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06 NOVA VENÉCIA-ES

Terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Roney
Marcos Pavani CONTO
havia encontrado. Todo o conhe- já estava fraca. Aproximou-se
cimento humano e aquilo que dá do espelho. Já podia sentir o
existência a todas as coisas ao cheiro do aço que o emoldurava.
seu alcance. Só era preciso des- Assim, mais de perto, olhando
nudá-lo. fixamente, viu algo novo. Eram
Era noite quando Alexandre Em absoluto, não eram livros sar por livros de anatomia, que Repousou sua lanterna no visões de um passado recente,
destrancou a porta que condu- que lhe interessavam, ainda que já atingira a metade do aposento chão frio de pedra. O barulho das conclusões as quais havia
zia à câmara subterrânea. Ela se estes fossem os mais raros que de teto alto e abobadado. E foi ecoou, rasgando o silêncio por chegado no último ano: a loca-
abriu com um rangido alto. Do pudesse encontrar. Esteve na dali que viu, no extremo oposto alguns instantes. Perto dele ma- lização da câmara, a forma de
interior exalava mofo e velhice. companhia de livros desde que da sala, uma estrutura circular, pas do mundo conhecido, e de abri-la de a hora exata de o fazer.
Como carregasse uma lanterna, era um aprendiz de escriba. Lia do tamanho de um homem, co- mundos desconhecidos, mas não Também viu as pessoas que en-
pode contemplar dezenas de e escrevia textos como um urso berta inteiramente por um véu. A lhes deu atenção. Pôs as mãos ganou, os guardas que subornou
estantes de madeira, abarrota- que sente o cheiro do sangue da luz da lanterna revelou um tom sobre o tecido e o puxou, não de e o comerciante que envenenou.
das de pergaminhos, códices e caça. Amava as letras e lhes fa- arroxeado. Alexandre suava. modo reverente, mas com força. Não sentiu remorso.
mapas, além de instrumentos zia guerra. Dia e noite. Página Aproximou-se. Pôs-se a Tudo estava consumado. E ele Viu a si mesmo destrancan-
de ciência, como esquadros e por página dos tomos de gramá- contemplar o pano à sua frente olhou para si mesmo. do a porta, e o rangido exato que
compassos. Havia teias de ara- tica, retórica e lógica; música, – perceptivelmente o único ob- Estava em seu escritório, e fizera. Estantes, pergaminhos,
nha e pilhas de poeira por toda a geometria e astronomia; poesia jeto limpo do lugar. Um tecido era jovem. Viu o afinco em es- mofo e pó. A caminhada até o
parte, a confundirem-se com as e história. simples, de linho, roxo (como já tudar e aprender com voracida- véu arroxeado. A leitura das ins-
sombras bruxuleantes projetadas Com vida tão ascética, não havia notado), mas pontilhado de, mas também os mestres que crições. A revelação. E, nova-
por todo o aposento. Diversas era de se estranhar que vivesse com incontáveis marcas bran- desobedeceu e as amizades que mente, olhou para si mesmo no
escrivaninhas, sobre as quais só. E foi graças à solidão que cas. Havia também, postos de nunca quis fazer. E como a lenda espelho, estava em seu escritó-
manuscritos deixados incomple- concluiu que o Espelho dos Mil alto a baixo, alguns dizeres com do Espelho havia se tornado uma rio, e era jovem…
tos há muito tempo. Frascos de Sábios – um artefato de enorme caracteres arcanos, que ele pode obsessão. Era ele mesmo, ambi- E Alexandre gritou de horror
tinta e borrões por sobre pedaços poder, capaz de revelar o pas- decifrar com facilidade: “uma cioso, com sede de saber, cuja em meio à escuridão.
apodrecidos de papel. Um olhar sado e o futuro – não era uma vez que o tenha, não lhe pode impetuosidade da juventude fora Desde então, a lenda do Es-
mais atento denunciava também lenda. ser tirado”. Sorriu um sorriso gradativamente suplantada pela pelho dos Mil sábios passou a
algumas iluminuras. Silêncio. Não foram poucos os mes- zombeteiro, e sussurrou: “o co- resolução da maturidade. Viu-se ser conhecida como a lenda do
Tratava-se de uma visão im- tres que o desencorajaram, que o nhecimento”. Quantas vezes já a rir na imagem, e sem saber por Espelho dos Mil e Um Sábios.
pressionante, sem dúvida. Mas, negligenciaram, que ignoraram não lera citações semelhantes? quê, fez o mesmo.
após um momento de hesitação, seus estudos e o acusaram de Não restava nenhuma dúvida, Várias horas se passaram, * O autor é mestre em História
Alexandre cruzou os umbrais loucura. Todos tolos. Todos mor- o Espelho dos Mil Sábios abri- muitas imagens e memórias se pela UFES e professor do
da porta com passos firmes. tos. Foi pensando nisso, ao pas- gava-se ali, diante dele, e ele o sucederam, e a luz da lanterna IFES de Nova Venécia

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