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04 NOVA VENÉCIA-ES

Quinta-feira, 03 de março de 2022

Roney
Marcos Pavani * CONTO

Joana sonhava um sonho -lhe folga desde o dia anterior. direto. confundindo. - disse-lhe terna- XIV que recebeu os estigmas de
cansado e inquieto quando foi “- Ela às vezes se esquece de me A pequena não disse nada, mente. ─ Ainda estamos no mês Cristo. Nunca havia visto aque-
despertada por um ruído distan- contar onde os colocou. Mas é aparentemente não compreen- de maio. Faltam muitos meses les objetos.
te. Abriu os olhos e observou tão trabalhadora, pobrezinha...” dera a pergunta. Joana insistiu: para o Natal e para as férias. ─ Viu só? Não há livro ne-
o lustre prateado na penumbra Pôs de volta todas as coisas ─ Como se chama a sua ─ É férias sim. Por isso você nhum na cômoda. - disse, já em
de seu quarto. Endireitou-se na no lugar e fechou os armários mãe? está sem roupa de frio. A mamãe amargos soluços.
cama e tentou prestar atenção, suavemente, para não afrouxar ─ Ela diz para eu não falar me disse que não usamos roupas ─ Ele está na terceira ga-
mexendo os olhos de um lado as dobradiças. Da báscula do ba- com gente estranha. de frio nas férias. Ela tem uma veta. Eu consigo alcançar. - a
para o outro, a fim de perceber nheiro ouvia vozes indistintas, “- Simples e obediente.” camisola igual a essa sua. menina correu e abriu a gaveta.
mais alguma coisa. Estava um provavelmente os vizinhos con- - pensou. Joana pôs-se de pé, Era uma típica manhã de ja- Para o pavor de Joana lá estava
pouco confusa pelo sono, e por versando ou varrendo a calçada. enrolando-se com os lençóis, e neiro, mas Joana sentiu como se um bonito tomo, com os dizeres
acordar tão bruscamente, mas Constatou que ainda estava com aproximou-se. Teve a impressão uma mão gelada segurasse seu Um tesouro de contos de fadas
não ouviu nada. Depois de um sono, como se tivesse caminha- de ouvir, novamente, o mesmo tornozelo. estampado. Era grande e pesado
tempo, olhou em direção à ja- do à noite toda, e já que o lixeiro barulho que a acordara, mas Levantou-se e sentou-se na para uma criança daquele tama-
nela, que, para a sua surpresa, só passaria no final da tarde, re- dessa vez não deu importância. cama mais uma vez. Seu abdo- nho.
estava com as cortinas fechadas. solveu deitar-se mais uma vez. Em seguida, pousou sua mão me doía, e pressionou os braços Desolada, Joana não dis-
Fachos de luz ganhavam o apo- Não olhou para o relógio digital, suavemente sobre a cabecinha contra ele. Mais ruídos indistin- se mais nada, apenas chorava.
sento através da porta entreaber- mas supôs que estivesse mar- curiosa e hesitante. tos vindos de fora. Pensou em Olhou ao seu redor e se sentiu
ta. cando 7:45h. Fechou os olhos e ─ Olha, o meu nome é Jo- seus filhos e em seu marido. Ele uma estrangeira. Sobre a me-
Levantou-se, calçou as san- esperou. ana. Já não sou mais estranha. os levara para a escola naquela sinha de cabeceira, o relógio
dálias que ganhara do marido Joana gostava de ler para os Eu sou a mãe de duas crianças: mesma manhã. Imediatamente, digital marcava nove horas da
em seu último aniversário e ca- filhos. Iniciou o hábito, como fa- um menino chamado Pedro e recordou-se de alguma coisa manhã do dia 11 de janeiro. Não
minhou pelo assoalho de madei- zem os bons pais, para fazê-los uma menina chamada Letícia, do sonho que tivera: era noite e era 30 de maio, como até então
ra até o banheiro. Estava suada dormir. Com o tempo, passou a que, aliás, é muito parecida com caminhava sozinha pela cidade. acreditava. A criança inocente
pelo clima sufocante. Queria ler várias vezes em um mesmo você. Será que você os conhece? Não sabia por quê, mas estava tinha razão. Sempre tivera.
lavar o rosto e saber que ho- dia. Não era raro que repetisse a ─ Não sei. exausta e procurava um lugar Sua cabeça agora era um torveli-
ras eram. Usava uma camisola mesma história. Sua favorita era ─ Você não tem amiguinhos onde pudesse repousar, até que nho: Onde estava a sua família?
branca de algodão, embora um A Roupa Nova do Imperador, na sua escola? avistou a sua casa. Apressou o E Dona Sida? E como viera pa-
pouco encardida, com detalhes de Andersen – menos um conto ─ Sim, mas só quando tenho passo até a porta e girou a ma- rar naquele lugar? Ela realmen-
em dourado. Era sua roupa pre- de fadas do que uma metáfora aula. çaneta. Trancada. Desesperada, te havia caminhado pela noite,
ferida para dormir. sobre as consequências da hi- ─ Entendi. Você estuda à tar- tentou forçar a porta com ambas o que explicaria sua camisola
Antes de chegar à porta do pocrisia coletiva – cujo texto já de. as mãos. Vários baques depois, manchada, e subido as escadas
lavabo, porém, outro barulho. conhecia de cor. Pois foi com a ─ Não. De manhã. Não gos- permanecia fechada. Suas me- até o quarto? Como ainda não a
“- Bobagem”, pensou, “- Não cômica imagem do soberano nu to de acordar cedo, mas minha mórias terminavam aí. haviam notado? Os baques que
podem ser as crianças”. Joana a desfilar pomposamente para o mãe sempre me chama. Voltou o seu olhar para a ouvira com frequência, e que já
tinha dois filhos: Pedro, de 8 público é que Joana sentiu que ─ E por que não foi à aula criança e pôs-se a fitá-la por um a aborreciam, voltaram, agora
anos, e Letícia, de 6. Eram seu alguém a observava. Virou-se hoje? longo tempo. Esforçou-se no constantes e ritmados. Desejava
refúgio: alegres, carinhosos e em direção à porta e espantou-se ─ Porque quando é férias sentido de lembrar se já a tinha ardentemente fugir dali. Aquela
sempre tiravam boas notas nas ao ver uma criança desconheci- não tem escola. notado alguma vez na vida, com não era a sua casa.
provas da escola. Corriam pela da. Pela primeira vez desde que ou sem o vestido vermelho e de- Enxugou as lágrimas com
casa quase o dia todo e pediam Era uma menina e usava acordara, Joana sentiu-se re- talhes azuis. Foi tomada por um as mãos. No lugar de seu ros-
à mãe para fazer o mesmo. Eles um vestidinho vermelho, com almente perturbada: estava há sentimento de repulsa e carência to, apenas um todo vermelho e
a amavam. detalhes em azul-escuro. Tinha poucos minutos, em seu próprio diante do que via. Quem ela era? intumescido. Não era a mesma
Abriu a torneira e molhou a cabelos castanhos e encaracola- quarto, conversando com uma De repente, rompeu o silêncio: mulher que despertara e que há
face algumas vezes. Depois se dos. O rosto, repleto de sardas, criança que não conhecia, e que ─ Como entrou aqui? pouco escovara os belos cabelos
enxugou com uma toalha cor- era gentil. Deveria ter mais ou involuntariamente invadira a ─ Eu subi a escada. com a escova de uma mulher
-de-rosa, que nunca tinha visto, menos uns 5 anos de idade. Em sua casa. Essa mesma criança ti- ─ Você conhece essa casa? que nem sequer conhecia.
e olhou-se no espelho. Apesar alguns aspectos, lembrava um nha hábitos escolares incomuns, ─ É a minha casa. Esse é o ─ Chame a sua mãe. - orde-
das rugas que a incomodavam pouco sua filha mais nova. já que dizia estar de férias. Seria quarto da minha mãe. O meu é nou à pequena, que ainda segu-
há tempos, seu rosto era sereno Num reflexo, Joana levan- algum tipo de síndrome? ali do lado, mas às vezes mamãe rava o livro com ambas as mãos.
e de belo aspecto. Tinha por há- tou-se e se cobriu com os len- Após outra pausa, reiniciou me deixa dormir aqui. ─ Minha mãe está aqui. -
bito escovar os longos cabelos çóis: o diálogo inusitado: Os olhos de Joana enche- respondeu-lhe ela olhando para
castanhos sempre que acorda- ─ Olá, mocinha. - disse, re- ─ Onde fica a sua escola? ram-se de lágrimas. fora do quarto.
va, mas dessa vez não encon- cobrando-se do susto. ─ Na praça. Mamãe diz que ─ Você está imaginando coi- Uma silhueta de mulher for-
trou sua escova. Dona Sida, a ─ Por que você está no quar- só tem essa. sas, menina. mou-se no corredor. A porta se
empregada que a acompanhava to da mamãe? As duas informações eram ─ O que é imaginar? abriu por completo e a mãe da
desde a gravidez de Pedro, tinha Joana tentou racionalizar verdadeiras, era possível cons- ─ É como um faz de conta. menininha lhe disse:
arrumado a suíte e, seguindo um aquela indagação absurda: po- tatar. A cidade era pequena, coi- ─ É igual às histórias que a ─ Outra vez falando sozinha,
costume que mais a divertia do deria ser a filha de algum vizi- sa de uns vinte mil habitantes. minha mãe lê? filha?
que irritava, deveria ter trocado nho recém-chegado ao bairro. Não havia outras escolas que ─ Exatamente. Você gosta de E, finalmente, Joana lem-
o estojo de maquiagem e os de- Estava sozinha, perdida, era não aquela na qual Joana matri- ouvir histórias? brou-se de quem era.
mais objetos de lugar pela milé- muito pequena, e havia entrado culara seus filhos. A menina, de- ─ Sim. Mamãe sempre lê
sima vez. na casa por engano. Proposital- finitivamente, morava por perto, para mim antes de dormir e de- * O autor é mestre em História
Joana agachou-se e fez uma mente estava a ignorar o fato e não frequentava instituições pois do café da manhã. O meu pela UFES, professor do IFES
rápida inspeção nos armários, de que seu marido, sempre que para estudantes especiais. livro de histórias está na cômo- de Nova Venécia e colaborador
começando pelos lugares prefe- levava os filhos para a escola, ─ Mas as férias não são só da. Eu vim buscar. do Jornal Correio9
ridos de Dona Sida para o escon- nunca deixava a porta destran- perto do Natal? Joana olhou de soslaio para
de-esconde, mas em vão. Ainda cada, já que Dona Sida tinha ─ Sim. Eu me comportei o o móvel. Era bem-feito, de ma-
de cócoras, não teve outro re- uma cópia da chave. Havia se ano todo e ganhei uma bicicleta. deira nobre, e sobre ele repou- OS TEXTOS ASSINADOS
médio senão chamá-la. Porém, distraído, então, nada mais. O Natal passou, mas ainda é fé- savam uma luminária branca NÃO REFLETEM,
o vocativo morreu ainda em sua ─ Você se perdeu da sua rias. Posso brincar o dia inteiro. e uma tela de Santa Catarina NECESSARIAMENTE, A
boca, ao se lembrar de que dera- mãe? - tentou um caminho mais ─ Acho que você está se de Sena – a teóloga do século OPINIÃO DO CORREIO9

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