvore. Me senti realizando um grande ato heróico ao pisar na portaria vazia
e escura iluminada apenas pelas luzes descoordenadas e posicionar o anjo
de minha avó naquele espaço vazio.

Quero guardar esse registro com todo o cuidado. Não posso e não quero
esquecer do que me despertou o ímpeto de seguir viva.

Feliz Natal, Heloyze!

Feliz nova vida!”

De tudo que Isabella havia lido em toda a sua vida, nada jamais lhe tocou tanto. Seus olhos
estavam ardendo, suas mãos estavam suando, seu coração acelerado.

Tantas camadas, tantas descobertas, tanta coisa ao mesmo tempo. Ela queria estar presente
naquele momento e compartilhar com Heloyze toda essa jornada. Saber que tudo havia ficado bem
fez com que Isabella derramasse lágrimas de alívio.
Ela leu a carta dando pausas longas para recuperar o fôlego diante das palavras escolhidas para
descrever o que uma voz e uma música foram capazes de fazer. A partir daquele momento, Bella
sabia que todas as vezes que pisasse em um palco, imaginaria Heloyze na plateia, com toda aquela
fragilidade e vulnerabilidade. Tentaria desvendar através do olhar das pessoas se elas estariam
passando por um processo parecido.

As primeiras horas daquele sábado não foram como Isabella pensou que seriam, mas ela não
poderia estar mais grata. Qualquer que fosse a razão daquele envelope ter parado em suas mãos,
ela sentia uma gratidão que não cabia em seu peito.

Resolveu que não iria perder tempo pensando nos porquês de toda aquela situação. Tudo por ter
sido apenas uma enorme coincidência, mas a verdade é que Isabella não acredita muito em
coincidências; ela preferiu acreditar que o Universo, de alguma forma, quis através daquelas cartas
unir sua vida com a de Heloyze.

E quem sabe, em algum outro momento, suas vidas se cruzassem de alguma outra forma.

***

À noite, Bella e Juliana resolveram sair sozinhas, algo que não faziam há muito tempo. Juliana
resolveu faltar ao trabalho. Sem nenhum motivo específico: apenas não estava afim de ir.

Bella se sentia emocionalmente esgotada após a montanha russa de emoções naquela manhã, e
teve a necessidade de fazer alguma coisa para se divertir. Elas perceberam que embora morassem
juntas, quase nunca tinham a oportunidade de um tempo só entre as duas, conversando com calma
e sem se preocuparem com a hora.

Elas decidiram que essa seria uma noite para se reconectarem novamente: passaram horas se
maquiando juntas, escolhendo roupas e conversando sobre nada e sobre tudo, ao mesmo tempo.

Ao chegarem na portaria, elas deram passos apressados em direção à porta de vidro que daria
para a rua até que Ju parou de andar e segurou o braço da amiga de forma dramática.

- Cara… O caos que é essa árvore. Fica pior a cada ano. - Ela riu e se olhou no espelho ajeitando o
cabelo.

- Ah… Não acho tão ruim assim. - Disse Isabella, dando um sorriso de canto de boca e olhando
diretamente para o anjo prateado no topo da árvore, que não mais parecia pedir socorro.

E ela podia jurar que ele havia sorrido de volta.

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