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A Roda da Fortuna

Ponto prévio: Fortuna aqui, assim como em seu significado original não diz respeito a uma
grande quantidade de riqueza material (como quando se diz que Elon Musk possui uma fortuna
avaliada em US$188,5 bilhões). Aliás, Fortuna não é algo necessariamente positivo. Trata-se,
simplesmente, do acaso, do aleatório, da sorte que governa o mundo e a todos nós em nossas vidas.
Por isso, se diz que alguém é “afortunado”, isto é, possui uma “boa fortuna”, é feliz porque a sorte
lhe foi favorável; ou então, ao contrário, “desafortunado” seria aquele sem sorte, infeliz. Se
observarmos que os termos em inglês para "felizmente" e "infelizmente" são, respectivamente,
fortunately e unfortunately, ambas palavras derivadas de fortune e, por conseguinte, do latim
fortuna, tornaremos essa relação ainda mais clara.
Com o tempo, Fortuna deixou de significar "sorte", dando lugar a sua variante "boa sorte",
"felicidade" e, logo em seguida, "riquezas". Essa mudança de sentidos dentro de uma mesma
palavra certamente está conjugada com a ascensão, o desenvolvimento e a consolidação das ideias
liberais, do liberalismo. Estas enfatizam que todo o homem faz a sua própria sorte, cada um é livre
para prosperar ou não, de acordo com seus próprios méritos.
Em termos mais amplos, para a sociedade contemporânea, fruto indigesto de visões de
mundo como essa, não existe "sorte", "acaso", "aleatoriedade": cada um de nós é única e
diretamente responsável por seus atos, seus fracassos e seus sucessos. Usando uma linguagem
vulgar: não adianta colocar a culpa nos outros, em Deus, na família, no governo, no sistema, etc.
Todos nascem iguais em liberdade de iniciativa, portanto, chega na frente quem é “melhor” (e não o
"bem-afortunado"), e ficam para trás os “preguiçosos” e “estúpidos” (não os "azarados").
No entanto, a ideia de que um homem pode ser senhor do seu próprio destino não é tão
antiga assim (remonta ao século XVII, talvez). Se levarmos em consideração que esses princípios só
se aplicariam a homens nobres e passou a ser popular só muito mais tarde (século XIX), nos
resumimos a pouco mais que 200 anos de história. Conceitos e visões tão conhecidas e tão
alardeadas, tidas como dogmas para quase todas as pessoas, não possuem nem meio milênio de
existência. Em contrapartida, o Homo sapiens já caminha por essas bandas há mais ou menos 150
mil anos. Algo está fora do lugar. Se a sorte não governa mais o mundo (a menos que se trate de um
jogador ou apostador inveterado na expectativa de ganhar uma bolada na Mega Sena da virada...), o
que havia antes? Em quê se acreditava?
Os antigos gregos e romanos, dos quais somos parentes próximos (assim como os
“bárbaros” germânicos que por lá andavam) eram politeístas. Criam em vários deuses. Uma dessas
divindades chamava-se Tique (para os gregos) ou Fortuna (para os romanos): a deusa da sorte (boa
ou má, como já dissemos) e da esperança. Ou a própria sorte em si, a ideia da sorte e do acaso
personificados. Era representada portando uma cornucópia (espécie de chifre gigante, contendo em
seu interior todos os benefícios do mundo) e um timão, que simbolizava a distribuição desses bens e
a coordenação da vida dos homens. Geralmente a deusa também era retratada cega ou com a vista
coberta (assim como a moderna imagem da Justiça), pois distribuía seus desígnios "ao sabor da
maré", isto é, aleatoriamente. A alguns a sorte era favorável, a outros não. Simples assim.
"Isso não é justo", diriam alguns hoje. "E quem disse que o mundo é justo?", outros
responderiam. O fato é que há muitas maravilhas e muitas calamidades no universo as quais não
dependem da nossa vontade para existirem. Acontecem e ponto final. Não pedem a nossa opinião,
nem se importam se ficaremos incomodados ou não com elas. Só nos resta recebê-las, como
qualquer mortal, de forma honrada ou covarde: e é justamente aí que entra a parte referente ao
mérito dos homens, à sua liberdade de ação e às suas vontades. Quer dizer, os seres humanos são
livres, porém, dentro de um conjunto muito maior de eventos involuntários, aos quais se poderia dar
o nome de vontade dos deuses, ou, simplesmente, "acaso", "sorte", "fortuna".
Nesse sentido, a imagem da “Roda” da Fortuna, isto é, da circunferência que gira
infinitamente controlando nossas ações, criada no mundo clássico e desenvolvida ao longo de toda a
Idade Média é bastante interessante.
Tão poética quanto esclarecedora. Por essa via de pensamento, os homens são levados a crer
que não são donos de si. E mais, há momentos em que se pode estar bem, feliz e satisfeito, ou seja,
está na parte de cima da roda; como também pode-se estar por baixo.
É como diz a letra da música Roda Viva, do incomparável Chico Buarque de Holanda,
lançada em 1967: "Tem dias que a gente se sente / Como quem partiu ou morreu / A gente estancou
de repente / Ou foi o mundo então que cresceu… / A gente quer ter voz ativa / No nosso destino
mandar / Mas eis que chega a roda viva / E carrega o destino prá lá.”
Nos últimos versos dessa estrofe, Chico utiliza a palavra "destino" no sentido de "vontade
própria", isto é, no sentido que demos para a sociedade liberal moderna: "os homens fazem os seus
próprios destinos". Aqui o artista está colocando Destino (vontade) e Fortuna (acasos) como
conceitos distintos, antagônicos e/ou contraditórios. Seja como for, e diferentemente de Buarque,
coloquemos Destino e Fortuna em um mesmo plano. Vamos partir do princípio de que ambos
dizem respeito ao imponderável. Aconteceu e pronto! Porém, mesmo no sentido que buscamos
analisar aqui, eles não são a mesma coisa. Vejamos por quê.
Um dos sentidos da Fortuna, como vimos, é a sorte e o acaso. E um dos sentidos do acaso é,
exatamente, tudo aquilo que, além de acontecer sem se importar com a vontade dos indivíduos,
também acontece sem uma causa aparente (a-caso, “sem causa”). Trata-se de um aleatório absoluto.
Os antigos diziam que a Fortuna era justa porque caprichosa, por favorecer e prejudicar as pessoas
independentemente de sua condição jurídica e social. Partindo do princípio de que as pessoas, em
sociedades como essas, já nascem desiguais (perante a lei e perante tudo), elas são iguais em apenas
um aspecto: todas estão presas à roda da fortuna, a situações as quais não desejaram ou escolheram.
Todos são tratados da mesma forma, nesse sentido. Se compararmos novamente com a nossa
sociedade moderna, veremos que, como os homens são totalmente responsáveis pelos seus atos
(partindo das mesmas condições de liberdade), a desigualdade entre eles não será somente natural,
mas também moralmente justa. A isso muitos dão o nome de “meritocracia”. Portanto, os conceitos
de justiça no mundo antigo e na modernidade também são diferentes. Uma visão de
mundo fatalista (que crê no destino ou no fado) é sutilmente distinta. Apesar de dizer respeito a um
conjunto de fenômenos que acontecem independentemente da sua vontade, pressupõe existir um
plano já traçado para cada um dos seres humanos. Se as coisas acontecem, para o bem ou para o
mal, não é "por acaso", mas sim porque algo ou alguém ou alguma inteligência superior, como Deus
ou os deuses, assim o quiseram. Logo, por essa ótica, não existem coincidências, apenas o
inevitável, diante do qual qualquer esforço é vão.
Uma última reflexão: pensar dessa maneira significa crer que doenças, pragas, epidemias e a
morte estão fora do escopo de ação humana. Não há o quê fazer, quando muito lamentar. Não
existem “milagres”. Ora, até a presente data, a pandemia do novo coronavírus já ceifou, somente no
Brasil, mais de 210 mil vidas. O presidente da República e um percentual constante de apoiadores
(cerca de 30% da população) desdenhou do problema ou procurou sistematicamente se isentar das
responsabilidades. “Todos vamos morrer um dia”, alguém disse.
A Roda da Fortuna ainda vive.

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