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A hóspede

Joana sonhava um sonho cansado e inquieto quando foi despertada por um ruído distante.
Abriu os olhos e observou o lustre prateado na penumbra de seu quarto. Endireitou-se na cama e
tentou prestar atenção, mexendo os olhos de um lado para o outro, a fim de perceber mais alguma
coisa. Estava um pouco confusa pelo sono, e por acordar tão bruscamente, mas não ouviu nada.
Depois de um tempo, olhou em direção à janela, que, para a sua surpresa, estava com as cortinas
fechadas. Fachos de luz ganhavam o aposento através da porta entreaberta.
Levantou-se, calçou as sandálias que ganhara do marido em seu último aniversário e
caminhou pelo assoalho de madeira até o banheiro. Estava suada pelo clima sufocante. Queria lavar
o rosto e saber que horas eram. Usava uma camisola branca de algodão, embora um pouco
encardida, com detalhes em dourado. Era sua roupa preferida para dormir.
Antes de chegar à porta do lavabo, porém, outro barulho. “- Bobagem”, pensou, “- Não
podem ser as crianças”. Joana tinha dois filhos: Pedro, de 8 anos, e Letícia, de 6. Eram seu refúgio:
alegres, carinhosos e sempre tiravam boas notas nas provas da escola. Corriam pela casa quase o dia
todo e pediam à mãe para fazer o mesmo. Eles a amavam.
Abriu a torneira e molhou a face algumas vezes. Depois se enxugou com uma toalha cor-de-
rosa, que nunca tinha visto, e olhou-se no espelho. Apesar das rugas que a incomodavam há tempos,
seu rosto era sereno e de belo aspecto. Tinha por hábito escovar os longos cabelos castanhos sempre
que acordava, mas dessa vez não encontrou sua escova. Dona Sida, a empregada que a
acompanhava desde a gravidez de Pedro, tinha arrumado a suíte e, seguindo um costume que mais a
divertia do que irritava, deveria ter trocado o estojo de maquiagem e os demais objetos de lugar pela
milésima vez.
Joana agachou-se e fez uma rápida inspeção nos armários, começando pelos lugares
preferidos de Dona Sida para o esconde-esconde, mas em vão. Ainda de cócoras, não teve outro
remédio senão chamá-la. Porém, o vocativo morreu ainda em sua boca, ao se lembrar de que dera-
lhe folga desde o dia anterior. “- Ela às vezes se esquece de me contar onde os colocou. Mas é tão
trabalhadora, pobrezinha...”
Pôs de volta todas as coisas no lugar e fechou os armários suavemente, para não afrouxar as
dobradiças. Da báscula do banheiro ouvia vozes indistintas, provavelmente os vizinhos conversando
ou varrendo a calçada. Constatou que ainda estava com sono, como se tivesse caminhado à noite
toda, e já que o lixeiro só passaria no final da tarde, resolveu deitar-se mais uma vez. Não olhou
para o relógio digital, mas supôs que estivesse marcando 7:45h. Fechou os olhos e esperou.
Joana gostava de ler para os filhos. Iniciou o hábito, como fazem os bons pais, para fazê-los
dormir. Com o tempo, passou a ler várias vezes em um mesmo dia. Não era raro que repetisse a
mesma história. Sua favorita era A Roupa Nova do Imperador, de Andersen – menos um conto de
fadas do que uma metáfora sobre as consequências da hipocrisia coletiva – cujo texto já conhecia de
cor. Pois foi com a cômica imagem do soberano nu a desfilar pomposamente para o público é que
Joana sentiu que alguém a observava. Virou-se em direção à porta e espantou-se ao ver uma criança
desconhecida.
Era uma menina e usava um vestidinho vermelho, com detalhes em azul-escuro. Tinha
cabelos castanhos e encaracolados. O rosto, repleto de sardas, era gentil. Deveria ter mais ou menos
uns 5 anos de idade. Em alguns aspectos, lembrava um pouco sua filha mais nova.
Num reflexo, Joana levantou-se e se cobriu com os lençóis:
─ Olá, mocinha. - disse, recobrando-se do susto.
─ Por que você está no quarto da mamãe?
Joana tentou racionalizar aquela indagação absurda: poderia ser a filha de algum vizinho
recém-chegado ao bairro. Estava sozinha, perdida, era muito pequena, e havia entrado na casa por
engano. Propositalmente estava a ignorar o fato de que seu marido, sempre que levava os filhos para
a escola, nunca deixava a porta destrancada, já que Dona Sida tinha uma cópia da chave. Havia se
distraído, então, nada mais.
─ Você se perdeu da sua mãe? - tentou um caminho mais direto.
A pequena não disse nada, aparentemente não compreendera a pergunta. Joana insistiu:
─ Como se chama a sua mãe?
─ Ela diz para eu não falar com gente estranha.
“- Simples e obediente.” - pensou. Joana pôs-se de pé, enrolando-se com os lençóis, e
aproximou-se. Teve a impressão de ouvir, novamente, o mesmo barulho que a acordara, mas dessa
vez não deu importância. Em seguida, pousou sua mão suavemente sobre a cabecinha curiosa e
hesitante.
─ Olha, o meu nome é Joana. Já não sou mais estranha. Eu sou a mãe de duas crianças: um
menino chamado Pedro e uma menina chamada Letícia, que, aliás, é muito parecida com você. Será
que você os conhece?
─ Não sei.
─ Você não tem amiguinhos na sua escola?
─ Sim, mas só quando tenho aula.
─ Entendi. Você estuda à tarde.
─ Não. De manhã. Não gosto de acordar cedo, mas minha mãe sempre me chama.
─ E por que não foi à aula hoje?
─ Porque quando é férias não tem escola.
Pela primeira vez desde que acordara, Joana sentiu-se realmente perturbada: estava há
poucos minutos, em seu próprio quarto, conversando com uma criança que não conhecia, e que
involuntariamente invadira a sua casa. Essa mesma criança tinha hábitos escolares incomuns, já que
dizia estar de férias. Seria algum tipo de síndrome?
Após outra pausa, reiniciou o diálogo inusitado:
─ Onde fica a sua escola?
─ Na praça. Mamãe diz que só tem essa.
As duas informações eram verdadeiras, era possível constatar. A cidade era pequena, coisa
de uns vinte mil habitantes. Não havia outras escolas que não aquela na qual Joana matriculara seus
filhos. A menina, definitivamente, morava por perto, e não frequentava instituições para estudantes
especiais.
─ Mas as férias não são só perto do Natal?
─ Sim. Eu me comportei o ano todo e ganhei uma bicicleta. O Natal passou, mas ainda é
férias. Posso brincar o dia inteiro.
─ Acho que você está se confundindo. - disse-lhe ternamente. ─ Ainda estamos no mês de
maio. Faltam muitos meses para o Natal e para as férias.
─ É férias sim. Por isso você está sem roupa de frio. A mamãe me disse que não usamos
roupas de frio nas férias. Ela tem uma camisola igual a essa sua.
Era uma típica manhã de janeiro, mas Joana sentiu como se uma mão gelada segurasse seu
tornozelo.
Levantou-se e sentou-se na cama mais uma vez. Seu abdome doía, e pressionou os braços
contra ele. Mais ruídos indistintos vindos de fora. Pensou em seus filhos e em seu marido. Ele os
levara para a escola naquela mesma manhã. Imediatamente, recordou-se de alguma coisa do sonho
que tivera: era noite e caminhava sozinha pela cidade. Não sabia por quê, mas estava exausta e
procurava um lugar onde pudesse repousar, até que avistou a sua casa. Apressou o passo até a porta
e girou a maçaneta. Trancada. Desesperada, tentou forçar a porta com ambas as mãos. Vários
baques depois, permanecia fechada. Suas memórias terminavam aí.
Voltou o seu olhar para a criança e pôs-se a fitá-la por um longo tempo. Esforçou-se no
sentido de lembrar se já a tinha notado alguma vez na vida, com ou sem o vestido vermelho e
detalhes azuis. Foi tomada por um sentimento de repulsa e carência diante do que via. Quem ela
era? De repente, rompeu o silêncio:
─ Como entrou aqui?
─ Eu subi a escada.
─ Você conhece essa casa?
─ É a minha casa. Esse é o quarto da minha mãe. O meu é ali do lado, mas às vezes mamãe
me deixa dormir aqui.
Os olhos de Joana encheram-se de lágrimas.
─ Você está imaginando coisas, menina.
─ O que é imaginar?
─ É como um faz de conta.
─ É igual às histórias que a minha mãe lê?
─ Exatamente. Você gosta de ouvir histórias?
─ Sim. Mamãe sempre lê para mim antes de dormir e depois do café da manhã. O meu livro
de histórias está na cômoda. Eu vim buscar.
Joana olhou de soslaio para o móvel. Era bem-feito, de madeira nobre, e sobre ele
repousavam uma luminária branca e uma tela de Santa Catarina de Sena – a teóloga do século XIV
que recebeu os estigmas de Cristo. Nunca havia visto aqueles objetos.
─ Viu só? Não há livro nenhum na cômoda. - disse, já em amargos soluços.
─ Ele está na terceira gaveta. Eu consigo alcançar. - a menina correu e abriu a gaveta. Para o
pavor de Joana lá estava um bonito tomo, com os dizeres Um tesouro de contos de fadas estampado.
Era grande e pesado para uma criança daquele tamanho.
Desolada, Joana não disse mais nada, apenas chorava. Olhou ao seu redor e se sentiu uma
estrangeira. Sobre a mesinha de cabeceira, o relógio digital marcava nove horas da manhã do dia 11
de janeiro. Não era 30 de maio, como até então acreditava. A criança inocente tinha razão. Sempre
tivera. Sua cabeça agora era um torvelinho: Onde estava a sua família? E Dona Sida? E como viera
parar naquele lugar? Ela realmente havia caminhado pela noite, o que explicaria sua camisola
manchada, e subido as escadas até o quarto? Como ainda não a haviam notado? Os baques que
ouvira com frequência, e que já a aborreciam, voltaram, agora constantes e ritmados. Desejava
ardentemente fugir dali. Aquela não era a sua casa.
Enxugou as lágrimas com as mãos. No lugar de seu rosto, apenas um todo vermelho e
intumescido. Não era a mesma mulher que despertara e que há pouco escovara os belos cabelos
com a escova de uma mulher que nem sequer conhecia.
─ Chame a sua mãe. - ordenou à pequena, que ainda segurava o livro com ambas as mãos.
─ Minha mãe está aqui. - respondeu-lhe ela olhando para fora do quarto.
Uma silhueta de mulher formou-se no corredor. A porta se abriu por completo e a mãe da
menininha lhe disse:
─ Outra vez falando sozinha, filha?
E, finalmente, Joana lembrou-se de quem era.

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