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Sumário

1. Tormento ……………………….
2. Olhos de Fogo ………………..
3. Perseguição…………………..

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1. Tormento

Os olhos cor de âmbar se moviam a cada movimento de seu adversário, tentando


encontrar a melhor forma de ataque.
O garoto ergueu a mão e moveu uma peça, deixando seu oponente cercado.
— Check — Luke falou ao endireitar seus cachos negros que caíam perto das esferas
amareladas.
As pessoas ao redor ficaram boquiabertas, mas não impressionadas, ao verem
Luke Choisi jogar. Era notório que todos os jogadores de xadrez da região conheciam o
seu talento. Durante o ensino médio, ganhar de um dos melhores jogadores da cidade
o tornou ainda mais conhecido. No entanto, Luke não era do tipo que se vangloriava ou
esbanjava orgulho do seu título de prodígio. Desde criança, ele passava horas isolado
em seu quarto jogando xadrez, alheio ao mundo exterior. Cada movimento que ele
fazia com as peças era acompanhado de uma sensação de proximidade de seu pai,
como se ele estivesse ali, torcendo e auxiliando em cada jogada na mesa.
Passou para a última rodada do torneio municipal do Vale. Enquanto esperava seu
adversário, resolveu ir ao bebedouro. Notou que um grupo com uns seis garotos
estavam olhando para ele e sussurrando algo, decidiu ignorar, afinal, era costumeiro.
— Aberração — Luke escutou, ao passar ao lado deles, enquanto se dirigia ao
auditório.
Ele deixou de lado aquelas palavras e resolveu se concentrar para a última partida.
Já havia ganhado em dois anos seguidos, não iria deixar algo como aquilo o abalar.
Apesar de não ser narcisista, era a única coisa na qual se orgulhava de saber fazer.
Sentou-se à mesa e lá estava Stephany, sua antiga colega de turma. Ele suspirou e
desejou boa sorte de forma sincera para a garota. Em retribuição, ouviu algumas farpas
e uma palavra de baixo calão.
A partida se iniciou, e ambos demoravam quase o tempo limite para fazer sua
jogada. Algumas gotículas de suor surgiram na testa do rapaz, que tentava desacelerar
sua respiração. Em contrapartida, a garota começava a ser cada vez mais hostil em

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seus comentários, e dava pra notar que ela estava perdendo a linha com a calma
aparente do seu adversário.
— Não precisa suar, bebezinho. Já vou acabar e te mandar chorando para sua mãe
— ela debochou — pena que não posso dizer o mesmo com seu pai.
Luke travou, tentou se desvencilhar do ódio que sentiu com tal comentário. A garota
tomou uma advertência do juiz e a partida continuou, ou quase. O rapaz estava
travado, olhando para baixo, lembrando do seu pai. A culpa quase o tomou por
completo, ao lembrar de algo que aconteceu anos atrás. Os fantasmas do seu passado
o assombrou e se não fosse pelo grito de um dos observadores, o tempo teria
estourado.
— Desculpa ter feito você esperar — sussurrou.
A garota ficou sem entender. Rapidamente ele mexeu uma das peças. Stephany
não sabia o que fazer, pensou que ele desistiria ou acabaria indo para cima dela e seria
desclassificado.
— Vamos ver se você aguenta a pressão — encarou a garota com seus olhos
entreabertos, como um animal prestes a atacar sua presa.
Em um movimento drástico, a jovem cometeu um grave erro, criando uma abertura
quilométrica para Luke.
— Pode ir chorar no colo da sua mãe agora.
A partida acabou e muitos que estavam ali comemoraram, mas a maioria como
sempre, lançaram vaias e ataques ao vencedor. Luke ficou calmo até receber a
premiação.
Saindo do torneio que lhe rendeu mais uma medalha para coleção, avistou Stella
acenando para ele em cima da sua moto azul. Ele subiu e começou a contar como
havia sido o evento.
— Dessa vez foi mais difícil do que imaginei — Luke comentou enquanto colocava o
capacete.
— Tá perdendo o jeito, Lulu? — A loira brincou — Já não era hora, aquele seu
guarda-roupa tem mais troféus e medalhas do que roupas.
— Não exagera. — Ele virou o rosto enquanto a garota ligava a moto e acelerava.

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— Daqui a pouco cê vai entrar para a lista dos mais populares nerds do mundo,
maninho — caçoou Stella.
— E quando você vai ganhar o prêmio de melhor comediante do Vale? — retribuiu, e
ambos riram.
O lugar favorito deles era o pequeno café temático, nunca tinha muita gente por lá.
Já havia um tempo que o dono não pintava e dava para notar que as poltronas só
haviam sido remendadas. Apesar disso, o lugar era ótimo para conversar e passar um
tempo. As pessoas que frequentavam o lugar, eram bem interessantes. Desde o casal
de gêmeos que viviam completando a frase que o outro havia iniciado, ou o senhor
veterano de guerra com seu discurso que uma grande ameaça iria aparecer para
acabar com tudo. Naquele dia em questão, não estava tão diferente, se não fosse por
um homem todo encapuzado no fundo do estabelecimento, perto dos banheiros,
usando um óculos escuro.
— Obrigado. — Luke pegou a xícara de café e soltou um sorriso tímido para a
garçonete.
— Trocaram a Jane ou será que ela tá de folga? — Stella falou enquanto mastigava
uma fatia de torta, os farelos caíam sobre a mesa.
— Eu espero que tenha sido a segunda opção. Já estou habituado com a tagarela —
respondeu enquanto soprava seu copo de café. A falta de uma ventilação era
incômodo para Luke, porém, não podia ficar sem o líquido preto como a camisa que
estava vestindo.
Ambos deram um pulo da cadeira quando ouviu um grito detrás do balcão, mas logo
notaram que era apenas o Seu Francis, dono do estabelecimento assistindo ao jogo na
pequena televisão.
— Me fala, porque você me fez visitar esse lugar mesmo? — Luke perguntou ao
franzir o cenho.
— Nem vem. Sabe que os lanches daqui são ótimos — Stella limpou a boca com as
mangas do seu moletom — e sinceramente, foi o lugar mais perto da sua casa que eu
encontrei.

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Luke sorriu ao se lembrar da primeira vez que a amiga o arrastou para aquela
espelunca. O garoto podia jurar que todos ali iriam julgar seus olhos amarelados, ou
fazer alguma brincadeira de mal gosto sobre a morte de seu pai. Quem diria que as
bizarrices daquela cidade se reuniam ali.
Stella observou o telefone e lançou seu rosto na mesa de forma abrupta. Começou
uma cena melodramática dizendo que já estava cansada dos estudos.
— Você não pode desistir agora, faltam só seis meses — Luke acariciou os fios
dourados da garota.
— Hoje tenho que ir cedo, querem tirar umas fotos para o anuário — suspirou — Bem
que eu podia ficar só no dojo mesmo, né?!
— Você sabe que os seus pais iriam ficar revoltados contigo. — Luke limpou a mesa
com um guardanapo e se levantou. — Bora?
— Que saco, era para você me apoiar. — Stella levantou-se e foi até o balcão, ficou
esperando por quase dois minutos a cobrança de pênaltis, enquanto Seu Francis
gritava com seu time.
Como eles estavam próximos da casa de Luke, Stella não levou nem cinco minutos
na sua moto. Deixou o menino na porta de sua casa e acelerou em direção a
Universidade Estadual do Vale.
Entrando em casa, o garoto encontrou sua mãe cheia de empolgação nos olhos
castanhos escuros, puxando ele para o quarto que ficava embaixo da escada.
— Sua cabeça vai explodir com meu novo quadro. Eu estava ansiosa para te mostrar
— Lydia abriu a porta e esperou seu filho entrar.
O lugar em questão estava todo bagunçado com potes de tinta e telas espalhadas,
dava para encontrar também pequenas esculturas de argila. O piso do cômodo, assim
como o do restante da casa era amadeirado, e as paredes brancas do quarto tinham
respingos de tinta. A nova tela que ela havia pintado era a silhueta de um homem, mas
não tinha boca, ou nariz, ou traço algum em sua face, exceto por um par de olhos que
era coberto por chamas.

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Um rápido arrepio passou pela espinha do garoto, porém se apressou no
comentário, ao notar sua mãe com seus enormes olhos castanhos, aguardando a
reação de seu filho.
— Vemos aqui uma obra de arte da incrível Lydia Choisi, a maior artista do Vale — ele
soltou uma gargalhada —, ou melhor, do mundo — Luke completou.
— Você gostou mesmo, filho? — A mãe do garoto estampou um sorriso enorme,
mostrando os dentes amarelados.
— Claro que sim. Já falei pra senhora pedir as contas do trabalho e abrir o próprio
ateliê. Precisa ter mais confiança no seu talento. — Luke abraçou sua mãe e alisou o
cabelo castanhos e bem ondulados dela — Agora sugiro que vá lavar o cabelo, tá cheio
de tinta.
Ambos começaram a rir, e ela foi tomar seu banho. Luke botou sua medalha no
cabide do guarda-roupa e quando se sentou no sofá, sua mãe apareceu contando da
inspiração de sua tela.
— Eu tive um sonho, e nele, aquela imagem ficava chamando seu nome. — Ela
encarou o filho por alguns segundos. — Então quando acordei e fui trabalhar, a
imagem ficava aparecendo na minha cabeça, e sabia que não iria conseguir descansar
até recriar na tela e te mostrar.
Lydia era bem crédula a sinais do universo, e coisas além do visível, bem diferente
de Luke, que sempre se fechou para a ideia de um céu ou inferno. Para acreditar, tinha
que ver. Mas não pôde negar que aquele quadro havia mexido com em seu interior.
Quando ele analisou os olhos retratados na obra, sentiu como se a fagulha do atrito
entre duas pedras houvesse acendido em seu peito.
— Que estranho, mãe — comentou vagamente.
Como de costume, ele contou para ela sobre o seu dia e sobre o torneio, e a mãe
fez a festa.
— Seu pai ficaria tão orgulhoso. — Ela afagou os cabelos bagunçados do garoto.
Quando a campainha tocou, e Luke atendeu, viu o sorriso branco de Stella, que o
abraçou como se fizesse anos que não o via. Ela usava a sua "farda" habitual: sua
calça jeans rasgada e uma blusa branca, como tantas que compunham seu

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guarda-roupa. Ele a chamou para entrar e ela já foi direto para cozinha, sentindo o
cheiro do jantar que a Sra. Choisi estava a preparar.
— É o macarrão com queijo e bife? — sentiu seu estômago se revirar de fome,
somado com as duas coxinhas que havia comido antes da aula.
Luke tomou seu banho e desceu. Logo o jantar ficou pronto e eles se sentaram à
mesa.
— Eu nem falei. — Stella iniciou ao cortar o pedaço macio da carne — As fotos
ficaram horríveis, até perguntei ao reitor se era obrigatório se prestar a isso.
— Aposto que ficaram boas e você tá só fazendo cena, Stella — Luke comentou ao
terminar de mastigar a comida em sua boca.
— É sério, eu tô falando. — Ela cruzou os braços e fez um bico. — Inclusive, se não
fosse pela insistência daquele velho chato, eu nem ia tirar outra amanhã.
— Ele está totalmente certo na insistência. Sabe que sua mãe vai te cobrar uma foto
para comprovar que concluiu o curso. — Ele bebeu o copo de suco até a metade.
— Verdade, Stella. Eu fiquei de te perguntar, como estão seus pais? Sabe quando vão
nos visitar? — Lydia perguntou ao levantar da mesa.
— Eu acho que estão bem, Sra Choisi — balbuciou — pra lhe falar a verdade, eu
acho que… meio que ignorei a última mensagem da minha mãe. — Tentou abstrair a
falta de interesse em seus pais.
— Meio? — Luke encarou Stella com uma das sobrancelhas levantadas.
— Vocês são uma graça, viu. — Lydia falou ao pegar seu prato.
Luke e Stella mandaram ela deixar que ambos retirassem a mesa e organizassem a
cozinha, então Lydia foi se deitar.
— Preciso ver como vai ser minha apresentação, já tá perto da data de entrega —
comentou Stella ao secar os pratos.
Luke pareceu distante, ignorando totalmente a fala de sua amiga. Ela notou e tocou
no ombro dele, que balançou a cabeça e a encarou.
— Tudo bem contigo?
— Eu tô… — Tentou disfarçar, porém as ações das pessoas no torneio pairava na sua
mente. — É só que, estou cansado das mesmas coisas.

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— Do que você tá falando? — Stella perguntou, puxando o mais novo para a cadeira.
— Hoje no auditório muitos soltaram comentários sobre meu pai, e sobre as coisas de
sempre. — Luke deslizou o dedo por cima da mesa até a bandeja de frutas no centro
— Sabe, não é como se eu fosse entrar em depressão ou algo do tipo. Mas essa forma
de brincadeira me incomoda bastante.
— Olha aqui, Luke. Primeiro que isso não é brincadeira coisa nenhuma, inclusive, é
crime — Stella alterou sua voz, estava ficando vermelha, e seu coração parecia que ia
sair do peito de tanta raiva.
— Calma, Stella. Era por isso que eu fiquei receoso de te contar, tive receio de você
atacar eles, principalmente a Stephany — O garoto tentou voltar atrás, mas já havia
pronunciado. Lamentou amargamente, pois despertou uma fera.
— O que essa mocreia fez dessa vez?! — gritou.
Ela se contorceu de raiva ao ouvir Luke contando do que a morena havia feito. O
garoto teve que segurar ela na cadeira para Stella não ir até a casa da adversária e
descer o braço nela.
— Obrigado por se preocupar comigo, mas não posso deixar você fazer isso,
irmãzinha. — Luke fez um cafuné nos cabelos loiros de Stella e pouco a pouco ela se
acalmou.
— Você sabe o quanto eu odeio essa garota, Luke — Ela respirou fundo. — Desde o
dia em que eu ouvi ela te perturbando, que não falo com ela.
— Eu sei, foi no dia que você arrancou aquela mecha azul dela e tomou uma
suspensão — Ele sorriu, e ela também.
— Esse dia foi incrível. Inclusive, faria de novo.
— Obrigado por cuidar de mim e me ouvir, Tet — Luke abraçou ela.
Ele a chamou para ir ao quarto de pintura da Sra. Choisi, e o garoto mostrou o
retrato para Stella que ficou impressionada com a obra de arte. E Luke não achou
necessário falar sobre a sensação que teve sobre o objeto em questão.
Como já estava tarde, a garota tinha que ir para sua casa, que ficava há algumas
ruas dali. Ela se despediu de Luke, que retribuiu com um beijo em sua testa. Stella se
arrepiou ao sentir o vento gélido soprando na rua vazia.

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— Não quer que eu te acompanhe? — perguntou.
— Eu tô de moto e você teria que voltar andando. Não se preocupa, maninho, chego
em casa rápido.
Stella subiu na moto e partiu pela rua parcialmente escura, e ele ficou esperando
até perder o farol de vista, e quando o barulho se dissipou, Luke entrou.
Conferiu em seu telefone a mensagem que ela havia chegado e começou a se
organizar para dormir. Limpou o chão de seu quarto e organizou alguns objetos fora do
lugar nas prateleiras. Tomou seu banho enquanto ouvia música e lembrou-se de
trancar as portas. Enrolou a toalha na cintura e secou os pés no tapete de veludo.
Ele passou pelo corredor que conectava o banheiro da casa à sala, e no meio do
caminho, estava o quarto, que se localizava embaixo da escada. Sentiu uma sensação
quase palpável o chamando, convidando-o a entrar, mas se desvencilhou dessa ideia e
se deitou em sua cama.
Não demorou para adormecer, pois já estava exausto do dia, em sonho se viu
cercado por uma fumaça negra, que passeava em círculos ao seu redor, e quanto mais
tempo passava, mais próxima ela ficava. Até que o ar começou a lhe faltar, e seu
cérebro começou a pesar. Luke não sabia mais se o que estava vivendo era um
pesadelo ou a realidade. Quando tudo parecia perdido, ele fechou os olhos, e pouco a
pouco, sentiu o ar voltando. Ficou imóvel por alguns segundos, recobrando o fôlego e
com seu coração palpitando em frenesi.
Ao abrir os olhos, se surpreendeu com a imagem de um rosto enigmático, dotado de
olhos em chamas, não deu tanto tempo para reagir, pois acabou se acordando,
encharcado de suor em sua cama, ouvindo somente o eco de uma voz estridente em
seu ouvido, chamando pelo seu nome.
Tomou outro banho, e dessa vez não pôde se segurar em abrir a porta do quarto.
Caminhou até o objeto, parecia que seus passos se alongavam e levaria uma
eternidade até o quadro. Levantou o pano que cobria a tela, e por um segundo, pensou
que estava enlouquecendo, os pelos de sua nuca se eriçaram, o fazendo contorcer seu
pescoço. Mesmo na escuridão do quarto, as chamas daquela pintura se moviam, como
se estivesse viva. Pressionou os olhos e tudo voltou ao normal. Ele se retirou dali,

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cheio de dúvidas de sua sanidade. Em um conflito em acreditar ou não no que viu,
perdeu seu sono e passou o restante da noite na sala, assistindo a reprises de
programas antigos. Sem ao menos notar, acabou adormecendo.

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2. Olhos de Fogo

Após uma noite longa de pensamentos inquietantes, Luke saiu para consertar um
computador de uma senhora no centro do Valle. O sol ainda se escondia por entre as
nuvens e a sensação térmica estava agradável.
— Obrigado por me trazer até aqui — Luke agradeceu ao descer da moto de Stella —
Se eu fosse esperar o ônibus, iria demorar muito.
— Precisa nem agradecer, irmãozinho. Precisava comprar uns materiais para o Dojo.
Vai querer uma carona na volta? — A loira levantou o capacete, revelando seus olhos
azuis, com a manhã nublada que os cercavam, as orbes obtinham um ótimo destaque.
— Não precisa, daqui vou para o Hotel Prisma, a dona Vânia pediu para eu consertar
o notebook dela.
— Já deve ser a terceira vez esse mês. O que essa coroa tanto faz com o notebook?
— Stella sorriu — Ela precisa aprender a costurar ou arrumar um gato. — A garota
ergueu uma sobrancelha e mostrou os dentes. — Se bem que o gato que ela deve
querer, é você.
Stella caiu na risada ao ponto de sentir sua barriga doer, quase levando uma queda
da motocicleta. Luke revirou os olhos e esperou sua amiga recuperar o fôlego.
— Acabou? — Luke ajeitou a bolsa nas suas costas e olhou o relógio no pulso. —
Mas não vou negar que a dona puxa muito assunto quando tô fazendo a limpeza.
— Vai vê é a saudade do filho que tá no quartel, né? — Stella ajeitou seu cabelo e pôs
o capacete — De qualquer forma, preciso ir. Se acabar antes da minha aula, me avisa.
Luke concordou e Stella partiu. O jovem entrou na loja de aparelhos eletrônicos e
fez uma compra rápida dos materiais que iria precisar para manutenção. Foi um teste
para sua paciência a garota que estava no caixa, levando uma eternidade para passar
as compras e conferir o troco.
— Deve ser novata — comentou um senhor logo atrás dele. Luke sorriu e concordou.

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Caminhou alguns quarteirões até o endereço e quando entrou no prédio da cliente,
esbarrou com um senhor de idade. Quando virou para se desculpar, ficou em transe
pelas labaredas nos olhos dele. Foi por um único segundo, só deu o tempo de piscar, e
logo a imagem se tornou de olhos verdes, desgastados pelos anos de vida.
— Eu devo estar enlouquecendo. — sussurrou alguns segundos após a porta
automática na entrada se fechar.
Como o elevador estava quebrado, Luke subiu as escadas até o apartamento. Vânia
estava a poucos passos da porta, pois o garoto não esperou nem um segundo a anfitriã
abri-la. Demorou mais do que o necessário, pois ficou aturdido com a cena anterior,
somando com os eventos da noite passada.
— Aceita uma fatia de bolo, menino? — Vânia apareceu na porta enquanto Luke
organizava suas ferramentas na bolsa.
— Não vou negar, meu estômago está roncando. — Luke pegou um pedaço generoso
e devorou em três mordidas.
— Eu não sei como uma coisa tão cara quebra com tanta facilidade. — Vânia
sentou-se na cadeira de balanço. — Na minha época, as coisas ficavam mesmo depois
do dono ir pro brejo. Minha falecida mãe mobiliou a casa dela com tudo que ficou do
meu avô.
— Deve ser para gerar lucro no mercado. A gente pode tirar um ótimo exemplo como
da sua família, que impediu algumas lojas de vender. — O jovem comentou enquanto
caminhava até a porta.
— Acertamos tudo no final do mês, Luke?
— Sim, sim. O mesmo de sempre. — Luke sorriu e abriu a porta.
— Eu já ia esquecendo, leva uma fatia para dona Lydia. Diga que mandei lembranças
para ela. — Vânia entregou uma sacola com uma vasilha enrolada na mão do garoto.
Já era fim de tarde, o jovem caminhou de volta até a parada depois do longo dia. O
sol refletia na sua pele negra e seus olhos amarelos ganhavam um tom vermelho com
laranja. Ele decidiu pegar o ônibus para fazer o trajeto mais rápido dessa vez, e para
sua sorte, não esperou tanto para o transporte chegar. Ao adentrar o veículo, que
estava quase vazio, Luke encontrou um assento perto da janela e se acomodou.

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O pôr do sol era visível no horizonte, o céu tomava tons alaranjados e rosados,
tingindo a paisagem urbana com uma beleza ímpar. Em meio aos seus pensamentos,
não conseguia deixar de refletir sobre os sonhos estranhos e visões que havia tido na
noite anterior.
Enquanto o ônibus avançava pelas ruas, Luke observava atentamente as pessoas
do lado de fora, que se moviam em um ritmo acelerado. O motor do veículo ronronava
suavemente, quase como uma canção de fundo para seus pensamentos.
A imagem daquela silhueta estampada no quadro continuava a assombrar Luke,
cada detalhe confundindo sua mente. Imagens recorrentes dos olhos de fogo e vozes
sussurrantes o deixavam intrigado. Ele sentia que havia um significado mais profundo
por trás dessas visões, mas ainda não conseguia decifrar. Talvez nem quisesse.
O sol desaparecia por completo no horizonte, a escuridão começava a se estender
pela cidade. As luzes artificiais começaram a brilhar, criando uma atmosfera distinta e
envolvente no interior do ônibus.
Luke olhava ao redor, captando os poucos passageiros que compartilhavam o
espaço com ele. Cada rosto parecia carregar suas próprias histórias, seus próprios
segredos. Ele se perguntava o que cada um desses desconhecidos estava pensando
naquele momento, se também passavam por situações tão singulares como as que
estava.
À medida que o ônibus continuava sua jornada, a escuridão da noite aumentava.
Colocou um podcast em seu fone e repousou na janela.
Assim, com o veículo seguindo adiante e a noite tomando conta do cenário, Luke
suspirou. Fechando os olhos por instantes, sentiu o leve abraço do sono o envolver, e
cochilou por um tempo. Um passageiro, com voz estridente, pedia a parada enquanto
reclamava exaltado com o motorista. Luke despertou de forma agitada. Analisou pela
janela do ônibus e se deu conta de que também já havia chegado no seu ponto.
Chegando em frente a sua casa, decidiu esquecer a cena com o senhor no elevador
e afirmou para si mesmo que era o sono atrapalhando sua mente. Ele tomou um banho
frio e se deitou ainda no início da noite.

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Luke se revirou durante minutos, talvez até uma hora, até finalmente conseguir
dormir. Se viu cercado por uma imensidão branca, como se estivesse em uma
tempestade de neve no pólo norte. O lugar não tinha divisões ou prédios, exceto é
claro por uma luz viva em tons de roxo no céu, o chão em que pisava, parecia ser feito
de algodão.
Após um período imerso em seu sonho fantástico, porém não tão empolgante
quanto esperava, Luke vislumbra ao longe faróis alaranjados que se aproximavam
rapidamente, assemelhando-se a um carro monstruoso. Num instante de percepção,
arrependeu-se profundamente de ter adormecido.
Uma silhueta gigante emergiu, com olhos enormes ardendo em chamas. A ausência
de outros traços em seu rosto aumentou o medo do garoto, que se imobilizou,
imaginando os horrores que aquela figura poderia infligir.
Ele tentou desesperadamente reunir forças para mover qualquer parte do corpo,
mesmo que fosse apenas um dedo, mas se viu estático, como se o solo de algodão
tivesse se transformado em concreto e o prendido ali, completamente vulnerável.
"LUKE CHOISI", ecoou uma voz estridente que penetrou tão profundamente na
alma do garoto que seu coração falhou, e ele aceitou que aquele era o seu fim.
O garoto estava estático, sua respiração cessou e ele sentiu como se sua cabeça
fosse explodir, e talvez até fosse, por tamanha ameaça em sua frente.
O silêncio estava matando Luke a cada segundo naquele lugar, se é que ali tinha
tempo. Encarou a silhueta nos olhos, tomou coragem e respirou fundo, dando um
passo pra frente.
— Seja lá o que você for fazer, faça logo, eu não tenho o dia todo — tentou se manter
firme, mas suas pernas tremiam sem parar.
Aquele ser ficou em silêncio por algum tempo, e em seguida encurtou a distância
com o garoto, Luke em resposta só moveu um pé para trás.
Ele colocou seu rosto sem traços a poucos centímetros dos olhos âmbar do menino.
Luke voltou a segurar a respiração, seu coração parecia um tambor em dia de
carnaval.

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— Mesmo diante da minha presença, você ainda consegue se manter de pé — A voz
dele parecia vir de todos os lugares, já que ele não tinha boca — Esse feito é pra
poucos. Vejo que escolhi bem o portador.
— Portador? — Luke estendeu uma das suas sobrancelhas — Que papo é esse?
Quem é você? E melhor, o que quer comigo?
— Você tem muitas perguntas. Com o tempo, terá respostas — Ele estendeu a mão
direita, colocando-a no peito de Luke — Agora, vamos falar do seu propósito.
— Você me arrasta até aqui e vem me falar de coisas aleatórias, dizendo que o
"tempo" vai me responder. Vou só falar mais uma vez, ou me explica isso direito, ou eu
não moverei um músculo daqui — falou firme, cruzando os braços.
A silhueta deu um leve toque no tórax do menino, arremessando ele por toda aquela
infinidade branca.
Analisou atentamente cada ponto de tudo ali, tentando encontrar uma maneira de
escapar, mas foi totalmente sem êxito. Aceitou sua condição e ali se manteve,
cruzando os ares sem fim daquela realidade na qual estava.
Luke não sabia quanto tempo havia passado, mas ficou voando por tanto tempo,
que já havia parado de gritar. Começou a teorizar se estava louco ou se era apenas um
sonho aleatório que logo acabaria.
— Já se acalmou? — O ser pegou a mão de Luke, fazendo-o parar.
O garoto só aceitou e se deixou levar por tudo aquilo que estava acontecendo.
Balançou a cabeça em afirmativa.
— Há uma ameaça crescendo, Luke Choisi, e você foi o escolhido para pará-la.
— Parar o quê? — Luke ficou interessado no que aquele ser estava propondo, apesar
de não estar entendendo.
— Kaar, um dos sete protetores.
— Protetor? De quê? — Questionou evidenciando sua confusão.
— Um dos Mundos. Ou deveria proteger.
— Mundos, né? Quando você fala isso, tá se referindo aos planetas fora da terra?
Existe alienígena?

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A silhueta balançou a cabeça em negativa e em seguida criou uma enorme luz azul
no céu, que tomou a forma de um mapa.
— Veja, aqui é seu mundo; Algmar, onde tem vida apenas no planeta Terra, os outros
pontos longe de seu mundo, são os outros seis — Ele pontuou com sua mão,
aproximando para mostrar cada detalhe.
O ser mostrou uma cidade grandiosa desafiando a gravidade, erguendo-se
majestosamente acima de um oceano de azul profundo. Suas imponentes estruturas
arquitetônicas pareciam flutuar no ar. À medida que a imagem foi se aproximando,
foram reveladas torres altas e elegantes, cobertas de vidro transparente que refletiam
as luzes, criando um espetáculo de cores vibrantes. Olhando para baixo, através das
bordas da metrópole flutuante, escorriam as águas cristalinas do oceano. A população
que aparecia naquela espécie de holograma, parecia bastante com os humanos,
exceto pela pele escura como petróleo e dois pares de braços.
Luke notou um ser no topo desse lugar, ele estava com os olhos vibrando em um
tom arroxeado, e com os braços abertos.
— O cara é aquele? — apontou.
O ser balançou a cabeça e virou-se para aquela imagem viva. Luke fez o mesmo e
acabou ficando paralisado pela cena que surgiu.
Aquele que antes estava parado acima da cidade, agora estava destruindo todos os
prédios e construções que havia naquele mundo. O garoto percebeu que as esferas
dos olhos do protetor agora tinham um brilho intenso em um vermelho vibrante.
— Kaar tomou para si os sentimentos ruins daquele povo que ele protegia. Acabou
escolhendo a destruição de sua raça, ao invés da libertação.
— Tomou para si? Eu não entendi. Ele assassinou todos do próprio mundo, mas, por
qual motivo? — Luke segurou o ser com as duas mãos, com os olhos arregalados.
— Ele sonhava com um lugar perfeito. Sem morte, sem furto, sem violência. Ele ficou
todos os seus anos esperando a situação melhorar, mas não aconteceu — Ele fez uma
pausa e virou para a imagem paralisada do rosto de Kaar — Agora ele se intitula como
justiça divina, e quer trazer seu julgamento para todos os mundos. Incluindo o seu,
Luke Choisi.

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Luke não aguentou tanta informação, sentiu seu estômago revirar, se aquilo estava
indo para terra, todo mundo que ele conhecia, sua mãe, a Stella, todos estariam
mortos, e isso fez com que o garoto vomitasse. Ele se jogou no chão, sem conseguir
respirar, puxando seus cachos com força.
— Acalme-se — A voz daquele ser desacelerou o coração do garoto. Sua respiração
voltou aos poucos e ele sentou-se, tentando digerir toda aquela maluquice.
— Certo. Digamos que tudo isso é real, o que tá confuso demais para eu acreditar.
Como eu poderia parar aquele cara? — Luke encarou o ser com suas sobrancelhas
franzidas e seu lábio fechado.
A silhueta apagou todas aquelas imagens que preenchiam o ar a sua volta e de
suas mãos, uma pequena chama se gerou, era um fogo que Luke jamais havia visto.
O tom daquela bola flamejante era vermelho vivo, com algumas partes branca nas
laterais, e aquele poder aqueceu o interior do jovem. Ele sentiu toda aquela sensação
ao observar o quadro de sua mãe pela primeira vez.
— Você terá a minha chama em seu interior, a essência da criação — aproximou suas
mãos da face de Luke — Entretanto, terá uma limitação do seu próprio corpo.
Cada célula do corpo do garoto agitava e borbulhava com tamanho poder que
continha nas mãos daquele ser. Luke quase que involuntariamente atirou seu corpo
contra a chama. Mil pensamentos lhe passavam a cabeça, e quando abriu seus olhos
deu de cara com as peças do seu computador aberto e algumas roupas jogadas pelo
seu quarto.
A confusão tomou conta de si. Seria impossível sua mente nada fantasiosa criar um
universo inteiro, mundos, uma ameaça tão real, aquilo havia de fato acontecido. Mas
não sentiu nada de diferente de quando havia ido dormir.
Levantou-se e foi até a cozinha, diferente do comum, optou por fazer um chá no
lugar do tradicional café, sua mente já estava agitada demais, e apesar da cafeína não
lhe causar efeito, preferiu não arriscar.
Abriu a janela de seu quarto e vez ou outra tomava um gole da xícara com o líquido
quente, degustando o gosto doce e apreciando o cheiro que vinha da fumaça.

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Passando alguns instantes observando as estrelas que cobriam boa parte do céu e
a lua que estava quase cheia, Luke notou algo diferente do habitual. Viu uma imagem
ao longe, atravessando todo o céu, como uma onda em espiral.
Não era possível ver o início e nem o fim de toda aquela corrente azul celeste, mas
o jovem sabia que aquilo certamente tinha algo haver com aquele seu sonho.
Pegou o telefone e ligou na câmera, entretanto, pela lente dela não era possível
enxergar aquilo. Esfregou seus olhos, esperando que aquilo magicamente
desaparecesse, afinal, tudo seria mais fácil se não passasse de um sonho.
Sentiu uma leve pontada em sua cabeça, como se tivesse sido alfinetado nas
têmporas.
Decidiu tomar um remédio e após um banho gelado, se deitou para dormir
novamente, torcendo para que mais nada estranho viesse a acontecer.
A ansiedade somando a dor de cabeça que não cessava, fez com que Luke
passasse o restante da noite girando de um lado para o outro na cama.
Em alguns momentos que conseguia adormecer, via imagens do rosto do Kaar, ou
os corpos daquele povo pelo chão. A destruição de todo aquele mundo, e se
desesperava, imaginando que aquilo poderia chegar a qualquer instante sobre ele e
tudo ao seu redor.
Quando a luz do sol invadiu o quarto de Luke, ele conseguiu finalmente dormir
profundamente, dessa vez sem sonhos, somente o peso de sua mente exausta.

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3. Perseguição

Era uma tarde com ventos fortes, habituais do mês de agosto. Luke sentia o ar
cortante no seu rosto, forçando-o a fechar os olhos. Seus cabelos cacheados estavam
bagunçados, e isso era o motivo de seu estresse. Já fazia algumas semanas desde
que teve seu pesadelo extraordinário e pensou ter visto luzes no céu ou possíveis
ameaças. Apesar de estar tão tenso, não julgou ser necessário sair naquele dia de
casa para tomar café com Stella na cafeteria. Quando entrou no estabelecimento, pôde
jurar que o teto estremeceu, como se cada telha velha fosse voar a quilômetros de
distância.
A loira estava cheia de energia, comendo um hambúrguer recheado em uma das
mãos e a outra com um milkshake tamanho G, de seu sabor favorito. Luke suspirou e
sentou-se, jogando seu corpo no couro velho do assento. Sabia que pela cara de sua
amiga, algo devia ter acontecido, e ela estava descontando tudo na comida. Normal. O
estabelecimento estava bem vazio, além do dono e da garçonete, só havia o
senhorzinho lendo jornal perto da porta, vestido com um empoeirado fardamento do
exército.
— Qual foi dessa vez? — Luke cortou o silêncio, fazendo Stella se ajeitar na cadeira.
— É sobre alguma preocupação da faculdade?
— Na verdade, não. Até já ajeitei a apresentação final — Deu um leve sorriso,
mostrando alguns pedaços de verdura nos dentes. — O pessoal falou que está tão
bem feito, que nem parece que fui eu quem fiz.
— Isso é bom. Bem, eu acho. — Luke sorriu, sentindo a tensão se afastando de seus
ombros. — Mas, qual seria o motivo para você me arrastar pra fora de casa em um dia
como esse?
Stella terminou de mastigar e assumiu uma postura ereta, limpou suas mãos nos
últimos guardanapos que estavam em cima da mesa. A feição desleixada e alegre da
loiralogo tomaram um aspecto que era raro de se ver. O moreno logo notou a diferença
e isso provocou um calafrio por sua espinha, fazendo-o se contorcer em resposta. Sua
tensão aumentou ao ouvir a frase sair da boca de sua amiga.

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— Eu tive um sonho. — Fez uma pausa, observando os olhos amarelos do menino
quase voando para longe do rosto. — Sabe aquele quadro que sua mãe fez mês
passado? — A pergunta de Stella soou como uma lâmina afiada, atravessando o peito
de Luke, que ficou sem ar.
Luke respirou fundo, buscando até a última gota de oxigênio que o cercava para
prosseguir. Acenou em concordância para Stella que se mantinha na mesma posição,
rígida como uma rocha. O garoto desejava com todo seu ser que aquilo não
continuasse, afinal, levou noites e mais noites em claro tentando enterrar tudo sobre
aquela maldita noite. Por sorte, sua mãe ficou mais empolgada com as novas telas
sobre mundos fantásticos e deixou de lado o quadro que lhe ocasionou tanta dor de
cabeça. Os olhos que brilhavam em intenso contraste da iluminação do local, voltou-se
para os azuis que pareciam distantes.
— Foi tudo muito real, irmãozinho — sussurrou, mostrando certo pesar — Pude ver
tanto ódio naqueles olhos vermelhos.
— Está tudo bem, foi apenas um sonho, Stella. — tentou cortar o desabafo da jovem.
Não queria ser rude, porém, aquilo era bastante difícil de processar.
Se tudo aquilo que sonhou fosse real, tamanha seria a responsabilidade em seus
ombros, e estaria destinado a algo que nunca pediu: responsabilidade sobre tantas
vidas. Ou melhor, tantos mundos. A garota segurou uma das mãos de Luke e deu para
perceber a aflição escorrendo como uma lágrima solitária no rosto dela. Ele acariciou a
pele fria e trêmula e tentou dar um sorriso, para ver se conseguia tirá-la de tais
pensamentos.
— Eu sei. Mas se não for um sonho? — levantou a voz, imaginando o pior.
Luke alegou que Stella estava impressionada por conta de tantos filmes e séries
violentas que assistia. Seu ponto que mais deu credibilidade a garota foi ela ter
assistido um seriado sobre apocalipse zumbi recentemente. Eles terminaram o lanche
em silêncio, porém, os pensamentos sobre a possível ameaça rondava na mente
agitada do garoto.
A garota ficou em silêncio, observando pela janela embaçada devido ao frio. Stella
sabia que aquilo que descarregou, havia afetado seu amigo. Conhecia ele há muito
tempo, e reconhecia sua preocupação há centenas de anos-luz de distância. Não
queria acabar pressionando Luke, afinal, ele era bem mais centrado que ela. Julgou
que ele saberia o que fazer em relação a isso.
— Comecei um curso on-line. — O garoto tentou iniciar um novo assunto. Stella ficou
meio perdida, mas voltou a atenção para ele. — É sobre programação. Sei que não é
nada que estou acostumado, mas até que é interessante.
— Eu fico feliz, irmão… — Sorriu sem mostrar os dentes. — Espero que tudo dê
certo. Sei que não é acostumado com algo fora das quatro paredes, cercado por nerds.

20
Um apito no celular do rapaz o fez se levantar da mesa, sua mãe havia mandado
mensagem informando que atrasaria para chegar em casa. Ela pediu para Luke
preparar o jantar e também organizar a casa, pois, chegaria cansada. Explicou a
situação para a loira que entendeu. Negou a ajuda e a carona oferecidos por ela, no
pretexto de que passaria no mercado e precisava resolver umas coisas, e não queria
atrapalhá-la. Após pagar a conta, abraçou Stella por um tempo, sentindo o conforto dos
braços dela. Permaneceu mais tempo do que o normal, como se fosse uma despedida.
Caminhou pelas ruas cinzentas e vazias da cidade, cruzando os braços em protesto
ao frio. Descendo a ladeira, sentiu algo inquietando seu ser, olhou para os lados e nada
viu. Já estava perto de sua casa quando notou uma figura encapuzada o seguindo.
Teve a estranha sensação de que já tinha o visto, só não sabia onde.
Tentando disfarçar seu caminho, com medo de ser um bandido, entrou em um beco
escuro. O lugar em questão estava cheio de restos de lixo e uma caçamba enferrujada,
desgastada pelo tempo. Apressou seus passos, intercalando em alguns instantes,
virando seu rosto para ter a certeza de que estava mesmo sendo perseguido. Dobrou
em uma das vielas dali e esperou, olhando pelo canto da parede, observando se o
homem aparecia ou não.
Aguardou por dois minutos, e quando pensou ter despistado o possível gatuno,
voltou-se a andar tranquilamente. O coração falhou nas batidas ao dar de cara com o
perseguidor. Virou-se de imediato, pensando em correr, e em um piscar de olhos, uma
batida seca no chão sinalizou sua queda. Sentiu a poeira colando ao suor em seu
rosto, somado com o gosto de ferro que inundava a boca. Havia levado uma rasteira e
estava sendo imobilizado, o joelho nas costas tirava-lhe mais ainda o fôlego que
restava nos pulmões.
Luke tentou gritar, porém, sua voz parecia não sair. Sentiu um zunido em seu
ouvido, e a presença daquele homem era como uma tonelada sobre si. Sua visão foi
escurecendo, até ouvir a voz suave e grave vindo da figura encapuzada.
— Vou te soltar, mas não corra. — Levantou-se, soltando as mãos do garoto, que deu
um suspiro profundo.
O beco pouco iluminado pelo anoitecer, dava um ar mais macabro e misterioso ao
homem na frente de Luke. Enquanto o garoto se segurava na parede cheia de mofo
para se levantar, a figura mais alta retirava o capuz. A primeira coisa que chamou a
atenção do jovem, foi o buraco enorme no lugar de uma íris castanha como no direito.
Os cabelos acinzentados revelavam uma idade mais avançada do senhor que
aguardava a recuperação de Luke.
— Quem é você? — questionou, observando a escuridão da ausência de um olho.
— Sou Crispus — pausou e estalou o pescoço — Antony Crispus. Protetor desse
mundo… — suspirou — ou era para ser.

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— Esse lance de novo? Eu tô cansado disso. — O jovem gritou. — Sabe quantas
noites mal dormidas eu tive?!
— Agradeça que você ainda possa dormir. — falou calmamente, sentando em cima
da tampa de lixo. — Milhões de vidas foram ceifadas em outros Mundos, e isso não irá
parar, sr. Choisi.
Fazia muito tempo em que algo abalava tanto a jovem mente do rapaz. Seu chão
pareceu sumir em um abismo escuro abaixo de seus pés. Sua cabeça subiu até a
estratosfera e explodiu em mil pedaços. Passou alguns segundos em silêncio,
lembrando a cena de vários corpos ao redor de Kaar.
— Você pensa que sua amiga Stella e sua mãe sairão vivas da "justiça" daquele
monstro? — Crispus gritou com rispidez.
Luke não entendeu como avançou tão rápido na direção do homem, saltando mais
alto do que imaginava conseguir, e desferindo um soco que acertou o concreto ao lado
da face dele. Sentiu seu corpo ser lançado há alguns metros pelo ar, após Crispus
acertar dois dedos em seu abdômen.
Rolou e se segurou antes de acertar uma lata de lixo. Sentiu uma raiva dentro de si,
queimar, como uma faísca em um mar de gasolina. Ter escutado a pergunta de alguma
forma o abalou. Deu um impulso para cima, quase que irracional e já estava a
centímetros do protetor. Crispus se esquivou de um chute e acertou um soco no queixo
de Luke.
— Ótimo, você tem a Chama e não consegue ser mais rápido que minha tartaruga. —
Deu uma risada e saltou, esticando sua perna para acertar o rosto de Luke. — Luminis
não escolhe como antigamente.
No fim da tarde, os últimos raios de sol invadiam os prédios altos e criavam raios
dourados no beco estreito. As sombras se encolhiam enquanto o ar ficava denso,
similar ao concreto que sustentava os prédios ao redor. Luke sentiu uma sensação
estranha em seu corpo. Algo oculto despertou, envolvendo-o em uma aura brilhante.
Seus cachos ficaram mais vivos e cheios de energia. A pele morena refletia um tom
escarlate fumegante.
O senhor de idade, observando atentamente, sentiu um calor conhecido em suas
veias. O poder oculto também fluía internamente, mas seus músculos debilitados não o
acompanhavam. À medida que as Chamas se manifestavam, o cenário reagia ao redor.
O asfalto parecia pulsar com vibrações anormais. Resíduos voavam em um frenesi. A
brisa se transformava em rajadas poderosas, como se formasse um grandioso tornado.
O jovem, tomando consciência de seu dom, sentia-se conectado ao próprio
ambiente. Absorvia cada oscilação do beco. Ouvia o eco suave da energia formigando
em seus ouvidos. Inalou os cheiros agridoces intensificados, como uma festa entre os
perfumes e a podridão do lugar.

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Enquanto isso, Crispus enfrentava suas limitações físicas. Canalizava o pequeno
acúmulo de Chama para usá-lo a seu favor e equilibrava a batalha com sabedoria.
Luke avançou com um impulso nos músculos comprimidos contra o piso. O jovem
lançava explosões ágeis em uma sequência de socos. O senhor de idade se esquivava
graciosamente, deslizando como uma serpente.
Assim, o beco se tornou o palco para uma história de despertar e perseverança. O
jovem moreno despertou algo que foi renunciado. Crispus reacendeu a habilidade
adormecida, graças à força da juventude de Luke.
Um brilho intenso emanou da escuridão, que encontrava-se ao lado do olho do
senhor, onde no passado também possuía uma orbe acastanhada. Luke não soube
como fez aquilo, mas no meio de tanta poeira que subiu ao seu redor, seu corpo
desviou do chute que detonou o asfalto, e com um soco acertou o pescoço de Crispus.
O senhor arregalou o único olho surpreso.
— Muito bem! garoto, você me pegou — Levantou os braços em sinal de rendição. —
Se não fosse pela proteção da Chama, eu teria ido de arrasta para cima. — Soltou uma
gargalhada.
O garoto sentiu pouco a pouco todo aquele queimor em seu peito diminuir, enquanto
sua raiva cessava. As lágrimas escorreram involuntariamente pela pele morena, entre
soluços, sentia como se fosse desmaiar.
— Por que eu? — questionou, olhando para Crispus que sentava ao seu lado.
— Eu não sei, garoto. Mas Luminis deve ter visto algo em você, afinal de contas, ele
sempre vê tudo. — Tentou consolar o garoto, apoiando sua mão no ombro do garoto.
— Quando eu era jovem e fui escolhido, pensei que ia morrer. Pensava que após meu
ensino médio, ia arrumar uma namorada, fazer uma faculdade legal e conseguir um
emprego descente. — Luke enxugou as lágrimas e olhou para Crispus, que encarava o
céu mergulhando na escuridão noturna. — Nada disso aconteceu. Veja só, tenho 55
anos e não tenho ninguém. Aqui estou, lutando contra um garoto, tentando motivar ele
a parar um monstro.
— Eu não sei lutar. Não gosto de brigas ou violência, o que esse Luminis viu em mim?
— desabafou angustiado.
— Às vezes, os outros vêem na gente, coisas que nem imaginamos que temos. —
Crispus sorriu. — Me impressionei, garoto, de verdade. Pensei que você só sabia jogar
aquele xadrez chato e ajustar os computadores.
Ao ouvir a declaração do protetor de seu mundo, Luke se impressionou. Fazia quase
um mês que o senhor o perseguia, observando ao longe, esperando a oportunidade de
confrontá-lo. Aquilo gerou desconforto e dúvidas no jovem, mas entendeu a
preocupação do mais velho.
— Mas se você é o protetor, por quê eu devo enfrentar o Kaar? — questionou.

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— Estou nos meus últimos dias, meu jovem. — Crispus falou, batendo sua roupa
cheia de poeira. — Mal consigo usar a Chama sem ter um infarto.
Mais dúvidas surgiam na mente do garoto, mas apesar dos questionamentos por
sua parte, o senhor disse que ele deveria descansar. Explicaria tudo no dia seguinte.
Luke não queria assumir tamanha responsabilidade, porém, não pôde negar que o
breve confronto com Crispus, deixou-o bastante animado.
— Desculpa por atacar você. — Luke falou, estendendo a mão para Antony.
— Não precisa se desculpar, jovem. Eu nessa sua idade, e na mesma situação, faria
o mesmo. — Apertou a mão do garoto com firmeza. Uma chama avermelhada
percorreu os braços dos dois.
Caminharam em silêncio até a rua em que ficava a casa de Luke. Se despediram e o
mais novo foi para casa, cheio de ansiedade em seu ser. Ao abrir a porta, encontrou
sua mãe conversando no telefone com Stella.
— Ele acabou de chegar, eu te disse que não precisava se preocupar. — Lydia sentou
no sofá, ligando a televisão. — Tá certo. Tchau, Stella.
O garoto percebeu o quanto tudo aquilo estava afetando as pessoas ao seu redor, e
ainda nem tinha encontrado o Kaar. Sua amiga estava perturbada por conta dos
sonhos, e sua mãe começou a questionar sobre a segurança de seu filho. E mais uma
vez, perdeu seu sono e viu o sol nascer.

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