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de Maquiavel
Coordenação editorial
Joaquim Antonio Pereira
Capa e projeto gráfico
Tadeu Costa
Pré-produção e impressão
Sermográfica - Rio de Janeiro
Revisão
Guilherme Salgado Rocha
ISBN: 978-85-64586-00-0
Editora Intermeios
Casa de Artes e Livros
11 2338-8851 - 8163-0572
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo
Rua Luís Murat, 40 - Pinheiros Trabalho publicado com o incentivo da Lei 3.746,
05436-050 – São Paulo - SP de 09.06.2009 (Lei Ascânio Lopes – Cataguases - MG)
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Selo de segredos
Dali a dois dias, Virgínia, lábios cerrados, gestos ríspidos e impa-
cientes, olhos inchados e dura expressão no rosto, bateu à minha
porta. Estava muito mudada: desaparecera aquela figura compla-
cente e passiva, reprimida e indiferente, surgindo outra em seu
lugar, de ilimitadíssima ferocidade. Até onde me lembro, seus ca-
belos se tornaram surpreendentemente murchos, perderam o vo-
lume; estavam esquisitos. Uma tintura de crueldade podia-se notar
em sua face. Claro, não conhecia esse seu lado, nunca imaginava
que pudesse se modificar tanto.
Eu me pergunto se minhas reações também não me denuncia-
ram logo que lhe abri a porta, se não representaram minha defini-
tiva confissão. É difícil esconder com perfeição o nosso interior,
enfurnar as tormentas e os flagelos, e penso que há de ser porta-
dor de frieza extrema para que os outros não enxerguem, no nos-
so rosto, tudo aquilo que se passa bem no fundo de nós mesmos.
Não me considero possuidor de dotes artísticos de tal magnitude.
Assim, dentro daquele vazio, ela deixou cair as mãos – que até
então trazia escondidas atrás de si – e estendeu-me um pedaço
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O abajur
Os olhos vagueiam pelo teto, delineando vultos de mobílias, fasquias
da gelosia, toscos pilares nos ângulos das paredes interiores. As ruas
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Durante todo esse abstraimento, meus olhos estiveram, sem eu
sentir os efeitos, mergulhados na luz tênue e rala do abajur. Ao
tornar a mim, eles passaram a relancear pelo ambiente, como se
me fosse um espaço novo e estranho: as paredes cinzas esmaeci-
das do quarto, o teto um pouquinho mais claro, a pia (que man-
dei instalar há cerca de um mês), as prateleiras de livros, a janela.
Ocorreu-me também a estreita faixa de jardim, espremida entre a
construção e o muro, onde, por vezes, moleques diabólicos vêm
urinar à noite; o que restou das acalifas, das dracenas... A calçada,
por defronte, o trecho da rua, os oitis alinhados ao meio-fio. Um
céu escuro e opaco, adivinhado por entre o rendilhado das folha-
gens e dos arbustos aquietados, perfis sonolentos dos telhados,
céu lutuoso e sufocante, dentro da noite escaldante.
Dou conta dos fragores, dos bulícios, das gargalhadas vindas
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Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis, escritor brasileiro, nasceu no
Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839.
Sua obra abrangeu praticamente todos os gêneros literários, des-
de crônicas, críticas, teatro, poesia, mas foi sobretudo no conto e no
romance que se destacou como o principal autor de nossas letras.
De sua primeira fase, dita romântica, destacam-se os romances
Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá
Garcia (1878). Com a publicação de Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881) se iniciou o período mais importante de sua produ-
ção, a “fase realista”, à qual pertencem ainda Quincas Borba (1891),
Dom Casmurro (1900), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
Morreu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1908.
O niilista
Não sou propriamente memorialista. Faço tal afirmação, já de
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Os espelhos
As feições de Virgínia subsistem em mim, estão nítidas, aqui, nes-
te instante. Posso vê-la por inteiro, ou mesmo, caso o deseje, me
concentrar em partes do seu corpo: a pele fria, que cheirava a água
de rosas, os cabelos lisos, armados, com as pontas disciplinadas,
voltadas para dentro. E um rosto onde traços indefinidos me tra-
zem, enfim, uma ponta de desagrado. Os lábios pálidos por quase
sempiterno batom cor de guaraná, meio sem graça, e um buço,
que se acentuava à medida que os anos avançaram, davam-lhe as-
pecto duro e até grotesco, que remetia a aterradoras gravuras com
cenas sombrias e lúgubres do Santo Ofício: os olhos negros, a
pele áspera do pescoço e do entresseio, por detrás daquele decote
dos seus quarenta e tantos anos. Seus raros sorrisos, o semblante
imutável, meio tristonho e com aparência de desconfiada. Ar pre-
tensamente enigmático de quem quer dar a impressão de que re-
flete sob algo de suma importância, ou, principalmente, de quem
tem sempre um tanto para ocultar. Ou, ainda, de quem ouve, mas
não parece entender, conservando-se refratária e no mais absoluto
silêncio, quando entre nós dois havia o menor sinal de dissensão.
Nas poucas vezes em que busquei, sôfrega e inutilmente, ar-
rancar dela opiniões sobre acontecimentos quaisquer, mesmo os
mais irrelevantes e banais e que pudessem resultar na mais miúda
polêmica, ou então lhe apresentar pequenas sugestões ou críticas,
ela, com sua poderosa quietude usada como carga, se afastava, se
recolhia ao casulo, e não esboçava a menor reação. Era lacônica
e secreta, o que beirava o intolerável para o meu temperamento.
Suas miradas perscrutadoras e alertas, lá de longe, farol que
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Cristine consistia numa espécie de contraponto, de avesso: fecho as
pálpebras para poder enxergá-la, para que os raios do sol não me
risquem a retina e me turvem a visão, contudo, suas feições gostam
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A sereia
... e tu, preclaro Ulisses, deves ser atado ao mastro com tantas amar-
ras quanto necessárias, ao ouvires o canto da sereia, cuja voz encan-
ta a todos os que dela se acercam. Se alguém, sem dar por isso, se
deixar levar, ficará cativo do canto harmonioso, contudo, pérfido...
Sê também previdente com os vagalhões, que de encontro às
altas escarpas e rochedos podem sua nau lançar.
O vestido da noite
... não existia no seu gesto nada que lembrasse recusa, conspiração,
nada disso. Nenhuma atitude rompante, mesmo tendo se furtado
de se virar para trás, mesmo permanecendo todo o tempo de costas
para mim. Não senti nenhum efeito de aridez ou desprezo, insis-
to, mas uma postura que se diria nobre, majestática; e uma inefável
e serena altivez, que acabava por me estancar, por me impedir de
adiantar um passo. Tão alta e serena; acima de tudo, tão íntegra e
imaculada. Os cabelos lhe caíam no dorso, a mais amena sensação
de exalarem suave fragrância.
Glacial e triunfante, aguardou um tempo infinito o ônibus que
a conduziria, na partida, na quietude de uma das transversais da
minha rua. Sim, reconheci aquele cenário como próximo à minha
casa e posso assegurar que, mesmo embarcando naqueles antiqua-
dos ônibus de rua, sua galhardia e garbosidade ficaram imacula-
das. O essencial era que havia indefinível e singular noção de que
ela me pertencia, de que podia cercá-la em meus braços. Era óbvio
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Os páramos
A gente se vê nos sonhos, se enxerga nos próprios sonhos, se re-
conhece como personagem de si mesmo, ou tudo é tão somente
como uma câmera de mão, com a qual se sai fazendo tomadas
nonsense, as quais, depois, o cérebro trata de concatenar a seu bel-
prazer? Hein? Pergunto-me isso. Sonhos são os delírios que temos
enquanto ainda não tivemos tempo de enlouquecer.
Eros
Cristine, Cristine Sorel, estendida sobre o leito, recostada na ca-
beceira, pernas cruzadas, lascivo vestido cetim coral, frente-única,
enfreado até pouco acima dos joelhos. As costas douradas, pontas
dos cabelos úmidas de suor, o rosto agreste, lábios vermelhos de
quem acabara de retocar o batom desninhando uma meia maçã,
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Gênesis I
3, 1 - É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore
do jardim?
3, 6 - A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom
para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteli-
gência, tomou dele, comeu e o apresentou também ao seu marido, que
comeu igualmente.
Os seios e as flores
Flores...
O que você falou?
Que tem aroma de flores.
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Nêmesis
Numa ocasião, Sílvio de Castro Pena, um boa-praça, quase-amigo
meu, professor de Matemática, me apanhou na descida do morro
do colégio. Não era de se estranhar que assim o fizesse, em abso-
luto; afinal era, praticamente, o único com quem tinha certo grau
de familiaridade. Discorreu sobre o tempo, sobre os desprazeres
que a profissão andava lhe causando – era um eterno insatisfeito
com seu ofício –, sobre futebol, desses ingredientes de que lança-
mos mão quando não há verdadeiramente nada de substancioso
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As armaduras
Acontece que, como a má sorte quase nunca é fenômeno solitário,
nunca vem desfalcada de outros episódios de desventura, dois ou
três dias após haver me encontrado com o Sílvio, ia eu fazendo o
caminho inverso, isso é, subindo o morro do colégio, uns vinte mi-
nutos antes das sete da manhã, quando sou alcançado pelo diretor,
o tal Laurindo. Ele arfava um tanto, o que fez com que concluísse
que havia se apressado a fim de me alcançar. Apesar da minha natu-
ral e ampliada antipatia pela figura, não posso deixar de reconhecer
nele vigor físico maior do que o esperado para a sua faixa etária.
Aqui abro um grande parêntese para tecer considerações que
julgo importantes. Estamos agora diante de um serzinho que, es-
tranhamente, goza de certa reputação por parte de meia dezena
de ignotos que se conservam à sua roda. Nunca, nunca economiza
oportunidade de lançar mão de sua capacidade de memorizar fa-
tos e nomes a fim de impressionar os que estejam a um passo de
distância. Era – e é – extremamente preciso quanto às menores
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Retorno agora ao ponto em que nos encontramos na subida. Pôs-
se ao meu lado, feito tivesse tão somente a intenção de se fazer
notar. No princípio, não disse nada. Vestia uma calça desengonça-
da e horrorosa, feita de tecido sem vida (para ser fiel a si próprio),
ridículo suspensório (numa época em que tal peça, há muito, não
mais se usa), e caminhava com aquele seu jeito de jogar as pernas,
algo similar a alguém que esfregasse excrementos entre as nádegas,
enquanto a calça ia formando mil pregas em diagonal nas coxas.
Era uma situação muito embaraçosa para mim, porém tive
de cumprimentá-lo, não havia outro jeito. Foi saudação curta e
formal, mas bastou isso; forneci-lhe a senha que esperava. Aí, sem
mais nenhum preâmbulo, pôs-se inflamadamente a discorrer so-
bre episódio sucedido com outro professor, uma história grossei-
ra, um assunto besta... Não se podia compreender aquela inflexão
de voz, tão solene e arrojada, para assunto tão sem importância.
Lá pela terceira ou quarta frase, no entanto, introduziu, todo
untuoso, o nome de Cristine.
De meu lado, continuei a subida como se nada houvesse aconte-
cido, fingindo indiferença; mas, por dentro... Aventurei-me as rápidas
espiadelas pela cara dele, fingindo examinar o tráfego de veículos:
aquele olhar maroto, caviloso. Tive certeza absoluta de que procurava
desvendar se sua incursão surtira algum efeito sobre mim.
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Tomás de Torquemada
Religioso espanhol, nascido em Valladolid em 1420 e falecido em
Ávila, em 1498. Inquisidor-mor de todo o reino espanhol, levou
a Inquisição aos graus mais extremos. Somente na sua pátria, o
número de hereges queimados em fogueira é calculado em 31.912.
Seu nome tornou-se sinônimo de fanatismo e intolerância.
O túnel
Pronto... Vejo-me dentro do túnel. Já percorri algum trecho, não
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As horas
Aí vieram julho, o inverno, o frio e as férias escolares... A cidade
sombria, tardes tediosas e acabrunhantes, a luz lenta do dia, de um
amarelo mais claro, se despedindo, por detrás dos morros, antes
mesmo das seis horas. A cidade encoberta por nuvens cinzentas,
vez por outra até mesmo uns chuviscos, enfim, clima estranhíssimo.
Na primeira semana, praticamente não saí de casa. Acordava
mais tarde que o habitual, às vezes já na metade da manhã, cheio
de enfado, quase sempre mais tomado de desânimo do que quando
me deitei, abatido por uma impassibilidade, por uma placidez, que
chamaria até de patológicas, e que não sabia de onde provinham.
Ficava horas e horas na mesma posição, diante da escrivani-
nha, sem ter absolutamente nenhuma ocupação, sem dar nenhu-
ma rota para o meu espírito. Mexendo-me em desassossego na ca-
deira. Arrastando o molho de chaves arrancado do bolso da calça,
em elipses e sinuosidades e círculos e serpenteios ruidosos sobre
o tampo do móvel. Esfregando os olhos sonolentos. Folgando a
calça por entre as pernas. Flexionando e esticando joelhos. To-
mava o grampeador e ficava grampeando o nada. Virava, revirava
e tornava a virar a pequena ampulheta (dos últimos vestígios de
Virgínia, juntamente com o sino-de-ventos e alguns cristais esque-
cidos na estante da sala), duas bolhas no miolo de uma peça de
acrílico azul-safira. Um minuto e quarenta e cinco segundos para
toda aquela poeirinha se afiletar do compartimento de cima para
o de baixo. Um minuto e quarenta e cinco segundos, marcados.
Consumindo, incandescente e inquieto, o incêndio das horas.
Ou girando, girando e girando o copo em volteios arriscados,
que ameaçavam derramar o restinho de água que ficara da noite
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As correntes
Por um dia daquele julho abri, ao acaso, o Memórias Póstumas..., que
encontrei caído no chão, rente à cama, uma edição bem antiga,
de capa ruim. Pois meus olhos foram deparar exatamente com o
seguinte trecho: “O voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem no
meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se
alheado, inacessível, ausente”.
Os engenhos
A coisa mais estranha é que acreditava, lá pelos meus vinte e
tantos anos, que possuía realmente a capacidade de desvendar a
personalidade de todo mundo, de encontrar o menor indício de
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Anos de chumbo
Nos primeiros anos da década de oitenta, cheguei a cogitar em re-
mexer com o passado de Laurindo, o que de clandestino e nebuloso
existisse em seu passado, de desacoitar o que houvesse por detrás
daquelas cortinas. Habitavam-me pressentimentos horríveis sobre
suas rotas e vestígios, sobre os comboios, vamos dizer assim.
Em verdade, não se tratava de pressentimento, propriamente;
mais um impulso, quase um anseio de defrontar com algo suma-
mente grave e que pudesse pôr nódoas em sua existência e viesse
justificar minha silenciosa repugnância por ele.
Minha intenção não era, de modo algum, imiscuir-me em sua
vida íntima, ou expô-lo à condenação pública. Longe disto. Havia
o imperioso interesse de conhecer com quem estava lidando. Mi-
nhas reações, depois de erguer a ponta do véu, de deitar luz sobre
aquela sombra, seriam mudas e pacíficas, porém recheadas de uma
espécie de gozo íntimo e de intenso hedonismo, não posso negar.
Como, naquela época, não possuía meios para tal, tudo per-
maneceu tão só como um propósito. Porém, a ideia me vinha com
tal dose de insistência – quase uma obsessão –, que era impossível
desfazer-me dela, por inteiro. Portanto, o plano não pôde receber
nenhuma forma. Não cheguei a dar passos concretos nessa dire-
ção. A partir dos anos noventa, Deus lá sabe por qual razão, passei
a incluir também o Silvério em minhas diligências, e a enxergá-los
como mistura da mesma coisa, um ajuntamento de matérias im-
prestáveis, e a colá-los um ao lado do outro.
Esse meu plano se sentiu ainda mais impulsionado, por pa-
radoxal que possa parecer, por inexplicável apego que Laurindo
demonstrava por minha pessoa: foram inúmeras as vezes que se
acercava de mim e procurava dar conta do que se passava com a
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Tomar conhecimento de tais fatos foi, para mim, dos mais bru-
tais e horrendos assombros de minha vida: estava diante da gélida e
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Maffeo Barbirini
Urbano VIII, eleito Papa em 1623. Sob seu pontificado instaurou-
se o processo contra Galileu, que havia demonstrado que, ao con-
trário do que se acreditava, a Terra não era o centro do universo,
mas sim girava ao redor do Sol. Intimado pelo Santo Ofício, Gali-
leu teve de voltar atrás em suas afirmações, para evitar condenação
maior (suas ideias foram declaradas, na época, mais perigosas do
que as de Lutero e Calvino).
Durante o seu papado, fortaleceu a Inquisição na luta contra
os “heréticos” e, deixando-se levar pelo nepotismo, cumulou sua
família de favores e riquezas, chegando a nomear vários sobrinhos
como cardeais. Morreu em 1644.
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Olhos de feitiço
... enchi-me de súbito entusiasmo, quando, por engano, acreditei
tê-la visto em meio à pequena multidão das ruas. São fenôme-
nos que não se explicam, ilusões que não se compreendem: uma
jovenzinha que, em realidade, muito pouco lembrava Cristine, a
não ser por ligeira semelhança no tom e ondulado dos cabelos, na
estatura, ou por um ou outro traço indistinto, sabe-se lá onde, deu
súbita claridade em minha retina. Tinha um rosto triste e cansado,
andar pensativo.
De rotina, reparo nos traços das criaturas com as quais cruzo
nos lugares públicos, sejam homens ou mulheres. Como se sabe,
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Os labirintos
1 de abril de 1964 – João Goulart não é mais pre-
sidente do Brasil. A guarnição do Exército em Juiz
de Fora (MG), sob o comando dos generais Olímpio
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8 de outubro de 1967
– Morre Ernesto Che Guevara.
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Esaú e Jacó
“... o tempo é um tecido invisível, em que se pode bordar tudo...
Também se pode bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais
sutil obra deste mundo, e acaso do outro.”
Eros II
Permaneci estirado na cama, levemente entorpecido, coração in-
vernado, os sentidos adejando. Adivinhando seu gesto de ajeitar,
descuidada, a lingerie, o vestido, os cabelos. Meus ouvidos pal-
milhando os sons que ela ia construindo, o rangido da porta, a
descarga do vaso sanitário, a torneira do lavatório, a porta do ar-
marinho do banheiro (o que procurava lá dentro? Talvez indícios
da existência de outra pessoa, uma segunda escova de dentes, por
exemplo, um objeto feminino qualquer, quem sabe?!).
Tecia na mente seus trejeitos e evoluções, os quais buscava ade-
rir ao meu espírito, a fim de que nunca mais se desfizessem: aquela
manha de cerrar ligeiramente as pálpebras, um meio termo entre
o sensual e o atilado, as narinas dilatadas, buscando ar, olhos que,
inconstantes, tratavam de saltar pelos meus, madeixas dos cabelos
em revolução, serpentário furioso despencando pela testa porejada
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Enrodilhava o penteado atrás, na cabeça, pregador de cabelos
na boca, escultura de Jan Zach encerrada sob meu teto, quando
passei em direção à cozinha.
Com efeito, nada tinha com o que me ocupar naquela parte
da casa; ia acionado por impulsos que não tinham alicerce, in-
tuitivamente arrastado, a mente ameaçando gritar pelo desatino,
mas algo superior a vinha silenciar. Sua visão, enquadrada no vão
da porta, como que me interceptando, retendo meus passos, um
tanto quanto retraída, contudo receptiva e amistosa, sorriso meigo
e insano, olhos fartos.
Ficamos estancados um frente ao outro, eu, no corredor, ela, no
banheiro. Houve um instante em que ameaçou se deflagrar em mim
a disposição de apertá-la de novo, de constringir seu corpo, mas
algo me reteve: uma fadiga, uma displicência.
Ela se franqueava sem reserva, se ressumbrava, como se pre-
meditasse cada dos seus pequenos gestos. Prendia o pregador de
cabelos no coque, esgrimindo na mão o batom, sustentando a mi-
rada oblíqua e libertina sobre mim. Um ar de mistério. Pouco de-
pois, acercou-se, passo por passo e, imperturbável, tomou o meu
rosto com as mãos; suave fragrância nova em seus cabelos, aroma
indefinido, contudo agradabilíssimo... Ela aninhada em meu cor-
po, meu queixo sobre o topo de sua cabeça, a força de seus braços
me envolvendo. Cristine se aconchegava.
Isso durou bem mais do que seria esperado. Aí me despren-
deu, em definitivo, exibindo outro sorriso nos seus lábios, este
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Olhos de turmalina
Ela tão perturbadoramente insensível e glacial, pétrea e impossível,
enquanto eu, num estupor das adegas, jamais acertava como me
portar, jamais tinha o poder sobre a melhor atitude a ser tomada;
tão estranha e incompreensível, ela me parecia. Implorava por adi-
vinhar seus cálculos, seus desejos e até suas cismas, para abranger o
que se passava dentro daquela cabecinha, mas em vão. Nunca con-
seguia me preparar, ter plena conta de mim, precaver-me de pôr pés
em ramos verdes de espinhos. Muda, totalmente muda, por vezes,
pálpebras ermas no chão. Um suspiro. E os mais vastos segredos.
Quem era ela? Afigurava vivenciar um transe perlongado, as
mãos inertes por entre as coxas, estremecendo, em circunstâncias
acidentais, como se imprevisíveis arrepios de frio lhe percorres-
sem o corpo.
Confrontar de novo estes lençóis é restaurar mais uma vez o
torpor, é sobrepairar nesta escuridão infinda e que parece ter peso.
Procuro entreter-me com o que vem lá de fora, com os ruídos e bu-
lícios; contudo, algo sempre me traz de volta. Digo que minha têm-
pera se desfigurava e a realidade aparentava até assustadora. Ainda
não conhecia as verdadeiras ausências, as inexistências definitivas,
aquelas para as quais não existem saídas e se delineiam quase como
inaudita realidade. Hoje sei delas, claro, é trilha batida, mas, àquela
altura, não podia nem mesmo suspeitar de sua existência; a vida
acabou me mostrando, sem que o esperasse, o destino abriu esta
porta. E tudo é tão extraordinário e tão desmedido que chego a
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Sombras chinesas
... em particular, de quando me intrometi pela sala de D. Ermelin-
da – havia ido fazer uma ligação telefônica, lá existe uma extensão
do aparelho, que ficava no pavimento de baixo. Como a tal quase
nunca se ausentava de lá, durante os recreios, amarrada na cadeira
para marcar território, aquele é um ambiente em que raras vezes,
mas muito raras mesmo, frequentei.
Pois bem! Lá estavam ela e outra senhora, que jamais havia
visto, e que, antecipo, nunca mais tornei a encontrar. Estranhei,
logo de cara, a maneira tão desfavorável e até mesmo hostil com
que deram por mim. Não podia, nem de longe, suspeitar o que
teria feito que as desagradasse tanto. Não sei do que tratavam, mas
a reação delas me pareceu ter pouco cabimento: interromperam
instantaneamente a conversa, no exato instante em que pus os pés
na sala. E sem se moverem, uma diante da outra como postes,
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Marquises
Houve um período em que cogitei compor obra ficcional com
estes meus escritos, dar-lhes cunho literário. Foram muitas as oca-
siões em que tive em mente o projeto. Bastaria, para tanto, que
usasse de pseudônimo, que alterasse substancialmente as locações
e camuflasse cenas de fácil reconhecimento dentro de outras que
a fantasia me permitisse criar. Assim, ficção e realidade, memória
e imaginação, se entremeariam, se confundiriam, num espaço em
que eu caminharia às soltas, livre de correntes e grilhões.
Sob o formato de diário, eles – os escritos – me parecem esté-
reis e sem proveito, exceto, claro, pelo fato de servirem de fornada
para minhas abstrações e alumbramentos; efetivamente, o alcance,
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A rainha Margot
... no sonho, uma voz lá no fundo prevenia-me de que se tratava de
Cristine, de que estava diante dela, apesar das expressões fisionô-
micas de minha personagem onírica não coincidirem propriamente
com as dela. Mesmo assim, ficava aquela definição, aquela sensação
vaga que se tem diante das vaporosas fantasias das alucinações. Veio
absorvida do mais encantador e misterioso reconhecimento com
que normalmente costumam se vestir os figurantes de nossas uto-
pias e criações; as vadiagens da mente adormentada e entorpecida.
Nos instantes seguintes, entretanto, passei a tomar consciência
de que me enganara: não era verdadeiramente Cris, mas outra pes-
soa, a qual, após um quadro de confusa indefinição, identifiquei
como Lívia (ou Margot). Uma Lívia inventada se consubstanciava,
se encarnava, e passava a viver de forma incorpórea e desconheci-
da, o suficiente, porém, para perpetuar em mim a mais extraordi-
nária e nevoenta sensação de frescor e contentamento.
Quando amanheceu, sentia-me efusivamente maravilhado por
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Álbum de família
Penso que já é hora de adiantar algumas informações acerca de mi-
nha família. Minha mãe, Helena de Avelar Campos, às sextas-feiras
lavava roupas. Nos sábados, ainda bem cedinho, juntava tudo e pas-
sava peça por peça – isso se não fosse tempo de chuva –, o ferro
elétrico ligado a um fio de luz mal encapado, que descia do forro,
bem no prumo da parede da copa, e que, mais de uma vez entrou
em curto-circuito e nos deixou sem energia elétrica. Esta casa
um dia vai pegar fogo, ela acoimava, com tom de voz de quem
procurava atirar a culpa no marido. Meus sábados, portanto, raia-
vam com aquele tuc-tuc do ferro de passar de encontro ao tampo
da mesa, abafado pelas cobertas sobrepostas, ao comprido, que
acolchoavam as mudas de roupa, as roupas de cama... Lá pelas
cinco e meia, seis horas, mamãe ligava baixinho o rádio “Bom dia,
Brasil / Bom dia, irmão” numa emissora de São Paulo, “Bom dia,
meu povo / Desta grande nação”, cujo nome não me recordo, “Para
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O vento e as marés
Já disse que não me recordo das circunstâncias todas que propi-
ciaram o advento de Cristine em minha vida. Ou penso ter dito.
Eu praticamente não me dava conta do que ia acontecendo, não
atinava com o que ia se passando, do quanto se expandia, dentro
de mim, sua semente, que se sublimava, de pouco a pouco, que se
enchia feito as marés silenciosas e sorrateiras sobre os continen-
tes, sem que se dê conta.
Penso que seu desembarque definitivo em minha consciência,
apesar do quão curioso possa parecer, tenha se dado quando do
meu encontro com o professor Sílvio, naquela vez descendo o
morro do colégio. Esse foi uma espécie de divisor de águas, pois,
apesar das minhas reações nada confortáveis na ocasião, o fato é
que, ao final de duas ou três semanas, ao se arrefecer a tempesta-
de, passei a pensar cada vez mais e mais nela.
Estar a dois passos de distância de criatura tão encantadora,
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Sílfides
Que roupa está usando agora?
Um blusão longo, quase um vestido.
Só o blusão?
A-hã...
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***
E se ela nos descobrisse?
Ela quem?
A sua mãe.
Não vai saber.
Mas se descobrir?, insisti.
Pequena pausa, em que parecia refletir, do outro lado:
Não me importaria, num tom vacilante de quem não sabia o
que contra-argumentar.
Não!, quase gritei. Ela não pode saber de nada.
Por quê? Qual o problema?
Não pode. Isso nunca. Nunca.
E por qual razão?
Veja bem, Cristine – tentando suavizar um pouco a voz –:
há coisas tão óbvias que nem necessitam
ser explicadas.
Nunca mesmo?, numa ingenuidade fingida.
Entre as pausas, eu captava ruídos de casa habitada, vozes in-
decifráveis, cadeiras sendo arrastadas, portas batendo, criança aos
berros, um carro dando partida.
Pelo menos por agora, procurei reparar.
E quando então?
Não sei dizer.
Hein?
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***
Você está apaixonado por mim, não está, Vicente?
Ela me encarava com fixidez incomum, o rosto meio oblíquo,
semblante com aparência de aflito, como se corresse algum perigo
ou como se até mesmo sua sobrevivência dependesse da minha
resposta. Recordo-me de vários episódios parecidos, vários, em
que, por mais estranho que possa parecer, me sentia acuado diante
de menina tão mais nova que eu, abandonando o terreno de luta.
Acho que ela jamais se deu conta desse meu estado de ânimo, pois
se tratava de reação instintiva sua me acuar, que fazia parte do seu
temperamento e que, portanto, lhe devia passar invisível.
Preferi o silêncio para melhor dissimular minhas incertezas e
tornar ambíguo meu pensamento. Meus personagens prediletos,
meus autores preferidos, não me vieram em socorro, minha desa-
balada memória me deixou em falta. Era, digamos, urgente trazer
alguns embaraços e desencontros às ideias dela, ao seu espírito,
mas e cadê?
***
Posso te pedir uma coisa?
Eu a fitava sem compreender, a cabeça em vertiginosa busca
do que se passava dentro dela (sempre tive verdadeira obsessão
para conhecer seu pensamento), mas nada conseguia alcançar.
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***
... incomum luminosidade em seu semblante. Ela verdadei-
ramente relumbrava. Os cabelos escovados, pontas esvoaçantes
e que compunham um penteado volumoso e leve. Calça vinho-
escuro e blusa branca (nunca a havia visto com aquela roupa). Eu
procurava decifrá-la, aprumada por debaixo das vestes. Depois re-
tornei para os cabelos, que adquiriram esplendoroso tom dourado
e leve. Redolente fragrância desprendia de seu corpo.
Perguntei-lhe o nome do perfume, mas se limitou a sorrir bre-
jeiramente, a inclinar de leve o pescoço e ficar enrolando uma me-
cha dos cabelos, numa atitude de quem se sabia examinada, e con-
sentia em permanecer sob o foco de minha vista. Estava magnífica!
Naturalmente, eu me deliciava com aquela contemplação,
aquela figura que mal se movia, as pernas juntas e cheias dentro
da calça, o desenho dos quadris, a cintura que se camuflava sob
a blusa justa, os ombros... Confortavelmente vestida num traje
de dia frio, deliciosamente abrigada – o clima frio, a meus olhos,
confere à mulher impressão de afago, de conforto.
Me diga uma coisa: sou bonita? Você me acha bonita?, in-
quiriu, com doçura insinuante e ao mesmo tempo juvenil.
Você sabe que é muito bonita, respondi, de um modo que
não ocultava a minha timidez.
Então tomou minha mão e a colocou sobre seu coração, para
deixar que percebesse o quão acelerado batia. Feito isso, foi vi-
rando-se compassadamente, imperturbavelmente, de forma que
parecia ter os gestos estudados. Leve sorriso nos lábios, olhos fe-
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Como é mais que óbvio, muito do que acabo de narrar não era
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Afrodite
Ofegante, cabelos derramados sobre o travesseiro, como se assim o
fora disposto por cuidadosas mãos, enquanto os últimos espasmos
nos músculos da face se amainavam. Placidamente, abria as pálpe-
bras a intervalos, pupilas cristalinas, me sorrindo terna e meigamen-
te – era quando deixava escapar a aparência de fragilidade, que se di-
ria natural e involuntária. Toda a pele porejada de suor refrigerado e
apetecível, que se fundia numa mescla indistinta de odores; alquimia
de odores (por vezes, deixava a crença de que, de fato, adormecera).
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As pontas aceradas
Cristine estava ficando a cada dia mais bonita: o passo bambole-
ante, as mãos frescas (que estiveram estiradas diante de mim, so-
bre a mesa, enquanto me aliciava, empoadas de giz), os dedinhos
curtos e torneados, um anel fino com pedrinha carmim, o farol
de seus olhos varrendo o meu peito. Lembro-me dela debruçada
sobre a mesa da sala de aula, queixo na concha da mão, pele cor
de canela, rosto de olhos vivos querendo fisgar minhas aflições.
O tom de sua voz, proferida entre dentes, em tudo suplicante e
amável, traduzia, para mim, quase um rapto.
Tudo isso, aliado a uma preocupação mórbida de sermos
surpreendidos, fez com que eu aceitasse o convite, apesar de o
episódio, em si, ser considerado meio contranatural para o meu
temperamento e feitio, e me trazer até mesmo certo desconcerto.
Mas aconteceu de, num passe de mágica, me sentir excitado por
intensa e secreta sensação de subversão e que me era extremamen-
te agradável. Existiam ali matizes de algo diabólico e esfuziante.
Ela me esperaria lá, me soprou, quase ao meu ouvido, enquanto
me espetava o olhar.
O restante do dia passei-o inteiramente disperso e alheado.
Golpeavam-me, ora uns, ora outros, pensamentos de que cometia
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Na manhã seguinte, despertei com um sonho terrível, no qual,
extremamente aflito, tentava pregar – com cola branca! – uma
cortina de pano num vidro de basculante, a fim de impedir que
sombras errantes esquadrinhassem o interior do meu quarto.
O trampista
Passei, noutras oportunidades, por situações parecidíssimas com
a que acabo de descrever. De umas poucas ainda me recordo, po-
rém, a maioria se perdeu naquilo que antes chamei de seletividade
da mente. É incrível como a gente se lembra de certas coisas, e
não de outras, apesar das intensas reações que provocaram, no
momento em que aconteciam. São coisas de Deus!
Numa delas, por exemplo, Laurindo se acercou de mim, na
mesa de café e, sem nenhum preâmbulo, deu conta de que ha-
via visto Cristine, numa atitude que descreveu como “indecente”,
com um rapaz:
Sabe, Vicente; ontem vi Cristine... Estava com uma
pessoa que não conheço...
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Os tambores da guerra
Aí chegou setembro. Na véspera do feriado do dia sete – que caía
numa segunda-feira – ou seja, no domingo, seis, ao contrário do
que habitualmente fazia, entediado e insone, resolvi tomar ares,
permanecendo até bem tarde fora de casa. O que aconteceu foi
que, nas minhas andanças, passei ali pelo largo da Estação, que se
encontrava quase inteiramente lotado, apesar do adiantado da hora
- era época das campanhas políticas, dos comícios, quero dizer.
De cima do palanque, um figurão, que se apresentava como
candidato, um hipócrita de marca maior, pouco mais de metro
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Gênesis III
3, 15 – “Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a
dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”
O olhar vesgo
Vi-me obrigado a interromper por uns dias estes meus escritos,
pois que, enquanto reconstruía os derradeiros fatos, experimenta-
va um desgosto que, diria, era quase tão intenso quanto o daquela
noite, com todos os seus elementos e estados de espírito; como
se os vivenciasse novamente, com as cores nítidas da realidade. O
que quero dizer é que o final foi esse: não disse nada, não fiz nada
diante da perfídia.
Curiosamente, passei, a partir daquela noite, a não conseguir
mais reconstituir as feições de Cristine, por mais que me esfor-
çasse. Elas – as feições, quero dizer – me escapavam inteiramente.
Quando punha meu cérebro na operação, usando todas as forças
possíveis, suas expressões fisionômicas vinham inexatas e fugidias,
eivadas de componentes ilusórios e falsos: às vezes, só o contorno
incerto de uma cabeleira vasta e ondulada. Nenhum outro traço
parecia resistir. Meus neurônios, ou sei lá o que fosse, instintiva-
mente tratavam de apagar sua imagem. Tal estranho fenômeno,
aliás, repetiu-se muitas e muitas outras vezes. De qualquer outro
ser humano que desejasse, seria capaz de compor as suas perfeitas
configurações. Testava com uma e outra pessoa e a cabeça funcio-
nava na medida. Menos as dela. Do velhote, conseguia fazer certo
desenho, apesar de somente lhe haver dedicado ligeira olhadela: um
pouco magro, cerca de metro e setenta de altura, nenhum atrativo
físico especial e cabeleira quase inteiramente encanecida, aparada
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Hipólito
FEDRA:
- Que será isso que todos chamam de amor?
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FEDRA:
- Pois eu conheço dele apenas o amargor.
As vazantes
Cristine desapareceu da escola. Não deu sinais de vida, não telefo-
nou e nem ao menos me mandou de volta dois livros – se não me
engano, Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke, e Estrela da Vida Inteira,
de Manuel Bandeira – que lhe emprestara, num momento em que
ela, tomada de alento, manifestara o desejo de “escrever poesias”
(tinha uma maneira ingênua de pronunciar a palavra “poesia”).
A propósito, em quase todas as vezes que desertava de minha
companhia, coincidência ou não, retinha consigo algum objeto
meu, um livro, um CD, que se transformavam, em suas mãos, em
apólices ou promissórias, com as quais dava a impressão, lá com
a sua desvairada cabecinha, de querer obter “resgate” posterior.
Tal estratagema, que se repetiu vezes sem conta, acabou por per-
der a eficácia; passei a compreender sua tática e a me portar com
impassibilidade. Quer dizer, eu deixava em suspensão, que tudo se
ajeitaria mais adiante.
Num certo sentido – e retorno àqueles dias de setembro –, pos-
so afirmar, sem sombra de dúvidas, que, nem passado um mês, não
mais percebia em mim grandes sinais de perturbação. Ao contrá-
rio, me sentia até surpreendentemente apaziguado, imperturbável, o
que se constituiu numa enorme surpresa. Cristine como que se des-
fazia em meu interior, se despetalava, perdia as cores e o viço, sem
sofrimentos salientes, sem necessidade de recorrer a forças maiores.
Isso é verdade. Eu acordava, escovava dentes, coava café, trocava de
roupa, dava minhas aulinhas, coisas de todo dia, mas não me ocupa-
va em alimentar minha parte idiossincrásica, vamos dizer assim. Em
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Proust
Valentim Louis George Eugène Marcel Proust (1871-1922) nas-
ceu em Paris. Descendente da alta burguesia, desde a infância so-
freu de sérios problemas de saúde, o que o fez viver praticamente
isolado do mundo, num quarto fechado. Sua obra mais significati-
va, Em Busca do Tempo Perdido, é considerada das mais importantes
de todos os tempos e se compõe de quatro romances: No Caminho
de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes
e Sodoma e Gomorra.
A voragem
“O tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido
de lhes dar outro aspecto”. Esse trecho copiei do conselheiro Aires,
em Esaú e Jacó, e imagino que caia feito luva, nesta hora. O tempo,
digo eu, vai mudando os juízos definitivos em dilemas, o absurdo
em cabível, o infalível em rasuras, e por aí afora.
Não tive, em minha vida, muitas oportunidades de sonhar com
Cristine. Em noites sem fim, deitado enquanto o sono não vinha,
buscava ardentemente fixar nela o pensamento, gravar seus traços
e linhas, repetir situações da vida diária, acreditando que, em assim
agindo, fosse me aparecer em sonho. Decididamente, estou persu-
adido de que, nos estúrdios fenômenos psíquicos, o espírito cuida
simplesmente de soldar fragmentos aleatórios da memória uns nos
outros, para depois exibi-los para nosso interior, para o alumbra-
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Sei que esta é matéria pueril, própria de quem ainda tem o ros-
to imberbe e coberto de espinhas; que estou caminhando sobre o
temerário fio da pieguice. Sei também que não é muito ‘literária’,
digamos assim, na concepção estética fin-de-siècle, muito em voga
em determinadas confrarias. E, principalmente, que corro riscos
de estar despertando a ira dos carrancudos e biliosos de pronti-
dão. Mas o que fazer? Jamais escrevo pensando em ser humano
algum, nunca levo em consideração as corriolas e as matilhas, não
me miro no séquito dos presunçosos e não tenho compromissos
outros além dos com a minha honestidade. Tudo o que achamos
certo assim deve ser firmado, a menos que venha a causar pade-
cimentos e mazelas em outros mortais. Além do mais, não com-
preendo por qual razão se deva temer tratar qualquer tema que
diga respeito aos dramas humanos. A gente não muda tanto com
o amadurecimento, não acredito que a experiência seja capaz de
trazer giros demais com a vida, de modo que, muito do que nos
ocorre na mocidade não está impedido de retornar, anos mais
tarde, como se a idade nos tirasse certos direitos.
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O poço
Certa feita, ia um andarilho por estrada desértica, quando defron-
tou com um seixo, perfeitamente arredondado e liso, o qual, pelo
seu brilho e polidez, de pronto lhe atraiu a atenção.
O passante, ao fim de uns momentinhos de muda contempla-
ção, agachou-se e o apanhou, seguindo depois em sua peregrina-
ção, entretendo-se de arremessá-lo da mão direita para a esquerda,
e vice-versa; recreava-se com seu peso, com aquele pendular, como
alguém com uma laranja esperando ser descascada.
Vez por outra, sustava a marcha e expunha a pedra diante dos
seus olhos, examinando em pormenores sua superfície luzidia e
amarronzada, salpicada de diminutos cristaizinhos, mil pequeninos
detalhes de cor, forma, relevo, enquanto especulava, como um fraco
em geologia, a natureza daquela rocha, as substâncias que constitui-
riam cada fragmento da rocha. Fosse o que fosse, tinha diante de si
algo admirável e extraordinário.
Foi pegando estrada. Em dado momento, no entanto, tomado
de ligeiro fastio, involutariamente lançou a pedra dentro de uma
cisterna, à margem da estrada. Na fração de segundo em que o sei-
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Tânatos
Rajada de vento por entre os troncos das sibipirunas, dos fícus
enormes, dos prédios que circundam a praça, trocando de lugar
as folhas, que, durante a madrugada, os varredores cuidariam de ir
acumulando nas sarjetas, os troncos dos fícus que, na minha me-
mória, resistem imutáveis, as mesmas frondes, o mesmo diâmetro
dos caules, troncos franzidos e encarquilhados, cobertos de mus-
gos e heras e barbas-de-velho, afigurando-se como se em todo o
tempo estiveram naquele lugar, desde que o mundo é mundo, e que
seu plantio não tenha sido obra da civilização, oitenta, cem anos
atrás, os homens só vieram mais tarde e circundaram com bancos
as suas raízes... Os oitis, ninhos para a passarada quando cai a noite,
pardais, tico-ticos, oitis que acantoam e camuflam as cigarras, em
ignorada estação do ano, oitis de frutinhos miúdos que enlameiam
os capôs dos carros e o piso de pedras portuguesas, deixando neles
manchas horríveis, parecidas com excrementos dos pássaros...
Pouco mais de meio-dia, o comércio fechando as portas, e eu,
coisa extraordinária, sentado à toa, ligeiramente desconcertado,
sob o coreto – mais para desafogar o espírito. Há coisas tão natu-
rais na vida – como o simples fato de se tomar assento num banco
de praça – que não deveriam merecer ponderações maiores, mas
que se tornam estranhas e podem parecer um disparate para quem
não está acostumado com elas, fazendo-nos sentir ridículos.
Pois fui pôr a calva à mostra justamente sentando-me sobre o
parapeito do coreto, cuja inclinação extrema parece querer desa-
fiar a lei da gravidade – imagino o quanto tenha sido difícil para
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Cartamina
Depois de meia hora, ou até menos – pois não me vejo com paci-
ência e sociabilidade suficientes para deixar-me ver em lugares pú-
blicos –, saí andando, sem rumo certo, sem pensar na vida, parando
aqui e ali, diante das vitrines das lojas, apreciando o movimento nos
cafés, os jornais do dia dependurados na banca. Subi e desci o cal-
çadão um sem-número de vezes, contornei a praça, entrei numa rua
e saí na outra, o cérebro à toa, enquanto o centro da cidade tomava
as feições de fim de semana. O que mais ardentemente desejava era
não topar com nenhum conhecido, alguém da escola ou vizinho,
por exemplo; não me via com ânimo para deter-me em conversas
estéreis com quem quer que fosse, nada, preferia falar a um surdo.
Enquanto tomava o rumo de casa, meus caminhos mentais
colocaram em relevo as figuras das duas irmãs solteironas, Esme-
raldina e Aninha, moradoras da casa ao lado da minha, ambas im-
pressionantemente altas e magras. A última cobrava ser chamada
sempre pelo diminutivo, e a outra jamais permitia que lhe tratas-
sem por senhora, cortando, num golpe, todas as ocasiões em que
alguém, por deferência, lhe dirigia este tratamento – “senhora” –,
asseverando, num tom imperativo e lacônico, apesar de polido,
o seu estado civil, mesmo que tivesse que repisar isso duzentas
vezes na mesma conversa. A tal de Esmeraldina, “Dina”, a mais
velha, é míope – usa óculos fundo de garrafa horrorosos –, acam-
betada e tem cabelos hirtos e grudados, por todos os séculos pen-
teados para trás como se fosse um elmo enterrado sobre o couro
cabeludo, penso que a poder de doses cavalares de laquê, pois não
há outra maneira daquilo se manter com tão afetada armação.
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A noite da cidade
Alta madrugada e Cristine, uma verdadeira esponja em copos de
cuba libre, debruçada no peitoril da ponte. Uma coisa a gente
tem em comum, com voz engrolada. Uma coisa, pelo menos,
repetiu, depois de pequena pausa. Fiquei mirando-a, aguardan-
do que desse seguimento ao seu raciocínio. Acontecia, porém, de
muitas vezes abordar um assunto e não dar sequência a ele, não
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Os mastins
No meio daquela manhã de domingo, sol escaldante, despertei de
um sonho estranho: eu me encontrava em um ambiente magica-
mente preenchido por tons vivíssimos e muito agradáveis, toma-
do pela mais extasiante sensação (é curioso como, nos sonhos, as
cores e as emoções parecem sofrer uma espécie de amplificação,
se impregnarem da mais intensa impressionabilidade).
No espaço completamente despovoado do gênero humano, de-
zenas e dezenas de cãezinhos dóceis e ágeis se remexiam, serenos e
afáveis, por entre minhas pernas. Filhotes de mastins, filas brasilei-
ros e outras raças como que buscavam salvaguarda sob meus impo-
tentes braços; um poodlezinho, do mais puro branco, destacado da
matilha, descia, cauteloso, de uma colina próxima.
Catastroficamente, compreendia que, por alguma razão, de-
veria pôr a salvo o maior número possível dos bichinhos. Os que
ficassem para trás iriam morrer, e eu sofria diante de minha im-
potência, em especial quando me vinha a figura do poodle, sua
graciosidade e fragilidade.
Terrivelmente atormentado, principiei a me arredar dali, a me
arredar, de costas, lenta e pesadamente, tão pesadamente quanto
os passos carregados e extenuantes me permitiam.
O extraordinário é que sentimentos tão díspares e mesmo con-
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O cisne e o touro
Na semana que se seguiu ao baile e à estada sobre a ponte, Cristine
agiu com a mais inesperada e perturbadora frieza. No início, e para
meu desespero, desapareceu da escola, deixando-me com a dispa-
ratada suspeita de que havia abandonado a cidade. Quarta-feira era
o dia da semana em que eu tinha folga. Era razoável supor que o
reservasse para sua reaparição, eu inferia que seu sumiço fizesse
parte de um estratagema qualquer, desconfiava de alguma esperte-
za da parte de Cristine, alguma maquinação, pois reiteradamente se
comportava de forma que se poderia considerar, no mínimo, como
surpreendente. Acontecia de, até mesmo nos episódios mais sim-
ples e cotidianos, ela reagir de maneira mais inesperada, contrária
mesmo ao que o bom senso fazia crer, de modo que eu não sabia
nunca de quais atos de afeição ou perversidade era capaz.
Quer dizer, eu acreditava e não acreditava que sua inteligência
pudesse ser capaz de traçar táticas de dominação, vamos chamar
assim, e que ela procurasse, com seu gênio, ser a figura proemi-
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Centelhas
São três da manhã e acabo de despertar sobressaltado por uma cena
mental: Cristine se materializava, rutilante qual um clarão, à margem
de uma estrada asfaltada, erma e que se perdia no infinito. Calça cor
dos trigais, blusa negra, na qual existia, na altura de um dos seios,
uma estampa grande e dourada. Movimentos arrastados, balanço
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Os cata-ventos
Minha trajetória errática por estas páginas arrisca-se agora a de-
sandar por completo. É a forte sensação que me fica. Durante as
noites, ou melhor, pelas madrugadas, costumo despertar, vez ou
outra, com ideias “brilhantes”, que julgo – naquela hora – pro-
veitosas para meus escritos. São expressões, flashes, fragmentos
de sonhos que meu subconsciente cria; aí busco me fixar nelas,
imprimi-las na memória, para que meu cérebro não as perca, ou
até mesmo anotá-las em folhas de papel, que me ficam à mão,
sobre a escrivaninha, para, no dia seguinte, ter de onde beber água.
É fato que muitas de tais anotações tiveram serventia, e estão
entremeadas em trechos que a imaginação criou, mas ocorre que,
nos últimos tempos, tenho sido dominado por mórbida dormi-
deira, de pouco préstimo – pois não me descansa o corpo –, de
modo que, mal acomodado na cama, vejo-me fundeado pelo mais
mórbido e estirado dos sonos. Portanto, até mesmo dessa fonte
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A cigana de Merimée
“- Venha comigo – eu disse a ela.
- Está bem! Vamos!
Fui buscar meu cavalo, e, com ela na garupa, marchamos todo o
resto da noite sem dizer uma única palavra. Paramos ao clarear do
dia num albergue isolado, não longe de uma pequena capela. Então
eu disse a Carmen:
- Escute, quero esquecer tudo. Não lhe falarei de nada; mas jure-me
uma coisa: é que vai acompanhar-me à América, e que lá ficará sossegada.
- Não – disse ela, zangada -, não quero ir para a América. Sinto-
me bem aqui.
- É porque está perto de Lucas: mas pense bem, se ele escapar, não
será para morrer de velho. De resto, para que meter-me com ele? Estou
cansado de matar todos os teus amantes; é você que eu matarei.”
O diário secreto
Por onde recomeçar, por onde recuperar a memória de Cristi-
ne, agora já indelevelmente manchada por amargas lembranças,
por onde principiar a rota? Eis a tarefa mais complexa, o quebra-
cabeça maior: detectar o exato ponto de retomar o fio da meada,
de voltar atrás.
Desorienta-me a indagação que algumas vezes lhe formulava e
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As superfícies e as depressões
É impossível imaginar condição que ultimamente tenha me trazido
mais absorvimento e, ao mesmo tempo, tanta dedicação e vigilân-
cia, que a forma de rematar esta narrativa. Minha cabeça é uma
gangorra, que reluta entre deter-me judiciosamente em todos os fa-
tos, para assim traçar um perfil fidedigno de Cristine, com os quais
possa convencer ao mundo da minha inocência, ou expor o que
resta em duas ou três penadas e me desincumbir de vez do fardo.
Na primeira hipótese, arrisco-me a produzir reles pastiche, a
repetir, mediocremente, um número quase infinito de prosado-
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A enfermidade amorosa
“Enquanto durou a enfermidade amorosa”; estou tornando a inscul-
pir a frase de Proust. Quanto resiste a enfermidade amorosa? Ela
pode ser regularmente delimitada em quinzenas ou meses, como
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Simulacros
Afinal chegou a época em que passei a receber ligações altas ho-
ras da madrugada. Um ou dois toques, somente, e desligavam em
seguida, quando adivinhavam que já me encontrava sacudido do
sono. Foi exatamente em decorrência disso que decidi instalar em
minha casa desses aparelhos detectores de chamadas telefônicas.
E Cristine foi das únicas a ter acesso à informação. Fiz-lhe men-
ção das ligações e da compra do referido invento, mostrei-lhe in-
clusive o seu funcionamento, recordo-me muito bem, numa tarde
chuvosa de um domingo em que não me encontrava muito dis-
posto, ainda não de todo refeito de forte gripe que me lançara na
cama por dois dias e que me fizera inclusive perder alguns quilos.
Ela apareceu por aqui, os olhos grandes e fulminantes me es-
crutando atrevidamente, deixando-me com a forte sensação de eu
haver cometido algum delito, ou existisse algo do que me arrepen-
der; como se buscasse em mim sinais de perfídia ou outra inquali-
ficável incorreção qualquer. Fiquei um tempão estudando minhas
mais recentes atitudes, na pressuposição de existir alguma falta gra-
ve de minha parte que lhe houvesse causado mágoa, buscando, nas
suas expressões fisionômicas, nos movimentos de suas sobrance-
lhas, no fulgurar de suas íris, o sentido do seu comportamento. O
que se passava dentro daquela cabecinha, nem Deus saberia.
Creio já haver dito antes que, de todos os seus defeitos morais, o
que mais dissabor me causava era o de que fazia uso da falsidade e da
dissimulação com exageradíssima frequência, mesmo para justificar
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O fio do novelo
Os que me seguiram até este ponto devem ter observado que estou
aprontando as páginas finais destas confidências (ou o melhor seria
considerá-las inconfidências?). Não resta muito para ser dito. Talvez
um punhado de pequenos testemunhos e impressões, a maioria deles
de pouquíssima substância, avalio.
No embate entre me deter em pormenores, previdente de agir
com o máximo de cuidado possível, ou lançar tudo de uma só vez
em cima da mesa e ir-me embora, tenho preferência pela segunda
condição, não só por economia de tempo e papel, mas também, e
principalmente, por preguiça e comedimento. Em algumas deze-
nas de linhas bem poderia dar remate à narrativa, encerrar minha
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Mulher ao piano
Dali por diante, e por infelicidade, o comportamento moral de
Cristine foi se deteriorando cada vez mais, perseguido bem de
perto por assustadora queda no seu rendimento escolar, o qual
praticamente caiu na poeira, não só em minha disciplina, mas, se-
gundo soube, em todas.
Ao mesmo tempo, assistiu-se ao que se poderia considerar
como um descaso para com seu próprio corpo, fazendo pouco de
seus dotes físicos: cabelos penteados com extremo desleixo, como
uma rotunda feita de algodão hidrófilo – logo eles, que exigiam
maior atenção –, lábios exageradamente pintados de batom ver-
melho vivo, que não lhe caíam bem, esmaltes berrantes e sombras
que deixavam suas pálpebras com aspecto funéreo e conjurante. De
resto, um agravamento nos seus traços de deterioração mental, se é
que posso assim considerar.
Numa tarde, Cristine, sabedora de que eu dava umas aulinhas
particulares, e enfiada num traje estranhíssimo, bateu à minha por-
ta. Estava totalmente desfigurada. Confesso que, completamente
estupefato, plantei-me no vão da entrada, com o propósito delibe-
rado de fechar-lhe a passagem; contudo, ela pareceu não perceber
minha intenção; esticou o pescoço e forçou um pouco, passando
entre meu corpo e o umbral. Tive ímpetos de exigir que se reti-
rasse e voltasse outra hora, o que passaria como o máximo da
indelicadeza. Mas me entalei por completo. Quando acabei de en-
costar a porta e girei para dentro, surpreendi-a, diante da estante,
enovelando uma mecha de cabelo, uma das mãos no quadril.
Os chamados do despertador: tiquetaque, tiquetaque... Dali a
pouco, ela se virou e passou a examinar as reproduções de pintu-
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Os divãs
Com o tempo, certas coisas começaram a ficar claras, como, por
exemplo, o fato de aparentemente todos – ou quase todos – terem
tomado ciência do que se passou entre nós dois. Não fiz caso, no
início, de sua imprudência ou, quem sabe, de sua necessidade de
se manter sob a luz dos holofotes. Nunca deitei real preocupação
nessa direção, confiando que ela, antes de tudo, também pactuasse
dos meus cuidados. Bem, acho que, em verdade, ela se expunha
cruamente, e me levava junto na correnteza.
Só para exemplificar o que digo, relato uma oportunidade em que
Cristine, no início da rampa, se recreava com um grupo de moças
e rapazes. O diretor, sem que o houvesse percebido, se aproximara
pelas minhas costas. Chegou, descansou a mão no meu ombro e pro-
feriu entre dentes: lá está a sua Cris. E se afastou em seguida, dono
do maior sorriso picante nos lábios.
Digo e repito que menosprezei sua capacidade inventiva (es-
tou me referindo a Cristine). Estava confiante de que seria desne-
cessário realçar a exigência de mantermos tudo em sigilo, acredi-
tava até que isso fosse óbvio demais para precisar adverti-la dos
riscos, mas minha desatenção acabou trazendo prejuízos. Tive de
pagar o meu preço, que não foi barato, nem caro, a depender do
ponto de observação. Teve seu custo, e Deus sabe o que padeci
nas mãos de certa raça que me rodeava. Também não digo que
tenha me saído caro, principalmente porque, se tivesse tido o dom
de conhecer de antemão o que me esperava, se pudesse adivinhar
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As fissuras
Gosto de pensar que ela sofria de desvios psicológicos, que não
lhe iam bem as faculdades mentais. É mais leve e menos traumá-
tico que acreditar em falhas de caráter. Não se pode imaginar o
número de vezes em que, mergulhado sob o silêncio dos lençóis,
debati comigo mesmo a questão. Em inúmeras oportunidades, a
insanidade e a alucinação, em suas verdadeiras cores, davam nos
olhos como o brilho dos cristais; noutras, no entanto, era levado
a crer que se tratava meramente de perfídia, venenosidade por
parte de Cristine, e que suas atitudes refletiam uma personalidade
e índole degradantes.
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No caminho de Cubas
Entrando em casa, arriei-me no sofá e deparei com um livro que
ali fora parar por razões que desconheço. Fui para o quarto, meio
flutuando, com ele debaixo do braço. Abri-o ao acaso e li a seguinte
passagem: “e disse consigo que a gente não conhece a própria desgraça,
e nunca se é tão feliz quanto se pensa”. Fechei-o momentaneamente
e li na capa (um dedo ficara marcando a página): No Caminho de
Swann. Marcel Proust. Em seguida, abri-o outra vez no mesmo
trecho. Mais adiante: “A gente não conhece a própria felicidade. Nunca
se é tão infeliz quanto se pensa”. Sentindo-me reconfortado, fechei
de novo o tomo, sem, porém, deixar de marcar a página com uma
tira de papel. Depois, fui deitar-me. Enquanto o sono não vinha –
quanto me custa revelar isto! –, pesava retidamente o mesmíssimo
plano de Brás Cubas: comprar-lhe um cordão de ouro.
A arte de amar
Durante grande parte do dia seguinte a ideia de comprar-lhe um
cordão cuidou de me ocupar o juízo, em alternância com outras
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O mouro
Desdêmona – Quem está aí? Otelo?
Otelo – Sim, Desdêmona.
Desdêmona – Quereis vir para a cama, meu senhor?
Otelo – Já rezastes hoje de noite, Desdêmona?
Desdêmona – Sim, meu senhor.
Otelo – Se vos recordais de algum crime que vos deixe irreconci-
liável ainda com o céu e com a graça divina, implorai logo o perdão.
Desdêmona – Ai, meu senhor, que estais querendo dizer
com isto?
Otelo – Vamos, fazei logo e sede breve! Enquanto isto, vou
andar um pouco. Não gostaria de matar vosso espírito sem que ele
estivesse preparado. Não... Que o céu não permita! Não gostaria
de matar vossa alma.
Desdêmona – Estais falando de matar?
Otelo – Sim, estou.
Close-up
Principiam a se apagar, de minha memória, os traços fisionômicos
de Cristine, se apartam em trevas, e abismos, e incredulidades, e
desrazões. Volta e meia, quando ocioso meu pensamento, e mo-
bilizo forças no sentido de reconstruir as particularidades de seu
rosto (urgência não requerida tempos atrás), elas relutam em não
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Horóscopo
Os nascidos neste signo, em virtude de sua simpatia pessoal,
terão vários casos amorosos em sua vida...
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