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Olhos vesgos

de Maquiavel

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Copyright C 2011 Fernando Cesário
Todos os direitos reservados
fernando.cesario@gmail.com

Coordenação editorial
Joaquim Antonio Pereira
Capa e projeto gráfico
Tadeu Costa
Pré-produção e impressão
Sermográfica - Rio de Janeiro
Revisão
Guilherme Salgado Rocha

Catalogação elaborada por


Wanda Lucia Schmidt – CRB-8-1922

C414 Cesário, Fernando


Olhos vesgos de Maquiavel./Fernando Cesário.
São Paulo: Intermeios; Cataguases (MG):
Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, 2011.
288 p.

ISBN: 978-85-64586-00-0

1. Literatura Brasileira. 2. Romance.


I. Título. II. Prefeitura Municipal de Cataguases.
III. Secretaria Municipal de Cultura e Turismo.
IV. Editora Intermeios - Casa de Artes e Livros.

CDU 869.0(81) CDD 890

Editora Intermeios
Casa de Artes e Livros
11 2338-8851 - 8163-0572
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05436-050 – São Paulo - SP de 09.06.2009 (Lei Ascânio Lopes – Cataguases - MG)

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Olhos vesgos
de Maquiavel
Fernando Cesário

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Para
Vanderlei Pequeno.

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“Que roupa você veste, que anéis?
Por quem você se troca?
Que bicho feroz são seus cabelos
Que à noite você solta?
De que é que você brinca?
Que horas você volta?”

Chico Buarque, Você, você

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Cigana de olhar oblíquo e dissimulado
A luz da saleta incidindo sobre seu corpo praticamente imóvel no
beco, enquadrando-a sob o fundo escuro do muro, blusa preta, de
veludo fino, saia plissada, creme. Sorria ingênua, olhos que não se
despregavam de mim, deitados pouco abaixo da linha dos meus.
Esperava calada.
Tomado por indecifrável nevasca interna ante aquela aparição,
após curto intervalo de hesitação, depreendi que deveria acabar de
abrir a bandeira da porta e, enfim, convidá-la para entrar.
Ela pareceu refletir um pouco, os olhos suspensos naquele
mesmo plano; contudo, logo depois galgou o segundo dos degraus
(pois já se encontrava, desde o início da cena, no primeiro deles)
e, com passos determinados, penetrou na casa, estancando-se no
meio da sala. Não me dava a impressão de se encontrar constrangi-
da, ou de que algo a importunasse, não; apenas parecia aguardar que
eu quebrasse o silêncio. Mas quem dizia que consegui soltar a voz?!
Tudo isso muito rápido, em pouquíssimos segundos, embora
o tempo interior me parecesse infinito. Aí ela girou um pouco o
corpo e passou a inspecionar, de relance, as poucas peças da sali-
nha, a feiura da salinha, a barra de tinta esmaltada casca de ovo das
paredes, as gravuras, umas ao lado das outras, a atmosfera amare-
lecida e cheia de sombras despontando da lâmpada incandescente,
pendida do forro por um fio antigo, desses encapados por uma
espécie de tecido trançado, o que dava, ao ambiente, um aspecto
decadente e de abandono, onde quase não circula o ar, nem entra
o sol das manhãs – o muro da divisa deste lado é bastante alto e

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permaneço quase o dia todo fora de casa e, portanto, esta porta
quase nunca se encontra aberta.
Era uma apreciação discreta e suave, ingênua e desinteressada,
diria-se, a que ela realizava, de quem não perscrutava nada, nem
se atém em pormenores; em mim é que as coisas adquiriam fortes
conotações e contrastes.
Passos senhoris pelo cômodo, os saltos toc-toc no assoalho.
Esta casa é sua, Vicente? (me chamou pelo nome, e não de
“professor”).
Não... pago aluguel.
Hum...!!!
Balançou de leve a cabeça para diante.
Não demorou muito, adiantou-se um pouco e estirou o pesco-
ço pelo corredor – que se encontrava às escuras – nas duas dire-
ções, fisionomia cheia, até não caber mais, de inexplicável friagem,
de inquietante desembaraço, o que colaborava para exacerbar ain-
da mais meu turbilhão interior.
Passou bem junto do meu corpo, leve, calmamente.
O seu perfume!
Estava simplesmente deslumbrante: fartos cabelos ondeados,
entre o louro e o castanho-claro, a fronte larga e sobranceira, passa-
das suaves e graciosas (mulheres encantadoras, de ordinário, têm o
modo de andar elegante, é a regra. Desconheço a razão; talvez por
possuírem um perfeito arcabouço ósseo e compleição muscular fa-
vorável nas pernas e nos quadris, ou então até mesmo por dádiva di-
vina complementar, não sei ao certo. O inverso também é realidade).
Por que aquele encontro soava como um sobrevento, por que
possuía tão fortes nuances de estupor e angústia, muito diverso
de todas as demais visitas em minha casa, por que havia fantasias
de que, diante de mim, não estivesse tão só mais uma das tantas
minhas alunas?
Deteve-se diante de San Giovanni Battista:
Leonardo!, soletrou.

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Alguns segundos estática, apreciando a reprodução.
Este é o mesmo Leonardo da Vinci?
O mesmo, respondi.
Hum..., girando o tronco. É, sou mesma uma cabeça dura!,
riu contida. Limpou gotas de suor no rosto e regirou sobre os calca-
nhares. Após instantes em que deu mostras de incerteza ou desape-
go, voltou a fitar a reprodução, com interesse artificial e encenado
– para me parecer agradável, talvez.
Uma aragem fria entrou pela porta entreaberta e fez oscilar as
pontas de seus cabelos.
Leonardo da Vinci..., repetiu, agora como se falasse para si
mesma. Em seguida, tocou a superfície de vidro que cobria a estam-
pa. Há quanto tempo mora aqui?, deixando os braços caírem ao
longo do corpo. (Não era razoável a maneira como se comportava,
definitivamente não era, a desenvoltura, quero dizer, em contraste
com a situação de verdadeiro desespero em que me encontrava).
Uns três anos, mais ou menos.
(Pausa)
Quer dizer, cinco, fazendo agora em maio, corrigi.
Silêncio.
Ela abandonou o Leonardo e passava os adornos inúteis sobre a
medíocre mesinha de centro e a estante, uma jarra de opalina vazia,
deixada por minha mãe, da qual ainda não reunira a suficiente deter-
minação para me desfazer, um cinzeiro de bronze, um despertador,
que perdera o dispositivo que o fazia despertar-me à hora marcada,
mas que continuava a marcar as horas e que, por isso mesmo, foi
retirado do quarto, um antigo televisor, livros, revistas no cestinho
de vime, junto ao sofá.
Surpreso?
Com o quê?, indaguei, atabalhoado e desajeitadamente.
Com a minha visita?, simulando seguir a lombada dos livros.
Um pouco. Nunca imaginei que...
Pois eu falei que viria.

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Nada me ocorreu para dizer.
Sorria de um jeito malicioso, quase, olhar arguto, rosto agu-
çado e que dava a impressão de ter se desprendido das telas de
Degas ou de Delacroix. Isso, ela era feito as ninfas de Delacroix!
Não exatamente vistosa, de uma beleza que sobressaísse, que sal-
tasse aos olhos. Não. Não possuía, por exemplo, o encanto das
menininhas de Renoir; contudo, era de um fascínio misterioso e
que, como os grandes segredos, costumam demandar tempo para
serem desvendados. A expressão, o olhar da Vênus de Botticelli.
A beleza dos cactos, não a das orquídeas. Uma vivacidade e lumi-
nosidade incomuns, da cor das manhãs de maio.
Posso sentar-me?
Não sei o quanto custei para incentivá-la a tal. Mas devo ter
demorado além do normal, pois, quando dei por mim, havia um
extenso ar de interrogação por entre suas sobrancelhas. Aí con-
cordei com a cabeça e com um gesto da mão.
Viu, empreguei o pronome corretamente, não? Você pa-
rece um pouco assustado, prosseguiu, sem dar tempo entre um
comentário e outro.
É..., um pouco... Não contava mesmo que viesse.
Creio ter dado à palavra “mesmo” um acento mais forte, que
pode ter soado como pouco polido. Ri um riso nervoso, e devo
ter misturado mais meia dúzia de gestos estúpidos e desarticula-
dos, enquanto meu cérebro embaralhado buscava o que dizer, o
que fazer. Estudei seu corpo por trás, no rápido intervalo em que
caminhava na direção da poltrona. Ela sentou-se e perguntou de
novo pelo pronome: sentar-me.
Um dos livros ela o deixara fora do lugar, na estante. Ainda
meio perturbado, agarrei-me àquela imagem – refiro-me ao livro
largado na horizontal – e, para melhor embaçar meus gestos ner-
vosos, sentei-me encorujadinho na poltrona menor (Virgínia foi,
de passagem, um lampejo fulminante e ameaçador).
Cristine, do outro lado, esparramou-se sobre o sofá, os olhos,

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um radar que parecia captar tudo o que houvesse ao redor. Meu
cérebro, movediço e tão pouco exato, inventou de fixar cada da-
quelas atordoantes visões, cada daqueles gestos e posturas, como
costumamos guardar fragmentos do filme que mais encantamento
nos provocou, a fim de serem refeitas, no futuro, cenas e sequências
sempre que desejarmos. Ela, incrivelmente altaneira e resoluta.
Não sei o porquê, mas, naquele instante, seu sorriso me desa-
gradou um pouquinho; pareceu-me escancarado em demasia e até
mesmo meio promíscuo. Contudo, não tardou muito e ela o cor-
rigiu, transformando-o no do início, que podia ser definido como
magnético, aliciador. Nossos olhares se cruzaram várias vezes em
meio a um silêncio que era de cordilheiras e de auroras.
“Não importa ao tempo o minuto que passa, mas o minuto que
vem.” O que me teria feito lembrar-me desse trecho de Brás
Cubas? O quê? Fiquei esperando pelo minuto que viesse, pois o
do presente era de diabólica e excepcional aflição. O que poderia,
naquela circunstância, ser considerado como acertado e o que seria
absurdo? Seria razoável convidá-la para ir aos outros cômodos, o
quarto, por exemplo, um ambiente muito mais aprazível, ou o con-
vite teria feições de indelicadeza e poderia ser mal interpretado?
Eu tateava no escuro.
Você ainda parece assustado!
É... um pouco... Não acreditava, de jeito nenhum,
que fosse vir.
E foi bom ou ruim?, cruzando as pernas.
Engoli as palavras, mãos perdidas.
Eu falei que viria...
Aproveitei que desviou o olhar de volta para as paredes e puxei
mais fundo o fôlego retardado. Positivamente, era absurdo que em
uma menina tão nova – dezesseis?, dezessete anos? – estivesse a
inflexível interpretação de governo e pulso.
Quando se voltou novamente para mim, percebi gotas de suor
brilhando na sua testa. Ela transpirava! (só então reparei que estava

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mais bronzeada de sol).
Foi à piscina?, foi a única bobagem que me ocorreu dizer, o
que ela respondeu com um sorrisinho ginasiano e um gesto meio
vago com a cabeça. Depois, apoiou o queixo na concha da mão,
cotovelo no braço da poltrona, e se fixou em mim.
Gostou?, num tom que, à primeira impressão, acentuava a ti-
midez encenada anterior.
Hum, hum.
Fui ao clube.
Cuide-se para não se queimar muito. Sua pele clara...
Não, não fico muito tempo. Só umas horinhas, estalando
os dedos todos da mão (eu sabia que estava mentindo). Por falar
nisso, nunca te vi lá.
Não tenho tempo. Nem hábito.
Enquadrei Dom Casmurro – era o livro que havia deixado fora
de lugar, na prateleira.
Meus sentidos, irrefletidamente, passaram a perseguir nela os
vestígios de Capitu. Cristine permanecia na mesma posição, o ros-
to deitado sobre a palma da mão e, com a outra, catava fiapos no
tecido da poltrona.
Em dado momento, movido por um impulso, mais até, por des-
varios, convidei-a, imensamente hesitante, para conhecer o restante
da casa. Ela rapidamente pôs-se de pé, pronta para me seguir.
Desta parte em diante recordo-me muito pouco, tal a tem-
pestade psíquica que passou a me açoitar. Devo ter voado em
cada dos aposentos. Voado. O corredor, a cozinha, ao fundo, o
banheiro fechado...
O quarto, ela o estudou com certo reparo. Isso é real. Claro
que, àquela altura, já me encontrava um pouco recuperado, não foi
como na cozinha, por exemplo, onde não devemos ter permane-
cido nem meio minuto.
Ao cabo de tudo, estanquei-me bestamente aparvalhado dian-
te dela, como se lhe desse a entender que não havia mais nada.

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Ela, inabalável e fria, ajeitou a bolsa a tiracolo e fez menção de se
retirar. No meu íntimo, e por estranho que pareça, o mais pesado
voto de que ela se fosse mesmo, pois isso seria o maior alívio que
podia esperar, enquanto meu subterrâneo desejo pedia o contrá-
rio, que ficasse um pouco mais.
E deixei que a sorte, aliada à vontade dela, tomasse a decisão.
Então tá... – num tom reticente e de leve desapontamento.
Caminhamos de volta para a saleta, ela na frente, sem dizermos
palavra. Próximo à porta, sustou a marcha, a fim de que eu passasse
adiante e a abrisse. Assim o fiz. Ficou me olhando fixamente – o que
significava aquilo, meu Deus? Depois arrumou as pernas e, antes de
se virar, deu-me três beijos na face.

Selo de segredos
Dali a dois dias, Virgínia, lábios cerrados, gestos ríspidos e impa-
cientes, olhos inchados e dura expressão no rosto, bateu à minha
porta. Estava muito mudada: desaparecera aquela figura compla-
cente e passiva, reprimida e indiferente, surgindo outra em seu
lugar, de ilimitadíssima ferocidade. Até onde me lembro, seus ca-
belos se tornaram surpreendentemente murchos, perderam o vo-
lume; estavam esquisitos. Uma tintura de crueldade podia-se notar
em sua face. Claro, não conhecia esse seu lado, nunca imaginava
que pudesse se modificar tanto.
Eu me pergunto se minhas reações também não me denuncia-
ram logo que lhe abri a porta, se não representaram minha defini-
tiva confissão. É difícil esconder com perfeição o nosso interior,
enfurnar as tormentas e os flagelos, e penso que há de ser porta-
dor de frieza extrema para que os outros não enxerguem, no nos-
so rosto, tudo aquilo que se passa bem no fundo de nós mesmos.
Não me considero possuidor de dotes artísticos de tal magnitude.
Assim, dentro daquele vazio, ela deixou cair as mãos – que até
então trazia escondidas atrás de si – e estendeu-me um pedaço

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de papel – suas mãos tremiam – e afastou-se rispidamente. Nele
estava escrito, à máquina, mais ou menos o seguinte: “Minha ami-
ga, fique atenta com o seu amado, pois ele anda recebendo visitas
noturnas”. Somente isto.
Tem umas reticências aí no meio, o texto era pouco mais ex-
tenso, porém, grosso modo, estou informando o que havia de
mais essencial: alguém denunciara a vinda de Cristine. Mas quem?
Olha que não fazia nem cinco minutos que me encontrava
imerso no alumbramento mais feliz que se pode ter, repassando na
memória aquela visita. Contudo, bastou esse alarme para fazer meu
encantamento e fantasia irem pelos ares: fiquei congelado, vítima
de inexplicável terror, como se estivesse diante de iminente perigo.
Ou sido alcançado em plena prática do mais horrendo dos crimes.
Li e reli o bilhete sei lá quantas vezes, uma infinidade delas,
estatelado e tomado pela mais violenta tempestade emocional. De-
pois de um minuto ou dois, meus olhos foram inexplicavelmente
atraídos para a palavra “amiga”, na qual o círculo inferior que com-
punha o caractere “g” havia se desgastado e a letra tinha quase a
mesma forma que um “o”, só que mais achatada; alguém comple-
tara o tipo com caneta.
Bom, penso que me comportei mal, naquela hora, nem mesmo
fiz menção de abrir a porta direito, não disse quase nada, não me
justifiquei, não ponderei, não esbocei qualquer defesa para as minhas
atitudes, nada. Deixei-a ir embora (se bem que seus passos, quando
interpretados à luz das circunstâncias atuais, eram mesmo muito de-
cididos, e seria, portanto, infrutífera qualquer tentativa de retê-la).
Foi assim que aconteceu. Decididamente, não foi um procedi-
mento correto o meu, porém, como disfarçar meu estado mental?

O abajur
Os olhos vagueiam pelo teto, delineando vultos de mobílias, fasquias
da gelosia, toscos pilares nos ângulos das paredes interiores. As ruas

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vazias, ventos espalhando folhas. Reflexos azulosos da lâmpada do
poste se fundem com o clarão da lua. E enormes silêncios, interrom-
pidos, a espaços, por guinchos da coruja no velho sobrado. Zurrar de
automóveis. Silvo longínquo do trem. A enormidade da noite.
Cato a janela que se abre para a rua, a cabeceira da cama, os livros,
nas prateleiras, a quina do guarda-roupa ocultando o batente da por-
ta. O abajur (um ornato meio ridículo, dois aros metálicos sustentan-
do uma cúpula de acrílico transluzente e que tinha sido presente de
Virgínia), em horrendo contraste com a arquitetura da casa, avultan-
do no ambiente sua luminosidade leitosa e esplendente. Desvendo os
reflexos daquele lanço luminoso incidindo numa espécie de meia-lua
que se projeta no forro, na metade da parede e o piso contíguo.
Muitas e muitas vezes, sentado diante da escrivaninha, limito-
me a ficar balançando o corpo sobre os pés traseiros da cadeira,
indo e vindo, indo e vindo, num equilíbrio instável que remete-me
às atropeladas descidas dos tobogãs nos parques de diversão.
Absorvido, apanho Cristine de memória: debruçado na ba-
laustrada, fingindo contemplar o dia, os espaços vazios; mas, de
fato a seguia no pátio, naquele seu modo gracioso de levemente
oscilar a saia em cada passada, de jogar o vestido ao ritmo dos
requebros e das evoluções. Eu a acompanhava, mergulhado na
mais mágica e intensa sensação de felicidade, o dia impregnado de
cores e de luzes, aquela carinha linda, pupilas inquietas e que refle-
tiam, sem perda, o brilho e o colorido daquele momento. Passos
firmes e acesos de terneiros soberbos, que não perdiam nunca a
doçura e a leveza. Aqueles ocultos e enigmáticos traços de beleza.
Nos olhos e na maneira de andar. Minha Cristine! Como fora
possível que passasse despercebida até ali?
Ao fim, para meu terror e deleite, ela imprevistamente pôs-se
ao meu lado, dois ou três passos à direita. Algum tempo perma-
necemos em silêncio, repetindo os mesmos gestos, estudando-nos
mutuamente. Aquele secreto olhar faiscante e cheio de vivacidade,
que saltava, vígil, sem se fixar em parte alguma, a cabeça escorada

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pelo braço, lábios carnudos e meio pálidos, não distintivamente
femininos, à primeira vista, mas que adquiriam indizível beleza
naquele rosto de sobrenatural magnetismo.
De saída, e sem ter o que dizer, indaguei-lhe, meio estonteado
e estúpido, sobre sua vida, como iam seus dias. Não consegui in-
ventar nenhum assunto, nada me cruzava a mente, e, na ausência
de ação que sua presença me causava, arremessei-lhe esse chama-
riz, a fim de que ela o agarrasse e me salvasse da imobilidade e do
aprisionamento.
Após curto período de reflexão, em que se mostrava meio pe-
sarosa e absorta, pálpebras voltadas para o chão, me respondeu
com uma frase surpreendente e com a voz quase sumida, que às
vezes pensava que muito do que lhe sucedia se devia a erros do
passado, ou à maneira como consumiu seus dias, qualquer coisa
assim. Enquanto pronunciava aquelas palavras, desencostou-se
devagarinho da balaustrada, recuando um meio passo, e passou a
olhar na direção da piscina e do campo de futebol.
Aquela foi uma fala muito ressentida, o que, de certo modo,
me encurralou para um ponto inesperado e ainda mais confuso,
posso dizer assim, encurtando bastante o espaço de que poderia
me valer para dar seguimento à conversa. Ela não me facilitou a
empreitada, é o que quero dizer, praticamente atalhando quase
para o final da conversa.
Buscando tomar pé, e usando do tom mais amável que pude
lançar mão, procurei lhe mostrar minha efusiva discordância e
surpresa, recusando-me a aceitar que uma pessoa jovem como
ela, e principalmente de maneiras tão delicadas, pudesse ter an-
tecedentes tão sérios que merecessem alguma forma de reparo,
ou mesmo que devessem ser levados em conta. Sim, alonguei-me
neste tema, inserindo um ou outro condimento “filosófico” com
que minha mente ia me socorrendo, dos quais, é claro, já nem me
recordo mais. Não devo ter dito muita bobagem, pois ela parecia
me ouvir atentamente, serenamente. Lembro-me que ficou me re-

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parando um tanto obliquamente, o corpo meio arriado, ombros
caídos (atitude que assumiria centenas de outras vezes, no futuro),
no mais completo silêncio.
De resto, afirmei-lhe que o passado nunca deveria ter tanto
peso, tanta significação na vida da gente; nem mesmo o futuro,
que é gerador de angústias. O presente, sim, é que tinha força;
conceitos dessa natureza, que acabaram lhe despertando um certo
sorriso meigo nos lábios, enquanto seus olhos, fenomenalmente
brilhosos, passaram a saltar pelos meus, buscando entendimentos
e descobertas. E continuaram a me examinar daquele jeito tor-
turante e perturbador, instantes largos, até ir se aprumando aos
poucos, voltando-se de novo para o pátio quase vazio, onde um
pintor lançava mãos de tintas sobre as ripas dos bancos, eivados
de manchas de musgos e cogumelos, à sombra dos oitis.
Pode-se encontrar a beleza de uma pessoa nos seus cabelos,
nos traços do rosto, ou em outras tantas particularidades. Mas
Cristine me fascinava especialmente por algo nos olhos. Sim, por
algo nos olhos, que se poderiam comparar aos de lince, e não sei
se estou sendo lacrimoso (isto me causaria arrepios). Mas havia
qualquer coisa de extraordinário no modo como me espreitava.
Chegaria o dia em que compreenderia algo muito importante:
existem formas de beleza que não são percebidas com facilidade,
que não se revelam nos prelúdios, e só são descobertas aos poucos,
após cotidianas observações, o que as torna menos reais e óbvias
e, talvez por isso mesmo, muito mais transcendentes e fascinantes
(aqui, agora, dentro de mim, abriu-se por inteiro a imagem sorri-
dente e calma de seu rosto. Há quanto tempo?! É extraordinário!).
Como descrever a sensação daquele momento? Uma imperio-
sa fervura... um fremente delírio... ou ainda algo bem mais intenso,
mas que me faltam palavras para descrever. Um mistério! Ora,
todos já experimentamos, na vida, situações semelhantes, todos,
faço parte da mesma natureza de que é feita a humanidade inteira
e não necessito ocupar-me com descrições pormenorizadas acer-

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ca desse fenômeno; conto com a vivência de cada um para me
fazer compreender. É o bastante. São recordações deslumbrantes
e sedutoras, claro, que me fazem sentir-me radiantemente feliz e
suave, mas é certo que, por agora, me emperra a chegada do sono.
A certa altura, sem mais nem menos, me indagou acerca do sig-
nificado da oração “Vamos à História dos Subúrbios” (a frase é de Ma-
chado de Assis, e encerra Dom Casmurro) aparecer nos livros sempre
grifada. Estranhei a pergunta, ou melhor, estranhei o fato de ela
querer saber sobre assunto de tal natureza, incomum entre pessoas
da sua idade, mas, constrangido, admiti que não sabia, que nunca me
perguntara acerca disso. Ela reforçou que a oração se repetia em to-
das as edições que consultara na biblioteca (tempos depois, relendo
o livro, encontrei a expressão também nas primeiras páginas, o que
me havia passado despercebido antes; seria o título de alguma obra
que o protagonista, Bentinho, tinha intenção de escrever).
Mas o importante era que, por qualquer razão, muito prova-
velmente por saber da minha predileção por aquele autor, para me
adoçar, penso eu, fez uso do expediente de pôr em discussão esse
assunto. Acima de tudo, tinha talento em suas abordagens, preciso
reconhecer.
Trago até hoje comigo o episódio, com tal nitidez, que é de se
indagar que grandes significados possa ter. Tudo transcorreu exa-
tamente assim. Um acontecimento tão banal não deveria ocupar
tamanho espaço em nossa mente. Mas ocupa, e o certo é que é
muito difícil encontrar explicações para ocorrências do tipo. Não
aconteceu nada de mais relevante; só a cena dela debruçada sobre o
parapeito, ao meu lado, as pernas cruzadas, oscilando um calcanhar
no ar, o bico do sapato apoiado no chão, e eu apalpando um estra-
nho e ameno prazer com tão grande proximidade.
Às vezes, fazia gestos que encenavam a inocência. Nessas ho-
ras, acendia-se em mim um possante alarme interno, que estrilava
pela loucura da minha criação mental. E aí germinavam pesos na
consciência, sensações de culpa... Noutras vezes, entretanto, era

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exatamente o contrário: uma desenvoltura inimaginável, quase um
despudor, e ali – e com que dificuldade me vejo obrigado a con-
fessar – eu enxergava um púbis, profundidades, útero (estou dizen-
do minhas impressões ao longo de todo o tempo, e não somente
daquela hora). Já trazia consigo a pimenta de uma mulher, e esse
conceito tratei, ao longo de dias e meses, de acentuar e medir quase
como se separasse as sílabas, ou até mesmo as letras, tal a sua soli-
dez. Assim mesmo: m-u-l-h-e-r! La femme.
Aos poucos, no entanto, se abeirava de volta a menina...
É possível isso acontecer, sim, afianço sem medo de errar;
está aqui um ser humano depondo e fazendo uso de toda a sua
sinceridade e franqueza. É possível! Não vejo sinais de insanidade
nessa minha reação. Aos incrédulos, faço lembrar que também de-
les podem emergir comportamentos que outros tomariam como
verdadeiro disparate.
Ao certo, tal embate começou a se instalar em mim exatamen-
te naquele dia, e nunca me abandonou por inteiro; o tema acon-
teceu de me enchumaçar a cabeça em outras e outras ocasiões e,
pelos meus cálculos, foi crescendo à medida que passei a perceber
“respostas” da parte dela.
O que sei de verdade, que se constitui, aliás, no mais marcante
de tudo, e que preciso fazer registro para que não pairem dúvidas
sobre meu caráter, é que procurei, sim, reprimir os sentimentos ini-
ciais. Dou minha palavra. Entretanto, sabe-se também que tal tarefa
não é tão simples assim, não é caminho desimpedido e de livre cur-
so, pelo menos em se tratando de pessoas com minha têmpera, com
meus traços psicofisiológicos, vamos dizer assim. Muitas vezes, sem
que saibamos o porquê, atraímos para nós exatamente aquilo que
nosso juízo procura afugentar, do mesmo modo que um sapo pula,
desarrazoado e perdido, na direção da mortal presa da serpente.
É lei da natureza, é regra, que nosso inconsciente trata de colocar
em cena sem que tenhamos qualquer poder de mando. Quer dizer,
meu bom senso até me levava a ver os riscos que aquele estado de

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coisas poderia representar: eu enxergava os escândalos, as manchas,
os desregramentos, pecados de primeira plaina, eu enxergava. Mas...
enquanto dizia não vou, já estava a passos largos na sua direção; en-
quanto repetia comigo mesmo não farei, já estava arando o terreno.
Quanto de nossos julgamentos recebe ascendência das tentações e
das volúpias, quanto da serenidade e da prudência?
Ficamos ali, eu e Cristine, não sei quanto tempo. O máximo
que pude alongar. Imperiosa fantasia me levava a encompridar
indefinidamente minha estada, dando chance a que algo de novo
e inesperado viesse a suceder, mesmo tendo que conviver com
o irrefreável turbilhão dentro de minha cabeça, o qual meu sub-
consciente tratava de pôr para debaixo dos tapetes. Era um cho-
que muito grande!
Aparentemente, enquanto lutava para disfarçar minha extrema
sofreguidão, ela, inalterada e plácida, não parecia se preocupar mi-
nimamente, revelando extraordinário poder sobre suas emoções e
impulsos. Creio que se a mocidade traz consigo algo de proveito
seria a ausência de preocupação com as coisas do mundo, o apra-
zimento de quem ainda não se viu na necessidade de enfrentar as
agruras e as asperezas, que são próprias – e até mesmo inevitáveis
– de quem já ultrapassou certo número de anos. Estou convencido
dessa opinião.
Até que uma interrogação, que chamaria de inoportuna, me
cruzou a cabeça: o que ela fazia ali, àquela hora?
Seus pais sabem que você está aqui?, indaguei-a, quase certa-
mente porque considerava meu mutismo e minha timidez uma estupi-
dez legítima e concreta, com todos os seus acessórios.
Pois a essa pergunta reagiu da maneira mais inesperada possí-
vel: levantou impetuosamente a cabeça, num gesto de cólera, curvou
todo o tronco sobre a balaustrada, como se fosse despencar lá para
baixo, e mudou por completo a fisionomia, tornando-se severa e
dura. Talvez tenha tido um passageiro sorriso maligno, não sei com
certeza. Guardou silêncio quase meio minuto, mexendo nervosa-

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mente os dedos feito tecesse invisível crochê e, dali a pouco, girou
a cabeça na minha direção: seu olhar incendiado fitou-me de um
modo fixo e petrificador:
Não, meus pais nunca sabem nada do que faço, num tom
ríspido, que me fez crer que houvera cometido imperdoável deslize.
Fez menção de se afastar, mas no mesmo instante algo a rete-
ve naquela posição.
A frieza e mesmo a brutalidade com que proferiu essas palavras
provocaram em mim fervente desapontamento. Sou muito tímido,
cheio das pequeninas imperfeições e, muitas vezes, me deixo abater
sem muita resistência. Reagi pessimamente, foi o que compreendi
depois, enquanto regressava para casa e reexaminava a situação.
Quando me ofereci para levá-la, para acompanhá-la, ela enru-
gou a testa, num claro sinal de contrariedade e, arisca, afastou-se a
toda pressa, sem me dirigir uma única palavra.
Nem de longe, estou certo, pude avaliar toda a virulência que
existia na sua reação, nem de longe.

***
Durante todo esse abstraimento, meus olhos estiveram, sem eu
sentir os efeitos, mergulhados na luz tênue e rala do abajur. Ao
tornar a mim, eles passaram a relancear pelo ambiente, como se
me fosse um espaço novo e estranho: as paredes cinzas esmaeci-
das do quarto, o teto um pouquinho mais claro, a pia (que man-
dei instalar há cerca de um mês), as prateleiras de livros, a janela.
Ocorreu-me também a estreita faixa de jardim, espremida entre a
construção e o muro, onde, por vezes, moleques diabólicos vêm
urinar à noite; o que restou das acalifas, das dracenas... A calçada,
por defronte, o trecho da rua, os oitis alinhados ao meio-fio. Um
céu escuro e opaco, adivinhado por entre o rendilhado das folha-
gens e dos arbustos aquietados, perfis sonolentos dos telhados,
céu lutuoso e sufocante, dentro da noite escaldante.
Dou conta dos fragores, dos bulícios, das gargalhadas vindas

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de toda parte (como se fossem para me torvar as horas).
As sombras dos punhos, das mãos, dos dedos entreabertos
formando desenhos e acenos no teto, no piso de tacos, na arga-
massa, até se confundirem com a imensa sombra da noite e se
dissolverem no claro-escuro da parede oposta.
Sigo, na penumbra, os fantasmas de mim mesmo. A cabeça,
de um lado para o outro. E a luz marmorizada e espessa do abajur
vagalumeando o tempo todo... o tempo todo...
Ao acaso, ocorre-me agora uma expressão do conselheiro Ai-
res: “As saudades da vida é que são agradáveis”. Olha, sou meio cético
quanto a isso. As grandes saudades, pelo menos para mim, não são
réplicas de paraísos. Nelas há muito de sofrimento, muito de amargor.
Há um preço a se pagar, na maioria das vezes, por todas as formas de
saudade, e esse preço pode chegar às alturas. As pequenas saudades,
estas sim, podem até ser agradáveis, mas, quanto às vultosas...

Machado de Assis
Joaquim Maria Machado de Assis, escritor brasileiro, nasceu no
Rio de Janeiro, em 21 de junho de 1839.
Sua obra abrangeu praticamente todos os gêneros literários, des-
de crônicas, críticas, teatro, poesia, mas foi sobretudo no conto e no
romance que se destacou como o principal autor de nossas letras.
De sua primeira fase, dita romântica, destacam-se os romances
Ressurreição (1872), A Mão e a Luva (1874), Helena (1876) e Iaiá
Garcia (1878). Com a publicação de Memórias Póstumas de Brás
Cubas (1881) se iniciou o período mais importante de sua produ-
ção, a “fase realista”, à qual pertencem ainda Quincas Borba (1891),
Dom Casmurro (1900), Esaú e Jacó (1904) e Memorial de Aires (1908).
Morreu na mesma cidade, em 29 de setembro de 1908.

O niilista
Não sou propriamente memorialista. Faço tal afirmação, já de

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princípio, para dissuadir de vez aqueles que esperam deparar com
algo parecido nestas páginas. O que vai adiante é um despreten-
siosíssimo diário, no qual só não adotei a forma tradicional de da-
tar os episódios para deixar uma noção de intemporalidade. Esta
é uma história desprovida de grandes interesses e que a ninguém
deverá chamar a atenção. Para mim, aliás, isso nem é essencial;
jamais me daria mesmo ao trabalho de sentar-me aqui, horas e
horas de minha vida, com esse fito. Que já se sintam avisados.
Não me arriscaria numa empreitada desse porte, sei perfeitamente
que não sou tão privilegiado no que diz respeito à imaginação e
que não trago comigo traços maiores de genialidade. Assim, o que
faço é usar do artifício de ficar divagando, planando nos páramos
incertos de meu tempo interior, aguardando o momento preciso
em que se processa aquilo que se afigura como vertiginoso mergu-
lho psíquico, estado no qual o real, ao meu redor, se dissolve e se
extingue a um toque de mágica, sendo suplantado por um espaço
inebriante e entorpecedor, um enleio que, suavemente, se encar-
rega de conduzir minha mente lépida pelos labirintos da fantasia
e do imaginário. Gosto de recapitular, é mais do que claro, essa
é uma imperiosa necessidade lúdica, fascina-me estar aqui, sen-
tado diante desta escrivaninha, que é quando nutro meu mundo
de alumbramentos e prazeres, quando construo planos que só a
mim pertencem, deixando de lado as ruas, a praça, a ponte, sem
me dar ao cuidado se o que vou armando tenha ou não valor li-
terário. Isso não faz parte de minhas preocupações. Digam o que
quiserem, a realidade é que me sirvo dessas fugas para, com elas,
entabular utopias e abstrações, as quais me vêm em socorro, sim,
me vêm em socorro, e acabam por justificar minha própria exis-
tência. É como nos sonhos felizes; como nos fogem do domínio
os objetos dos sonhos!
Ora, eis aí a forma mais pura e primitiva do que se pode con-
siderar como diletantismo. Eu me pergunto de onde provém o
que chamam de inspiração, que fenômenos psicológicos, que es-

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truturas anatômicas seriam responsáveis por tanto? Porque sou
dos que, decididamente, creem na sua existência, na sua imperiosa
existência como fator propulsor de todas as formas de artes; é o
que faz, por exemplo, a distinção entre retratos e fotos, reporta-
gens e textos ficcionais. Digo que me contentaria desvendar esse
mistério, descobrir se tais estruturas anatômicas estão presentes
em todos os seres humanos, indistintamente, e ficam como que
silenciadas na parcela maior da humanidade, ou se, ao contrário,
são propriedades de alguns poucos convidados para a ceia. Que
saiba, tal resposta ainda não afluiu à tona, nenhum juízo defini-
tivo foi lançado sobre a mesa, de modo que é saber esperar pela
comprovação que a ciência ainda há de trazer. Não pude até agora
alcançar os veios de onde a imaginação se alimenta, de onde tira
suas matérias-primas, apesar das minhas mais profundas elucubra-
ções nessa direção.
Só Deus saberia explicar; em certas ocasiões, estando meu
pensamento à toa e errante, ocorre de me serem impostos os
mais cruéis e pavorosos exercícios mentais, as mais inconcebíveis
e aflitivas passagens a que um ser humano pode ser submetido,
sem que nisso encontre o menor sentido. Turra e renitentemente,
minha atividade cerebral toma a iniciativa de me colocar sob as
mais terrificantes situações de vida, sem me poupar minimamente
nessas experiências. Estranhíssimo!
E aí ponho a me analisar sob o efeito de tais criações, a estu-
dar minhas reações e comportamentos, como se eu fosse um bicho
qualquer submetido a draconianas experiências científicas de labo-
ratório. Não sei por que ajo dessa maneira, por que me obrigo a
provas tão duras e tão sem motivo, e muito menos a razão de estar
mencionando tais ocorrências aqui.
Por exemplo, fico imaginando um vivente qualquer, daqui a
cinquenta, cem anos. Se acaso caísse, este material, em suas mãos,
com que olhos o leria? Com que olhos? Descobriria nele, por-
ventura, algum traço de ficção, algum sinal de que meu cérebro

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construiu tudo como um teatro de mentiras, que é tudo capricho
de minha invenção irrequieta e escaldante, ou compreenderia que
aqui estão contidos episódios históricos e que realmente aconte-
ceram? Quem pode dizer?
Não sou ficcionista, volto a repetir, e não estou fazendo fita.
Acho que a maioria deles não necessitaria de lançar mãos de mo-
finos expedientes a fim de produzirem seus relatos, dos quais faço
uso em grandes medidas. A clara sensação que me deixam – os
verdadeiros literatos – é que encontram extrema facilidade em suas
empreitadas, que, para eles, resulta pouco esforço engendrarem
uma trama prazerosa e mágica, construírem o diálogo verossímil,
descobrirem o termo exato a ser empregado e as demais coisas.
Que devam se portar como exímios ceramistas diante de blocos
de argila na olaria, centrífuga ligada: aí, com espantosa destreza, da
matéria bruta, da massa informe, saem modeladas peças acabadas,
de extraordinária simetria e apuro; uma coisa simples e já trilhada
inúmeras vezes, feito um passeio corrente. Feito composições de
Yann Tiersen, magnificamente executadas em xilofones e pianolas
e sanfoninhas e cornetas de brinquedo. Os versados, os mestres,
imagino, devem pôr-se diante da folha em branco e, campo livre à
frente, o texto vai saindo em uma ou duas palhetadas. Eu não. De-
safortunadamente, para mim os acontecimentos principiam frios
e distantes, ainda sem formas e delineamentos. E as figuras, os
atores, de pouco a pouco se acercam, contados nos dedos, tímidos
e receosos, alguns sonolentos, como se se aprontassem para um
ensaio. Vêm chegando, vêm chegando... Outras vezes, ao contrá-
rio, aportam insubordinados e de má vontade, como se eu não
tivesse domínio sobre a trupe. Porque não devo permitir que es-
tremeçam nossas relações, resolvo que talvez o mais acertado seja
aguardar pacientemente que elas próprias se apresentem, ao ritmo
que desejarem; caso contrário, poderão chegar ao desacato ou até
mesmo à deserção. Passado algum tempo, no entanto, ressurgem,
maquiados e aprontados em suas fantasias, um após o outro, e

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tomam corpo, falantes e animados, como se tivessem sido tocados
por poção preciosa e mágica. Quer dizer, já mudaram de espírito.
Neste meu mundo, tais figuras estão ajustadas a um aspecto
sobrenatural e fantasmagórico; elas existem, têm identidades ver-
dadeiras, meu cérebro não as criou, não são obras de meu gênio.
E, coisa curiosa, é agradável tê-las ao meu redor. Acho que me es-
piam e aguardam para a estreia. Esperam pelo diretor (o diretor sou
eu!). Há um fenômeno que aflora, que erupciona com suavidade,
e então, levemente embriagado e em ondas, me deixo levar pelo
tal mergulho nos abismos dos delírios, como se despeja num lago
acolhedor e transparente um peixinho vermelho sempre criado em
aquário. Como uma espécie de médium ou xamã, que, ao invocar
espíritos, parece migrar para longe, muuuuito longe. Eles, os fan-
tasmas, vivem dentro de mim, e só são soltos quando a criancinha
boba começa a botar para fora seus soldadinhos de chumbo, seus
bonecos de mola, cuidadosamente guardados dentro de caixas de
papelão, sob a cama. E principia a movê-los no chão do quarto, em
inventadas fabulações e batalhas. Os soldadinhos de chumbo!
Desligado do real, vou acamando em evanescente sensação de
pluma, que, flutuante, desce nas frescas e úmidas manhãs de outo-
no, sendo suavemente aspirado para um ponto onde sou mais feliz.
Quero viver duas vezes, uma só não me basta, tenho necessidade
anímica de existir em dobro, e esse é o único modo que conheço de
reviver os meus momentos felizes – e minhas comoções – , que são
os combustíveis dessa imensa fogueira chamada vida. Por certo, te-
rei permissão de escolher os instantes a serem desfrutados de novo,
vou escolher o próximo lance desse jogo de caráter lúdico, talvez a
menor concessão a ser dada em reconhecimento àqueles de consci-
ência tranquila e de mãos limpas: eleger seus instantes hedonísticos
para, com eles, construir a constância de seus arquivos mentais.
Optei por matar os fantasmas exteriores para, desse modo,
sentir-me livre e permitir que os de dentro saltem e iniciem a gran-
de ópera. Essa ópera compus (ou não compus, e somente me limi-

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to a reger sob uma pauta já definida?). Para exorcizar demônios, o
melhor é pô-los à luz do sol. E o que se abre adiante é um imenso
túnel escuro e fundo, que necessito transpor sem auxílios, sem
enxergar travessias. Por favor, não me tragam de volta.

Os espelhos
As feições de Virgínia subsistem em mim, estão nítidas, aqui, nes-
te instante. Posso vê-la por inteiro, ou mesmo, caso o deseje, me
concentrar em partes do seu corpo: a pele fria, que cheirava a água
de rosas, os cabelos lisos, armados, com as pontas disciplinadas,
voltadas para dentro. E um rosto onde traços indefinidos me tra-
zem, enfim, uma ponta de desagrado. Os lábios pálidos por quase
sempiterno batom cor de guaraná, meio sem graça, e um buço,
que se acentuava à medida que os anos avançaram, davam-lhe as-
pecto duro e até grotesco, que remetia a aterradoras gravuras com
cenas sombrias e lúgubres do Santo Ofício: os olhos negros, a
pele áspera do pescoço e do entresseio, por detrás daquele decote
dos seus quarenta e tantos anos. Seus raros sorrisos, o semblante
imutável, meio tristonho e com aparência de desconfiada. Ar pre-
tensamente enigmático de quem quer dar a impressão de que re-
flete sob algo de suma importância, ou, principalmente, de quem
tem sempre um tanto para ocultar. Ou, ainda, de quem ouve, mas
não parece entender, conservando-se refratária e no mais absoluto
silêncio, quando entre nós dois havia o menor sinal de dissensão.
Nas poucas vezes em que busquei, sôfrega e inutilmente, ar-
rancar dela opiniões sobre acontecimentos quaisquer, mesmo os
mais irrelevantes e banais e que pudessem resultar na mais miúda
polêmica, ou então lhe apresentar pequenas sugestões ou críticas,
ela, com sua poderosa quietude usada como carga, se afastava, se
recolhia ao casulo, e não esboçava a menor reação. Era lacônica
e secreta, o que beirava o intolerável para o meu temperamento.
Suas miradas perscrutadoras e alertas, lá de longe, farol que

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acende do continente, agiam como se realizassem minha autóp-
sia psíquica, como se procurassem devassar, dentro de mim, uma
insídia que simplesmente nunca existia. Mesmo seus movimentos
e atitudes se tornaram, pelo menos nos últimos tempos, medidos
e presos. Uma mulher de certa beleza, não posso negar, porém
invariavelmente insípida e desprovida de “condimentos interio-
res”, diria assim, e que, em certas ocasiões, acontecia de deixar no
ambiente rastros enjoativos algo similares aos incensos.
Cheia de convencionalismos nos gestos e saturada de incrível
rigidez por tudo aquilo que considerava como correto e digno de
fé – o que, quase sempre, ultrapassava o limite do compreensível
e do lógico –, por vezes portava-se de modo tão enfadonho, que
não me restava outra alternativa se não a de tomar um livro nas
mãos e fingir que dava seguimento a uma leitura.
Nossas refeições de silêncio e tédio, em que me importunava
sobremaneira o modo ruidoso e impolido como mastigava ali-
mentos... Ah, aquilo era horrível!
Lia os livrinhos mais banais, um ou outro romance do tipo
sentimental, desses adquiridos em bancas de revista, obras de au-
toajuda, dos quais fazia questão de papaguear trechos inteiros para
mim, me interrompendo intermitentemente, quando me encon-
trava mergulhado em minhas leituras, deixando-me com a mais
absoluta sensação de que, nem de longe, suspeitava do quanto
aquilo me agastava. Não percebia. É estranho, não? No princípio,
me continha, controlava meu arrufo, mas, com o tempo, ardendo
em brasas, não estava sendo mais possível camuflar todas as mi-
nhas baforadas de ira.
Hoje, pensando bem, Virgínia traduz quase um absurdo; uma
secura, obtusão, langor. Um ato de loucura, chegaria a dizer. Com
ela consumi temporadas sem dar cômputo da vida; tempo em
que, conforme dava o vento, líamos jornal, assistíamos a filmes
tagarelas e estrepitosos, nos esbarrávamos pelos cômodos da casa,
ligávamos a televisão – não eu, mas ela – época, enfim, em que

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me ocupava, numa voz arrastada e meio mole, com preleções a
respeito de suas parvas e mesquinhas macacoas, sua perdurável
indigestão, suas “pernas inchadas”, seu joanete, suas crises de afta,
suas tonturas e até sobre os incômodos trazidos pela menstruação
(duvido que alguém me aponte algo que cause mais repulsa a um
homem do que falar sobre as regras, duvido).
Em quase todos os dias tinha do que se queixar: uma dor
numa parte do corpo, depois já era noutra, que sempre definia,
na estreia, como “fortíssima”, mas que, quando interrogada com
insistência e firmeza, acabava por deixar escapar que era apenas
um incômodo, nada que justificasse maiores preocupações.
Vivia cismada com o que eu comia, me policiando quase im-
pulsivamente desde os lanchezinhos irrelevantes ate a comida de
garfo, como se em tudo enxergasse sinais de conspiração ou de
grave perigo à saúde. Sentenciava acerca dos prejuízos que o to-
mate causava ao estômago, a carne vermelha a não sei qual órgão,
as frituras, os condimentos e por aí afora.
Filha única de indivíduo rude, cuja intolerância e impertinên-
cia chegavam aos limites do inimaginável, segundo ela própria o
descrevia, e de mãe conformista, que vivera toda a vida dentro dos
limites caiados de uma casa – e aí ficam claros alguns detalhes de
seu temperamento –, fora internada, em sua mocidade, num con-
vento de freiras no Rio de Janeiro, se não me engano (esta parte
de sua história raríssimas vezes deixou escapar mais que alguns
pequenos fragmentos), de onde teria saído após a morte do pai,
levando consigo seus traços de timidez, de incorrigível ingenuida-
de e de afetada circunspeção.
Dois anos mais nova que eu, e quase três décadas de vida a
mais que Cristine, somente parecia cuidar dos assuntos mais tri-
viais e entediantes (o que, por si só, já representava enorme des-
vantagem para ela) ou, o que era mais grave, de temas místicos e
transcendentais. Era extremamente supersticiosa; uma beata do
ocultismo (que sei disso?!), sistematicamente encontrando “si-

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nais” nos mínimos acontecimentos ao seu redor, mesmo nos mais
banais, como, por exemplo, no simples fato de, ao haver perdido
o ônibus, enxergar que ali estava contida uma advertência de que
algum acidente estaria por ocorrer com aquele veículo. Em tudo
via presságios, tudo significava mais que os sentidos comuns po-
diam perceber. Isso com tal solenidade e firmeza que se dizia ser
mesmo possível acreditar-se naquilo.
Nessas horas, punha-me de lado, aquietava-me, aguardan-
do que ela desistisse da encenação, e seu riso dissuasivo e pálido
confessaria que estivera todo o tempo caçoando. Não podia ser
diferente, tão absurdos eram os seus raciocínios. Mas nada... Di-
ficilmente – ao menos de certo tempo para cá – conseguíamos
entabular conversa sobre qualquer assunto que afinasse com os
meus gostos e interesses.
As minhas peças de Bach e Haendel, meus discos de Piaf, ti-
nham para ela o mesmo valor que um Cícero Dias para cegos
de nascença. Não faziam, bem como meus livros, parte de suas
“necessidades intelectuais”, vamos dizer assim. Satisfazia-se com
suas musiquinhas tolas e melosas, com seus livrinhos, com suas
frivolidades e por aí afora.
Para que compreendam meu esforço a fim de que ela pescasse
algo, durante algum tempo cuidei de pôr para tocar as “minhas”
músicas, quando estivesse por chegar, feito fosse obra do acaso
– para tentar aprimorar aquilo que chamaria de “gosto estético”.
Contudo, para falar a verdade, ela nunca reagia, nunca dava sinais
de que minha estratégia surtia efeito algum. Até que me convenci,
em definitivo, de que era tarefa inútil, perda de tempo. Importava-
se mesmo com seus amuletos e fetiches, pelo invisível, pelo impal-
pável. Enunciava seus florais; eu, Antonioni, os gregos. Apontava
para a literatura de esoterismo; eu, para a de Flaubert. Quer dizer,
constituíamos o que se pode considerar como o contraste um do
outro, e não participo da opinião de que, nas experiências de vida,
os opostos se atraiam.

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Passamos a nos relacionar de forma convencional, diria, che-
gando inclusive a haver dias fixos da semana em que ela pernoita-
va em minha casa: às terças e sextas-feiras (desde a morte da sua
mãe, passou a morar sozinha). Em ocasiões fortuitas, aos sábados.
Nesses encontros não havia acontecimento nenhum. Tudo fun-
cionava como se fosse o prato do dia: uma relação fácil e cheia de
sensaboria e demoras. Ficávamos a sós, noites e noites desbota-
das, em que nada havia a se dizer, eu, num dos compartimentos,
mergulhado em minhas leituras, ela noutro, fazendo não sei o quê,
de modo que nos tornamos quase dois estranhos, que coabitáva-
mos instantes de nossas vidas.
E este Vicente, cada dia mais nauseado, não alcançava ocasião
de dar um ponto final, não encontrava modo apropriado de se
desembuchar, sem lhe trazer malquerença ou ressentimento. E aí,
por absurda e inexplicável inércia, os dias iam se acumulando, se
acumulando, e o ponto final ficava adiado para futuro incerto.
Em realidade, meu sentimento era muito pior: sentia-me de-
sesperadamente coagido e sem a menor capacidade de insurgên-
cia. É imperdoável alguém se comportar desse modo, mas, enfim...
Até o dia em que a encontrei, em prantos, na saleta às escuras.
Eu havia levantado para ir ao banheiro e imaginei que ela estivesse
fazendo alguma coisa na cozinha. Há uns vinte minutos se encon-
trava no mais completo silêncio, e não sabia o que estava acon-
tecendo. Calculei que estivesse lendo, ou então ligado a televisão
muito baixinho. Pois nada disso. No instante em que passei pela
sala, ela, ágil, procurou esconder as lágrimas (também não sei se
nisso não havia alguma encenação, não sei. Penso que as mulheres
são muito aplicadas em artimanhas tais).
Como posso dizer? Fiquei... atônito... entravado. Contive, obra
de um instante, minha marcha, muitíssimo confuso e apreensivo.
Logo em seguida, passageira, veio-me a visão de que o melhor se-
ria seguir adiante, como se nada houvesse percebido. Sou péssimo
para confortar as pessoas, péssimo, não reúno o menor talento

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para tal função, aliado ao fato de que aquela situação era extrema-
mente constrangedora. Ato contínuo, no entanto, considerei que
o descaso seria um absurdo, uma crueldade, até. E fiquei naquele
jeito, para diante e para trás, embargado e sentido.
Por fim, o que chegou em mim foi uma enorme compaixão.
Reconheci-me horrivelmente desolado pela figura encurvada sobre
a poltrona, abrigada por aquele vestido aluminizado totalmente fora
de moda, cabelos sem vida e rosto que já perdera quase de todo o
viço. É humana essa coisa de se comover com a tragédia das pessoas,
apesar de eu, ao longo de minha vida, rarissimamente me ocupar
muito com o sofrimento alheio. Talvez a coitadinha estivesse mesmo
necessitada de alguém que lhe dedicasse um mínimo de solicitude e
carinho... Sei lá. Afinal, tratava-se de um cristão, como se diz, e eu pa-
recia estar desconsiderando isso. E aí me desmanchei. Foi horrível!
Naquela hora, uma sua foto, que mantinha sobre a estante, se
descerrou para mim na meia-luz do cômodo – um meio busto,
em preto e branco. Foi pior ainda! Sem saber se estava fazendo ou
não o mais acertado, acendi a luz, enquanto ela se apressava em
enxugar o rosto. Mexeu-se um pouco na poltrona e reacomodou
o corpo congelado.
Perguntei-lhe o que havia acontecido. Ela engasgou-se. De-
pois de segundos, conseguiu sussurrar que não havia nada, não
havia nada, repetiu, balançando convulsamente a cabeça de um
lado para outro. Porém, existia um quê de impaciência no seu se-
gundo registro. Levantou-se num impulso, juntou os seus perten-
ces e deu a entender que iria embora. Eu, enrodilhado, fiquei es-
perando sem tomar nenhuma atitude, até ouvir o portão se fechar
lá fora, até perder os seus passos.
Essa cena é terrível! Até hoje a vivencio como se tivesse acon-
tecido há poucos dias. Para mim e para ela, creio. Era uma mulher
que se definhava numa velocidade assustadora. Tenho certeza de
que devia se sentir a mais infeliz das criaturas do mundo. Sem
sombra de dúvidas.

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Isso foi uns dois meses antes da vinda de Cristine, pela primei-
ra vez, à minha casa. Tal informação de tempo torna-se necessária
para que se compreenda que não foi o surgimento de meus “olhos
aliciadores” a causa da agonia de nosso relacionamento. Vinha de
algum tempo antes, insisto. Enxergava na própria Virgínia muitas
particularidades responsáveis por aquela agonia e fico me pergun-
tando se também ela não via em mim outros aspectos tão ou mais
desagradáveis. Eu me pergunto.
Por onde hoje andaria Virgínia? É tudo muito esquisito; não
ligo importância, não consigo, mesmo que queira, despender mais
que alguns esforçados segundos com a sua figura, com aquele seu
jeito de representar indiferença às coisas, de não dar tento a nada.
Foi-se embora sem deixar saudades ou inquietações. Como se nun-
ca tivesse existido, ou fosse obra de um sonho fugaz. Não parecem
ter restado cicatrizes, nem, de minha parte, necessidades maiores de
consolo. Virgínia! Olho-me em seus escombros, em cada frincha,
divido-me em partes, e na-da. Fui-lhe grato, e tão somente.
Será que nela, porventura, terá restado qualquer resíduo de mim?
Muitas e muitas vezes meditei sobre isto, porém como ter respostas?!
Não posso negar que me reconfortaria bastante saber-me lembra-
do por ela, gostaria de ouvir isto de sua voz. Gostaria. A hipótese
contrária, quando acontece de me percorrer o cérebro, me traz uma
ponta de decepção, e aí procuro não pensar nisso. Aliás, penso que
todos os homens gostaríamos que as mulheres de nossas vidas guar-
dassem de nós alguma forma de arraigada saudade; no mínimo, uma
(e)terna lembrança. Isso é cabotinismo, sei, talvez mesmo intolerável
egoísmo. Mais que tudo, crueldade, até; porém, é o que dita minha
fantasia. Fantasias! Como elas serão, nesse pormenor?

***
Cristine consistia numa espécie de contraponto, de avesso: fecho as
pálpebras para poder enxergá-la, para que os raios do sol não me
risquem a retina e me turvem a visão, contudo, suas feições gostam

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de escapar. É fenômeno quase permanente não conseguir localizá-
la, quando me esforço nessa tarefa. Chega a ser norma que ela fuja.
Às vezes, busco puxar por pelo menos um detalhe do seu rosto, na
esperança de que, a partir daquele fragmento, reconstitua o todo;
porém, é em vão.
Assim, quando necessário, lanço mão da única fotografia que
dela restou: nós dois sobre um rochedo, numa praia capixaba, o
mar tomando a maior parte do quadro, uma ilhota, ao fundo, co-
berta por vegetação de arbustos, um dia ensolarado e vivamente
azul. Não é boa foto. Nem eu, numa pose tímida e esquiva, nem
ela, havíamos saído bem. Pessoalmente, era muitíssimo mais bo-
nita. Talvez o excesso de luminosidade, uma luz defeituosa, ou
mesmo a baixa qualidade do equipamento fotográfico tenham
contribuído para esse resultado. Ela, aliás, não era mesmo muito
fotogênica: sorria um pouco exageradamente, penso. Os cabelos
cheios, despenteados pelo vento, procurando contê-los com uma
das mãos. Mas havia aqueles olhos de magia. De tudo, são seus
olhos e seu cheiro o que mais guardo.
Cristine se esforçava para que suas leituras coincidissem com
as minhas preferências. Incrível seu esforço para ser agradável,
para cair no meu gosto. Frequentes vezes lia trechos dos roman-
ces da fase realista de Machado de Assis, de qualquer deles – leu
todo o Dom Casmurro por iniciativa própria – procurando, certa-
mente, alimentar em mim algum reconhecimento especial, sei lá.
Era adorável ver aqueles lábios recitando uma passagem qualquer
daqueles livros.
Seja como for, digo que ela vinha fazendo progressos, já que,
no princípio, temerosa e contida, deixava escapar, vez em quando,
um entusiasmo por obras que, no mínimo, deveriam ser conside-
radas como de mau gosto.
Nas aulas, mantinha-se numa posição de regular para boa, en-
quanto outrora seu desempenho chegava a ser medíocre. Passou a
responder a questões de relativo grau de dificuldade, adiantando-se,

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inclusive, a alunos de maior capacidade intelectual. Alcançou mesmo
notas muito boas, o que me surpreendeu. Quer dizer, ela procurava
se aplicar. Como conseguia isso é que não sei explicar. O esperado
– e não estou, de modo algum, sendo pretensioso – é que se descui-
dasse, se mantivesse um tanto alheada, desatenta com as lições, e que
seu rendimento escolar piorasse. Não sei; é o que penso. Acima de
tudo, imagino que nossos sentimentos costumam mergulhar fundo
demais, não dando oportunidade para que a razão e o intelecto se
ergam e venham à tona buscar ar. Pois não foi o que se deu. E isso
sem nenhum favorecimento de minha parte, sem nenhuma condes-
cendência. Pelo contrário; até me vigiava em demasia acerca desse
detalhe. Para não restar mal-entendido, adianto que sua única regalia
era a de ter sua prova corrigida em primeiro lugar. Eu buscava a dela,
no meio daquele maço de papéis, logo de início, catando pela sua
letrinha, e dedicava-lhe a primeira atenção. Nada mais. Afianço que
nunca interferi, que não era benevolente em sua avaliação.
Talvez, naqueles primórdios, ainda não admitisse que já come-
çava a entrar em cena uma forma extraordinária de afeto por Cris-
tine. Como poderia saber, como poderia adivinhar? Estava tudo
inconsciente, acho. As mudanças que se processavam dentro de
mim não tinham aflorado, não haviam migrado para o nível da
consciência – ou da aceitação, não sei como melhor dizer –, o so-
brenatural encantamento que sua imagem já me proporcionava.
Quer dizer, eu sabia, sem saber.
É difícil olhar para trás e recordar tudo. Já me esqueci de muita
coisa que me seria de valor, caso desejasse traçar seu exato perfil.
Enfim, dou-me por satisfeito; afinal, não é esse o meu propósito.

Prélude pour piano


Lembro-me de que era uma sexta-feira, final de junho, último dia
do semestre letivo, e Cristine no pátio, com outras duas garotas;
eu, tolo, a contemplá-la através das enormes vidraças da fachada

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principal: estava com o uniforme da escola – calça jeans e blusa
branca –, porém de cabelos molhados, como quem acabasse de
os lavar, e sem nenhum livro ou caderno. Talvez tivesse faltado às
aulas, não sei. De minha torre de observação – o imenso saguão
interno, entre a secretaria, à esquerda de quem entra, e a rampa
de acesso aos andares superiores, aos fundos –, minuciosamente
escrutinava cada jogo de mãos, cada inclinação de cabeça, cada
encolhimento de ombros, cada vaga insinuação do corpo: osci-
lava levemente o tronco para frente e para trás, como se a qual-
quer momento fosse tombar, ou como se dançasse ao som de
imperceptível música (essa espécie de bamboleio lhe era típico),
enquanto eu, maravilhado, estupefato, permanecia praticamente
estático, meus sentidos em caos, sentindo-me, ao mesmo tempo,
extremamente extasiado e aflito; sua visão me abalava de tal forma
que era quase como receber descargas elétricas a intervalos inin-
terruptos. O piano vivace na acústica do anfiteatro, acompanhan-
do o coro do colégio (às sextas, há aulas de canto).
Naquela confusão em que me debatia, sucedeu-me fazer o
seguinte raciocínio: se saísse para o pátio, se fosse para um pon-
to onde ela me tivesse sob mira, poderia abalançar as reações de
Cristine, digamo-lo assim, decifrar o tanto que havia de anseio e
enlevo de sua parte; mariscar, com reserva, alguma demonstração
exterior de uma intenção, sei lá. E aquilo me tocou para fora, de-
pois de muitas e fugazes incertezas.
Estava um dia lindíssimo, o ar meio abafado, muito mais até
do que grande parte das manhãs de verão. No pátio, a estudantada
em alvoroço e elétrica mais se assemelhava a um grupo de excur-
sionistas pronto para a mais aventureira e divertida das viagens.
Bom, postei-me pouco adiante da portaria a revirar minha
pasta, os bolsos, simulando que procurava algo – para justificar
minha inusitada interrupção naquele ponto, eu que, de ordinário,
desapareço do colégio mal encerradas minhas atividades. Quando
ergui a cabeça, notei que ela me espiava com o rabo do olho. Ao

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fim de fração de minuto, ela se voltou de novo para as meninas
com quem confabulava antes, deixando-me, entretanto, a forte
impressão de que aquele sorriso era muito mais aberto do que
enquanto me encontrava oculto de sua vista.
Passado algum tempo, ela mudou de lado, pondo-se numa po-
sição quase frontal a mim. Cheio de perplexidade, tive impulsos
de chispar de volta para o saguão, confesso, me entrincheirar de
novo na débil claridade lá de dentro, onde me encontraria protegi-
do de seu alcance e de seu fisgar – os reflexos do sol, que incidiam
obliquamente sobre a vidraça, praticamente cegam a quem está
do lado de fora. Mas e a determinação?! Quem falou que minhas
pernas aceitaram recuar três ou quatro passadas?
Aí uma força desconhecida e possante foi me empurrando, atô-
nito e absorvido, exatamente na direção contrária, para o vão-livre
entre os pilotis. Movia-me à deriva. Suava abundantemente (é ver-
dade que aquele mês de junho estava mesmo muito quente, mas o
efeito térmico que experimentava era desproporcional).
Minha preocupação, como é compreensível, era a de parecer
o mais natural possível, a fim de não despertar nenhuma curiosi-
dade (tinha a nítida sensação de que ela me seguia todo o tempo
com aqueles olhos de almenara). Entretanto, meu real desempe-
nho figurava-se exatamente como o contrário, ou seja, eu parecia
deslocar-me feito pisasse em entulhos, pesadão, com uns parafu-
sos soltos e, ainda por cima, com vento contrário. Zelava cada um
dos meus próprios passos, a fim de que parecessem perfeitos e
inflexíveis, pesquisava o chão, enfiava e retirava as mãos de dentro
dos bolsos, repartia os cabelos com os dedos, fingia seguir os car-
ros que abandonavam o estacionamento, a fisionomia das pessoas,
esse monte de recursos que nosso espírito trata de lançar mão
quando nos vê à deriva.
Para ser honesto, digo que mudei várias vezes de lugar, e ela
sempre me dando a impressão de que achava nova posição, a fim
de que pudesse me manter sob seu ângulo de vista. Nesse vaivém,

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acabei estancando junto a um grupo de professoras, entre o ba-
nheiro dos estudantes e a sala de Desenho, que ficava exatamente
no lado oposto ao da portaria principal. Estavam lá a Leonor, a
Lúcia Alvim... destas me lembro muito bem. Acho que também a
Josilene e, talvez, a Fátima Bueno. Aquelas eram mulheres muito
curiosas (refiro-me às duas primeiras): por incrível que pareça, con-
cediam a si próprias a intemporal prerrogativa de se imiscuírem na
vida de quem quer que seja, como se isso fosse a coisa mais natural
do mundo. Estranho! Muito estranho!
Parei junto delas, como disse, mas em momento algum me de-
ram mesmo quase nenhuma atenção; praticamente não tomaram
o menor conhecimento de minha presença, não se dignaram a me
dirigir o menor reparo, nada, nada.
Devo ter interrompido alguma conversa das duas, imagino,
pois houve um intervalo mais ou menos prolongado em que se
calaram por completo. Na hora, não atinei que eu ali era corpo
estranho, nem me incomodei com o que pudesse ser entendido
como impolidez ou indiferença da parte delas. Estava ali, em certo
sentido, para me camuflar e para dar chance a que inventasse al-
gum acontecimento, mas que nem eu próprio saberia dizer muito
bem o que seria. Não fazia parte de meus interesses, em absoluto,
tomar conhecimento sobre o que conspiravam.
Não mais que cinco segundinhos depois e Leonor Sabem a
Irenilda...?, dirigindo-se inconfundivelmente para a Lúcia Alvim.
A Irenilda!?, repetiu, após um ligeiro circungiro do olhar, procu-
rando também captar o interesse dos demais presentes. Pois é,
dizem que o marido...
Cristine se deslocara um pouco para a esquerda, pondo-se
diante de uma daquelas colunas, arrastando consigo as outras duas
meninas (um rapazola se juntara ao grupo). Juraria que ela como
que se exibia para mim, que se expunha como caça, balançando as
pontas úmidas e desembaraçadas dos cabelos, desafiadora, sorriso
terno e quase impudico.

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... imagina, um homem abandonar família...
Certifiquei-me, para minha extrema satisfação, que aquela mu-
dança de posição se devia ao fato de que, permanecendo onde se
encontrava antes, ficaria encoberta por um arbusto de copa bas-
tante espessa e, portanto, longe do meu ângulo de visão.
... duas filhas lindas, uma de cinco anos, outra de...
Impregnado de profunda e infinita felicidade, e vivendo um
doce estado de alucinação, não despregava os olhos daquele vulto
mágico, que me atraía como estranhíssimo magneto. Sentia-me
como que imerso num mundo leve e voluptuoso, cheio de brisas e
de cores suaves, no qual só ela resplandecia, mergulhada num relu-
me vivo e cabalístico, enquanto todo o resto do mundo adquirira
tons de palidez, o resto era opaco e feito de sombras.
Tive a ilusão de que me acenou, meio às escondidas, mas desse
gesto não estou certo. Como nos enganam os sentidos, quando
estão suportando situações extremas! Não importa.
Ensurdecido, em meio àquele vozerio, vi-me pouco a pouco
desligado da existência e do telúrico, de onde só era arrancado, mui-
to de vez em quando, pela voz exaltada e estridente de Leonor ...
uma pessoa sem classe e que nem beleza tem. Se ainda ti-
vesse, vá lá, mas..., meus olhos turvos e aquele rostinho lindo, de
frescor e suavidade espantosos, a gélida sensação de que a vida é um
perene de encanto e de êxtase, e que só adquire substância quando
ela, a vida, é cerzida de intensas e pujantes vibrações e frenesis; de
que, afinal, se pode fabricar felicidade e ocupar-se com ela, e que
mesmo o mar tempestuoso e as lavas incandescentes acabam por
valorizar a passagem de cada um dos seres humanos nesta Terra.
Naquele jogo nervoso, cada gesticular de Cristine minha me-
mória tratava de fixar como se fosse imagem em câmera lentíssi-
ma, aqueles trejeitos que se sucediam, um após outro, sem que eu
perdesse nenhum detalhe, nada, por mínimo que fosse. Via ape-
nas aquele rosto ensolarado sobre nuvem de cabeças e de corpos
umbrosos e que ficaram fora do meu alcance.

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Sem qualquer aviso, meu cérebro, ameaçando despertar, tra-
tou de contrapor Virgínia (um pensamento sentinela – como é
que essas coisas se perdem, de forma assim tão incompreensível,
como é possível que tudo mude tanto?), mas logo, logo, cingiu
Cristine novamente. Lá estava ela, linda, rindo abertamente, pare-
cendo feliz para todas as eternidades.
Numa fugacidade, cruzou-me a cabeça a conjectura de que
também ela, um dia, poderia perder, da mesma forma, a sua sig-
nificação, e aquele semblante vir a se apagar. Mas, no fundo, eu
duvidava de que aquilo fosse possível.
Devo lembrar uma oportunidade, muito depois, em que, sem
premeditação alguma, inquiri de Cristine, acaso um dia nós nos
separássemos, se poderíamos nos converter em amigos. Nunca!,
protestou, em voz alta, num tom que chegava quase a assustador.
Nunca, insistiu, com aquela confiança e solidez que sua têmpera
lhe permitia e que lhe eram de praxe.
Nada é eterno, procurei rodear, sem plena determinação,
mas ela me interrompeu, quando o amor morrer, morre junto
o que pode parecer com amizade... Aliás, tudo morrerá.
E no que nos transformaríamos, então?, indaguei, na mes-
ma velocidade. E ela, com um gesto misterioso e numa voz quase
sumida, em duas máscaras perdidas num imenso salão... E
num pôr de sol... acho... calando-se a seguir, parecendo profun-
damente pensativa. Impossível!, arrematou, como se suspirasse.
Se me inquietei quando me pus a pensar no que Cristine figura-
va para mim, naquela hora, lá no pátio, se me assombrei com o que
o nebuloso futuro poderia nos reservar, não me lembro. É mais
certo que sim. Não se pode esperar outra ocorrência. Contudo, em
tais situações sabe-se que os órgãos do intelecto tratam de pôr para
debaixo do tapete aquilo que não nos favorece, aquilo que não nos
convém. É assim que funcionam, para nosso abrigo e refúgio.
Lá adiante, ela se insinuava ainda mais, pescoço empertigado,
corpo erguido e resplandecente; clareira em meio às brenhas. Aí

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me deu um estalo na cabeça: ir à cantina e comprar-lhe um chi-
clete. Um chiclete! Claro, hoje sou consciente de que aquilo era
maluquice. Não necessito que me censurem. Chego a dizer até
mais: era o máximo da inconsequência. Mas, na minha combustão
interna, foi o que me ditaram, desinsofridos, meu desejo e minha
fantasia. E foi exatamente o que fiz. Descolei-me, incontinenti e
aéreo, daquele grupo de professoras, sem dirigir uma única pala-
vra a ninguém, e, perdido como um sonâmbulo em meu mundo
particular, avancei para aquele destino, antes que a escuridão e a
fraqueza tivessem tempo de dar sinal.
A vertigem, as brumas. O caos reinante em meu espírito veio
finalmente terminar por tapar o que restava de minha percepção,
deixando em seu lugar uma espécie de hipnose. Entorpecido, perdi
o chão, que oscilava relutantemente e adquirira tonalidade amarela
suja e despolida. Os ouvidos zumbiam. A aguardente dos sentidos
(nem me recordo de haver pago o tal chiclete). Um ventinho fresco
soprando as gotas de suor (esta a única fronteira com o que me ro-
deava), meu corpo agora refrigerado cruzando o caminho, passos
vertiginosos, extraordinária sensação de desambientação, de irreal.
Só do que consigo lembrar daquele lapso em que permaneci des-
ligado da realidade é de mover-me sorrateiro e clandestino em volta
das outras meninas e deixar, furtivamente, a goma de mascar em sua
mão, crente de que era invisível, de que não houve testemunhas, de
que, tal como eu, os circunstantes todos estivessem também cegos
e necessitassem de quatro óculos para presenciar aquela prova. Meu
inconsciente tratou de me enganar, como acontece tantas vezes, dei-
xando em mim a plena convicção de me encontrar encoberto por
indelineável máscara a me proteger o rosto. Essa é uma situação es-
tranhíssima, em que nossa consciência, em situações aflitivas, inventa
uma espécie de blindagem. Nosso cérebro é assim.
Ela me sorriu delicadamente e me pareceu muitíssimo tranquila,
enquanto eu, preso pela maior aflição, retirei-me feito meteoro; eu
me transformara num braseiro, me fogueavam o rosto, as orelhas...

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Mas trouxe comigo seu cheiro, que veio... veio... veio durante qua-
dros e quadros, até perder-se no espaço.
Não se disse palavra.
Retornei para junto do grupo de professoras, sem perceber
que, por desgraça, o diretor estava entre elas: aquele ar de supe-
rioridade e aquele horrível hábito de estufar as bochechas com a
ponta da língua, como se as escovasse por dentro. As mãos balan-
çando os bolsos da calça. Foi esse o momento do meu despertar.
Meus ouvidos voltavam a colher os sons do mundo, meus olhos
readquiriam, pouco a pouco, a contemplação da existência e da
vida real. Percorri as expressões do rosto de Laurindo: ele lançava
sobre mim miradas que lia como de deboche, mas também como
de sentença condenatória emanada pelo mais austero tirano. Os
cabelos espetados para o alto como sabre, a cara raspada, óculos
abrutalhados, os grandes olhos, os quais lhe davam expressão de
permanente espanto ou desespero. Levantava os óculos repetidas
vezes, como se quisesse dar ares de sabedoria e audácia a si próprio.
Indivíduo rude, era o tipo de pessoa que, nos momentos em
que era invocado, sempre incerto se se tratava de troça, deixava
desenhar no rosto um sorriso meio abobado, o qual poderia ser
interpretado, pelo seu interlocutor, de que havia compreendido a
graça, mas se permitia rir contido; se se tratasse de alguma ponde-
ração sensata, que ele refletia profundamente. A intensidade leve
do riso poderia deixar passar que ele apalpava todas as possibili-
dades e hipóteses. Um verdadeiro fóssil!
É estranho a gente guardar assim tão clara e intensamente a
expressão de uma pessoa. A sensação que deixou foi a de que me
farejava. Lá estava, plantado na minha frente, interrogando mi-
nhas reações, sem ao menos se preocupar em ser discreto; aquele
ar insidioso e maligno.
Pesquei a fisionomia de cada colega, mas não pressenti ne-
nhum sinal de alarme. A Lúcia Alvim, como de costume, fumava
de forma deselegante e até mesmo masculina – masculina aí no

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mau sentido –, não cuidando nem ao menos de lançar para longe
a fumarada do cigarro. Leonor desabafava que tinha esperanças
de perder uns quilos até a chegada do verão, de que a escola par-
ticular de seus filhos era isso e aquilo, e depois, sem nenhuma
respiração, passou a discursar a respeito de umas dores que vinha
sentindo no ombro, as quais atribuía ao uso do apagador.
Recordo-me que o diretor ainda me indagou como andavam
minhas turmas, se vinha tendo problema com a disciplina, uns ne-
gócios assim. Ainda não de todo refeito, respondi-lhe com per-
guntas de igual teor, pois, desse modo, o discurso retornava para
ele. Laurindo procurou fugir do assunto, mostrando-se impres-
sionantemente cordato e inócuo, o que fez com que eu chegasse
a considerar que tinha sido falsa minha impressão acerca de seu
comportamento. Por curtíssimo espaço de tempo. Acho que meu
estado emocional se responsabilizava por tão repentina mudança
de conceito, não consigo enxergar de outro modo. Pouco depois,
no entanto, ele reassumiu os princípios que, sem dúvida, são seus,
e que invariavelmente vêm anunciados por aquele riso sardônico e
afetado. Quer dizer, no meu desespero, minhas opiniões mudavam
tal qual o vento, que açoita para lá, açoita para cá e por aí vai.
Senti então urgente necessidade de bater em retirada, de cal-
çar coturnos e dar o fora. Ali me sentia no meio dum ninho de
vespas; sem dar tempo a nova decisão, arrebanhei minhas forças e
fui embora, aproveitando que todos se viraram para uma gritaria
que vinha da encosta de acesso à piscina. Essa não é propriamente
uma lição de boas maneiras, sei disso, mas, afinal, nenhum deles
havia mesmo me tratado com civilidade, de modo que me senti
desobrigado de ser cortês.
No final do estacionamento, onde começa a descida da colina,
voltei-me meio segundo para trás. Não vi mais Laurindo, nem as
professoras. Haviam se dispersado, só restando uma condensação
de sombras e de aflições.
Fui para casa sentindo-me um tanto quanto assustado. Andan-

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do, ia revendo todos aqueles episódios, passando em mente cada
daquelas cenas.
Duas ou três horas depois eu ainda encadeava a situação. Penso
que Cristine não devia ter notado o Laurindo, pois, se assim o fosse,
teria adotado postura mais discreta. Era esperada cumplicidade de sua
parte. Pois não foi o que aconteceu.

A sereia
... e tu, preclaro Ulisses, deves ser atado ao mastro com tantas amar-
ras quanto necessárias, ao ouvires o canto da sereia, cuja voz encan-
ta a todos os que dela se acercam. Se alguém, sem dar por isso, se
deixar levar, ficará cativo do canto harmonioso, contudo, pérfido...
Sê também previdente com os vagalhões, que de encontro às
altas escarpas e rochedos podem sua nau lançar.

O vestido da noite
... não existia no seu gesto nada que lembrasse recusa, conspiração,
nada disso. Nenhuma atitude rompante, mesmo tendo se furtado
de se virar para trás, mesmo permanecendo todo o tempo de costas
para mim. Não senti nenhum efeito de aridez ou desprezo, insis-
to, mas uma postura que se diria nobre, majestática; e uma inefável
e serena altivez, que acabava por me estancar, por me impedir de
adiantar um passo. Tão alta e serena; acima de tudo, tão íntegra e
imaculada. Os cabelos lhe caíam no dorso, a mais amena sensação
de exalarem suave fragrância.
Glacial e triunfante, aguardou um tempo infinito o ônibus que
a conduziria, na partida, na quietude de uma das transversais da
minha rua. Sim, reconheci aquele cenário como próximo à minha
casa e posso assegurar que, mesmo embarcando naqueles antiqua-
dos ônibus de rua, sua galhardia e garbosidade ficaram imacula-
das. O essencial era que havia indefinível e singular noção de que
ela me pertencia, de que podia cercá-la em meus braços. Era óbvio

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que retornaria, havia no ar essa promessa.
E, dentro em mim, emoções díspares se entremeando, nostalgia
e aconchego, comprazimento e êxtase, entrecortadas ao acaso por
estranhíssimas e atordoantes criações negras.
Imperiosa, e ao mesmo tempo terna, adentrou no veículo e foi-se
embora. Restava-me aguardar pela sua volta, complacente e resignado.
Que arcanjos teriam tecido aquelas faiscantes e pungentes ce-
nas? Ela, enfiada num longo vestido, fechado qual beca, cor azul-
noite, solene. Extraordinariamente bela, extraordinariamente irreal!
O espaço de tempo pareceu-me demasiado exíguo; na sequên-
cia, como num imenso cartão-postal, Cristine, suave e encantada,
diante de monumental aeronave, numa pista de aeroporto, posava
ao lado da tripulação. Tão orgulhosa e segura! Tinha o brilho das
estrelas, de fadas; como o céu, como o sol que se interpõe entre
nesgas de nuvens fechadas. O mesmo vestido azul, quase preto,
suntuoso, bem cortado, drapeado até os calcanhares, feito as fais-
cantes manhãs de abril.

Os páramos
A gente se vê nos sonhos, se enxerga nos próprios sonhos, se re-
conhece como personagem de si mesmo, ou tudo é tão somente
como uma câmera de mão, com a qual se sai fazendo tomadas
nonsense, as quais, depois, o cérebro trata de concatenar a seu bel-
prazer? Hein? Pergunto-me isso. Sonhos são os delírios que temos
enquanto ainda não tivemos tempo de enlouquecer.

Eros
Cristine, Cristine Sorel, estendida sobre o leito, recostada na ca-
beceira, pernas cruzadas, lascivo vestido cetim coral, frente-única,
enfreado até pouco acima dos joelhos. As costas douradas, pontas
dos cabelos úmidas de suor, o rosto agreste, lábios vermelhos de
quem acabara de retocar o batom desninhando uma meia maçã,

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os olhos dançando sobre o livro aberto. Lufadas de vento sibi-
lando na veneziana, chocalhando o sino-de-ventos (Virgínia!, ato
breve, mas logo tudo se desfez).
Reajeitava o corpo, descruzando e cruzando ao avesso as pernas.
Não fariscava minha sobre-excitação, minha busca por desvendar o
que existia acima da reduzida abertura, as partes secretas adiante
da sinuosidade dos joelhos que, femininos, arqueavam um sobre o
outro. Ela ali estava, genuína e inverossímil, diante dos meus olhos
açorados, que não obedeciam, não guardavam sentinela fixa.
Não intimidá-la, não querer parecer inconveniente, eram ope-
rações que exigiam bem mais do que uma missão domável de
meus sentidos e de minha integridade. Reter aquele furor signi-
ficava diligenciar forças que não sabia existirem em mim, apesar
de, em nenhum instante, haver inferido, da parte dela, a menor
sombra de pudor. O que houvesse nela de recato e timidez sabia
encobrir e muito bem. Estava segura de sua situação; uma presen-
ça sólida e alentada e que nunca parecia se perturbar.
Eu seguia os vestígios através de férvidos pontos luminosos
e centelhas, de efervescências qual bolhas de ar, vindas do fundo
dos oceanos: a cama larga, cabeceira de madeira maciça e escura,
lençol amontoado nos pés, janela entreaberta, atmosfera de re-
sumida luminosidade e grande eclipse; crepusculares assombros.
Essencial era procurar me conter, esperar pelo que viesse, da
parte dela. Intuí que o mais prudente seria manter-me o mais pa-
rado possível, pois temia, com o menor gesto, desalojá-la do seu
espaço sonhado, despertá-la daquele inocente arranjo, onde a via
doce e encantadora; deixá-la esquecer-se. Talvez meus passos pu-
dessem perturbá-la, talvez, era uma probabilidade.
E aí, sorrateiramente, expedi-me para as zonas de mais som-
bras do cômodo, onde, imaginava, poderia passar despercebido.
Ela não se dava conta, essa era uma agradável certeza, que parecia
se prolongar... se prolongar... Ia virando as páginas, virando as
páginas, indicador nos lábios, repassando as folhas feito saltasse

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trechos inteiros – ou como se lesse revista em quadrinhos –, uma
luz de suavidade no rosto baixado no livro, a pele cor de bronze,
olhos claros e quietos.
Não existem sonos sem sonhos? Porquanto também haveria
de haver o contrário disto, os sonhos sem o sono.
Então olhos astutos e atilados se ergueram para mim; olhos
de rapto, de contrabando, que logo depois, por puro mistério,
tornaram-se mansos e ternos, e acabaram encontrando os que
passeavam pelo seu corpo. Aquelas órbitas exerciam um efeito de
encantamento, de hipnose; como archote mágico que queira cegar
ou abolir atmosferas, deixando de resto a elipse que abrigava suas
órbitas, as sobrancelhas finas, a raiz do nariz.
E adiávamos aquela contemplação mútua, ela nem minima-
mente perturbada. Em seguida, recordo-me que ela levantou-se
da cama, esticou o lençol, prendendo a barra debaixo do colchão,
ajeitou os travesseiros, paciente e descontraída, e voltou a deitar-se,
dessa vez com um dos joelhos um pouco entreaberto, o outro no
plano da cama; rosto de mulher feita – foi a forte impressão que me
entranhou –, enquanto verdadeiramente me afrontava, as mechas
dos cabelos crespos, num termo médio entre o castanho-claro e o
dourado. A boca assim meio grossa, mas que, milagrosamente, não
maculava os traços de feminilidade, não lhe desfazia as formas de
mulher, em absoluto; ao contrário, chegava mesmo a traduzir a sua
força interna, que eu ainda nem suspeitava existir nela.
Encolheu-se e tocou a superfície da cama com as palmas das
mãos, alisando o lençol, apertando os lábios como se para umede-
cê-los com a língua. Devagar, silenciosa, estudando, obliquamen-
te, o impacto que seu gesto provocava em mim. Depois, repousou
a mão por entre os seios, indicadores em gancho forçando um
tantinho para baixo o decote e, estendida ao comprido, esgueirou-
se, anaconda, para os pés da cama. Seus joelhos descreveram um
semicírculo no ar, lento e longo, saltando de uma posição para
outra, calcanhares enterrados no colchão, girando no acompanha-

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mento das pernas, as quais se expunham num trejeito impudico,
sensualíssimo e sôfrego. O abaulado da parte traseira das coxas se
pôs à mostra, no caimento do vestido.
O vestido afogueado adulterara-se, suspendeu-se um tanto, tor-
nando visível, tão fulminante, a lingerie de mesmo tom. Fitamo-nos
um ao outro e nos mergulhamos como se participássemos agora de
um mesmo transe, e era rapto e recolhimento, inocência e licencio-
sidade, o jeito fêmeo de ser, cio dos animais dos campos. Abriu o
sorriso, seu peito se expôs, o roçagar do vestido, os haréns, eu, pe-
trificado, assistindo a seu lento mover de garras qual lagosta recém-
capturada... O fôlego não era mais o meu, nem o dela, mas o de nós
dois se misturando, a noite se transfigurando numa retração de ruí-
dos, nebulosa e interminável, que continha meus fluidos e secreções,
pupilas em fendas... “a árvore que está no meio do jardim”... a brisa
da noite (a brisa da noite), ventos de mar, o sino-de-ventos, o corpo
que se expunha, se desvestia, os restos da maçã sobre a escrivaninha,
reentrâncias de dentes na sua carne, na sua massa, maçã.
Feche a janela, num tom de voz contraído, porém terno,
muito terno.

Gênesis I
3, 1 - É verdade que Deus vos proibiu comer do fruto de toda árvore
do jardim?
3, 6 - A mulher, vendo que o fruto da árvore era bom
para comer, de agradável aspecto e mui apropriado para abrir a inteli-
gência, tomou dele, comeu e o apresentou também ao seu marido, que
comeu igualmente.

Os seios e as flores
Flores...
O que você falou?
Que tem aroma de flores.

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O que tem aroma de flores?
Você. Os seus cabelos.
Ela se limitou a um sorriso meigo e tímido, enquanto saltava
pelas minhas pupilas.
Qual o nome deste perfume?
O meu?
Hum, hum...
Rocahout. Gosta dele?
Tem cheiro de flores. Era disso que eu falava.
Qual flor?
Não sei; jasmim..., canela... Talvez isso.
Canela não é flor, gracejou.
Limitei-me a sorrir, condescendente.
Tocou-me o rosto. Meditava longamente, mirada no infinito, os
sentidos perdidos. Com o que estaria sonhando?
Logo hoje que não tive uma noite tão boa.
Sonhos muito ruins...
Depois de instantes largos, sacudiu levemente a cabeça, como
se quisesse arrancar alguma má figuração, de lá de dentro, e voltou
a abaixar os olhos, que agora passeavam livres pelos meus cabelos.
Você também sonha com coisas terríveis?
Consenti com a cabeça, porém ela nem notou meu gesto.
Quase nem vim aqui.
Parou para pensar.
Mas não pense que me arrependi, exclamou, numa inflexão
ligeiramente inflamada.
Depois, sorriu vagamente.
Tchtchtchtch... (estalando a ponta da língua no céu da boca)
Longe disso... De manhã, estava como se tivesse comido
algo amargoso.
Então vou te comprar, a cada dia, um pote de mel, pro-
curei desanuviar.
Seu sorriso se alargou fartamente, o tempo de mergulhar de

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novo numa zona de abstraimento e de misteriosa introversão.
Em meio àquele longo período em que parecia meditar acerca
de algo, me puxou, com extrema leveza, para junto de si, e me envol-
veu, com energia, até minha cabeça aninhar-se no oco de seu tronco.
Está ouvindo meu coração?
Eu a bordo de seu todo, inerte, sentindo o ritmo acelerado
das batidas.
Daí a pouco, afrouxou os braços e passou a me alisar as costas,
num toque parecendo feito a não mais que meio milímetro de dis-
tância da pele, tangenciando tão íntimo que só se deixava perceber
por estranho ímã existente nas pontas de seus dedos e que movia
e eriçava os pelos do meu corpo.
Transcorreu-se um tempo de brisas, de silêncios, de fugazes e
torvos estrépitos, que punham em risco minha resignada letargia.
Ergui a cabeça – estava muito bonita! – para, logo em seguida,
voltar a me tornar seu cúmplice, minhas narinas descortinando
suavemente seu pescoço, os lóbulos das orelhas, os cabelos, o ân-
gulo dos lábios, os poros congelados de sua pele... Seus grandes
olhos de viés.
E aí, que cheiro tem?, gracejou (eu estava entre o queixo e a
marca do sutiã).
De Cristine.
?
Ninguém no mundo tem este odor.
Ela sorriu afetuosa e num vago desconcerto.
Eu seria capaz de, com olhos vendados, reconhecer
seu cheiro, entre milhares.
Parecia não saber o que diria em seguida.
E agora?, desviando-me alguns centímetros para o lado.
Rocahout.
Silêncio.
Me dá a sua mão, exigiu.
Fração de minuto depois:

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Você está quente!
Ergueu-se um pouco na cama, deitada de lado, apoiando a
cabeça num dos braços:
Você tem a boca bonita, balbuciou, enquanto comprimia
meus lábios, com suavidade. E cílios longos... longos... Queria
ter cílios iguais aos seus. São... femininos..., dedilhando-os e
interrogando minha reação diante da definição de feminino.
Eu ia dizer qualquer coisa, qualquer idiotice, mas ela me inter-
rompeu, Pss... pss..., fechando meus lábios com seu indicador.
Deixou arriar o corpo na cama e descansou a mão no meu ombro.
Acariciava-me a nuca, longamente, longamente, nós dois mer-
gulhados num silêncio nevado.
Muito depois:
De qual você gosta mais: do perfume, ou do cheiro
do meu corpo?
Do Rocahout ou do seu corpo?
Hum, hum...
Eu, vazio de ideias, a mente se recusando a emergir, a sobreer-
guer. Digo que não soube a resposta, que as palavras me pareceram
aprisionadas, aninhado no seu entresseio, enquanto seguia, domes-
ticado, por áreas contíguas do seu tronco, da fronte, para onde me
levavam suas mãos insensatas e ardilosas.

Nêmesis
Numa ocasião, Sílvio de Castro Pena, um boa-praça, quase-amigo
meu, professor de Matemática, me apanhou na descida do morro
do colégio. Não era de se estranhar que assim o fizesse, em abso-
luto; afinal era, praticamente, o único com quem tinha certo grau
de familiaridade. Discorreu sobre o tempo, sobre os desprazeres
que a profissão andava lhe causando – era um eterno insatisfeito
com seu ofício –, sobre futebol, desses ingredientes de que lança-
mos mão quando não há verdadeiramente nada de substancioso

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para se tratar. Quase quarto de hora naquele ritmo.
Caminhamos, caminhamos, e eu acedendo ao que ele ia dizen-
do, respondendo apenas por algumas pálidas exclamações, muito
mais por certo enfado, de minha parte, do que propriamente por
aprovar seus pontos de vista. Ao menos, cuidava de não estender
em demasia aqueles temas, já que não me encontrava mesmo mui-
to disposto, naquele dia.
Num determinado momento, no entanto, teci comentário
mais que despretensioso, que não deve ter passado de meia dúzia
de palavras, acerca do desregramento dos adolescentes – no sen-
tido de que via, nos jovens da atual geração, sérias dificuldades na
aceitação de normas disciplinares. E, sei lá por qual razão, inseri o
nome de Cristine. Pronunciei o nome dela.
Aí ele me interrompeu, num gesto enfático de quem tinha
algo de suma importância e urgência para abordar e, trocando por
completo de assunto e de feições, advertiu-me para a frequência
com que eu, na opinião dele, mencionava o nome de Cristine.
Devo ter me traído algum tanto, não sei, ter ultrapassado o ponto
que pudesse ser considerado seguro, mas o fato é que ele destacou
esse assunto.
Lembro-me muito bem da expressão no seu rosto, de um levís-
simo sorriso, que não consegui interpretar se de desconfiança ou
qualquer outra coisa, o que, em qualquer das circunstâncias, não era
muito do seu feitio (vale a pena dizer que ele se revelava, de rotina,
pessoa muito discreta, reservada, impenetrável até, além, é claro, de
poder ser considerado como dono de boa dose de amabilidade; a
menos que não lhe conhecesse bem, como acreditava). Era um ar
misterioso. Perguntou-me, por fim, com tom de voz tranquilíssimo,
o que estava havendo, se ela teria algum significado especial para
mim, algo mais ou menos parecido.
Minha reação foi a de uma pessoa que se vê açoitada pela mais
gélida borrasca, pela mais terrível tempestade emocional: os pés
de moleque do calçamento, de repente, fugiram do lugar e passa-

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ram a oscilar, a remexer diante dos meus olhos numa reverberação
inconcebível.
Lembro-me que ele continuou a dizer algumas coisas, porém
eu, inteiramente suspenso, mais nada captava. Pavoroso! Meus
sentidos, em volutas, se perdiam no ar: a mesma frase, as mesmas
palavras açoitando, latejando na tormenta do cérebro. O que me
ia por dentro se assemelharia ao mais implacável e vertiginoso dos
cataclismos, ao mais violento dos transes que a mente suporta.
Aturdido, senti que transpirava por todos os poros. Eu, diria-se,
esmerilava meus movimentos, enquanto o fôlego buscava modo
se desentalar.
Após largos instantes, que poderiam ter se convertido num
verdadeiro desastre, tomei aragem e busquei dissimular:
É porque a considero muito inteligente e interessada, só
isso, enquanto, com o rabo do olho, tentava alcançar o resultado
de minha inconsistente justificativa.
Minha defesa deve ter sido tão pouco convincente, que ele
praticamente emudeceu e postou-se cabisbaixo, a mão alisando o
queixo, franzindo os cantos da boca. Relanceava os olhos, incan-
sável, na direção dos dele, tentando desvendar suas suspeitas, suas
maquinações: músculos de sua face contraíam em espasmos, num
tique só perceptível em acurada observação, olhar esquecido no
chão. Suas passadas tornaram-se mais arrastadas, a mão deixou o
queixo e oscilava no compasso da marcha. Considerei que não ha-
via conseguido afastar de todo as suspeitas sobre mim. Mas, afinal,
que suspeitas?, interrogava-me.
Bem, o fato é que, para minha felicidade, nos aproximamos do
ponto onde nos separaríamos. Ele guindou à direita, na direção da
Lúcio Alves, onde mora num bloco de apartamentos, enquanto
atravessei a linha do trem e segui em frente.
No meio disso, eu o segui, com as vistas, por algum tempo.
Por qual razão? Não sei. Havia uma mistura de pânico, de ver-
gonha, de hostilidade... Num determinado ponto, agachou-se e

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pegou qualquer coisa no chão. Julguei que iria se voltar, na minha
direção, e procurei me prevenir de ser flagrado por ele, em uma
girada de corpo para detrás de um oiti. Mas não; seguiu em frente,
sem se virar. Até sumir do meu ângulo de visão.
Naquele dia, numa insegurança e inquietação insuportáveis,
mal saí da reclusão de meu quarto. Nunca tive tanto medo. Tinha
presságios terríveis. Engenhava que corria sérios riscos, que me
encontrava indefeso e vulnerável, e entrei em verdadeiro alarme.
Uma espécie de véu sinistro encerrava o espaço em volta de mim,
numa atmosfera de absurda insegurança e aturdimento. Mesmo
em se tratando de Sílvio. Via tudo mais negro e uma série de pen-
samentos funestos me agitou a irrepartida noite.
Na hora de dormir, fiquei passando e repassando rostos, ex-
pressões; flagrei chacotas na cara do Laurindo, risos mal disfarçados
nas bochechas de dona Ermelinda, dissimulações nas de Silvério, e
indiscrições nas de alguns dos professores, os quais não possuíam
nem mesmo uma fisionomia cristalizada e definida; antes, era uma
mistura confusa de figuras e talhes inamistosos, que se sucediam
uns após outros e, a cada vez, de maneira mais terrificante.
Parecia-me que, Deus sabe o porquê, a partir das palavras de
Sílvio, se dissolvera de todo o afeto que nutrira por Cristine. Cri-
mes e pecados eram as únicas sensações que meu peito albergava.
Ela não parecia mais existir, por estranho e incompreensível que
isso possa soar.
Custei a pegar no sono; só muito depois das onze e meia, o
que é demasiado tarde para os meus hábitos. Ouvi direitinho o re-
lógio da matriz badalar as onze pancadas das horas certas, depois
o leve toque dos trinta minutos, e ainda me encontrava aceso. Não
me lembro de ter ouvido soar a meia-noite. Creio que não.
No meu tutano, me golpeava, sem trégua, aquela sentença:
Você fala muito nesta menina, Vicente. O que ela é para
você?

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A minha colegial
No dia seguinte, eu não dava aulas, o que contribuiu para pro-
longar minha angústia por mais vinte e quatro horas. Gostaria, e
muito, de analisar a cara das pessoas, de explorar esse dilema, so-
lucionar de vez tal dúvida. Você fala muito nesta menina... ela
é sua?, se repetindo como interminável polifonia. Estive prestes a
ir ao colégio, sob desculpa qualquer, mas desisti ao final de poucos
embates de análises e deduções. Não seria prudente, sem a menor
sombra de dúvidas. O ambiente deveria estar hostil para mim, an-
tevi, o que agravaria ainda mais minhas angústias, que já não eram
pequenas. Isso na terça-feira.
Na quarta, era o dia em que dava o maior número de aulas da
semana. O que fiz: aproveitei ao máximo os dois intervalos – entre
o segundo e o terceiro horários, e entre o quarto e quinto – para
realizar a mais cuidadosa vasculhadela nas pessoas, procurando
por sinais que denunciassem quem sabia de mim e de Cristine.
Tudo se sabe, numa cidade como a nossa, tudo pode interessar às
pessoas venenosas, e não sou dos que se aliam à noção de que o
ser humano é um poço de virtudes e princípios.
Postei-me na porta da sala dos professores, deixando-me bem à
vista, interrogando as tinturas do rosto de cada um que entrava ou
saía, para poder deduzir do que teriam conhecimento. E fui muito
meticuloso nessa busca. Pois não consegui enxergar nada, exceto
talvez uma dose de sequidão e de má vontade por parte de dois
ou três, mas que já são mesmo conhecidos indivíduos casmurros e
rabugentos e que não me nutrem simpatia; nem mesmo em Laurin-
do, posso assegurar, naquelas negras sobrancelhas e que pareciam
adestradas para intimidar. Dele não esperava o menor esforço de
disfarce. Não me pouparia o mínimo, se me tivesse em suas mãos.
Berenice e Odília passaram raspando por mim, combinando
alguma coisa, e nem se dignaram a me dirigir a palavra. Imagino
que estivessem compenetradas no que confabulavam. Ouvi Bere-
nice rezingar algo sobre crianças, mas não sei se se referia aos alu-

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nos ou aos próprios filhos. Conversavam em intimidade, penso,
são grandes amigas, ambas têm lá as suas ninhadas e não devem
ter me enxergado.
Tais observações me trouxeram alívio. Decerto tudo não fosse
nada mais do que frutos de minha imaginação apalermada, não
passasse de paranoia, o que acabou por me transmitir um pouqui-
nho de autoconfiança. Mesmo assim, aquela tarde não perdeu de
todo a sua atmosfera de labirintos soturnos, o dia não recuperou
por inteiro o brilho do sol.
Era uma manhã muito quente e poucos teimaram em perma-
necer dentro da sala dos professores, a maioria se espalhando pelo
corredor contíguo, enquanto eu, meio enjeitado e vazio, refugiado no
vão da porta, fingia engolir um interminável cafezinho frio e amargo.
Com as circunstâncias e com os dias, como era de se esperar,
meu aparvalhado estado de espírito começou a serenar, até pratica-
mente normalizar. Só de vez em quando era sacudido por alguma
ideia inquietante e sôfrega, que vinha me coagir, me golpear, o que
também acabou por se atenuar, de modo que, no fim de semana,
quase nada mais se fazia sentir.
Era fora de dúvidas que minhas impressões sobre o que Síl-
vio havia me dito estavam exageradas, não tinham cabimento.
Cheguei a considerar inclusive a possibilidade de procurá-lo para
sondar do que estava a par, mas julguei que, em assim agindo,
despertaria ainda mais desconfiança. O bom senso aconselhava a
não proceder desse modo.
Mas uma inquietante lucubração passou a me perseguir, quase
incessantemente, a partir daí: podia ser que, numa outra oportuni-
dade, não tivesse a mesma sorte. Ou por outra, passei a conjeturar
e a persuadir-me da possibilidade de um desfecho trágico qualquer
no futuro, o qual nem eu próprio conseguia delinear minimamen-
te. Quer dizer, o fantasma do medo começava a cavar fundo seus
sulcos. O que podia fazer?
Acertei então em adotar atitude que, imagino, todo mundo to-

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maria em meu lugar, todo mundo adotaria quando se está diante de
situações de alto risco: se deixasse Cristine, se apagasse tudo-tudo-
tudo, poderia retomar minha paz, voltar a ser o que era, ao esta-
do primitivo de sonos da inocência. Via, com toda a clareza, que
bastaria a minha retração, o meu eclipse, bastaria recuar minhas
fronteiras para a lima do tempo se ocupar de cerzir seus grandes
abrigos. O tempo lança água fria, o tempo embainha espadas...
Ainda por conta disso, radicais mudanças de atitude de minha
parte, um distanciamento, um silêncio, poderiam perfeitamente
dar-lhe a compreender – a Cristine – certas realidades, que pesso-
as de sua idade não estão aptas a conhecer assim tão rapidamen-
te. Tratava-se de pôr panos quentes, como se diz em linguagem
comum, tarefa na qual não enxerguei grandes dificuldades, pelo
menos como impressão de primeira hora. Aquele era meu dever
de casa, a parte que me cabia e a qual me dispunha a cumprir, cus-
tasse o que custasse, até por questões de segurança, na ausência
de outro motivo maior. Possuía a convicção profunda de que me
encontrava diante de tarefa que me exigiria não invencível esforço.
E assim pus mãos à obra: quando sua imagem ameaçava aflo-
rar à minha memória, quando ela se encontrava na iminência de
voltar, diligenciava tudo quanto era força mental no sentido de
não deixá-la atracar (como os grandes erros e os grandes crimes).
Procurava me compenetrar da dimensão daquele absurdo e ia
dando jeito de sacudir o sonho que mal se iniciara. Em algumas
oportunidades pus até mesmo Virgínia no meio disso. Imaginava-
me de novo com aquela pobre de Cristo, remontava cenas em que
Virgínia era a protagonista, com quem, pelo menos, enxergava
muito menos riscos e percalços. Na ausência de quem melhor me
preenchesse, acertava em ‘usá-la’ para conseguir me desprender
de Cristine. Era isso.
Mas, bem no fundo, sabia que aquilo era ilusão, remendo, por-
que a memória de Virgínia já se encontrava definitivamente apaga-
da. Aliás, penso mesmo que ela nunca chegou a ter grande brilho, a

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possuir expressividade existencial, acho que se pode dizer assim, e
foi aventura que meus sentidos descartaram sem a necessidade de
verter nem meia lágrima. Portanto...
É muito difícil compreender um homem quando tem medo.
Meus conselheiros espirituais cuidavam, por exemplo, de deixar
sempre visível o pavor de me ver – agora sim – denunciado de
verdade e exposto a escândalos sem proporções. A ideia de escân-
dalo me assombrava muitíssimo. Em especial, me assustava uma
entidade – assim considerarei – até então abstrata para mim: os
familiares de Cristine. Era um mundo que simplesmente inexistia,
que não tinha a menor tangibilidade, e que nenhum dos meus
sentidos jamais trouxe para cima da mesa. Pois, pela vez primeira,
cheguei a reconhecê-los como parte do mundo real, feitos de car-
ne e osso. Sim, pois nada conhecia acerca de sua ancestralidade,
aquilo era imensa lacuna dentro de mim; como se ela fosse um
misterioso ser procedente do mundo das fadas. Não só pelo fato
de jamais lhe haver indagado acerca deles – não me sentia con-
fortável misturando as coisas –, mas também porque dela própria
nunca partiu nenhuma iniciativa nesse sentido.
Mesmo depois, muito depois, quando em meus acessos de en-
tusiasmo desfilava para ela casos de minha vida, Cristine, atenta,
me seguia com o máximo interesse; porém, chegado o instante em
que me refreava para lhe dar vez e voz, se lhe inquiria acerca de
seu meio doméstico, ela se trancava completamente, como se ali
estivessem escondidos segredos que merecessem ser guardados a
sete chaves.
Às vezes, comportava-se mesmo como se lhe houvesse feito
arguição muitíssimo indelicada. Sempre e sempre emudecia. Eu
tocara na “sua ferida”. Aí, seu silêncio se encarregava de dar o as-
sunto por encerrado, o que, de certo modo, não deixava de apro-
fundar minha curiosidade acerca desse tema. Não que me interes-
se pela vida particular de ninguém, não é isso, mas aquele segredo
deixava no ar enorme ponto de interrogação.

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Agora retorno ao comentário do professor Sílvio; não deixei
de tomar, dentro de sala de aula, algumas providências urgentes e
essenciais. Nessa situação de incerteza, para me cercar ainda mais
de segurança, passei a me comportar com o máximo de discrição,
embora não possa garantir que tenha tido êxito completo, que
tenha me controlado todo o tempo com perfeição. Isso não é tão
fácil de se averiguar sem o auxílio de câmera lúcida. A cegueira do
apavoramento embota a percepção. Mas, vamos lá...
Na certa me iludia, pois, de fato, a contemplação da minha
colegial (passei a considerá-la, cá no meu peito, desse modo: a
“minha colegial”) tornou-se, com o tempo, agradável obsessão.
Agradável obsessão é quando a gente se lança de cabeça num ví-
cio, sem temor, os olhos absolutamente cobertos com vendas para
não enxergar o chão adiante, os acidentes de terreno, os fossos,
os abismos a nossos pés, e mergulhado em longas cismas. É só
horizonte longe, só o horizonte longe...
Nas aulas, como que ao acaso, buscava superficialmente pela
silhueta de seus cabelos ondulantes no meio daquela vaga de crâ-
nios juvenis indistinguíveis e sumidiços (ela sentava-se quase sem-
pre no mesmo canto, à esquerda de quem estava na minha posi-
ção, mais ou menos na metade da sala).
Confesso que era necessário lançar mão de vigoroso autocon-
trole para me desviar daquela direção. Ainda me lembro desse
estado de coisas, no qual havia em mim marcados conflitos inte-
riores. Esforçava-me para parecer indiferente e calmo, mas não
conseguia disfarçar que me iludia.
Ela, por seu lado, também não me auxiliava nesse propósito;
por exemplo, passou a se apresentar, como voluntária, sempre que
convidava alguém para ler trechos de livros ou para algum exer-
cício no quadro. Por iniciativa própria, dedicava-se à leitura de
determinadas obras, que sabia do meu agrado, cuidando inclusive
de memorizar longos trechos e repeti-los, nos momentos mais
inusitados. Aquilo bradava como artimanha. Mas, que era encan-

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tador ver seus lindos lábios recitando Dom Casmurro, ah, isso era!
Para falar a verdade, penso que eu repetia muito a tarefa de
exercícios no quadro. As razões, imagino que meu subconsciente
as tenha.
O importante é que deponha que, a partir daí, de pouco a
pouco foram irrompendo, poderosamente, minhas afeições por
Cristine, foram despontando, e aí com intensidade redobrada.
Comecei a pensar muito nela, de forma quase compulsiva e in-
controlável. Não era incomum, por exemplo, eu despertar altas
madrugadas com sua imagem na mente, rutilante e sólida, como
se emergida de um sonho (eram ou não eram sonhos?), visões de
intenso encantamento e fascínio, germinando em mim, ao mes-
mo tempo, assombros e mistérios, e que me arremessavam para
adiante. Para onde? O que significaria aquele salto?

As armaduras
Acontece que, como a má sorte quase nunca é fenômeno solitário,
nunca vem desfalcada de outros episódios de desventura, dois ou
três dias após haver me encontrado com o Sílvio, ia eu fazendo o
caminho inverso, isso é, subindo o morro do colégio, uns vinte mi-
nutos antes das sete da manhã, quando sou alcançado pelo diretor,
o tal Laurindo. Ele arfava um tanto, o que fez com que concluísse
que havia se apressado a fim de me alcançar. Apesar da minha natu-
ral e ampliada antipatia pela figura, não posso deixar de reconhecer
nele vigor físico maior do que o esperado para a sua faixa etária.
Aqui abro um grande parêntese para tecer considerações que
julgo importantes. Estamos agora diante de um serzinho que, es-
tranhamente, goza de certa reputação por parte de meia dezena
de ignotos que se conservam à sua roda. Nunca, nunca economiza
oportunidade de lançar mão de sua capacidade de memorizar fa-
tos e nomes a fim de impressionar os que estejam a um passo de
distância. Era – e é – extremamente preciso quanto às menores

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particularidades nas biografias de personagens históricos, suas da-
tas de nascimento ou de falecimento, a era em que aconteceu esta
ou aquela guerra, ou em que teria sido erigido um monumento
qualquer, assuntos de tal importância.
E disso muito se pavoneava. Narrava feitos heroicos e patrióticos
das armas brasileiras em não-sei-qual batalha contra não-sei-quem,
com orgulho e aprumo que faziam gosto, encontrando, nessa sua fa-
culdade mental, alargados motivos de ser merecedor da mais extrema
admiração e respeito. Jactava-se de repeti-los para uma claque que lhe
vivia à sombra, enquanto seus olhos se iluminavam e se arregalavam
ainda mais, a testa se franzia, as sobrancelhas se arqueavam (umas
sobrancelhas espessas, que lembram aquelas dos vilões do cinema
mudo) e se tornava ainda mais ruidoso. Um arquétipo disso aí.
Era figura torquemadesca: um sujeito grandalhão, meio abo-
balhado e “pouco profundo” nos mais vagos conhecimentos a
que tem acesso a mente humana. Por exemplo, trombeteava aos
quatro ventos que, para ele, da pintura contemporânea, tanto fazia
dependurar uma tela de cabeça para cima, como de cabeça para
baixo, que dava no mesmo (a arte pictórica principiava e rematava,
enfim, com Pedro Américo). Poesia há de ter rima. E, se possí-
vel, com versos dodecassílabos. De cinema, apreciava filmezinhos
épicos, anos sessenta, e também películas explosivas, que mais po-
deriam ser consideradas como verdadeiros jogos de videogame.
Quer dizer, seu raciocínio é perfeitamente ridículo.
Moral e família, como verdadeiros bordões, são temas de sua
predileção. E como! Costumava incluí-los em quase toda trela lá
dele. Suas opiniões, claro, tornam-se imediatamente acatadas por
aqueles que o rodeavam, em qualquer ocasião, apesar de tão curtas
e econômicas as suas ideias (aliás, jamais se sabia, em seus discur-
sos, se se tratava de ponderações ou de sentenças, tal a entonação
de sua voz). Apesar disso, e por mais absurdo que possa parecer,
considerava-se superior aos demais seres humanos. E ria estúpido,
ria alto, sacudindo a pança, pois tal é o modo de rirem os tolos.

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Andava solenemente, entrava e saía de um compartimento
para outro procurando demonstrar ação e dinamismo, ou então
aparentando preocupação, os olhos rígidos, a mão formando prega
nos lábios, como se meditasse profundamente. O genial diretor!
E não é tudo: tinha o péssimo e irritante hábito de repetir cer-
tas expressões, que se constituem em verdadeiros absurdos gra-
maticais e léxicos. Por exemplo, em quase toda conversa arrumava
um jeito de enfiar a frase:
“No meu modo de vista...”
“Interviu”, em vez de “interveio”, era forma verbal que sabia
apreciar.
D. Ermelinda, um ‘golo’ d’água.
E esta, toda solícita e empertigada, óculos à ponta do nariz,
pulseiras, colares e batons, levantava-se no mesmo instante da ca-
deira e apressava-se em atender ao pedido.
Dentre seus embaraços, o mais marcante, na minha opinião, era
quando captava expressões que desconhecia. Então lhes assimilava
o sentido adulterado, que acreditava exato, e passava a aplicá-las,
dali por diante, a torto e a direito, conforme arquivara lá nos seus
miolos. Por exemplo, certa feita, indagado acerca de determinada
erupção que apresentava no dorso de uma de suas mãos, respon-
deu que não sabia do que se tratava, mas que já havia gasto “muita
remuneração” com ela. E outras preciosidades do gênero.
De longe, acenava para o Silvério, que, pau-mandado muito dos
ordinários, quase nunca perdia o diretor de vista. E então o tal Sil-
vério, gestos medidos e submissos, meio encurvado qual garçons
franceses (muito diferente de D. Ermelinda, por exemplo, que era
sempre bastante enfática, com energia excessiva na fala e na gesti-
culação, e dona de perdurável olhar recriminatório), se apressava em
sua direção: Um minutinho, meu diretor, enquanto se desven-
cilhava a qualquer custo de quem lhe estivesse na ponta da língua.
Deixo, por fim, acrescentada outra característica do diretor, que
me causava enorme antipatia e repulsa: ele verdadeiramente ardia,

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quando tinha oportunidade de alardear sua intimidade com pessoas
endinheiradas. No fundo, o que mais ambicionava eram oportunida-
des de estar na roda de gente influente e de maior valor social, aos
quais adulava quase com a mesma intensidade em que ele próprio
o era no colégio. O que mais sei apreciar é um bom vinho, um
short diante de uma televisão e não pensar em nada, meu caro,
não pensar em nada. Eu sabia que não era inteiramente exato que
só soubesse apreciar o vinho, a televisão e o short. Isto tudo era para
deixar escancarado um estilo de vida, se é que me faço entender.

***
Retorno agora ao ponto em que nos encontramos na subida. Pôs-
se ao meu lado, feito tivesse tão somente a intenção de se fazer
notar. No princípio, não disse nada. Vestia uma calça desengonça-
da e horrorosa, feita de tecido sem vida (para ser fiel a si próprio),
ridículo suspensório (numa época em que tal peça, há muito, não
mais se usa), e caminhava com aquele seu jeito de jogar as pernas,
algo similar a alguém que esfregasse excrementos entre as nádegas,
enquanto a calça ia formando mil pregas em diagonal nas coxas.
Era uma situação muito embaraçosa para mim, porém tive
de cumprimentá-lo, não havia outro jeito. Foi saudação curta e
formal, mas bastou isso; forneci-lhe a senha que esperava. Aí, sem
mais nenhum preâmbulo, pôs-se inflamadamente a discorrer so-
bre episódio sucedido com outro professor, uma história grossei-
ra, um assunto besta... Não se podia compreender aquela inflexão
de voz, tão solene e arrojada, para assunto tão sem importância.
Lá pela terceira ou quarta frase, no entanto, introduziu, todo
untuoso, o nome de Cristine.
De meu lado, continuei a subida como se nada houvesse aconte-
cido, fingindo indiferença; mas, por dentro... Aventurei-me as rápidas
espiadelas pela cara dele, fingindo examinar o tráfego de veículos:
aquele olhar maroto, caviloso. Tive certeza absoluta de que procurava
desvendar se sua incursão surtira algum efeito sobre mim.

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Certamente não me lembro de quase nada daquelas garabu-
lhas. Permaneci no mais absoluto silêncio, cabisbaixo, procurando
até mesmo acelerar um pouco a marcha, a fim de encurtar o tem-
po de permanência com aquela figura. Além disso, contava que
ele, ofegante, cessasse de matraquear.
Mas não; parecia discursar em círculos, indo e voltando no
mesmo assunto, esperando com isso que, em alguma das oportu-
nidades, eu mordesse a isca. Estudava as minhas reações de forma
dissimulada, as quais eu cuidava de, a qualquer preço, camuflar.
Sujeito ordinário!
Mal porém alcançamos o pátio, tratei logo de desvencilhar-me
dele, desviando-me para o banheiro dos estudantes, com o pro-
pósito de dar vazão à enorme turbulência e repugnância que se
formou dentro de mim.
Isso me fez meditar detidamente numa coisa muito importan-
te: possuo um taludo dicionário, de quase oitocentas páginas, de
Francisco Pereira de Souza, autor goiano dos anos quarenta, de
adjetivos e advérbios (deixo aqui registrada minha paixão por di-
cionários), ao qual recorro com enorme frequência, no meu dia a
dia; se existem, em nosso e em todos os idiomas, tantos adjetivos,
é porque também deve haver sujeitos que cabem perfeitamente
naquelas definições. É ou não é conclusão bastante óbvia?

Tomás de Torquemada
Religioso espanhol, nascido em Valladolid em 1420 e falecido em
Ávila, em 1498. Inquisidor-mor de todo o reino espanhol, levou
a Inquisição aos graus mais extremos. Somente na sua pátria, o
número de hereges queimados em fogueira é calculado em 31.912.
Seu nome tornou-se sinônimo de fanatismo e intolerância.

O túnel
Pronto... Vejo-me dentro do túnel. Já percorri algum trecho, não

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sei quanto, perdi a noção, e agora, mesmo que me vire para trás,
não consigo enxergar nada de luminosidade, nem numa direção,
nem noutra. Perdi a noção de tempo e de distância, desconheço
o quanto caminhei, nem quanto dura a travessia e, nessas circuns-
tâncias, cem metros podem parecer quilômetros. À frente, nem a
mínima raia de luz, escuridão de noite sem lua, o tétrico das trevas,
o que me leva a conceber que o que está por vir é muito mais que
o já caminhado. Na melhor das hipóteses, devo me encontrar na
altura da garganta e não há como retornar. Estou sozinho, sem
lanternas, tochas ou lamparinas. Poderia até mesmo vendar os
olhos, não faria a mínima diferença.
Nenhum ventinho cá dentro, nada; só um farejo áspero e ranço-
so no ar, ar mineral, um vapor salgado, que lembra as exalações das
lagunas, das salinas. Isso, a aragem das salinas. Talvez o dos respin-
gos do mar, em instantes que antecedem as violentas tempestades,
o das marés empoçadas nas ilhas e nos recifes (por que penso nas
salinas, se nunca, antes, estive em uma, por que o cérebro da gente
cria essas coisas?). As paredes úmidas e frias das minas de sal-gema.
Imagino que as paredes sejam ásperas e irregulares, moldadas
por golpes de pás e picaretas, os quais deixaram o relevo todo
feito de altos e baixos (milhares de mineiros, por anos a fio, se
encarregaram de transportar os materiais para fora, a salmoura
curtindo o couro escalavrado por alforjes, desenhando bolhas, ca-
lombos, escaras e cicatrizes na multidão anônima, que sobreviveu
aos séculos e aos relógios curtos da vida). Gostaria de nelas tocar,
nas paredes, de ter essa sensação tátil, de pôr o dedo em cima da-
quilo que o gênero humano e a Criação desenharam nas entranhas
da terra, mas abomináveis fantasmas me refreiam.
É mais prudente caminhar pelo centro do veio, imagino, onde,
supõe-se, a galeria seja mais elevada. Na verdade, o vão parece ser
mesmo muitíssimo alto; já testei mais de uma vez, ergui os braços às
apalpadelas, porém a mão se recusa a ir muito levantada, temendo
encontrar algum ser monstruoso e repelente, que minha mente for-

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mula como um misto de lacraias, escorpiões, lagartos, escaravelhos,
algum bicho de carcaça muito negra, ou rajada, de peçonha agulhada
e devastadora, destes que se refugiam em frestas, nos sítios mais
escuros da terra, depois que o menor facho de luz lhes sai em busca
(mamãe caçava escorpiões, que desciam dum barranco enorme, no
fundo do quintal, e os colocava dentro do frasco com álcool, pra
cortar o veneno, caso algum de nós viesse a ser picado).
O túnel é tortuoso, já descobri, fico a todo instante estalican-
do os dedos para pegar de volta o eco e ir me orientando, pro-
cedendo como os guandiras, que também devem estar por aqui
e ainda não deram comigo. Da mesma forma, meus tornozelos
produzem estalidos em cada passo, quando recolho o pé que ficou
para trás – quanto mais lenta, mais ruidosa a minha marcha –, e
essa crepitação vou captando de volta e por ela me guiando. Avan-
çando com o máximo de cuidado. Nada se enxerga aqui dentro, já
disse, e arrisco-me tropicar nalgum calhau...
O chão é arenoso e frio, muito frio. Também devem existir
escoras abandonadas, ferramentas de trabalho fora de uso, tralhas
esquecidas pelo tempo... Meu entendimento me leva a desenhar
mil geringonças em todo canto, e qualquer descuido poderia pro-
vocar um desastre, ou, pior ainda, um desmoronamento, e isso é o
que mais deixa acesa minha guarda.
Cães furiosos, às minhas costas, rosnando. Só agora percebo.
Na entrada do túnel. Não sei se são tantos cães assim, ou apenas
uns poucos deles, que o eco se encarrega de amplificar e dar essa
reboante noção de matilha enfurecida, não sei. Rosnando, rosnan-
do, incansáveis. Já cheguei a imaginar até um sistema sonoro qual-
quer, somente para me atemorizar, que se encarrega de manter
aquele eco, indefinidamente, pois não se admite a possibilidade de
cães assim tão raivosos e que não se aquietam hora nenhuma, nem
mesmo dão seguimento à caça alhures, nem põem em fuga os ou-
tros machos na disputa pelo cio da fêmea, é coisa impensável, há
quantos minutos estão assim, hein?

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O essencial, no entanto, é sair do outro lado, é descobrir clari-
dade. Ah, do outro lado existe luz!
O invisível é o ensaio do medo, o invisível.

As horas
Aí vieram julho, o inverno, o frio e as férias escolares... A cidade
sombria, tardes tediosas e acabrunhantes, a luz lenta do dia, de um
amarelo mais claro, se despedindo, por detrás dos morros, antes
mesmo das seis horas. A cidade encoberta por nuvens cinzentas,
vez por outra até mesmo uns chuviscos, enfim, clima estranhíssimo.
Na primeira semana, praticamente não saí de casa. Acordava
mais tarde que o habitual, às vezes já na metade da manhã, cheio
de enfado, quase sempre mais tomado de desânimo do que quando
me deitei, abatido por uma impassibilidade, por uma placidez, que
chamaria até de patológicas, e que não sabia de onde provinham.
Ficava horas e horas na mesma posição, diante da escrivani-
nha, sem ter absolutamente nenhuma ocupação, sem dar nenhu-
ma rota para o meu espírito. Mexendo-me em desassossego na ca-
deira. Arrastando o molho de chaves arrancado do bolso da calça,
em elipses e sinuosidades e círculos e serpenteios ruidosos sobre
o tampo do móvel. Esfregando os olhos sonolentos. Folgando a
calça por entre as pernas. Flexionando e esticando joelhos. To-
mava o grampeador e ficava grampeando o nada. Virava, revirava
e tornava a virar a pequena ampulheta (dos últimos vestígios de
Virgínia, juntamente com o sino-de-ventos e alguns cristais esque-
cidos na estante da sala), duas bolhas no miolo de uma peça de
acrílico azul-safira. Um minuto e quarenta e cinco segundos para
toda aquela poeirinha se afiletar do compartimento de cima para
o de baixo. Um minuto e quarenta e cinco segundos, marcados.
Consumindo, incandescente e inquieto, o incêndio das horas.
Ou girando, girando e girando o copo em volteios arriscados,
que ameaçavam derramar o restinho de água que ficara da noite

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anterior, o cheiro enjoativo de lustra-móveis, que a mulher-a-dias
insistia em espalhar, semanalmente, apesar de minhas instâncias
em contrário.
Na tepidez dos dias, compunha, na memória, acontecimentos
vazios e infinitos, sem, contudo, deter-me em nenhum deles, sem
dispensar-lhes mais que poucos intervalos de minha existência en-
fadonha. Nada, nada. O pensamento vagando num despegar, numa
languidez que parecia definitiva e sem retorno. Calculava-me, por
exemplo, com um cigarro por entre os dedos. Um cigarro aceso,
do qual não tirava nenhuma baforada. Se tivesse o hábito de fumar,
pensava assim, poderia criar acontecimentos e sentidos naquele ato:
moldaria espirais, fantasmas, com a fumaça, cada vez uma forma-
ção distinta, uma imagem diversa, de acordo com o que ditassem a
sorte, e o ânimo, e os bochornos. E me punha a visualizar espectros
de seres encantados e absurdos, que iam saltando daquela fumarada
para dentro do cômodo opressivo e sufocante, desprendendo-se
como diabinhos em cabriolas infinitas, que dançassem ao som de
música inexistente. Eu me distraía com esses pensamentos.
Sentava-me nesta mesma cadeira em que agora repouso, na
mesmíssima posição, e ficava gangorrando, para frente e para trás,
prestando ouvidos nos estalidos que a madeira e os encaixes fa-
ziam no balanço, entrevendo o globo de vidro fosco do teto, a
lâmpada incandescente de cem watts, assistindo a tudo.
Poucas, pouquíssimas vezes, chegava a cogitar da ideia de ler um
livro. Cogitava apenas. Só o que alcançava, na melhor das hipóteses,
era discreta trégua, em que me via folheando um volume qualquer,
inteiramente alheado, na mais incômoda posição do corpo, o que
acabava por me desancar as cadeiras e o cóccix. Não podia pôr o
sentido por mais que três voltas de relógio, qualquer que fosse a
obra, mal e mal assimilando o que havia numa ou noutra frase cur-
ta. Um bocejo, outro bocejo, e lá ia o livro de volta para a estante.
Minha mente, naquela fase, recriou muitas vezes o Laurindo,
um Laurindo cabalístico, que ria horrivelmente aquele riso idiota lá

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dele. Enxergava seus dedos peludos e pesados, aliança abrutalhada
no anelar esquerdo (enquanto os meus se amotinavam, frágeis, so-
bre o tampo da escrivaninha). Vaga de pensamentos, visão fugitiva:
punha lado a lado a sua cara e a de todos os tolos do mundo, aque-
les olhos abrutalhados por detrás das duas lentes grossas.
O que pensará de mim?
Ora, o que importava o que pensava de mim?! O que importava?!
Por vezes, a campainha estridente do telefone público, na rua.
Gritaria da molecada jogando futebol, e palavrões, e gargalhadas
zombeteiras, e gritaria festejando gols. Passos que se propagavam,
que se avizinhavam e se distanciavam na calçada. Um ar de urina
e de suor desprendendo de meu pijama.
Abria a janela: a paisagem parda, monótona: telhados acima
de telhados, batidos pelo sol. Degraus de cumeeiras. Desalinho de
vertentes. Telhas escurecidas pelo limo dos anos em primeiro e se-
gundo planos; outras, aqui e acolá, de surpreendente tom argila ver-
melho-alaranjada brilhante. Recorte do morro, por detrás de tudo.
Andorinhas, asas tão ligeiras, farreando no céu, despencando
como se fossem se esborrachar no chão. Um instante antes, no
entanto, mudavam súbito de direção e investiam de novo para
cima, impetuosas e vivas. Que sentido podia ter aquela revoada?
O portão lateral, a entrada do beco, a pintura descascando do
beiral saliente do telhado, forro de tábuas amarelentas e empola-
das, o muro de pintura aguada, fechando para a rua. As árvores
que pareciam não sentir as folhas que já se perderam. Dali a uns
dias os homens da Prefeitura viriam para as podas. Todos os anos
é assim: desbastariam primeiro os topos, para não tocarem nos
fios de alta tensão, depois as laterais, ao comprido, amontoando
galhos e troncos derrubados pelo corte, que depois os caminhões
viriam recolher. Não sei exatamente o mês, mas o certo é que é
por esta época. Agosto? Julho? O centro velho da cidade.
Dez e vinte da manhã. Minha mente fervilhava. Era... indis-
pensável me mexer, me desentocar, dar movimento às carnes.

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Mas... onde ir?
Por fim, obedecendo a ordens que partiam de algum ponto
oculto de minha mente, enfiei-me na primeira calça que encontrei
pela frente, numa camisa qualquer, calcei um mocassim e chispei
para a rua.
Comecei por andar acelerado, exatamente como se fugisse de
alguma coisa, como se necessidade tivesse de ganhar distâncias.
Depressa, depressa. Tanto quanto me permitiam minhas passadas
mais largas. Não se explica por qual razão corria assim, se não
tinha para onde ir, não havia nenhum propósito naquela jornada.
Contudo, parecia fugir, fugir, deixando para trás minha incandes-
cência, meu tumulto, que se perdiam como aquela poeirinha da
ampulheta, que trouxesse no bolso da calça, e fosse ficando pelo
caminho, sem que ninguém percebesse.
Até minha consciência, de repente, me indagar, ei, aonde vai,
com tanta pressa? Olhei para um lado, para o outro, buscando
sentido naquilo. Nada. Algo me puxou, me passou a exigir que
moderasse os passos.
Até quase a hora do almoço, tudo o que fiz foi cruzar a pé por
ruas de vozes e de imagens pobres, que me pareciam meio estra-
nhas e enjoadas, mais enjoadas que estranhas. A mente não abanca-
va em coisa alguma, o caminhar gasto em reflexões vagas e observa-
ções autômatas de transeuntes, umbrais de casas velhas, frontarias
de edifícios pretensamente modernos, enormes vidraças, reluzentes
esquadrias de alumínio, portas de madeira almofadada e granitos.
Pedaços de jardins de cinco palmos, muito pobres, helicônias, ba-
naneirinhas, bromélias, papiros... que mais? As avenidas. As praças.
Varandas e parapeitos. Degraus e chapiscos (pode haver algo mais
horrendo?), ardósias e cimentados. Esquadrias e gelosias. Terrenos
baldios murados. Movia-me, como é óbvio, espreitando acurada-
mente o chão, a fim de evitar pisar em excrementos – os cães e
os pombos (ou até mesmo humanos, em uma ou outra transversal
ensombrecida). Palitos de fósforos e de picolé, cigarros, escarros.

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Os carros.. Um horror!
Uma mulher decrépita, com cara amarrada, e três crianças em
estado desesperador,: a mais nova, de-colo, a do meio agarrada à
barra da saia e o maiorzinho caminhando, com seus ossos. Sorri
timidamente para ele, mas creio que se acanhou, ou se tomou de
desconfiança, pois apressou o passo. Detive-me junto à sarjeta e os
segui, movido por estranha curiosidade, até dobrarem a esquina e
sumirem-se. O menino virou-se para trás ainda uma vez, quando
haviam se afastado vinte, trinta metros. Reparei nos seus pés descal-
ços, mergulhado num longo alheamento, o que me conduzia à mi-
nha própria infância (eu levando calçados para colocar meia-sola no
sapateiro). Aonde irão? Intuí que devessem morar longe, nos mais
afastados bairros, talvez num barraco infecto e sem eletricidade. Te-
riam, porventura, comido algo? Tive ímpetos de ir ao seu encalço e
inquirir se estavam com fome; entretanto, ao invés, girei o corpo no
sentido contrário, bem devagar, puxando os pés, braços cruzados
por detrás das costas. Dentro de mim, uma imagem de canto triste e
solitário, de labirintos de rotas, onde não há espaços para a ternura,
mas tão somente para o abandono. E para os grilhões.

As correntes
Por um dia daquele julho abri, ao acaso, o Memórias Póstumas..., que
encontrei caído no chão, rente à cama, uma edição bem antiga,
de capa ruim. Pois meus olhos foram deparar exatamente com o
seguinte trecho: “O voluptuoso, o esquisito, é insular-se o homem no
meio de um mar de gestos e palavras, de nervos e paixões, decretar-se
alheado, inacessível, ausente”.

Os engenhos
A coisa mais estranha é que acreditava, lá pelos meus vinte e
tantos anos, que possuía realmente a capacidade de desvendar a
personalidade de todo mundo, de encontrar o menor indício de

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perversidade nos seres humanos, a uma simples corrida de olhos,
à mera observação de seus gestos, ou por alguma outra abstrata
aptidão qualquer. Eu adivinhava como eram as pessoas e, a partir
daí, formava, no meu íntimo, uma espécie de certidão de todo
mundo, o que poderia resultar numa impressão favorável ou ad-
versa, de acordo com o que me ditasse esse misterioso faro. Estava
absolutamente convencido de que possuía mesmo tal propriedade
sensorial, que era única e se constituía numa verdadeira dádiva da
natureza, e nada me poderia demover de minha convicção.
Hoje em dia, claro, guio-me muito menos nisso, mas o fato é
que, verdadeiro ou falso, tal estado psicológico me dirigia mesmo;
uma coisa quase sobrenatural, mas que me deixava com a plena
segurança de me encontrar diante de pessoas de bem, que agiam
com lisura e decência, ou vice-versa.
Poderia dizer que se tratava quase de atributo meu – não sei se
a palavra “atributo” está aqui bem empregada –, que os anos até
se encarregaram de atenuar um pouco, mas nem tudo se perdeu.
Alguma coisa consegui depurar e ir deixando pelo caminho, mas
nem tudo sumiu; ainda conservo muitíssimo dessa característica,
sem risco de erro.
Durante toda a minha experiência de vida, fui o que se pode
considerar um hábil disseminador de desafetos. Nisso, poucos po-
dem me superar. Na realidade, costumo dividir o gênero humano
em duas parcelas; em três, para ser mais exato: os meus pouquíssi-
mos semelhantes, em primeiro lugar, nos quais enxergo virtudes e
sentimentos de dignidade pessoal; em segundo, os que classificaria
como de “indiferentes”, pessoas a quem conheço, de vista, e troco
acenos e não mais que meia dúzia de palavras; por fim, categoria
não pouco numerosa, e que designaria como os meus desafetos,
dos quais, diga-se de passagem, também nunca procurei lhes ocul-
tar minha animosidade e malquerença.
Como quase sempre acontece, com a idade tornei-me me-
nos beligerante e passei a apresentar menor carga de hostilidade

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para com essa fatia da humanidade. Pelo menos, assim suponho.
Penso que o tempo lapida nossa alma e vai contribuindo para que
deixemos de lado o que não nos traz vantagens; contudo, sempre
sobra alguma parte de nossa base, sempre ficam escoras e pilares,
de modo que, nessa altura da vida, procuro adotar postura que se
poderia considerar como de armistício. Sim, eis aí o melhor termo
que consegui. Afasto-me quando as pessoas não me agradam, troco
de calçada, evito lugares que podem me trazer aborrecimentos. Fui,
durante uma carga de anos (em especial, nos primeiros de minha
vida profissional), desses indivíduos que viveram na ponta dos pés.
Imediatamente após a conclusão da faculdade, retornei para
dar aulas no colégio onde havia estudado. Meu espírito pouco
aventureiro e meu quase inexistente desejo de alçar grandes voos
trouxeram-me de volta. Além do mais, por um acaso da natureza,
esse período coincidiu com a aposentadoria e, logo a seguir, o fale-
cimento do antigo professor de literatura, Teopisto do Nascimento
e Silva, a quem presto reverência como o meu grande mestre. Tive
a felicidade de conviver com ele de maneira um tanto quanto ínti-
ma, o que consistia em verdadeira façanha, tão arredio se mostra-
va. Reiteradas vezes manifestou por mim admiração e amabilidade,
das quais, sinceramente, não me julgo merecedor; sempre fui um
aluno mediano e discreto, sem nenhuma falsa modéstia.
Só para se fazer ideia de sua benevolência para comigo, nos
últimos anos de sua vida convidava-me, com certa insistência,
para visitá-lo em sua casa, inclusive em suas datas de aniversário,
oportunidades em que ia tratando de desbastar minha ignorância.
Ouvia-o dissertar, sempre sério e impassível, sobre este ou aquele
autor, esta ou aquela obra... Maravilhoso! Chega a ser quase im-
possível, para mim, compreender tal afeição, ainda mais por se
tratar – da parte dele, do professor Teopisto – de criatura abne-
gada, de grandes méritos, porém dono de assustadora rigidez e de
austeridade quase solene, diria, modelo que já nem subsiste mais
no magistério contemporâneo.

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Bem, mas o meu propósito não é outro senão o de fazer men-
ção aos primeiros entrechoques que travei com o diretor atual da
escola, o tal Laurindo Salazar. Tais acontecimentos, como não po-
deria ser diferente, se deram logo no primeiro ano de meu retor-
no, época em que ele ainda não respondia pelo colégio; somente
dava suas aulinhas na disciplina de história, uns dezoito anos atrás.
Certa feita, ao penetrar na sala dos professores – que parecia
estar amotinada, tamanha a agitação que as pessoas exibiam após
o retorno das férias –, deparei, pela primeira vez, com aquela fi-
gura: bigodão espesso, pelos longos escapando das narinas, cabe-
leira tosada, esticada para trás, bochechas barbeadas das casernas
e queixada redonda, o que lhe conferia o aspecto de um buldogue
assustado. De cara desagradável, pescoço curto, cabeça enterrada
no tronco e óculos garrafais, os quais lhe acentuavam ainda mais o
aspecto assustador. Indivíduo áspero, fazia uso de um tom de voz
desnecessariamente severo e arrogante.
A aversão que senti por tal figura foi de primeiro momento. E
muitíssimo forte. De seu lado, tratou-me com o mais solene dos
descasos, não dirigindo àquele “menino” – como algumas vezes a
mim se referia – a menor consideração ou reparo. Não o conhe-
cia, nem ao menos de vista, e desconheço se pude disfarçar minha
ojeriza por ele, se não houve quem a percebesse, e confesso tam-
bém que não me mobilizei um milímetro nesse sentido.
Medíocre como professor, completamente medíocre – che-
gava ao ponto de conceder a Duque de Caxias o título de ícone
maior da história brasileira – teve sua indicação para dirigir a es-
cola, segundo se dizia, a uma máxima que corria entre os alunos
(e até entre alguns professores), de que “ruim na diretoria, pior na
sala de aula”.
Indivíduo cabotino, moralizador e truculento, se transfigurava
quase por milagre, durante as celebrações de cerimônias religiosas,
adquirindo então ares divinamente penitentes, cheios de benevo-
lência; transfigurava-se num sacristão solícito, num humilde servo

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do Senhor e dedicado à contemplação e às coisas da Igreja: devo-
to, puro e santo. Nos momentos das rogações, trazia as mãos ao
peito, cabeça pendida, e cerrava os olhos ascéticos aos céus.
Um fariseu, isso é que sim! Um fariseu! A vida toda o en-
xerguei como desses indivíduos que recheiam a semana com pe-
quenas e médias transgressões, pequenos e médios pecados, para
depois terem do que se expiar, nos momentos da confissão cató-
lica. Nisso, aliás, não se encontra sozinho. Não são poucos os que
existem por aí.
Bom, vejo que apressei a ordem de sucessão dos fatos, que
adiantei acontecimentos que só pretendia revelar mais adiante. O
impulso e a irreflexão me compeliram a assim agir. Mas mal não
faz. Quem sabe não seja essa uma manifestação da inconsciência,
que vislumbra adiante embaraços e desfiladeiros, e tenta logo se
desvencilhar dos primeiros? Hum?!
Prossigo: não tinha, naquele momento – naquele momento –,
logo que o conheci, motivos racionais ou mesmo tangíveis para
chegar a conclusões assim tão apressadas. Todavia, meus instintos
entraram logo em alarme. Alguma coisa me apregoava que, por
detrás daquela fisionomia, existiria um veio terrivelmente inomi-
nável e asqueroso. Não sabia o que estava acontecendo, mas que
havia algo anormal, ah, isso havia. A campainha soou cá dentro.
Tudo bem, eu poderia estar enganado, alguém alegaria. Mas
não; o tempo mostrou que acertara. Na verdade, aquele era tão
somente o rufo dos tambores. Os acontecimentos posteriores aca-
baram por confirmar minha impressão inicial, consolidando, cada
vez mais, minha repulsa pelo sujeito. Quer dizer, meus instintos
não tardaram em ter pronta a prova dos nove (poucas vezes na mi-
nha vida eles me enganaram. Estou repetindo isso também, acho).
Um de meus raros casos de passo em falso, aliás, aconteceu ali
mesmo, há uns dez anos: deixei-me iludir por determinado indi-
víduo, de nome Silvério não-sei-o-quê. Aconteceu o seguinte: no
início, pareceu-me um sujeito polido e de grande amabilidade, o

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que era suficiente para lhe conceder certo grau de proximidade
para comigo. De hábitos morigerados, fala mansa, a todos atendia
como se lhes dedicasse a maior atenção. Em suma, o que se pode-
ria considerar como um sujeito refinado.
Com o tempo, porém, foi se revelando um conformista; pior,
um adulador. Acabou se pondo a serviço de Laurindo, antes mes-
mo de ele ser nomeado diretor, submetendo-se, com a maior re-
signação, às mais vis circunstâncias.
Encarregado pelo próprio Laurindo, passou a assimilar as
práticas em todos os setores da escola, a exercer cada uma das
ocupações, até se tornar proficiente em todas elas. Isso ia des-
de a simples instrumentação de mimeógrafos, o local onde eram
guardadas as chaves, o funcionamento da Secretaria, elaboração
de calendário escolar e assim por diante. E, não se pode negar,
tal função desempenhou com rara maestria. Silvério nasceu, diga-
mos, talhado para o referido papel.
A espionagem e a falsidade eram os recursos de que lançavam
mão em suas táticas de alçar ao poder. Espionagem não é coisa
só de ambientes de grande tecnologia ou de corporações de alta
conta. Ela se dá também em ambientes fracos, como o nosso. Com
qual propósito, não sei, porque lá nada há para se alcançar, nada
que ninguém deva perder. Contudo... Tudo se passava como se
ambos se preparassem, sorrateiramente, para emboscar as senti-
nelas, para tomar trincheiras, para se fazer uso de terminologias de
caserna. Esta a estratégia do diretor, que, assim, ia ficando a par de
tudo, ia sanando suas deficiências, passando a não mais se sentir à
mercê de algum papel para o qual não tivesse o menor expediente.
Para ser objetivo, nunca soube do seu verdadeiro cargo (do
Silvério estou falando); jamais entrou numa sala de aula, nenhuma
mesa fixa. Nunca ninguém veio a saber sua formação. Deu as caras
num início de ano, vindo não se sabe de onde, e foi ficando, sem
que nenhum de nós se perguntasse sobre o porquê de sua presença.
Tornou-se, com o tempo, tão abjeto quanto o outro, o seu

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suserano, com o agravante de rebaixar-se a todo momento à sua
subalternidade e barateza. Como pude ser tão ingênuo?!

Anos de chumbo
Nos primeiros anos da década de oitenta, cheguei a cogitar em re-
mexer com o passado de Laurindo, o que de clandestino e nebuloso
existisse em seu passado, de desacoitar o que houvesse por detrás
daquelas cortinas. Habitavam-me pressentimentos horríveis sobre
suas rotas e vestígios, sobre os comboios, vamos dizer assim.
Em verdade, não se tratava de pressentimento, propriamente;
mais um impulso, quase um anseio de defrontar com algo suma-
mente grave e que pudesse pôr nódoas em sua existência e viesse
justificar minha silenciosa repugnância por ele.
Minha intenção não era, de modo algum, imiscuir-me em sua
vida íntima, ou expô-lo à condenação pública. Longe disto. Havia
o imperioso interesse de conhecer com quem estava lidando. Mi-
nhas reações, depois de erguer a ponta do véu, de deitar luz sobre
aquela sombra, seriam mudas e pacíficas, porém recheadas de uma
espécie de gozo íntimo e de intenso hedonismo, não posso negar.
Como, naquela época, não possuía meios para tal, tudo per-
maneceu tão só como um propósito. Porém, a ideia me vinha com
tal dose de insistência – quase uma obsessão –, que era impossível
desfazer-me dela, por inteiro. Portanto, o plano não pôde receber
nenhuma forma. Não cheguei a dar passos concretos nessa dire-
ção. A partir dos anos noventa, Deus lá sabe por qual razão, passei
a incluir também o Silvério em minhas diligências, e a enxergá-los
como mistura da mesma coisa, um ajuntamento de matérias im-
prestáveis, e a colá-los um ao lado do outro.
Esse meu plano se sentiu ainda mais impulsionado, por pa-
radoxal que possa parecer, por inexplicável apego que Laurindo
demonstrava por minha pessoa: foram inúmeras as vezes que se
acercava de mim e procurava dar conta do que se passava com a

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vida alheia, que parecia que sua principal ocupação fosse a de dar
ao badalo a biografia particular de cada um. Não se eximia nem
mesmo de acrescentar pequeninas confidências e detalhes íntimos,
dos quais nem imagino como possa ter tomado conhecimento, o
que conduzia, por vezes, a histórias absurdas, inacabadas ou sem
sentido. Sua inteligência tacanha – e isso é bastante curioso – não
conseguia pôr termo ao enredo que ele mesmo criara, o qual era
abandonado, de uma hora para outra. E mirava ligeiro num circun-
giro, parecendo querer dizer sim, sei o que anda acontecendo.
Não eram incomuns, por exemplo, e para minha extrema contra-
riedade, os dias em que passava e repassava enfermidades que, sus-
peitava, sofresse este ou aquele professor, este ou aquele funcionário,
ou em que advertia acerca dos parceiros amorosos desta ou daquela
professora. Julgava-se no pleno direito de assim proceder. Para mim,
soava incompreensível o fato de ele jamais considerar o meu sorriso
apagado e o meu mais absoluto silêncio, diante daquele rosário de
aleivosias e conspirações.
Já acerca de D. Ermelinda, não me recordo de haver dado
com a língua nos dentes contra ela, a amarelecida secretária da
escola, apesar de já perceber que fazia parte do que chamaria de
“a sagrada trindade”, que regia o colégio: uma mulher alta e gasta,
de andar aprumado, estilo manequim, cara de nojo, exuberante
ruge cor de tijolo, boca petulante, cabeleira num tom louro artifi-
cial, pele esticadíssima por sabia-se lá quantas cirurgias plásticas,
ridículos óculos na ponta do nariz fino e empinado, e que possuía
o hábito de encarar as pessoas com intolerante esgar: sempre por
cima das lentes, olhos, a cada momento, carregados de expres-
sões de fingida severidade.
A maneira extravagante de se vestir, com cores berrantes,
vermelhos, cor de canário, grenás, tornavam-na um dia parecida
com abóbora, outro com mamão, e outro ainda com melancia
despedaçada. Amaneirada por detrás da mesa – decorada com
uma jarra de flores artificiais, uma redoma imitando cristal, uma

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xícara ornamentada com inúmeras figuras de coração e outros
tesouros estéticos de mesma estirpe –, deslizava sua repugnância
sem jamais dedicar a qualquer um a menor atenção, a qual ficava
toda dirigida à figura do “diretor”. Eu deveria ser tão importante,
para ela, quanto o movimento das moscas, nas salas de aula.
Com ela, aliás, cometi dos mais infelizes erros de minha vida:
nos primeiros anos em que aqui cheguei, ingenuamente costuma-
va inserir, volta e meia, em conversas amenas, uma ou outra tirada
ou aforismo de Oscar Wilde. Imagino que todos compreendam
que não pretendia, de forma alguma, parecer esnobe. Não se tra-
tava de exibicionismo de minha parte, dou minha palavra, não era
este o sentimento que me dominava, mas antes uma brincadeira,
um entusiasmo sem medidas pelo genial artífice das sentenças.
Ora, querendo parecer gentil, e imaginando que ela tivesse curio-
sidade por tais assuntos, eu repetia tais “sessões”, não percebendo
que ela só fingia estar interessada no que eu externava. E também
não notava que, dentro de Laurindo, ardia a chama da inveja.
Eu tinha, quando novo, a necessidade de saber-me aceito pela
coletividade, coisa muito própria da imaturidade e de quem se en-
contra virgem de experiências de vida (ou então se tratava, pura e
simplesmente, de inobservância de regras de segurança mais ele-
mentares). É das formas mais estúpidas de se portar como tonto.
Logo eu que, como já afirmei, sou indivíduo acautelado com os
que me rodeavam. Paciência!
Seja como for, o comportamento abominável desse indiví-
duo – e agora estou retornando ao Laurindo –, mais o retorno
da ordem democrática ao país, serviram-me de instrumento para
revolver o lodaçal no qual os imaginava mergulhados –, ou pelo
menos o “general”, como ele era algumas vezes referido, de for-
ma sarcástica. Possuía suspeitas, como já disse antes, de que ali
existisse algo de sumamente podre e turvo. Formara uma imagem
dele, que não era nada boa e, enfim, necessitava de pô-la sob as
luzes da ribalta.

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Não foi tarefa fácil. Na escuridade do período inicial da redemo-
cratização, não poderia mesmo obter resultado diverso. Só persistia
a inquietante suspeita de que, em torno dele, existissem passagens
verdadeiramente terríveis, desconfiava disso, contudo eram somen-
te especulações, nada mais. Fiquei então com esse “saldo psíquico”,
que armazenei em meu cérebro, e que se constituía numa espécie
de folha corrida dele(s).
Até que, anos mais tarde, minha antevidência, aliada a incrível
golpe de sorte, levou-me à esperada descoberta: Laurindo havia se
reformado no posto de capitão do Exército e – aí a revelação mais
espantosa e grave – atuara efetivamente nos órgãos de repressão
da ditadura militar. Documentos a que tive acesso confirmaram
que pertencera ao Departamento de Operações Internas/Centro
de Operações de Defesa Interna, o macabro DOI-CODI, tendo
atuado na 2ª Brigada do Exército, no período de 1976 a 1978.
Coincidindo com essa época, teria frequentado a Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, onde concluiu seu curso de História.
Certamente – e agora se trata tão somente de ilação de minha
parte –, como as universidades foram importantes focos de resis-
tência ao regime, ali teria sido introduzido para o desempenho de
missões. Fatos semelhantes se multiplicaram a torto e a direito, na
época, porém agora existia um, diante de mim, em carne e osso.

“Laurindo Salazar era, em 1968, Segundo Tenente de


Infantaria do Exército, no Rio de Janeiro, es-
tado da Guanabara. Seu nome aparece no Volume..,
Tomo.. do Projeto Brasil Nunca Mais, sendo citado
três vezes à página ... Foi denunciado, à época,
pelo preso político Plínio José Campos.

Este militante político que, em 1969, aos 22


anos de idade, era estudante, tem seu depoimento
transcrito à página... do Tomo.., Volume.., “As

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Torturas”, do Projeto Brasil Nunca Mais. Afirma
ele, no auto de qualificação e interrogatório rea-
lizado em Auditoria Militar:
“(...) que os principais torturadores foram o
Cap. Willian de Paula Portela, o Cap. Pedro Ivo
da Silveira Santos, o Cap. Aécio de Paula Morais,
o Cap. José Gomes Carneiro, o Ten. Laurindo Sa-
lazar, o Sarg. José Eustáquio de Souza Júnior,
o Maj. João Vicente Praxedes e o Ten. Reinaldo
de Almeida; que o torturaram pessoalmente o Cap.
Portela, Cap. Pedro Ivo, Major Teixeira, Ten.
Pádua da G2 (...)”.
Outra denúncia é do preso político Áulio Costa
Rocha, estudante, 28 anos, na PM, G2, DOPS/GB, em
1969. Tem seu depoimento transcrito à página...
do Tomo.. vol... “As Torturas”. Afirma ele, no
auto de qualificação e interrogatório, em Audito-
ria Militar:
“...( )quer aditar que sofreu torturas por
parte do Cap. Reginaldo Carneiro, do Ten. Teobal-
do Rezende e de outro de nome Francisco Paixão;
que o Ten. Francisco alegava ser do Esquadrão da
Morte e o Ten. Teobaldo se dizia do CCC; ( ) o
Maj. Brito encaminhou-o a um médico, que se re-
corda chamar-se Meireles; que esse Meireles, se-
gundo revelou o próprio Major ao interrogado, era
o homem que assinava os atestados de óbitos dos
subversivos mortos, ( ) que recordava-se agora
dos nomes de outros torturadores, Sgts. Renato,
Mendes e o Ten. Laurindo Salazar ( )...”

Tomar conhecimento de tais fatos foi, para mim, dos mais bru-
tais e horrendos assombros de minha vida: estava diante da gélida e

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sepulcral verdade, da qual sempre estivera no encalço.
Todavia, e por mais estranho que pareça, vi-me afetado por
lúgubre e perturbadora forma de prazer. Nem sei como melhor
exprimir: um contentamento escuro, que se extravasava, qual
tentáculos de polvo, e me conduzia por cavernosos porões, ver-
tiginosos labirintos, pátios febris, que se alumiavam e se desas-
sombravam a um ilógico horror, um horror de peste e de queima
de feiticeiras, o qual minha alma se encarregava de preservar, as-
sustadoramente preservar, como se retém as mais devastadoras
cerebrações a que seres humanos possam ter vivido ao longo da
história, os morticínios do Holocausto e os da Inquisição.
Quer dizer, meus instintos não se haviam equivocado.

Maffeo Barbirini
Urbano VIII, eleito Papa em 1623. Sob seu pontificado instaurou-
se o processo contra Galileu, que havia demonstrado que, ao con-
trário do que se acreditava, a Terra não era o centro do universo,
mas sim girava ao redor do Sol. Intimado pelo Santo Ofício, Gali-
leu teve de voltar atrás em suas afirmações, para evitar condenação
maior (suas ideias foram declaradas, na época, mais perigosas do
que as de Lutero e Calvino).
Durante o seu papado, fortaleceu a Inquisição na luta contra
os “heréticos” e, deixando-se levar pelo nepotismo, cumulou sua
família de favores e riquezas, chegando a nomear vários sobrinhos
como cardeais. Morreu em 1644.

Beco Luís Monteiro, 85


... a placa, no prédio da esquina com a avenida Juscelino Kubits-
chek: beco Luís Monteiro, retângulo azul, com letras em branco,
lá no alto, escondido em meio à copa de um oiti.
Que ninguém jamais me pergunte como fiz para conseguir
esta e outras informações sobre Cristine. Digamos que usei de

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métodos um tanto quanto condenáveis, que ferem um pouco os
meus princípios, mas que, juro, não causaram prejuízos a quem
quer que seja. Descobri tudo o que desejava: local e data de nasci-
mento, residência, filiação (mas por que é que nunca falava sobre
isso?), tudo, enfim.
Uma rua curta, sem saída e que morria no rio (dava inclusive
para ver os arcos superiores da ponte metálica). Não sei se ne-
cessito dizer que não passei da esquina. Fiquei ali, pateticamente
estancado, meio raptado dos sentidos, feito vivenciasse um so-
nho comum, sem atropelos e grandes abalos, mas o pensamento
embrenhado em órbitas e fronteiras artificiais e reduzidas. Um
rochedo. O que esperava, naquele lugar? Contava vê-la, em trajes
rotineiros, nas atividades mais cotidianas, sem que ela desse com
minha presença? Talvez.
Do ponto onde me encontrava, busquei primeiramente adi-
vinhar qual daquelas casas seria a de número 85; os números sal-
tavam de dez em dez, os ímpares à esquerda, começando no 5.
Contei nove lotes e cheguei a uma construção de dois andares, o
de cima com entrada independente, servido por escada em linha
reta na parte de fora do edifício, cortando em diagonal a parede
extensa, de pé-direito ligeiramente mais elevado, pintada com tin-
ta creme recentemente retocada. A porta semiaberta, três janelas
castanho-amarronzadas, de treliça, com as bandeiras escancaradas
e um basculante.
Por acaso, recordei-me de uma vez em que ela teria presenciado
um acontecimento qualquer, sucedido em sua rua, e tê-lo descrito
para mim como se visto do alto. Já que era dos poucos prédios que
existiam na rua – daquele lado, somente um outro, exatamente o úl-
timo, já quase na margem do rio, onde a numeração seria mais alta –,
deduzi que ali seria o seu teto.
No meio disso, tentava acertar a disposição dos cômodos: a sala
(era óbvia demais: onde a escada desembocava), a cozinha, nos fun-
dos (havia panelas de boca para baixo secando ao sol), o banheiro

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entre estes (o basculante) e talvez dois quartos na parte da frente.
Minha fantasia penetrou, levitante, na extensão de um dos
quartos, o qual elegeu como o que a flagrasse em seus sonhos e
sonos, a inviolável atmosfera das paredes que devassavam suas
formas, e se aprisionou lá dentro, como nuvem de folipas, que
esvoaçam por imperceptível aragem e que, não encontrando as
saídas, ficava gravitando demorado no quadrado da luz difusa
da janela, flutuando leve, e se dispersando, se arrebanhando e se
ebulindo, numa cadência lenta... e lenta..., qual a dos moinhos de
vento, os moinhos de vento que dão sinais de vida nas ondas le-
tárgicas dos mesmos sonhos comuns...
(Quando pequenino, deitava-me de costas no chão e ficava as-
sistindo ao revirar das partículas de poeira suspensas no feixe de sol,
os miniflocos subindo e descendo, subindo e descendo, aleatórios.
Seguia teimoso uma delas, uma qualquer que selecionasse em meio
a tantas, infinitas, uma mais brilhante e agitada, em sua evolução e
trajetória errática. Até meus olhos a perderem na multidão de pai-
nas, flocos, filandras).
Eu disse que minha fantasia penetrou naquele ambiente. Pene-
trou e desenhou a sequência de mobiliário, que não faziam deco-
ração apreciável: uma penteadeira (não sei por que pus na cabeça
tal peça, já de todo em desuso), um guarda-roupa, uma cama de
solteiro. Desenhou assim mesmo. E repassava esta cena tal qual se-
quência de filme em preto e branco, que se repete, delirante e lúdica,
contudo impertinente e obsessiva.
Um anseio de passar por defronte da casa emergiu como jor-
ro, mas foi refreado por uma força qualquer, partida não sabia de
onde; da prudência, talvez, da fraqueza, da trepidez. Claro estava
que tal ato equivaleria quase a me lançar no abismo; e assim meu
espírito sofreou e foi retendo o próximo gesto, a solução. Eu re-
tomava as rédeas e me deixava a vaga sensação de que possuía
perfeito domínio da situação.
O morador da última casa, um senhor de muita idade, apa-

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receu na calçada. E veio vindo, veio vindo, passos molengas e
esmorecidos, cabisbaixo, ombros caídos. Passou por mim sem me
dirigir palavra e seguiu em frente.
Tive vislumbres de que talvez Cristine não se encontrasse em
casa, de que, por exemplo, houvesse viajado, aproveitando as fé-
rias, e passei a desenhar mil cenários onde talvez se encontrasse,
cenários estes que saltavam como cartões-postais. Juntava, men-
talmente, instantâneos de dezenas de lugares, que se confundiam
com outros que ela já me dissera que visitara em seus passeios,
pensamentos que me traziam não pequena dose de amargor e so-
frimento, pois vinham acompanhados da suspeita de que houvesse
ALGUÉM ao seu lado.
Examinei o prédio mais uma vez, o tempo de a razão mostrar-
me a tolice de meu gesto. Aí foi hora de começar a reagir, de voltar
à realidade. Dei meia-volta e saí andando, patético, e tomado de
tristeza profunda. Desci a rua da Estação até a praça Anselmo
Dias e lá me sentei, escarranchado, num daqueles bancos, tronco
inclinado para trás, escorado pelos braços. Os imensos fícus e si-
bipirunas demarcando o quadrilátero da praça, sol fresco vazando
no meio das copas.

Olhos de feitiço
... enchi-me de súbito entusiasmo, quando, por engano, acreditei
tê-la visto em meio à pequena multidão das ruas. São fenôme-
nos que não se explicam, ilusões que não se compreendem: uma
jovenzinha que, em realidade, muito pouco lembrava Cristine, a
não ser por ligeira semelhança no tom e ondulado dos cabelos, na
estatura, ou por um ou outro traço indistinto, sabe-se lá onde, deu
súbita claridade em minha retina. Tinha um rosto triste e cansado,
andar pensativo.
De rotina, reparo nos traços das criaturas com as quais cruzo
nos lugares públicos, sejam homens ou mulheres. Como se sabe,

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há figuras frias, sem simbolismo algum, mas também há aquelas de
fisionomias muito expressivas e que são verdadeiras assinaturas do
que se passa lá por dentro. A aparência pode dizer bastante do que
existe na alma. Bastante.
Em passagens casuais da vida – que não foram muitas, nem
poucas –, tive verdadeiramente vontade de interceptar um desco-
nhecido qualquer, no qual percebia, no semblante, grandes sinais
de sofrimento. Chegava a imaginar mil razões de padecimentos e
permanecia com aquilo agarrado por algum tempo, ruminando,
enquanto seguia seu caminho. Tinha, nessas situações, a ilusão
de poder prestar alguma forma de conforto, algum socorro, mes-
mo ignorando completamente a causa de sua dor. Sei que é uma
postura exageradamente cristianizada, vamos dizer assim, e que
poderia desagradar aos ranzinzas de plantão, mas...
A realidade é que dei conta do equívoco quando a menina
atravessou a rua, caminhando na minha direção. Os cabelos lem-
bravam mesmo os de Cristine, marolados, mas nada mais havia de
semelhança. Tinha certa graça no andar, os passos espanejando a
saia, jogando o corpo em cada passada (claro, foi isto o que me fez
confundi-la com Cristine, agora entendo!). Uma sensação estra-
nhíssima: misto de ternura com leve desaponto, talvez acrescido
de pitada de ardente atordoamento.
Segui-a com as vistas até entrar numa loja, onde caixas acústicas
ensurdecedoras e dissonantes, além de uma chuva de papéis picados
na calçada, anunciavam uma liquidação de calçados. Era um dia cin-
zento e frio, nuvenzinhas baixas se juntando no enclave dos morros,
ao redor da cidade, o calçamento umedecido por fria garoa, que ris-
cava o céu de cima a baixo.
Uma perturbação íntima, uma voz interior, inoculou em mim
um desejo incontrolável de rever aqueles “olhos de feitiço”. Fei-
tiço: foi o vocábulo que inopinadamente encontrei. Busquei nas
duas direções, crente de que poderia surpreendê-la por ali. Talvez
não tivesse saído da cidade, considerei a possibilidade do milagre

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– ideia que me trazia extraordinário conforto. Mas nada...
Parei sob a marquise, mãos nos bolsos, mirando os incidentes
de rua, sombrinhas, guarda-chuvas, gente apressada. Novamente,
a desconhecida veio à tona. Não pude ver se já teria saído da loja
ou ainda permanecia lá dentro. Aventei a possibilidade remotís-
sima de, por meio dela, trazer Cristine de volta, uma Cristine de
suplência, uma Cristine de enredo, o que acabava sendo mais alto
que coisa alguma. Trazê-la de volta para meu imaginário, para a
minha fantasia.
Seus vestígios – os de Cristine –, no entanto, teimavam em não
vir. Meu cérebro se esfalfava, mas não podia desenhá-la: anéis de
fumaça (eis um fenômeno estranhíssimo e inexplicável). Tantas e
tantas vezes o cérebro se portava assim, se recusava, como teimoso
animal de tração, quando a carga excessiva requeria esforço supremo.
Como eram mesmo seus lábios? Minha memória planando, se
perdendo em vertigens, se apagando num vácuo mortiço e fugiti-
vo, para à frente ressurgir indistinta e hesitante, como ressurgem
as partículas do borralho assoprado do fogão, as gotículas con-
densadas de nuvem baixa. As sobrancelhas, as maçãs do rosto...
os olhos...
Ela, a memória, escapava, e eu em carreira atrás, claudicante e
afoito, buscando resgatar o formato da boca, os lábios... Reminis-
cências de um batom deixado no espelho do banheiro, todos os
sulcos e impressões estampados no polimento do vidro. E a
inscrição: EU TE AMO! Assim mesmo, em letras garrafais. Até
a consistência daquele pedaço de carne viva: grossos, carnudos.
Isto... assim... A marca dos lábios circunscrita pela sentença ar-
queada. E embaixo, em letra de forma um pouquinho menor:
“VOCÊ É O MEU HOMEM”.
Os olhos... os olhos custavam a aflorar. Vigis e espicaçados,
eu media, e tentava arrastar. Olhos não identificados. Caracteres
indizíveis que procurava recompor: o que existia nas expressões
faciais? Um dúbio desenho de nariz, que, uma vez alcançado, não

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era capaz de me convencer de que seria o verdadeiro, pois, afinal,
já estava contaminado pela fantasia.
A maçã gelada do rosto, nas noites de frio, o distinto silêncio.
Aquele close quis aprisionar; antes, quis que ele se fixasse para a
eternidade, como doce e suave gravura, com seus traços e moldu-
ras, que ela se desvelasse por inteiro. Mas parece ressurgir em par-
tes, em estilhaços, os quais relutam em se ajuntar a fim de compor
o mosaico. Entalhes numa chapa metálica, em banho de ácido,
que aflora e se deixa ver, para, num pequeno intervalo de tempo,
submergir novamente; vem à tona, num jorro fugaz, e depois de-
canta outra vez, querendo ser invisível, querendo negar-se.
De novo, a visão desnorteante dos lábios rutilantes no espe-
lho: “VOCÊ É O MEU HOMEM”. “MEU HOMEM” ou “O
MEU HOMEM”? Sim, pois a sintaxe é diferente. Pelo menos
para a minha vontade. E ela, a visão, se reporta a um recorte de
revista, uma matéria publicitária, imensos lábios rubros ocupando
toda a página, lábios que associei como sendo os dela, levemente
apartados e insinuantes, que me marcavam com energia e que pa-
reciam não se arredar, aguardando, frios, meu próximo passo, meu
desequilíbrio. Sim, pois ela parecia capaz de interpretar minhas
hesitações, reagindo como se estivesse distante, como se fosse tão
só a espectadora de uma peça de ficção. E quase deliciosamente
hostil. Seu corpo incendiado, envolto em seda coral.
Sim, agora vem-me à mente a imagem de seu rosto, me sorrin-
do, resplandecente. Sim. Ela ressurge, repentina e sem explicação,
para meu alívio, ressurge inteira e por completo, em meio ao meu
êxtase: Cristine.

Os labirintos
1 de abril de 1964 – João Goulart não é mais pre-
sidente do Brasil. A guarnição do Exército em Juiz
de Fora (MG), sob o comando dos generais Olímpio

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Mourão Filho e Carlos Luís Guedes, à frente de 20
mil homens, rebelou-se, nesta madrugada, contra o
governo federal e começou a marchar em direção ao
Rio de Janeiro, logo ganhando a adesão do Segundo
Exército, com o lançamento, em São Paulo, de um
manifesto do general Amauri Kruel.

O diretor escapava, esbaforido, pela escada de serviços, que


sempre permanecia fechada em todos os três andares e, no térreo,
dava diante da sala de Desenho. Alguém deveria tê-lo denun-
ciado; mas quem?... Em sua cabeça atabalhoada, as fisionomias
surgiam e se dissolviam em louca velocidade, Não, não, não fazia
sentido, recapitulou, o telefone do andar de cima tocou alertan-
do-o da chegada dos policiais, um tal de Moretti, comissário de
polícia, e um outro, de nome Alan, da Federal, mal o fusca preto
da Polícia Civil acabara de estacionar no pátio. E ele então teve
de abandonar, às carreiras, a diretoria, e se precipitar pelo longo
corredor vazio, as portas todas encostadas, rumores surdos das au-
las, a turva claridade da manhã chuvosa e fria através das imensas
janelas de vidro fosco, no alto das paredes de elevado pé-direito.
Ninguém o teria visto escapar, disso estava certo, o que considerou
como um golpe de sorte, nenhuma pessoa o poderia delatar, quan-
do a sujeição e a pusilanimidade cedessem diante da truculência.
Passava das oito e meia, dali a pouco o sino tocaria o horário
do intervalo. O da Federal, indivíduo enorme, bigode avermelhado
e cabelos em vagalhões, temos de agir rápido, antes da saída
dos professores e dos alunos, pois não atinava com a reação que
poderiam encontrar, haveria tumulto. Contudo, Moretti, afeito a re-
fletores e chocalhices, considerou a ideia, um pouco de plateia era
tudo o que desejava, e a soberba lhe subiu à cabeça e, com arrega-
nho, ia fazendo hora, estufando a pança, levantando o penacho, exi-
bindo sua identidade de policial. Atirou um olhar de desafio ao re-
catado porteiro e, asperamente, O Diretor! Onde está o Diretor?

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11 de abril de 1964 – O Alto Comando Militar
decide suspender, por dez anos, os direitos polí-
ticos de 102 pessoas – entre elas, João Goulart,
e o ex-presidente Jânio Quadros – com base no Ato
Institucional número 1, do dia 9. Há notícias de
onda de prisões. Jango deixou o país, apesar dos
apelos de Brizola e da promessa de apoio do co-
mandante do III Exército, general Ladário Teles.
Para o presidente, a resistência poderia conduzir
à guerra civil.

Dois pisos acima, uma chave, de modelo antigo, dava voltas


afoitas à fechadura da porta, a qual, para nós, meninos, represen-
tava o limite do inexpugnável, a fronteira das misteriosas sombras
da escadaria, cuja escuridão presumida nos enchia de assombros.
Nunca, jamais, a encontrávamos destrancada, e nossa adolescente
imaginação desenhava, por detrás dela, indefiníveis e medonhos
cercados e antros.
O Diretor!?, vociferou novamente, com voz duríssima e cheia
de impaciência. Moretti, empunhando uma pistola, dava espiadas
na Secretaria, no auditório, e já vigiava a rampa de acesso aos pa-
vimentos de cima, enquanto Alan lançava chispas de intimidação
ao porteiro, que, terrificado, permanecia imobilizado ao umbral.

9 de novembro de 1964 – O governo, através do


ministro da Educação, Flávio Suplicy de Lacerda,
edita a Lei Suplicy, que veta “qualquer ação, ma-
nifestação ou propaganda de caráter político-par-
tidário” das entidades estudantis, bem como proíbe
os estudantes “de incitar, promover ou apoiar au-
sências coletivas aos trabalhos escolares”.

Papai se horrorizava com a possibilidade de os comunistas

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tomarem o poder. Acho que nem dormia; um bando armado
despontaria, em uniforme de guerrilha, caras pintadas, na linha
do morro. Viriam para destruir os templos, apossarem-se das ca-
sas, espalharem a barbárie, pesadelo que o Repórter Esso, na voz
de Gontijo Teodoro, tratava de veicular todas as noites, dentro
de nossa casa, uma meia-água cercada por muros de placas, com
parreira de uvas na frente. Comunistas são contra a religião,
contra Deus, repetia, o que acabava se acumulando em minha
cabeça e formando apavorante sombra do apocalipse, de Ofício
de Trevas, algo mais ou menos assim, que não podia delinear com
clareza, mas experimentava profundamente no meu íntimo.
Num dia, assisti na televisão que um tal de Che Guevara, Er-
nesto Che Guevara, morrera nas selvas da Bolívia. Papai teve um
choque de tanta felicidade, de tanto contentamento; ficou estate-
lado sobre a poltrona, pasmo, tronco curvado para diante como
se estivesse prestes a dar um salto, que veio tão logo a estupefação
teve tempo de afrouxar, acompanhado de um urro de satisfação e
de um soco no ar, como se estivesse comemorando um gol numa
partida decisiva, mas, em sequência, voltou a se aquietar, olhos
fixos e angustiados no televisor parecendo não acreditar.
Assisti a toda a cena buscando participar daquele sentimento,
compartilhar do mesmo êxtase, apesar de ignorar por completo o
seu fundamento e causa. Eu atinava que aquilo continha algo que
me convinha, que deveria ser festejado, apesar de, como disse, não
fazer a mínima ideia de quem se tratava o tal Che.
Assim, sentindo-me desoprimido, estirei-me na poltrona menor,
mãos por detrás da nuca, e fiquei seguindo meu pai em sua exulta-
ção. Minha avó se agrupou a nós, vinda do quarto, dedilhando as
contas do terço, lábios ciciando credos, ave-marias, padre-nossos...

8 de outubro de 1967
– Morre Ernesto Che Guevara.

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Entrei para o antigo Ginásio no ano em que foi morto o es-
tudante Edson Luiz, no restaurante Calabouço, do Rio de Janei-
ro, fato histórico que só muitos anos depois pude medir em sua
devida extensão. Nos dias que se seguiram ao assassinato, o país
foi sacudido por ondas de protestos estudantis, as quais acabaram
resultando em novas represálias e prisões.
Pelos lados de cá, naquilo que se pode considerar como uma
verdadeira façanha, o Grêmio Estudantil interrompeu as aulas, no
meio da manhã, em sinal de luto, promovendo manifestação no
anfiteatro (onde eram passadas as aulas de Canto). Bem, eu estava
mais ou menos a par de que alguém havia sido morto, mas nada
além disso. A distância dos grandes centros urbanos, aliada à forte
censura sobre os meios de comunicação da época, cuidavam de so-
negar o que se passava no mundo, de maneira que o Rio de Janeiro
era como o outro lado do globo terrestre.
O diretor do Ginásio à época – e isso é importante –, um su-
jeito admirável, figura luzidia e de grande valor, pelo qual guardo
as melhores recordações, fez-se presente à mesa durante o ato, ao
lado da liderança dos estudantes. Lembro-me muito vagamente
da cena, decerto, muito vagamente, eu, menino franzino e tímido,
entregue ao mesmo tempo ao medo e ao fascínio, esquivando-me
de permanecer lá dentro do anfiteatro, permaneci do lado de fora,
sob a sombra das árvores que enchiam o pátio, oculto pelo brise-
soleil que serve de fachada para o auditório. Dali acompanhei, ex-
citado, a assembleia, preso ao chão por irresistível excitabilidade.
Quando retornei para casa, meu pai, fisionomia arrufada e
tensa, me repreendeu, dedo em riste, com a máxima severidade:
Sai dessas coisas, sai fora disso... Pareço ver seu rosto, aqui,
agora, me repetindo a frase.
Como podia entender o que havia de grave? Comecei por ale-
gar, em minha defesa, que inclusive cantaram o Hino Nacional... De
mais a mais, havia ficado do lado de fora... Devo ter feito menção
também à Bandeira do Brasil (hasteada a meio-pau, envolta numa

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tarja negra). Ele me interrompia, a cada instante, com um gesto de
embargo, e, por isso, me calei.
Mamãe, na cozinha, lidava no silêncio, minha avó, dentro do
quarto, que era onde se refugiava nos azedos de meu pai. Vovó
e mamãe conversavam muito desde que a primeira ficou viúva e
veio morar conosco, mas só quando meu pai não se encontrava.
Passada a fúria de meu pai, minha avó, num tom de forte zanga,
ficou se arrastando inquieta pelos cômodos da casa, e resmungando
que era preciso ordem, que crianças não têm juízo, este tipo de coisas.
Só sei que, quando escureceu, quando veio a noite, a ilumina-
ção morteira da luz do poste projetou, nas paredes de meu quarto,
uma figura lúgubre e assustadora que meu terror reputou como a
de “Guevara”, e lá residiu, indelével, durante muito e muito tempo.

10 de dezembro de 1964 – O show Opinião prome-


te entrar para a história cultural e política do
Brasil. Criado por Oduvaldo Vianna Filho, Armando
Costa e Paulo Pontes, o espetáculo é dirigido por
Augusto Boal e estrelado por João do Vale, Zé Kéti
e Nara Leão.

Minha fantasia, mais de três décadas passadas – estava com


onze para doze anos, na época –, tem a ilusão de seguir o Dire-
tor, Francisco Alvarenga, cabelos brancos, rosto cheio de rugas,
semblante carregado, soporado por lances de escada, figura vê-lo
tropeçar na escuridão, enquanto buscava escapar, que crimes?,
seus sentidos em caos ruminarem a mesma interrogação, que cri-
mes pratiquei? Estava seguro de não se encontrar incurso em
violação de norma alguma, nenhum passo em falso... E, no últi-
mo caso, podia responder pelos seus atos, sim, sim, esta reflexão
lhe agradava e vinha lhe acender a chama interna... Quem sabe
fosse melhor retroceder!?, bastaria abrir a porta, que já ficara
para trás um lance da escadaria, apresentar-se voluntariamente, e

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indagar pelo que estava acontecendo, ponderar que nada de grave
ocorrera, se necessário, solicitaria o testemunho das pessoas, dos
professores e funcionários, nenhum deles se furtaria a fazê-lo, es-
tava certo, tudo se esclareceria (omitiria, decerto, o episódio da
tarja negra na Bandeira Nacional, que ele considerou um pouco
desmedido, apesar de não haver apresentado nenhuma objeção).
Entretanto, a segurança parecia se dissolver, feito espumas à brisa
de cata-ventos, se emolir à medida que os segundos exprimiam o
tempo, o imperioso tempo, que se arrastava num fastio devastador
emanado de suas vísceras, o estômago ou o coração opresso.
“Paciência!”, exclamou, enquanto lhe assomava, num hori-
zonte fechado e tenebroso, a sensação de ter avalizado algum desa-
tino, alguma estupidez, e passando a sentir-se até mesmo um des-
prezível, um fora da lei condenado para o resto dos dias. Antevia-se
aprisionado por impassíveis verdugos e conduzido diante de plateia
deserticamente indiferente com sua situação, uma coisa humilhan-
te, os professores, pegos de surpresa, resignados ao longo de sua
passagem, a estudantada despachada para as salas de aula pelos re-
gentes, as moças da Secretaria por detrás das vidraças foscas, o por-
teiro, os chefes de disciplina, no pátio, se fazendo de desentendidos.
Pressupunha, numa buliçosa composição mental, o seu pos-
to tomado, coléricos brutamontes revirando gavetas, prateleiras e
tudo o que por lá houvesse, adivinhava até mesmo fortes tons de
condenação na face de um ou outro, e aí lhe assomava o Professor
Ulisses... Na turbulência de sua mente deduziu como este escan-
cararia sua máscara, no momento em que encerrasse a aula e se
acercasse, manquitolando, da Diretoria, defrontando com aquela
gente lá dentro (sua cadeira vazia, de aspecto sólido e espaldar ele-
vado, foi vislumbre estranho, que permaneceu em foco por alguns
compassos de tempo. Esquecera alguns de seus pertences sobre a
mesa e procurou avaliar a gravidade do detalhe. Dias depois soube
que Elaine, a secretária, tivera tempo de recolhê-los e colocá-los
dentro de sua própria bolsa).

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E assim se viu sozinho no mundo, pela primeira vez, uma sen-
sação de orfandade que até então ignorava por completo, e que era
gigantesca como os abismos que se abriam a seus pés, como as
muralhas úmidas e negras de fortalezas abandonadas.

21 de junho de 1965 – Diante das ameaças à peça


“Liberdade, Liberdade”, em cartaz no Teatro Opi-
nião, a classe teatral prepara memorial ao pre-
sidente Castelo Branco “contra o cerceamento das
manifestações culturais no país”. O autor, Millôr
Fernandes, teme pelo futuro do país: “Vão atrasar
o Brasil em 100 anos”.

Passou e repassou de memória os rapazes do Grêmio, as fi-


sionomias de todos eles, a de Benjamin, a de Bertino Capistrano,
porém com forte grau de estranheza, pois elas entravam e saíam de
sua mente em sacudidelas, em fluxos e refluxos, em cada vez sob as
formas mais indefinidas, os pensamentos tropeçando, a visão turva
dos degraus abaixo, escuros ao infinito, merda!, permitiu-se a ex-
pressão, que merda!.
Numa fraçãozinha de segundo, conjeturou retornar para retirá-
los de sala, trazê-los consigo, mas um invencível pânico o fez acu-
ar. Já era tarde, muito tarde! Necessário contratar advogado...
Sim, a primeira coisa a fazer, tão logo saísse dali. Ele se es-
conderia, por alguns dias, uma semana, um mês, talvez, e depois se
apresentaria com advogado, o que lhe revirava na cabeça, e em que
desesperadamente procurava se agarrar para lhe mostrar a saída.

27 de outubro de 1965 – A vitória de candidatos


da oposição em cinco estados da Federação leva o
regime militar a endurecer: o presidente Castelo
Branco decreta o Ato Institucional número 2, que
reabre o processo de cassações, extingue os par-

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tidos políticos e impõe eleições indiretas para a
Presidência, além de conceder amplos poderes ao
presidente, como os de ordenar o recesso do Con-
gresso e legislar por decreto.

Estacado no vão entre o segundo pavimento e o térreo, sabe


Deus que angústia! As batidas de seu coração. Urgia dar tempo
a que penetrassem no prédio... Sim, isso, compenetrou-se, se se
precipitasse poderia ser alcançado ainda no pátio, antes de alcan-
çar a ladeira que dava na piscina e no campo de futebol, por onde
planejava fugir... E aí imaginou o cenário que poderia encontrar,
quando destrancasse a porta do térreo (se a fechadura não estives-
se grimpada): os imensos pilotis, a fachada de vidraças, os jardins,
a escultura de Jan Zack, em meio às grandes árvores.
Talvez dessem busca nos arredores do prédio, na cantina, no
estacionamento.
Seu carro!. Conheceriam, porventura, o seu carro? Nesse
caso, haveriam de identificar a sua Variant, o que acabaria por
denunciar sua presença.
Fez cálculos sobre como agiria Mansueto, o porteiro, se seria ca-
paz de sustentar que ele não viera, naquele dia, que não o teria vis-
to. Depositava mais confiança em Mansueto que em qualquer dos
demais, incluindo aí todos os professores; era uma criatura branda,
discretíssima, de gestos tímidos, que recordavam os de um caboclo e
que se comprazia, anos a fio, em cuidar da entrada e saída da meni-
nada e em sinalizar para o João Sineiro – que não sabia ver as horas
– quando se encerravam as aulas.
Não, dele não havia o que temer. Era homem formidável,
consciência que lhe serviu de lenitivo; ainda havia homens formi-
dáveis! O Mansueto!
Percebeu vozes, que pareciam gritar alarmes e chamados. O co-
ração em sobressaltos, foi arrancado de seu alumbramento. Esta-
vam muitíssimo próximos, talvez do outro lado da porta. As chaves

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tilintaram de leve em sua mão, parecendo ressoar desesperadamen-
te, o que lhe incendiou a impressionabilidade; poderiam perceber
aquele barulhinho metálico, se estivessem de fato pegados à porta,
se estivessem tão perto quanto imaginava. Deliberou colocá-las, por
precaução, dentro do bolso da calça. Além do mais, havia o risco
de que pudessem se soltar de sua mão e se perdessem na escuridão.
Não sabia se havia cópias delas em outro lugar. Não, acreditava que
não; as que estavam em seu poder eram as que ficavam engancha-
das na lateral da estante.
Talvez Elaine tivesse alguma guardada, mas ela jamais falaria, ja-
mais as entregaria, estava certo. Entretanto, nada impedia que forças-
sem as portas, pensamento que lhe trouxe extrema aflição.
Agachou-se, apalpou o degrau e sentou-se nele, pernas esti-
cadas alguns níveis abaixo. Encolhido. A cabeça tonteou, a visão
em giros e redemoinhos. Acima, a espiral das escadas se perdendo
num teto longínquo e túrbido.
Acaso arrombassem a porta, para onde fugiria?, indagou-se. Não
havia onde se embrenhar, nenhum canto, nenhuma galeria. Num
lampejo, considerou que talvez fosse prudente descer até o térreo e
aguardar colado à porta, pois, desse modo, teria tempo de se preci-
pitar pelo pátio. Com sorte... Chegou mesmo a esboçar gesto de se
erguer e continuar a descida, porém logo se convenceu de que...

3 de outubro de 1966 – Com a abstenção da ban-


cada do MDB, que se retirou do plenário, o ex-mi-
nistro da Guerra, marechal Artur da Costa e Silva,
o candidato da chamada “linha dura” do Exército,
e o ex-deputado federal Pedro Aleixo (UDN-MG) fo-
ram eleitos, respectivamente, presidente e vice-
presidente da República pelo Congresso Nacional.

Então, novo e estonteante projeto: permanecer ali até o dia se-


guinte. E o seguinte, se necessário fosse. Estava na cara que, assim

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agindo, expunha-se menos, era menor o risco. E a fome? Bom, a
fome... Confiava que poderia resistir e buscava sepultar qualquer
pensamento em contrário. O apetite andava longe, os lábios e a
garganta ressecados, é certo, mas atribuía isso ao terror, que lhe
chupava a saliva, iria passar, tão logo se acalmasse. Numa olhadela,
circulou a extensão do patamar e calculou que, em posição fetal,
poderia ali se acomodar.
No entanto, sempre, sempre, aquele refluxo de agonia, feito
mágoa de espinhos, feito imensa pedra de gelo que lhe penetrava
as vísceras, feito golpes incessantes de chicote.
Os ruídos recrudesceram. Por que o sino não batia?
Quantas horas?
Indócil, seguia um ir-e-vir precipitado de alguém que abria e
fechava portas, nitidamente a do banheiro das meninas, contíguo ao
espaço onde se encontrava recostado (pareciam charriscar a pare-
de). Receoso de ser pressentido (como se isto fosse possível!), afas-
tou-se alguns centímetros, atentando para ver se reconhecia vozes.
Haviam-no denunciado, sem a menor dúvida, uma voz lá no
fundo parecia lhe sussurrar, lhe revelar a imagem calva, ríspida e
demoníaca do professor Ulisses: o rosto ingurgitado, olhos inje-
tados, os dedos apontando para ele, Não vou liberar a minha
turma, Francisco. Não libero ninguém. Tem aula, sim se-
nhor, estalejando a língua, balançando nervoso a cabeça de um
lado para outro. E, se quer saber, te dou um conselho: faça o
mesmo com as demais.

27 de março de 1968 – Policiais invadiram a


tiros o restaurante Calabouço, no Rio de Janei-
ro, onde se preparava manifestação contra as más
condições do estabelecimento. Um corpo tombou sem
vida – o do estudante secundarista Edson Luis de
Lima Souto, de 16 anos. A cidade viveu, desde as
18 horas, até a madrugada, cenas de violência em

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virtude das manifestações contra o assassinato. As
demonstrações reuniram centenas de universitários
e secundaristas, além de populares, aos gritos de
“Assassinos” e “Abaixo a Ditadura”.

Subversivos! Comunistas!, um curtíssimo hiato entre as duas


expressões, tempo em que persistia com seu tique de abanar a cabe-
ça e estalar a língua. E já quase fora de si, fechou-se com aspereza,
deixando-o portas a fora, atônito e ultrajado.
A imagem rabugenta do professor luzia na imensa treva que
era a sua mente, na sombra do seu transe, na escuridade fugidia
em que se afundava o labirinto a seus pés.

10 de maio de 1968 – Pelo menos 60 barrica-


das, algumas com até três metros de altura, fo-
ram erguidas em Paris, no tradicional bairro do
Quartier Latin, pelos estudantes, que protestam,
desde o início do mês, pela reforma no sistema
de ensino francês. Nos confrontos com policiais,
cerca de mil pessoas ficaram feridas e 80 carros
foram incendiados.

Desesperadora quietude, lá fora. Alçou os sentidos. No silên-


cio mortal, criava ruídos que não existiam de verdade, ou então
seus sentidos alarmados amplificavam os que a natureza deixava
escapar. Olhou para baixo e principiou a desenhar, com a ponta
do dedo, na poeira do chão. Deixou o fôlego se soltar numa longa
expiração, num comprido bufo, e endireitou o corpo no degrau.
Uma neblina fria entrava pela claraboia, feito atmosferas que
pertençam ao mundo dos sonhos. Francisco ficou seguindo os
giros e circunvoluções das gotinhas de água no ar cavernoso da-
quele ambiente, até virem esborrifar no seu rosto porejado, nos
braços eriçados.

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Não fosse pelo cerco, até poderia se sentir confortável e aco-
modado; lhe extasiavam as manhãs baças de chuva e céu nublado,
os dias sem sol, em que se recolhia na pequena varanda de sua casa
e ficava espreitando os riscos de chuva no céu, os morros enchar-
cados, a verdura mais intensa e luminosa nas folhas das palmas e
dos tinhorões, da dama-da-noite e das costelas-de-adão, no jardim.
Deu por si abanando, nervosamente, os joelhos, para fora, para
dentro, para fora, para dentro, o verniz dos sapatos lustrando-se
fugaz quando formava ângulo com a claridade que vinha de fora.
Aplicou o ouvido. Nada havia de sonoridade naquilo que pa-
recia ser zona vazia de existência, ser o fragmento do mais pa-
voroso pesadelo. Ou, melhor, existia sim, existia uma espécie de
zumbido tênue e arrastado, milhões de cigarras zunindo baixinho,
mas o zumbido acabava se desfazendo na vacuidade do mundo,
se perdendo quando ele buscava firmar o sentido na sua procura
e se transformava num nada.
Onde estariam todos? Os alunos, teriam sido dispensados? E os
professores? E os funcionários? O cérebro latejando.
Se girasse lentamente a maçaneta da porta...? Não! Seria lou-
cura! Loucura! Agitou de leve a cabeça para um e outro lado. Ran-
ger longo de dobradiças. Meteu os dedos uns por entre os outros
e estendeu nervosamente os braços. O corpo arrepiou-se.
Os segundos iam assim, incontáveis, impenitentes, em meio
ao absurdo silêncio. O piano, desejou que tocassem o piano, aque-
le ressoar lhe faria bem, lhe viria em socorro, preencheria a lacuna
da existência, lhe traria de volta o ritmo da vida. Onde se escon-
dera a professora Berta?
Escarranchado, passou a mão pela fronte e, em seguida, enco-
lheu o tronco. Quanto tempo?!

29 de março de 1968 - Assembleia convocada pelo


Grêmio Literário Machado de Assis reuniu ontem,
no auditório do Ginásio Estadual, os estudantes

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daquela escola. O objetivo da manifestação, de
acordo com o presidente do Grêmio, Geraldo da
Silva Prado, foi homenagear o estudante Edson
Luis, morto por forças policiais no Rio de Ja-
neiro, e comemorar o Dia Nacional dos Estudantes.
O movimento teve início por volta das 9 horas,
e contou inclusive com a presença do Diretor do
estabelecimento, Francisco Alvarenga de Sá, além
de alguns professores.

Quantas horas? Por que não havia tocado o sino? Por


que não bateram o sino? Quantas horas? Um zumbido surdo
e constante, dentro de seus ouvidos. Que ruído era aquele? Te-
riam, por acaso, ligado a bomba-d’água? Zunia, zunia e zunia.
Inquieto, tentava adivinhar lá fora, pela claraboia salpicada. Rumo-
res de saltos de sapato, os passos pisando, dando a impressão de se
perderem na distância dos soturnos corredores, a chuva fininha...
Num gesto de profunda angústia e quase desespero, enfiou a
cabeça por entre as mãos, cotovelos nos joelhos, e apertou com for-
ça os ouvidos. Apertava forte, um milhão de ameaçadoras imagens
por trás da fronte contraída e exausta, a fim de calar aquela latomia,
assentando terrível enredo de infortúnios.
Desejou encontrar-se já no dia seguinte, que o tempo cedesse e
deixasse de cumprir as inexoráveis horas do relógio. Como seria o
amanhã, onde estaria, àquela mesma hora?, uma enormidade
de fantasmas e cenas pela sua mente, slides que se alternavam lou-
camente numa tela de projeção, em cômodo escuro.
As coisas iriam se arranjar! Nada fiz de absurdo, destam-
pando as orelhas, enquanto repassava tudo, ágil e febrilmente.
Preciso de advogado. Preciso de advogado, repetia para si
mesmo, enquanto as mãos simulavam pentear, obsessivamente,
os fios grisalhos dos cabelos.

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13 de dezembro de 1968 – O governo baixou, à
noite, o Ato Institucional número 5, após uma
reunião do presidente da República, Costa e Sil-
va, com o Conselho de Segurança Nacional. O AI-5
decreta o recesso do Congresso Nacional por pra-
zo indeterminado. Houve grande movimentação nos
quartéis do Rio, onde existe rigoroso regime de
prontidão. Na Vila Militar, os caminhões estão em
posição de deslocamento. A Polícia Federal tem 400
homens “prontos para agir” e também estão total-
mente mobilizadas as polícias Militar e Civil.

Esaú e Jacó
“... o tempo é um tecido invisível, em que se pode bordar tudo...
Também se pode bordar nada. Nada em cima do invisível é a mais
sutil obra deste mundo, e acaso do outro.”

Eros II
Permaneci estirado na cama, levemente entorpecido, coração in-
vernado, os sentidos adejando. Adivinhando seu gesto de ajeitar,
descuidada, a lingerie, o vestido, os cabelos. Meus ouvidos pal-
milhando os sons que ela ia construindo, o rangido da porta, a
descarga do vaso sanitário, a torneira do lavatório, a porta do ar-
marinho do banheiro (o que procurava lá dentro? Talvez indícios
da existência de outra pessoa, uma segunda escova de dentes, por
exemplo, um objeto feminino qualquer, quem sabe?!).
Tecia na mente seus trejeitos e evoluções, os quais buscava ade-
rir ao meu espírito, a fim de que nunca mais se desfizessem: aquela
manha de cerrar ligeiramente as pálpebras, um meio termo entre
o sensual e o atilado, as narinas dilatadas, buscando ar, olhos que,
inconstantes, tratavam de saltar pelos meus, madeixas dos cabelos
em revolução, serpentário furioso despencando pela testa porejada

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apagando perfis da face, acantoando o rosto adolescente e felídeo,
lábios de cobiça assediando e retrocedendo com apetite e sede, lá-
bios propensos exigindo minha boca, mas, ao mesmo tempo, me-
noscabando, deixando o beijo só anunciado, o corpo tíbio de ninfa,
a nudez dos seios, açucenas-brancas, brotos dos mamilos eriçados,
a noite, magníficos dentes perolados, a noite, a vida parecendo in-
venção ou doce miragem, delírios e transes, indisponibilidade ao
exterior, que compreendia anular a realidade e a tradução. Fusão
de mentes íntimas e acolhedoras, mais que de corpos, muito mais,
minhas mãos vazias acariciando a penugem dos braços leitosos, tex-
tura de pétalas, garças nas várzeas e pastagens, golpes pungentes no
coração, a noite. E transpirações inodoras e fresquíssimas minando
de seu corpo, garças, eu querendo saber se o que ia dentro de sua
cabecinha também acabaria se anulando, ou não, lá nos seus arqui-
vos mentais, nos circungiros do seu cérebro, nas bifurcações de seus
neurônios. Ela... inacreditavelmente... ela ali estava, garras cravadas
em meu peito num deleitável esgadanhar, e já era águia, águia rapi-
nando meus músculos, o quarto coalhado de lua azulada que entra-
va por frinchas indiscerníveis da janela, e isso compensava as dores,
compensava a agonia, as ruas desertas... Ela abria olhos afáveis, ao
acaso, sorria um afago e, em questão de segundos, voltava a cerrá-
los, as meninas dos olhos que, dilatadas, se escondiam, enquanto
me entregava seu doce mundo, as espáduas lisas sob o aconchego
de minhas mãos, o clarão da lua desenhando um ventre ágil, um
corpo luminoso, bálsamos silvestres... E era dia e era noite, a mais
sublime das noites, pômulos sinuosos, tenras e frias carnes em es-
pasmos, face retraída contendo uivos alucinantes de fêmea, lábios
de cores vivas – cor de cereja – e sabor melífluo, minha cabeça um
refrigério, meus quadris se incendiavam no mais implausível e de-
leitável conflito térmico que possam nossos elementos anatômicos
suportar. Ela ali, como miragem, ali, inteira e segura, enquanto eu,
em silêncio, invocava milhões de vezes seu nome, Cristine... Cristi-
ne..., soletrava seu nome, minha fantasia seguindo, absorvendo em

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desvario, a existência sem ruídos, a passagem do tempo, instintos
como que desativados, a inexistência radiante e voluptuosa que só a
hipnose e a embriaguez são capazes de construir. Deslúcido. Púbis
e útero, útero e úberes coalescendo em minha memória, detalhe por
detalhe, como num videotape psicodélico e inebriante que desejarí-
amos prolongar, interminavelmente.

***
Enrodilhava o penteado atrás, na cabeça, pregador de cabelos
na boca, escultura de Jan Zach encerrada sob meu teto, quando
passei em direção à cozinha.
Com efeito, nada tinha com o que me ocupar naquela parte
da casa; ia acionado por impulsos que não tinham alicerce, in-
tuitivamente arrastado, a mente ameaçando gritar pelo desatino,
mas algo superior a vinha silenciar. Sua visão, enquadrada no vão
da porta, como que me interceptando, retendo meus passos, um
tanto quanto retraída, contudo receptiva e amistosa, sorriso meigo
e insano, olhos fartos.
Ficamos estancados um frente ao outro, eu, no corredor, ela, no
banheiro. Houve um instante em que ameaçou se deflagrar em mim
a disposição de apertá-la de novo, de constringir seu corpo, mas
algo me reteve: uma fadiga, uma displicência.
Ela se franqueava sem reserva, se ressumbrava, como se pre-
meditasse cada dos seus pequenos gestos. Prendia o pregador de
cabelos no coque, esgrimindo na mão o batom, sustentando a mi-
rada oblíqua e libertina sobre mim. Um ar de mistério. Pouco de-
pois, acercou-se, passo por passo e, imperturbável, tomou o meu
rosto com as mãos; suave fragrância nova em seus cabelos, aroma
indefinido, contudo agradabilíssimo... Ela aninhada em meu cor-
po, meu queixo sobre o topo de sua cabeça, a força de seus braços
me envolvendo. Cristine se aconchegava.
Isso durou bem mais do que seria esperado. Aí me despren-
deu, em definitivo, exibindo outro sorriso nos seus lábios, este

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agora meio exaurido e refreado. Entendi que devia, sem mais de-
mora, desgrudar-me dali. E lá fui eu, corredor afora, encerrar-me
na cozinha, onde, de propósito, passei a provocar ruídos, buscas
em vasilhames, talheres, portas de armários e forno do fogão, a
fim de lembrar-me minha presença e orientar-lhe os passos. A
janela aberta para o inverno, névoa úmida e afiada regelando, a
indiferença da luz vacilante da cidade que chegava até ali, as ina-
creditáveis estrelas... Nenhum calor das paredes acuadas, nenhum
abrigo, nada por testemunha. Como garrafa de náufrago, perdido
dentro de meu próprio agasalho.
Sucedeu-se um tempo adormecido e que se perdeu, enquanto
a vaidade masculina me impelia a engenhar alguma atitude a to-
mar, o próximo passo; nada, porém, consegui encadear. Não me
ocupou nenhuma ideia e aquela lacuna era amarga e aflitiva. Calcei
os sapatos, ainda sem saber que atitude tomar, afundei de volta
no corredor, tomando, por querer, o cuidado de desviar-me da
passadeira, pisando duro nos tacos, feito tivesse pés engessados,
ou andasse sobre pernas de pau, fazendo das minhas passadas um
alarme, para que ela tomasse ciência de meu retorno.
Dois ou três minutos de inextinguível silêncio. Não fiz mais que
esperar os ponteiros saltarem. Percebi o rangido da porta se abrindo
e, em seguida, ela ressurgiu no quarto. Recostou-se primeiro no um-
bral. Dali a pouco, se adiantou, dessa vez amortecida e silenciosa.
Não era mais a mesma marcha ousada, o mesmo fluir determina-
do de quem sabia o que estava fazendo. Não. Parecia inteiramente
despida de sua paladínica altivez, de sua fixada realeza. Cabisbaixa
e discreta, contornou a cama e sentou-se muito cautelosa (recendia
a... Que fragrância era aquela? Recendia a uvas e jabuticabas).
Como cais vazio, voltei-me para o dentro mais interno de
mim, a tentar focar o vácuo, a tomar consciência da minha própria
respiração, do ar que entrava e saía com mansidão do meu peito,
do sangue que corria nas veias, do rapto dos sentidos, da exaustão.
Do ar parado, da noite imensa, da claridade indecisa do ambiente,

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do que a minha retina conseguia catar. Não me movia um nada.
Espreitava e esperava.
Ela, exilada, abriu a bolsa a tiracolo, examinou e revirou lá den-
tro – fico me perguntando o que existe dentro das bolsas de todas
as mulheres – e fechou-a em seguida. Às vezes, erguia os olhos,
revezando um sorriso tímido, um franzido de rosto, um suspiro.
Correu os olhos por todo o quarto. Agora vou embora, ela disse,
parecendo esperar de mim alguma objeção. Mas permaneci mudo;
não consegui formular nem mesmo a mais convencional das frases,
nada. Era como se meu entendimento se desertasse e me deixasse
flagelado e em apuros.
Inesperadamente, sua demora me trazia até mesmo um tanti-
nho de embaraço, de enfado, mal sei. Quase cheguei a desdenhar
sua presença, à medida que ia despertando para o mundo real,
que revelava, para mim, as sombras maciças dos móveis, a névoa
amortecida dos livros imperfeitamente perfilados nas prateleiras,
projeções de pontinhos de luz meditando nos tacos e na parede
defronte à cama.
Existia um imprevisto remorso, remota aridez, que se consis-
tiam em sensações sumamente surpreendentes. Eu abismava: tinha
desejos de me insular, de me infiltrar por entre árvores em florestas
negras, em bosques inócuos, de acolher brisas no rosto, de descal-
çar as botas, de adernar em correntezas leves de riachos. De ador-
mentar, enfim. Confuso e vitimado por sutil indolência, permaneci
mudo e inerte. Os segundos no despertador lá da sala. Guinchos
de coruja. Passos na rua. O que existe mais de sons na noite?
Lembro, por fim, que ela arqueou as sobrancelhas, esfregou as
mãos, num leve tremor, estendendo os braços para diante, estalando
as juntas, não sei se de frio ou irritação. Depois mordeu encabulada
o lábio inferior e se ergueu devagarinho, bem devagarinho. Ajeitou
o vestido, girou o corpo. Você não vem comigo até a porta?

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Gênesis II
3, 7 - “Então os seus olhos abriram-se, e, vendo que estavam nus, toma-
ram folhas de figueira, ligaram-nas e fizeram cinturas para si.”
3, 11 - “O Senhor Deus disse: Quem te revelou que estavas nu?
Terias tu porventura comido do fruto da árvore que eu te havia proi-
bido de comer?”

Olhos de turmalina
Ela tão perturbadoramente insensível e glacial, pétrea e impossível,
enquanto eu, num estupor das adegas, jamais acertava como me
portar, jamais tinha o poder sobre a melhor atitude a ser tomada;
tão estranha e incompreensível, ela me parecia. Implorava por adi-
vinhar seus cálculos, seus desejos e até suas cismas, para abranger o
que se passava dentro daquela cabecinha, mas em vão. Nunca con-
seguia me preparar, ter plena conta de mim, precaver-me de pôr pés
em ramos verdes de espinhos. Muda, totalmente muda, por vezes,
pálpebras ermas no chão. Um suspiro. E os mais vastos segredos.
Quem era ela? Afigurava vivenciar um transe perlongado, as
mãos inertes por entre as coxas, estremecendo, em circunstâncias
acidentais, como se imprevisíveis arrepios de frio lhe percorres-
sem o corpo.
Confrontar de novo estes lençóis é restaurar mais uma vez o
torpor, é sobrepairar nesta escuridão infinda e que parece ter peso.
Procuro entreter-me com o que vem lá de fora, com os ruídos e bu-
lícios; contudo, algo sempre me traz de volta. Digo que minha têm-
pera se desfigurava e a realidade aparentava até assustadora. Ainda
não conhecia as verdadeiras ausências, as inexistências definitivas,
aquelas para as quais não existem saídas e se delineiam quase como
inaudita realidade. Hoje sei delas, claro, é trilha batida, mas, àquela
altura, não podia nem mesmo suspeitar de sua existência; a vida
acabou me mostrando, sem que o esperasse, o destino abriu esta
porta. E tudo é tão extraordinário e tão desmedido que chego a

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interrogar o que existiu, as coisas doces e as tristes, o que foi bom
e o que não foi, pois, afinal, a magnitude dos acontecimentos feli-
zes depende, em certo modo, de que os vícios não sejam de todo
sepultados, visto serem eles o diapasão da fortuna e da ventura, do
mesmo modo que o branco só se justifica pelo negro, o calor, pelo
frio, o dia, pela escuridão.
A noite vem vindo, acenderam-se as luzes dos postes, soporífe-
ra cerração sobre a cidade. Não sinto frio; ao contrário, meu rosto
parece arder e a blusa do pijama me traz certo desconforto. Dispo-
me da cintura para cima, deito-me novamente, as pupilas agitadas
saltando pela obscuridade do teto, mas não me conservo sobre a
cama. Gritos de um louco que passou do outro lado da rua e que
se insurgia em resmungos e impropérios. Meu coração aturdiu-se.
O louco, estancado nas imediações, espaçou mais duas ou três
pragas e depois mergulhou no mais profundo silêncio. Sei que
ele ainda está por perto, arrasta consigo o que parecem ser latas
dependuradas no corpo, que chocalham e repenicam ao acaso.
Posso senti-lo muito perto. De vez em quando me chegam tinidos
de panelas e trempes, de alguma casa da vizinhança.
É estranho, mas o perfume de Cristine parece se conservar
por aqui. Está pelos espaços, nos tecidos, nas minhas mãos anco-
radas nas aberturas das narinas, que tratam de sorver as voláteis
e viciosas partículas de uvas que escapavam de seu corpo, de res-
gatar até a última molécula. Consigo desvendá-lo nesta inefável e
insistente alucinação.
Quem era ela? Quem estava diante de mim, metida naquele ves-
tido rubro, que cingia as formas de um corpo cálido e misterioso?
Quem? A cabeça ligeiramente pendida, dedos inquietos enroscando-
se uns nos outros numa lenta e mórbida dança. Tão perturbadora-
mente ausente e entorpecida, pálpebras tímidas cravadas no chão, os
olhos feitos de matizes inventados, de cores inexistentes e que jamais
retive. Que cores mesmo tinham aqueles olhos? Pepitas miúdas de
turmalinas verdes, em cálice de vinho rosé...

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A barca do tempo
De que me lembro?! Na melhor das hipóteses, de nem mesmo a
décima parte de todos os acontecimentos amargos e sombrios;
dos grandes pesadelos, quero dizer. Muito se perdeu na neblina do
tempo. O tempo... o tempo é véu semitransparente, que se cobre
e se descobre, quando convém aos pilares; é o chão do trapezista,
depois de retirada a rede de proteção.
A memória burila, retoca. Elege. Ela própria cuida de apagar
vestígios, impede as buscas, age na contramão dos fluxos, sem
que, para tal, exija qualquer esforço de minha parte. E isso não foi
de propósito, nenhuma iniciativa tomei neste sentido, se é que me
faço entender. Ela, a memória, no geral não perdura, não se pro-
longa, recusa-se a reproduzir o que não lhe traz prazer, poupando-
me de solaparem os horizontes largos, o céu aberto, as auroras, as
tardes chuvosas. Tudo se dá como se eu não devesse ser penaliza-
do por algo que só faça parte dos delírios, da estranheza dos so-
nhos, do intangível e de todas as coisas que não compreendemos
e que nem têm nominação.
É extraordinária a parcela do que deixou de existir, do que se
apagou de minha mente errática. Extraordinária! Estou sendo sin-
cero. Estes fragmentos não afloram, por mais que queira, por mais
que empregue todas as forças e energias, são inúteis as tentativas de
resgate e, nesse caso, as reminiscências são como imensos painéis
em branco que, quando fixados, revoluteiam em nuvens incertas e
bêbadas. Nada sei do que possam ter sido as marcas, as raias; estas
se dissiparam, no primeiro vento de deserto, apagando as pegadas
na tênue levada da poeira sobre a imensidão da areia. Mais nada.
Existiu em mim uma interrupção, uma descrença: não preciso anu-
lar nada, não escolho esquecer e, portanto, as consequências do que
se passou praticamente tornam-se nulas, invisíveis, pesadelos que
se dissolveram antes mesmo do despertar. Ou, quando muito, até
a metade da manhã.
O alívio é espontâneo, é o que quero dizer. Alguns episódios,

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a varejo, vez por outra se refazem, desafiando a ação do tempo,
mas da imensa maioria nem permanecem vestígios, não restam ci-
catrizes. Tais caprichosas reaparições, como é compreensível, são
fenômenos amargurantes, para os quais nunca encontro remédio,
mas a fortuna os deixa como episódios raros, como disse. Por
que, afinal, esses também não naufragaram, deixando-me de vez
liberto de todo encerro, de todas as pesadas e chamejantes nódo-
as? Por quê?
Por outro lado, recordo-me da maioria, ou até mesmo do con-
junto dos prêmios e dos golpes felizes. Em passagens casuais, re-
vivencio todos eles ou, pelo menos, os que a providência vai me
trazendo. É como se minha memória fosse seletiva e, ao mesmo
tempo, ente apartado de mim e que me denota amizade. Tenho
um pouco de sol, de aragem, de céu aberto. Um pouco de maré e,
insone, lanço ao mar a minha nau, para navegar em grandes águas.
Os cômodos da vida.

Sombras chinesas
... em particular, de quando me intrometi pela sala de D. Ermelin-
da – havia ido fazer uma ligação telefônica, lá existe uma extensão
do aparelho, que ficava no pavimento de baixo. Como a tal quase
nunca se ausentava de lá, durante os recreios, amarrada na cadeira
para marcar território, aquele é um ambiente em que raras vezes,
mas muito raras mesmo, frequentei.
Pois bem! Lá estavam ela e outra senhora, que jamais havia
visto, e que, antecipo, nunca mais tornei a encontrar. Estranhei,
logo de cara, a maneira tão desfavorável e até mesmo hostil com
que deram por mim. Não podia, nem de longe, suspeitar o que
teria feito que as desagradasse tanto. Não sei do que tratavam, mas
a reação delas me pareceu ter pouco cabimento: interromperam
instantaneamente a conversa, no exato instante em que pus os pés
na sala. E sem se moverem, uma diante da outra como postes,

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separadas pela enorme mesa onde D. Ermelinda se instalava, con-
servaram-se misteriosas e hirtas, os olhos gangorrando entre si.
A outra me mediu da cabeça aos pés, ferina e desafiadora, a
testa franzida, os olhos fuzilando (meio orientais, um pouco “pu-
xados”); e depois, com o mais indisfarçável tom de descaso; como
se eu não existisse ou fosse o mais execrável dos seres. Fiquei a
observá-las, sem quase lhes despegar a atenção, enquanto procu-
rava acertar a decisão a tomar. Estava certo de não haver cometido
nenhuma descortesia, inclusive as cumprimentei tão logo cheguei,
o que, afinal, é meu preceito com todos dentro da escola, desde
a mais simples serviçal, o porteiro, todos, todos, enfim, e elas ha-
viam escutado a minha saudação.
Ignoro se acontece com todos, mas, no meu caso, quando
passo por situações semelhantes, meu cérebro logo se põe em
vertiginoso recuo, em caótica viagem de volta, repisando minhas
atitudes mais recentes, examinando-as com vistas a descobrir pos-
síveis faltas que tenha praticado. No curtíssimo espaço de tempo
em que lá permaneci, fiquei remexendo os miolos na busca, mas
não pude decifrei o que levaria aquelas duas a se portarem de
modo tão rude. Não atinei em nada. Talvez tenha interrompido
algum assunto sério e urgente delas, não sei.
Quando a tal desconhecida se pôs numa posição de través, dei
conta de que se tratava realmente de pessoa bem pouco simpática
e até mesmo meio esquisita – esquisita do ponto de vista físico e
de maneiras, quero dizer. Não possuía modos de mulher, se é que
posso fazer uso de tal expressão: uma aparência de verniz, de louça
amarelecida. Sem querer parecer grosseiro, diria que a impressão
que jorrou logo na primeira mirada era a de que se tratava de cria-
tura hermafrodita.
Deveria fumar bastante, pois intercalava períodos de silêncio
com outros de convulsivas tossidas, que lhe ameaçavam arrombar
o arco do peito. Além disso, devia ter idade bem superior que a
que queria deixar transparecer: algumas partes do seu corpo – os

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braços, em especial – já não conservavam quase mais nenhum
viço, as carnes haviam perdido a consistência e as pelancas se mul-
tiplicavam dos cotovelos aos metatarsos. O rosto, por outro lado,
encontrava-se retocado em exagero por bases, batom, ruge, rímel,
pó de arroz, sombra, e assim por diante, buscando camuflar papa-
das e olheiras; os cabelos cinzentos, de raízes nevadas, o mesmo
azedume e cara de nojo da “senhora Ermelinda”, porém, ao con-
trário desta, sem um mínimo de postura ou aprumo. Uma pessoa
soberba e afetada, isso sim, e que não sabia se colocar no mundo.
Penso que dariam ambas perfeito daguerreótipo, tão gongóricas
em seus envernizamentos e balangandãs.
Minha primeira reação foi a de logo dar meia-volta e retirar-
me dali, tamanho o constrangimento que experimentei. Mas aí
calculei que tal atitude acabaria sendo mal interpretada: entrar e
sair, quase no mesmo instante, poderia parecer incivilidade de mi-
nha parte, ou então – o que seria muito pior –, expunha-me a
levantar desconfianças de que tivesse alguma intenção furtiva, na-
quele lugar. Fiquei, portanto, numa situação bastante incômoda.
Ao final – e pior! –, assaltou-me uma interpretação terrível: de
que aquela mulher tivesse algo a ver com Cristine. Não sei por que
aventei essa possibilidade, não me perguntem sobre isso. O fato é
que intensíssimos fenômenos físicos e psíquicos entraram em fun-
cionamento, dentro de mim: um estancamento de voz e de fôlego,
a visão se tingiu da cor mais negra, uma imprevisível e insonora ex-
plosão interna. Entrei em desabalado pânico, passando a trabalhar
na mais monstruosa insurgência de impressões e juízos que se pos-
sa imaginar. O que entrou em carreira foi que ela pudesse ser a mãe
de Cristine, o que se constituía na mais agonienta pressuposição.
Acontece que nunca, em tempo algum, tive qualquer notícia do
círculo de parentes de Cristine, assunto do qual sempre se esquivava,
e isso soava, no mínimo, como muitíssimo estranho. Nas vezes em
que a indagava diretamente sobre tais assuntos, o que fazia tão so-
mente como forma de parecer-me cortês – era a maneira de “passar-

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lhe” a palavra, vez que eu, até meio bobamente, me comprazia em
recordar muitos e muitos dos acontecimentos do meu passado –, ela
se enrodilhava, se velava sob o mais nevoento manto das eras.
Em inúmeras oportunidades cheguei a acreditar que ela pu-
desse ter “origens obscuras”, na falta de termo mais apropriado,
as quais necessitava de manter em silêncios, não permitindo que
nada chegasse até minha curiosidade.
Sentados um diante do outro, em minha casa ou em qualquer
outro lugar, ela seguia atenta os fatos mais banais desta minha vida,
como se aquilo compusesse a mais extraordinária das narrativas.
Asseguro que eram episódios corriqueiros, triviais, que nem me
animo a descrevê-los aqui. Até me custa entender como poderiam
excitá-la e trazer-lhe alento. Bom, são os mistérios dos sentidos.
Quando, porém, querendo parecer gentil, indagava-lhe qualquer
coisa acerca de seus familiares, sobre suas raízes, como pesado segre-
do que jamais devesse ser removido, Cristine silenciava-se. Nas raras
oportunidades em que se impelia a romper o gelo, costumava gerar
histórias que pareciam adulteradas, pois nunca repetia igual versão
acerca do mesmo fato, nem dar fim lógico e plausível àquele enredo.
Compreendi, portanto, que desvendar o seu ontem seria assunto de
intrincado acesso.
Ao mesmo tempo, nascia em mim certo temor de colocar à
vista aqueles segredos, pois tinha nefastos presságios de que ali
residisse qualquer coisa de infernal ou misterioso. Mas seu silêncio
acabava por acentuar ainda mais minha curiosidade: pensar suas
cabeceiras, os troncos, os ventres, os ninhos, a raiz mestra, tudo,
enfim, que faz de todos os seres comuns possuidores de história
própria, de alma, de boa estrela, de afeições no coração. Esse o
meu lado telúrico, acho.
Justamente por esta razão, a origem de Cristine tornou-se,
para mim, quase uma obsessão, a qual procurava amoitar para não
parecer indiscreto, deixando para o curso irrefletido da vida a res-
posta daquela incógnita. Imagino que seja nevoento compreen-

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der-se o que tais conhecimentos possam trazer de interesse e de
proveito, mas o caso é que o invisível acaba por atiçar os sentidos,
estremunhavam as vozes lá do fundo. O mistério arrebata, fustiga,
aguça e equivale à atração exercida por cabalísticos licores, prepa-
rados por magos ou alquimistas, e que sejam capazes de fornecer,
na mesma degustação, o mais esplêndido e sobrenatural dos pa-
ladares, mas também o mais fatal dos venenos, dependendo dos
cuidados tomados durante a manipulação.
Só sei que, nos últimos instantes em que permaneci junto das
duas mulheres, na sala da senhora Ermelinda – enquanto minhas
reações de estupor me mantiveram como que paralisado –, passei
a buscar celeremente por traços de Cristine no rosto da mulher,
que se preservou todo o tempo cheio de ressentimentos (foi mi-
nha impressão, o que vinha reforçar minhas suspeitas).
Transplantei – ou melhor, tentei transplantar – o corpo de
Cristine para aqueles braços estendidos sobre a mesa, o dorso
de Cristine para aquele outro, que me deu as costas, porém, meu
cérebro se recusava. As fisionomias não pareciam combinar, em
parte alguma.

Marquises
Houve um período em que cogitei compor obra ficcional com
estes meus escritos, dar-lhes cunho literário. Foram muitas as oca-
siões em que tive em mente o projeto. Bastaria, para tanto, que
usasse de pseudônimo, que alterasse substancialmente as locações
e camuflasse cenas de fácil reconhecimento dentro de outras que
a fantasia me permitisse criar. Assim, ficção e realidade, memória
e imaginação, se entremeariam, se confundiriam, num espaço em
que eu caminharia às soltas, livre de correntes e grilhões.
Sob o formato de diário, eles – os escritos – me parecem esté-
reis e sem proveito, exceto, claro, pelo fato de servirem de fornada
para minhas abstrações e alumbramentos; efetivamente, o alcance,

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a vida real, sempre nos mantém sob preceitos, nos dita normas; é
rival da fantasia, ataúde da utopia, penso eu.
Lívia, por exemplo, seria o nome que escolheria para a minha
personagem. É vocábulo com sonoridade, e isto é o que mais me
importa: a acústica do idioma. Lí-via. Ou Margot. Também me
agrada este sonido, apesar de não ser substantivo de nossa língua,
o que não invalida a minha busca da perfeição “acústico-fonéti-
ca”, para cunhar uma expressão, em verdade bastante estranha.
Minha rainha Margot.
Se tivesse de optar por um nome, a fim de disfarçar Cristine,
ficaria com um desses. Minha Lívia seria uma invenção de Cristi-
ne, uma recriação sua, uma Cristine-Lívia dupla, de longe a mais
adorável das criaturas, toda feita de encantos e magias. Devassa
por vezes, feminina ao extremo, cristalizada com certo grau de ir-
resistível arvoamento e estranheza, o que acaba por não me trazer
incômodo maior.
O espírito da gente é mesmo assim: desenha as coisas como
melhor lhe convém, cria seus mundos de acordo com seu inte-
resse e proveito, advoga em causa própria, mesmo que isso custe
enganar a vida real. Para me preservar, minhas profundezas como
que tratam de deixar no caminho os afiados traços de desvario – e,
por que não, de malícia – de Cristine. Lívia é inventada, sei disso,
não existe nem a mil léguas daqui, mas sacia o meu desejo e abole
o que houver de aberrações e rasuras. Sempre que a invoco, ela me
parece a mais visionária e quimérica das divindades.
No livro, só cuidaria do meu pensar, do meu interno, enfim, de
tudo que não é permitido à perversidade e à vileza alheias.
Já teria até mesmo um título: Olhos Vesgos de Maquiavel. Na
verdade, tal expressão, por estranhos fenômenos sensoriais, nas-
ceu no exato instante em que despertei, dia desses (enquanto me
encontrava naquela fase de transição entre o torpor e a vigília).
“Vi” a expressão balangando no meu subconsciente, como luz
frouxa de néon numa fachada em ruínas.

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Contudo, alguns elementos têm dificultado meus planos: o
primeiro, e certamente o de maior peso, é que receio não reunir
suficiente talento para a missão. Há inquebrantável temor de sub-
meter-me aos jogos das luzes. Não me imagino possuidor da me-
nor disciplina, das bússolas e dos compassos, que, acredito, sejam
necessários para a travessia, nem enxergo em mim habilidade para
ao menos me pôr à sombra das figuras que acomodo em minha es-
tante. Nas vezes em que me aventurei a ir um pouco mais longe, o
resultado foi desastroso e o que restou foram lucubrações de quem
nem parece saber por onde se embrenha.
Outro ponto: não há motivos edificadores, não há arrojo de
minha parte, meu projeto não chega a ter objetivo fixo e decisivo.
No entanto, e isso é muito estranho, com o clarear dos dias acaba
retornando, como retorna um pássaro de espécie desconhecida
até pelos ornitólogos, que pousa no quintal de nossa casa e, emi-
tindo o mais mavioso dos gorjeios, silencia, por burilado, o resto
da passarinhada toda. E no tempo desaparece, sem que nos de-
mos conta de que já bateu asas e voou.
Fico tentando adivinhar que comportamento teria se, por
exemplo, Machado de Assis se sentasse aqui, ao meu lugar. É exer-
cício de imaginação, claro, nada mais. Para mim, enxergá-lo não
representa dificuldade maior. Como é sabido, todos os afortuna-
dos, que já tivemos a ventura de nos debruçar sobre suas páginas,
acabamos nos vendo mesmo transportados pelas ruas do Catum-
bi, da Lapa, Catete, Gamboa ou Morro do Livramento..
Se eu, como por magia, mudasse subitamente este cenário:
a máquina de escrever elétrica desapareceria (não sou dos que já
aderiram aos computadores, invenções sob as quais não me sinto
agasalhado); nem mesmo uma outra, de modelo mais antigo, estou
certo que existiria. Não deveriam ter sido inventadas em sua época
(uma enciclopédia, um tanto quanto primária, que consulto, não me
precisa a data de invenção de tais engenhos. Bom, não importa).
Nem canetas esferográficas. Um canapé, por debaixo da janela. Tal-

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vez deva trocar o piso de tacos... Na parede, há um bico de gás, que
acenderia todas as noites. A mobília também é distinta: a cama de
casal, mais estreita que os modelos modernos, mas de cabeceira alta
e entalhada. Um dunquerque de jacarandá, próximo à porta.
Ele se sentaria ao meu lado, como faria qualquer paciente e
zeloso preceptor. Miraria através da janela, pincenê sobre o dorso
do nariz, suíças esbranquiçadas, evitando a todo custo arrancar o
aluno de seu sonho. Ajeitaria o corpo surpreendentemente fran-
zino sobre a cadeira, cofiaria a barba (por que suponho ser ele
tão franzino?). Não distingo todo o seu rosto: já disse que mira
incansável lá para fora.
Como se portaria, se estivesse em meu lugar?
Vejo-me vagando pelos longes, por suaves mundos de deleite,
alimentando um tempo mágico, que, é inegável, me traz as mais
extremas sensações de contentamento que pode experimentar um
ser humano; enquanto escrevo, sinto-me mais perto da felicidade.
Alguém poderia, aos berros, contestar: “mas literatura não é
escape, não é catarse. Ficcionistas devem ser indivíduos obstina-
dos, que se portem com segura indiferença, com a imparcialidade
e serenidade que se exigem dos magistrados, e que tão somente
presenciam as vicissitudes da vida humana, apresentando novas
situações para o espírito sensível dos leitores, como se já lhes fos-
sem condições familiares”. Ou ainda: “escritores são campeiros,
que conduzem seus rebanhos para aqui e para ali, para as margens
e os centros, para as geografias todas, as ovelhas se tocando com
o mato que viceja, com moitinhas de trevo, com o clarear do dia,
com as manifestações todas da natureza, enquanto eles – os pas-
tores – assistem desalentados à passagem do tempo, descansando
sobre uma pedra, à sombra das árvores, ajeitando, de tempos em
tempos, o corpo, esticando e encolhendo as pernas, estendendo e
alargando os braços, enclavinhando os dedos das mãos uns den-
tro dos outros, amarrotando o rosto, espreguiçando, essas coisas”.
Mas pergunto: quem elaborou tais sentenças? Qual autoridade?

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Não existem cláusulas, encíclicas, não existe nada disso, a estética
não comporta imposições, nem jurisdições e, dessa forma, faço de
meus instrumentos o que bem entender.
Ao mesmo tempo, outros ainda poderiam julgar que meu re-
buscamento de linguagem seja a maneira que encontro para dis-
farçar a minha incompetência para criar histórias empolgantes,
que valham a pena ser lidas, como fizeram inúmeros escritores de
todas as épocas, dos quais eu próprio conseguiria fazer uma lista
extensíssima, bastando para isso ter o trabalho de correr o dedo
pelas lombadas de meus livros nas prateleiras. E estariam certos.
Claro que poderia me dar ao trabalho de engendrar intrincadas
narrativas acerca, por exemplo, de assuntos mais familiares para
mim, como o passado do meu pai, a história dele, ou a minha pró-
pria. Claro. Mas o que ocorre é que tudo ao meu redor parece ter
tido existência apagada e insignificante.
Se, a título de exemplificação, botasse foco nos acontecimen-
tos da atualidade, a fim de recolher dali um pouco de provimento,
custo a reconhecer algo que mereça registro ou que possa picar
alguém de curiosidade. Temo que não tenha suficiente talento
para reconhecer o meu tempo, digamos assim, e esta é suspeita
bastante grave.
Na mesma linha de raciocínio: por qual motivo uma pessoa,
em sã consciência, deixaria de lado Odisseia, ou Crime e Castigo,
todas as sombras da fantasia humana, para se dedicar a ler minhas
dissipações da consciência? Hein? Às vezes, a bem dizer, contra-
ponho meus personagens com os que figuram nas passagens todas
do “bruxo do Cosme Velho”: frequentavam os bailes da Ilha Fiscal,
apoiavam o Império ou a República – como Pedro e Paulo, de Esaú
e Jacó – e por aí vai. O que minha geração assistiu? De onde ex-
trair temas que me sirvam de matérias-primas? Chego, portanto, à
constatação de que é ordem da natureza que alguns tenham o dom,
outros não, e muito pouco podemos fazer em contrário.
Seria o caso ainda de mencionar que, se desejasse mesmo

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transformar meus escritos em obra de ficção, deveria me preocu-
par com meus hipotéticos leitores. Passaria a me dirigir a um anô-
nimo, a um desconhecido qualquer do gênero humano e, neste
caso, minhas frases teriam um desígnio, uma mira. Mas acontece
que prefiro que elas, as frases, fluam como retrato psíquico do que
sou, este o empreendimento a que me dedico, nada além.
Quero antecipar ainda o que outros poderiam trazer de con-
denação e crítica: “há poucos diálogos nestas páginas, pouca pre-
sença humana... As pessoas agem como se fossem espectadoras,
não personagens com alma própria”. E me defenderia, tenuemen-
te, alegando que são acontecimentos muito afastados, que já se
passou quase ano desde que tudo transcorreu, e obviamente não
me seria possível reproduzir as falas. Faltaria inclusive autentici-
dade. De um ou outro diálogo ainda me recordo, e os transcrevo,
na medida do possível, mas a maior parte se perdeu no tempo,
persistindo só a essência do pensamento.
Tenho, portanto, a íntima convicção de que esta deva ser a
mais fútil e irrelevante das histórias já escritas, o mais letárgico
dos relatos. Minha toada não possui magia, meus ingredientes são
insossos e sem aroma. A releitura deles não me evoca nem a me-
tade das sensações que experimentei enquanto os escrevia, só me
faltando agora agir como Penélope, desfazendo, durante as noites,
os fios tecidos à luz do sol (que fosse apagando frases, parágrafos,
páginas, capítulos inteiros, para reescrevê-los novamente, e assim
nunca e nunca se daria por concluído o meu tráfego).
De qualquer modo, esta introspecção, estes meus resgates,
nos quais colecionei os mais intensos fragmentos de felicidade
(os amargos, insisto, se perderam nos pântanos da memória), im-
portaram para que minha vida não se tornasse tão somente uma
insípida contagem de eras e de horas. Sou capaz de guiar meus
sonhos, minhas viagens, eu me concedo este direito e isso, por si
só, é o bastante.
Eis as razões por que não devo abancar, não fincar os pés na

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mesma leira, se me fazem bem as andanças. A busca do prazer: eis
a única motivação da existência humana. Nada mais é substancioso.
Nossa vida só se justifica pelo acúmulo de experimentos sensoriais
felizes, que é o que nos faz distintos de um arbusto torto, desfolha-
do e perdido num torrão, ou um cogumelo sobre lenha podre, na
beira de um córrego infecto.
Gostaria, por fim, de ponderar, em meu favor, que a decisão de
dar formato de alegoria ao meu enredo redundaria em um proble-
ma adicional, que chamaria de “social”: é que, na remotíssima pos-
sibilidade de ver publicado o romance, os amigos tenderiam a ser
complacentes comigo, e os inimigos, cruéis, sem que nenhum dos
lados esteja ao menos na sombra da realidade. Portanto, certo estou
de que não há melhor caminho que prosseguir com o propósito que
venho desde o início; não há ganho com mudanças de trajetória.

A rainha Margot
... no sonho, uma voz lá no fundo prevenia-me de que se tratava de
Cristine, de que estava diante dela, apesar das expressões fisionô-
micas de minha personagem onírica não coincidirem propriamente
com as dela. Mesmo assim, ficava aquela definição, aquela sensação
vaga que se tem diante das vaporosas fantasias das alucinações. Veio
absorvida do mais encantador e misterioso reconhecimento com
que normalmente costumam se vestir os figurantes de nossas uto-
pias e criações; as vadiagens da mente adormentada e entorpecida.
Nos instantes seguintes, entretanto, passei a tomar consciência
de que me enganara: não era verdadeiramente Cris, mas outra pes-
soa, a qual, após um quadro de confusa indefinição, identifiquei
como Lívia (ou Margot). Uma Lívia inventada se consubstanciava,
se encarnava, e passava a viver de forma incorpórea e desconheci-
da, o suficiente, porém, para perpetuar em mim a mais extraordi-
nária e nevoenta sensação de frescor e contentamento.
Quando amanheceu, sentia-me efusivamente maravilhado por

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aquele enredo (que resistia dentro de meus centros psíquicos re-
gentes das luzes da madrugada), apesar de ainda persistir certa
ambiguidade acerca de qual personagem teria adejado em meu
sonho: uma, concreta e real, feita de entranhas e de formas palpá-
veis, outra de fumos e de inextensão, construída por uma mente
que ocupava-se de se salvar.
Minha consciência, porém, cuidava de fundear a luz de que
se tratava, em realidade, de Cristine. Onde meu espírito ficou flu-
tuando foi nela, esta a ilusão que atei e busquei manter firme;
de uma meiguice infinda, beleza inexprimível, de branda e suave
ternura (inexistiam os sismos de minha Cris verdadeira, é o que
desejo dizer, não tinha a fervura e, por que não, o grau de feroci-
dade desta última).
Mas, diabos, por qual razão deveria sacrificar uma delas, por
que ambas não podiam coexistir?

Álbum de família
Penso que já é hora de adiantar algumas informações acerca de mi-
nha família. Minha mãe, Helena de Avelar Campos, às sextas-feiras
lavava roupas. Nos sábados, ainda bem cedinho, juntava tudo e pas-
sava peça por peça – isso se não fosse tempo de chuva –, o ferro
elétrico ligado a um fio de luz mal encapado, que descia do forro,
bem no prumo da parede da copa, e que, mais de uma vez entrou
em curto-circuito e nos deixou sem energia elétrica. Esta casa
um dia vai pegar fogo, ela acoimava, com tom de voz de quem
procurava atirar a culpa no marido. Meus sábados, portanto, raia-
vam com aquele tuc-tuc do ferro de passar de encontro ao tampo
da mesa, abafado pelas cobertas sobrepostas, ao comprido, que
acolchoavam as mudas de roupa, as roupas de cama... Lá pelas
cinco e meia, seis horas, mamãe ligava baixinho o rádio “Bom dia,
Brasil / Bom dia, irmão” numa emissora de São Paulo, “Bom dia,
meu povo / Desta grande nação”, cujo nome não me recordo, “Para

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quem anunciamos, com satisfação / Ponteio”, a vinheta do programa.
Do fundo do tempo e tudo ainda volta, como se fossem aconteci-
mentos de seis meses atrás. Quarenta anos!
Até mesmo o temor de que “um dia aquela casa poderia pegar
fogo” parece subsistir em mim e, de vez em quando, ameaça as-
somar, nos instantes em que me perco na estranheza de meu teto,
em que meus olhos se amotinam nas nódoas das tábuas do forro,
em que a embriaguez do silêncio e da solidão infinita vem para
tomar conta de minhas visões e de meus desvarios.

Rosana, sonhadora, colcha de retalhos multicores dormindo


sobre a cama, ouvidos grudados no rádio, no programa das cinco
da tarde, desligada do mundo, perdia-se nas conversas baldadas
do locutor; como se aguardasse um chamado urgente, um conta-
to. Sem se tocar. Ou, antes, tocada por estranho comportamento
de quem não habitava mais estas dimensões, de quem há muito
se transportara para espaços desconhecidos e indemarcáveis; de-
saparecida, clandestina. Interlunar. Toda tarde, toda tarde, o que
chegava a parecer estultícia, uma moleza lá do cérebro. Era desse
modo. Se se via obrigada a se afastar um momentinho, aumentava
o volume do rádio até o máximo, até o retumbo mais insuportá-
vel, importunando a vizinhança toda, que, pelo barulho, vivia a
reclamar com mamãe, a qual, àquela altura, já vencida moralmente
pela gerência da filha, não encontrava outra rota senão a de ir co-
locando água morna nos doloridos.
Uma época, quis fazer a Escola Normal, entesou de estudar
no Colégio do Carmo, quis porque quis, e quase transformou nos-
sa casa num inferno de mil e quinhentos demônios. Minha mãe,
que sair do Ginásio que quê! Vai ficar lá mesmo. Se quiser.
Se não, trata de arrumar emprego, que já está até passando
da hora. Nunca compreendi os motivos de tanta insistência, des-
conheço o que se passava dentro de sua cabeça, os seus planos. O
rascunho de Rosana.

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Aí ela não fez nenhuma das três coisas: nem foi para o Carmo
(nossa família nem tinha meios para tal), nem ficou no Ginásio
(abandonou os estudos na segunda série do antigo ginasial), nem
batalhou trabalho. Ou melhor: até arranjou colocação como bal-
conista de loja, mas abandonou antes mesmo de completar mês.
Ficava era prestando ouvidos ao rádio, o dia inteiro naquelas mu-
siquinhas desalumiadas que “um alguém” mandava para a “fulana
de tal”, do bairro “não sei onde”, frivolidades que o locutor, numa
voz melosa e artificialmente dramática, vivia reproduzindo (isso
quando não cismava de verter do inglês as letras das trilhas sono-
ras internacionais de telenovelas, sempre com a música de fundo,
para compor o efeito dramático).

Mamãe, como dizia, às sextas-feiras, empapada até acima do


umbigo, lavava roupas, assobiando as músicas que sabia de cor, ou
aprendera nas missas, o profano e o religioso coexistindo pacifica-
mente. Assobiava de um jeito estranho, como se fosse um assopro
grosso vindo de dentro do peito, um golpe de ar, e que buscava se
afigurar como melodia; vocalizava, solfejava, cantarolava trechos,
repetia os mesmos cânticos, num tom cadencioso e lamuriento,
que, não sei por qual razão, me remetia ao das longas e tediosas
procissões da Semana Santa, que se arrastavam pelas ruas amorte-
cidas de paralelepípedos (as músicas da igreja, somente estas, ela
conseguia memorizar as letras por completo).
Deixava de molho as trouxas de roupa, envoltas em turvos
lençóis, a sujeira principiando a desencardir, enquanto os demais
serviços de casa iam recebendo sua providência. Horas depois,
vinha para ensaboar aquele mundo de espuma transbordando, es-
talactites nas bordas do tanque, neve no chão caracachento de
cimento... Esfregava com as costas dos dedos, as mais pesadas
com escova, batia e batia, no tanque de cimento, colchas, lençóis,
toalhas de banho, a roupa de meu pai, entranhada de diesel e es-
trada. Seguia-se um lento enxaguar, uma água, outra água, lenço

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amarrado na cabeça, cantando canções feito cigarras de prima-
vera. Habitualmente tão rústica e áspera no trato com os filhos,
naquelas ocasiões punha suavidade e candura na sua voz. Então
nos transformávamos em “Cente” e “Rô”, eu e minha irmã, na
sua entonação afável e acolhedora, instaurando em nós íntima e
instintiva convicção de que, naquelas circunstâncias, não havia o
que temer em nos acercarmos dela.

(Sei que são reminiscências muito bobas, estou perfeitamen-


te ciente disso. Porém, se quero – e efetivamente quero – reali-
zar uma recapitulação realística, mesmo que emotiva, daquela
época, não posso ocultar esses fatos, que foram marcantes e
encorpados.)

Edinaldo Albano de Campos, meu pai, era muito fechado, como


se diz, de pouco falar e, antes de tudo, portador de áspero desapego,
quando diante de minha mãe. Contudo, tornava-se sumamente afá-
vel nas ocasiões em que calhava me encontrar na avenida, no cam-
pinho de futebol ou mesmo na pracinha, junto com meus amigos
de infância: abria-se três vezes feliz, opinava sobre nossos assuntos
juvenis, expunha seus pontos de vista, escutava os nossos (lembro-
me de que, nestas horas, me chamava pelo nome: “Vicente”), con-
fessava incertezas (era inacreditável descobrir que meu pai tivesse
dúvidas), comentava episódios do passado, em especial partidas de
futebol (adorava futebol!), numa euforia que não se media com a
do mesmo homem, quando encerrado entre as paredes de nossa
casa. Transmitia, enfim, o mais terno e insondável sentimento de
apego, despojado de toda aquela aparência agastada e circunspecta
dos sótãos, onde era comedido ao extremo, quase nunca deixando
exteriorizar o que havia de humano dentro de si.
Recatado até o limite da saturação, chegava, por vezes, diante
de pessoas de certa posição social, a me parecer de exagerado
servilismo – mesmo para aqueles com os quais não tinha relações

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de trabalho, nem grandes proximidades. Não por adulação ou fal-
sidade, imagino, mas por excessiva modéstia, ou por esquivez, o
que, de qualquer forma, me desagradava tremendamente.

A mais intensa recordação que guardo de mamãe: ela ficar mor-


discando a língua (um hábito seu), enquanto se entregava a espre-
mer alho para o feijão. Qualificada na arte de cozinhar em geral,
era, no entanto, no preparo do feijão que se convertia, de longe, no
que havia de melhor. Quantas vezes gente da vizinhança acorria à
nossa casa, a fim de desvendar o segredo daquela receita tão nativa,
da qual guardo a mais sólida memória gustativa e mesmo olfativa.
O único mistério, pelo menos que consigo enxergar, residia no fato
de os grãos serem cozidos justamente antes do preparo final, jamais
de véspera. E de a etapa final ser toda ela preparada em panela de
pedra; uma colherzinha de gordura de porco, nunca óleo, dois den-
tes de alho amassados também na hora, que eram fritos até o ponto
de crestar. E aí duas conchas bem cheias de feijão recém-cozido.
Ia misturando, misturando, o tempero entranhando, tomando a at-
mosfera da cozinha. Uma pitada de sal. Ficava ali remexendo, reme-
xendo, provando o caldo, averiguando o ponto... Aí está.
Dela, como é óbvio, herdei o primeiro dos meus sobrenomes:
“Avelar”. Apesar deste substantivo próprio remeter a algo aristo-
crático e até meio pomposo, a verdade é que a história de sua fa-
mília nada tem de nobreza. Muito ao contrário. Meu avô e todos
os seus filhos – uma prole mais ou menos numerosa, dois filhos
e quatro filhas, das quais minha mãe é a segunda – foram criados,
desde a mais tenra idade, no cabo de enxada e no fogão. Dois
dos meus tios ainda vivem, um tio e uma tia, exatamente os mais
velhos, e deles tenho notícias vez por outra. Informações da vida
ordinária, quero dizer, pois jamais aceitaram se desgrudar de Santa
Maria, ponto de partida da família. Vivem ambos em duas peque-
nas propriedades rurais, que fazem divisa, de uns cinco alqueires
cada uma. Estão muito velhos, uns setenta anos, por aí. O caçula da

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família, por sinal, foi o primeiro a encontrar a morte, num episódio
muitíssimo estranho, sobre o qual paira o maior dos silêncios.

Quando Rosana se extraviou no mundo, minha mãe foi en-


contrada estatelada diante das portas e gavetas abertas do guar-
da-roupa, em sua gesticulação nervosa de mascar e remascar o
corpo da língua, cuja ponta se exteriorizava por entre as arcadas
dentárias semiabertas, as mãos inquietas, aflitivamente se esfre-
gando uma na outra. Buscava Rosana a céu aberto, buscava nos
caminhos onde a existência se desintegrava e a realidade perdia o
significado, onde as pegadas se dissolviam e as fórmulas passavam
a ser absurdas e inexatas. Por onde andaria, onde? Congelada e
plantada sobre a cama, a colcha de retalhos, olhos vidrados nas
cavernas do guarda-roupa, feições golpeadas e miseráveis, abso-
lutamente muda, a imagem refletida no espelho da penteadeira,
Rosana... Rosana..., a voz agarrada na oclusão do peito.

Meus primeiros livros, uma pequena coleção de romances his-


tóricos, foram presentes de meu pai e formam o que considero o
embrião da minha modesta biblioteca: O Emigrado, de Senac de
Meilhan, O Arco de Sant’ana, de Garret, Os Deuses têm Sede, de
Anatole France, Um Caso Tenebroso, de Balzac, e Noventa e Três,
de Victor Hugo. Estão comigo até hoje, uma encadernação muito
boa, capa dura, vermelha, títulos em dourado, uma edição bem an-
tiga (não há nenhuma indicação do ano em que foram impressos);
a soleira dos meus sonhos, fonte das minhas fantasias. Vezes sem
conta, na vida, indaguei-me acerca do que o teria levado a adquirí-
los. Sim, pois não posso atinar com um homem rude como aquele,
de mãos pesadas, hábitos retirados do trato, penetrando, anoni-
mamente, por entre labirintos de prateleiras abarrotadas de livros,
escolhendo cinco obras clássicas como aquelas. Uma livraria, pelo
menos na minha concepção, sugere um ambiente meio refinado
e luminoso, que convida ao enleio e à reflexão, aos mergulhos do

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pensamento; quase o oposto do telurismo e da vida cotidiana de
meu pai. Não, não os teria comprado num estabelecimento do
tipo. Nem mesmo ousaria se enfiar lá dentro, estou certo. Talvez
em algum sebo ou, ainda mais provável, em bancas de beira de cal-
çada, pois eram livros usados e gastos, as páginas já bastante ama-
relecidas, apesar da edição aprimorada e até certo ponto luxuosa.
Interrogações de igual tamanho deixam também sem solução
outro quebra-cabeça: o que efetivamente me teria conduzido à
leitura? Sim, pois lia muito, tudo o que me chegava às mãos, desde
revistas, almanaques, jornais, gibis, livros inúteis, certamente mui-
to mais que hoje em dia. E isso antes mesmo de ter sido presen-
teado com aqueles cinco livros (não havia nenhuma biblioteca pú-
blica por aqui, como, de resto, ainda inexiste). Pouca gente ainda
se interessa por obras literárias e ouso desafiar, a quem quer que
seja, que me apontem, dentro dos limites deste município, mais
que dez leitores habituais.
Eis aí então duas interrogações, para as quais até tenho algu-
mas suposições, mas acertar mesmo com a resposta, nunca con-
segui: por que eu lia e o que teria levado meu pai a fazer aquelas
aquisições, uma vez que, ele próprio, jamais deve ter folheado
nada além do Jornal dos Sports?
Há, porém, um pormenor que necessito ressaltar: por infelici-
dade, só tarde demais consegui avaliar toda a amabilidade daquele
gesto, toda a sua dimensão e alcance. Os livros, aqueles cinco to-
mos em minhas mãos, tiveram tanta relevância e me trouxeram tal
grau de entusiasmo e contentamento, à época, que acabaram por
ofuscar a minha percepção e o meu espírito, não deixando espaço
para que eu demonstrasse nem a décima parte do merecido reco-
nhecimento à iniciativa dele.
Não sei se me fiz entender: eu era bastante novo, meio cabeça
de vento na apreciação das atitudes humanas, desatento à solicitu-
de alheia, características estas que, aliás, arrasto um pouco comigo,
como verdadeiro aleijão, até os dias atuais. Sou o que se pode con-

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siderar como “meio insensível”, e é fora de dúvidas que é tarde
demais para modificar-me. Ou melhor, sempre foi tarde demais,
pois há, na nossa substância, atributos e instintos que, mesmo nos
desagradando tremendamente, não são fáceis de serem removidos.

Minha mãe, às sextas-feiras, lavava roupas; aos sábados, pas-


sava montanhas e montanhas de calças, blusas, toalhas, camisas,
vestidos, lençóis, colchas, bermudas, shorts. Silenciosa e pia, o rá-
dio ligado na rádio Aparecida, Viva Cristo, a voz esvaecida e rou-
ca do padre Vítor Coelho de Almeida Rei, abençoando o Brasil,
Viva Nossa Senhora de Aparecida, o ferro de passar tuc-tuc,
Rainha, na tábua da mesa.
Em fins de semana, meu pai arranchava em casa. No domingo,
fim de tarde, chegava a hora de pôr o caminhão na estrada e, já na
manhã da segunda-feira, minha mãe reassumia a autoridade e os
ensinamentos exclusivos de nossas vidas. Talvez aí se encontre o
alicerce do meu pensamento de que a vida da minha família – e a
minha própria, em especial – sejam tão vazias de significados, não
possuam luminosidade, nem colorido, e buscar nelas acontecimen-
tos de realce é tarefa inglória e insana; quase o mesmo que cavar cis-
ternas em planícies desérticas ou afinar pianos em terra de surdos.
Rosana se punha longe, exilada dentro do seu próprio quarto,
fechada a chave, ocultando segredos e perfis. O tempo foi passan-
do e aquele frágil nexo, entre mamãe e minha irmã, acabou por se
desfazer por completo, restando entre elas dois mundos distintos,
separados por inextirpável parede que ia bem além dos limites do
telhado. Dois mundos, que se distanciavam à medida que Rosana
ia rompendo os elos da corrente.

Papai como que se via livre de inquietações, quando minha


mãe retornava para dentro – ela vinha, despótica, de hora em hora
até o portão da rua, corria os olhos nas imediações, para o céu,
como se buscasse adivinhar o tempo, e meu pai, diante daquela

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sentinela, mudava por completo de feições: ele que, de regra, pos-
suía um temperamento sossegado e se submetia pacientemente aos
hábitos da mulher, perdia o alento, deixando no ar fugidios sinais
de inquietação e contragosto. Talvez seu pensamento confluísse
para rodovias e trevos da vida, sua fantasia navegasse por ermos e
paragens distantes, que lhe abstraíssem o tempo e o espaço. Talvez
criasse um mundo particular e soberano, indisciplinável, no qual
tivesse caminho aberto e desimpedido. Talvez sonhasse com isso.
Colocar o caminhão na estrada, sair já, já, sem esperar pela noite.
Contudo, compenetrava-se de que, assim agindo, chegaria muito
cedo a São Paulo, na madrugada, quando os depósitos e as firmas
ainda estariam fechados. E deixava cair os ombros, arriava o gênio,
aguardando o momento propício. Enquanto isso, ia ficando por ali,
zanzando, sem parecer urgir dos sonos, da leniência dos sonhos,
dos blecautes do cérebro.
Eu o inspecionava, de alto a baixo, às vezes me perguntando
como podia se manter aceso, durante a madrugada, se, no escurejar,
nunca se deixava abater por invencível sono, se não perigava co-
chilar no volante, aquele zunido enfadonho do motor, os veículos
na Dutra, na Rio-Bahia. Do alto daquele corpo amulatado, formas
alentadas, o ventre tamanho, a rijeza dos braços e das mãos... Uma
coluna monolítica... Movia-se pesadamente, como se o equilíbrio
lhe exigisse concentração permanente, esforço suplementar. Mudo
e lerdo, os cabelos crespos e duros, cortados rentes.
Aí nos encorajava a ir brincar, queria nos ver jogando bola,
quando estávamos já com quase quinze anos, eu, o Gilsinho e
o Lau, inseparáveis amigos, daquela época. E o Gilsinho olhava
para mim, o Lau olhava para mim, ladinos e boquiabertos, pois,
afinal de contas, não éramos mais crianças de jogar futebol em
vias públicas. Numa de minhas raríssimas fotografias de infância,
inclusive, apareço, bem agasalhado, num lugar que nunca identifi-
quei, calçado com somente um pé de sapato; o outro certamente
com um dedo estropiado em pelada de rua (Rosana pequenini-

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nha, no colo de minha mãe, eu, com uns seis anos, de mão dada
com meu pai). Dava a impressão de que ele não reconhecia que
o tempo passara, que a gente crescera, brincávamos de bola, sim,
porém num campinho por trás da oficina do Nelito, não mais na
rua, porque o progresso trouxe com ele o calçamento, o trânsito...

Rosana, arrelienta e soberba, não se dava com ninguém na vi-


zinhança, salvo Mariana, a única que tinha acesso à sua verdadeira
alcova. Mariana aparecia, esgueirando-se lépida entre as poltronas
da sala, e se trancava com minha irmã. Não imagino o que trama-
vam, à meia-voz, o que teciam no espaço limitado daquelas pare-
des, abafadas pelo volume do rádio, enquanto nossa mãe, cheia
de interrogações, volta e meia se detinha junto à porta, naquele
quadrilátero de não mais que um metro quadrado entre o banhei-
ro, o quarto de Rosana, o meu próprio, e o vão que dava na sala.
Foi, portanto, para Mariana que confluíram as esperanças de
se conhecer o paradeiro de Rosana, quando ela desapareceu de
casa. Todavia, nossa vizinha sustentou que também de nada sabia,
absolutamente nada, que Rosana não lhe havia confidenciado coi-
sa alguma sobre o assunto.
Dizem – não pude assistir à cena – que teria chorado copiosa-
mente, sob extrema coação por parte de sua mãe, para confessar o
que soubesse, mas continuou a negar. Não sei se mentiu, se pôde
esconder, por cumplicidade, algo de que realmente tivesse conheci-
mento, ou se Rosana teria ocultado até mesmo dela seu plano. Uma
coisa, porém, hoje em dia tenho como certa: a decisão de minha
irmã em ir para o mundo, em viagem sem retorno, conhecendo,
como eu conhecia, a sua índole, resultou de uma decisão impulsiva
dela, e não de algo que lhe tivesse revirado na cabeça tempo sufi-
ciente para criar algum juízo ou reflexão.
Recordo que permaneci, estático e cheio de medos, defronte à
casa de Mariana, assistindo à romaria das pessoas que entravam e
saíam, cada uma com semblante diferente, entendimento diverso,

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uns francamente contristados e chocados, outros, de substanciosa
aleivosia e sordidez, mulheres apressadíssimas e atordoadas, como
se estivessem incumbidas da mais urgente tarefa, como se de sua
atuação dependesse o futuro de minha irmã. E eu recoberto pela
mais espessa nuvem de horror. Ninguém me notou ali, ninguém
deu conta de mim, extraviado e tortuoso, tão perdido, acho, quan-
to minha própria irmã.

Era extraordinariamente surpreendente o modo como meu pai


se dirigia a mim, sem os tratos dos regulamentos, sem as normas
emanadas da autoridade familiar. Acho que já disse isso. Dava ouvi-
dos, consideração, afeto. Isso aí pela minha adolescência. Também
posso dizer que parecia se distrair conosco, como se fizéssemos, eu
e meus amigos mais próximos, parte do eco de seu desenfastio. Ele
ria expansivo, tornava-se agradável e dócil, viam-se nele reações de
grande contentamento, tudo com tal intensidade que só seria imagi-
nável se se tratassem de pessoas de mesma idade conversando entre
si. Pelo menos interpreto assim. Chegava até mesmo às maiores
gargalhadas, em especial quando relembrava episódios burlescos de
sua vida, que a gente escutava com bastante curiosidade. Costuma-
va, inclusive, entremear os acontecimentos engraçados com outros
até meio aflitivos, de acordo com o que a sua memória ia resgatan-
do. Recapitulava molecagens da sua infância e adolescência, e que
eram, para nossa surpresa, em tudo equivalentes às nossas próprias,
o que fazia com que compreendêssemos que a vida é uma espécie
de relógio de repetição, de tambor que ecoa, de tempos em tempos,
com o mesmo e inalterável tom.
Estranhamente, contudo, fantasiava os cenários de nossa cida-
de como completamente diferentes dos de seu tempo, a qual exi-
bia, dentro de mim, uma aparência quase medieval, diria, e fizesse
parte de um mundo vetusto e até mesmo sobrenatural (eu ainda
não compreendia que a realidade não é tão mutável quanto sonha
a mente criadora de um adolescente).

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Lembro-me que contornei a cama, terrificado, tentando inter-
pretar o que se passava: ela, uma estátua, retransida e pálida, mãos
encravadas no colchão de capim cheio de fundos... Recordo-me
também de sua imagem franzida no espelho do guarda-roupa, o
que foi, para minha consciência, um tremendo repelão. Assim, ela
se multiplicava em três: a minha mãe da cama, a da penteadeira e a
da porta do guarda-roupa, todas elas torvas e lânguidas. Ou então,
no que sou mais levado a crer, não era nem mesmo uma mulher
inteira, nem uma sequer, reduzida que estava na pálida imagem
derrubada sobre a cama.
O investigador de polícia, sem nenhuma amabilidade ou rodeio,
sugeriu que talvez ela tivesse fugido. Infelizmente, D. Helena,
nada posso fazer. É de-maior e pode cuidar da vida do jei-
to que bem entender. Que ela fugiu, não tem dúvida, não é
mesmo? Não foi... sequestrada, por exemplo, não foi... Estou
falando por causa das roupas...
Rosana... Rosana... mamãe murmurava, cochichando só
para si, fazendo conta apenas da desvalia do mundo, com os tra-
pos e a intemperança das dores e dos martírios.

(Um pensamento bobo, mas que me traz certo refrigério:


se minha mãe tivesse chegado a ver meu nome impresso numa
capa de livro, certamente teria motivo para se orgulhar de mim,
mesmo sem possuir condições de mensurar todo o significado
daquilo. Na lombada do livro: Vicente de Avelar Campos)

Refrulho de pneus, no asfalto, borracha se descolando do pi-


che, a estrada... Assobio dos motores a diesel, tonitruantes, zum-
bidos estridentes do freio a ar. A estrada...
Eu, cabeça para um lado, para o outro, seguindo os cami-
nhões zunindo diante de mim, distanciando-se no deserto da ro-
dovia, o pretume do asfalto morrendo na bocaina, bem ao longe,
por entre as sombras que os amorreados faziam. Onde tudo se

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azula, onde minha vista se perdia.
Estrépito da banda de rodagem dos pneus, gotas de chuva no
telhado, após meses da estiagem. Os rolamentos e as bengalas das
rodas. Minha mente desenhando, fugaz e estranhável, o retrato
dele, de meu pai, puxando pelos traços, pelas particularidades do
rosto, que se perdiam na névoa do tempo, restando tão somente
a visão de uma cabine de caminhão retalhada ante a colisão com
o que vinha na direção contrária, ferragens retorcidas, vidros es-
tilhaçados, visão que eu mesmo criei, coisa que o cérebro trata de
esquadrinhar, quando nada tem de real para pôr em seu lugar.

Acho que mamãe chegou a procurar por minha irmã, em rodo-


viárias e empresas de ônibus, e indagado sobre se alguém teria visto
uma moça assim... e assim... Tais reminiscências, às vezes, penso
serem ilusórias, frutos de sonhos e de enganos, que se mesclam e se
entremeiam em meu cérebro com acontecimentos de que realmen-
te tive notícias, o que acaba por resultar numa espécie de projeção
soturna e nevoenta de sequência desordenada de imagens tomadas
dum filme de Pasolini.
Ninguém soube de nada, ninguém teria avistado Rosana. Ela
desvaneceu-se nas mesmas estradas, sem haver deixado para trás
nem uma única muda de roupa, nem bijuterias, nada. Só uns vi-
dros de esmalte vazios, o pote com grampos de cabelo, o porta-
retrato e uma pulseira de ouro, presente de nossa mãe nos seus
quinze anos, da qual nunca fez uso.

E eu tentando memorizar a sequência das cidades, Além Paraí-


ba, Três Rios, Barra do Piraí, Vassouras, Volta Redonda, Resende,
Itatiaia, Queluz, Lorena, Guaratinguetá, Aparecida do Norte (Apa-
recida do Norte!), Pindamonhangaba, Taubaté, São José dos Cam-
pos, São Paulo, o itinerário dele, para depois pompeá-lo, soberbo
e encristado, para os companheiros de pelada, como se aquele me
fosse também um mundo trafegado. Leopoldina eu nunca citava,

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porque Leopoldina ficava na nossa fronteira e não havia graça fazer
referência a lugar que todo mundo estava cansado de ir.
O momento de me conduzir em sua companhia pelas ramifi-
cações das estradas, de dar vazão ao desentenebrecer do meu ima-
ginário, nunca chegou. Você ainda é pequeno, Vicente. Um dia
vai junto. Quando chegar a hora... E aquele homem de gestos
lentos e pesados, que transparecia, com sua voz mole e arrastada,
pensar muito devagar, por detrás de sua meia-calvície e por baixo
do seu cabelo carapinha cortado rente, ia procrastinando minha
primeira jornada, a qual acabou por não vir nunca. Continuei a
ser sempre “muito pequeno” e sem expediente para conhecer o
rendilhado das encruzilhadas do mundo.

Minha mãe era daquelas que, vistas de fora, seria um modelo


de discrição e docilidade. Dentro dos cômodos da casa, no en-
tanto, se mostrava outra pessoa: calada e sorrateira, assumira a
condução de nossas vidas, mesmo que a conquista do posto de
comando tenha sido alcançada sem a menor beligerância. Existia
um acordo tácito, em que meu pai se retirara e ela vinha ocupar
o espaço. Era, isso sim, uma mulher rígida e severa e que exibia
tenacidade e vigor não proporcionais à sua compleição física.
Após a morte do marido, assumiu em definitivo as rédeas da casa,
passando inclusive a trabalhar fora – serviços gerais, na pediatria do
hospital. Como residíamos a menos de duas quadras dali, mesmo só
tendo uma hora de almoço, tinha tempo de vir em casa para preparar
a refeição para nós. De manhã, deixava o arroz refogado, uma ou ou-
tra verdura, a carne, quando havia; só o tempo de acertar as últimas
demãos. Lembro-me dela varar pela porta da sala, passar direto ao
fogão, panelas para esquentar, depois ir a toda ao banheiro, voltar à
cozinha, numa ordem de atividade que cumpria na medida.
Numa das vezes encontrou a porta do quarto de Rosana escan-
carada. Eu havia notado, realmente, aquele detalhe – a porta aberta
do quarto –, quando cheguei da escola, uns quinze minutos antes;

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todavia, não dei conta de que pudesse significar algo de anormal.
Não atribuí importância, não despertei os sentidos, é o que quero
dizer. Já minha mãe, por instinto, acho, estancou bem no meio da
sala, de onde tinha ângulo de visão para o interior do quarto.
Aí a ouvi chamar por Rosana.
Não houve resposta.
De novo:
Rosaaana...
Passos inseguros e aplicados rastreando o cômodo e depois,
num giro, o restante da casa. O mais impiedoso e infinito silêncio.
Eu também, impressentidamente, passei para a sala, enquanto ela,
autômata, atravessava o umbral do quarto.
Rosaaana..., invocou novamente, agora pouco mais alto.
Recostou-se no marco: estava transfigurada. Os olhos de náufra-
go, parecendo em transe, enquanto eu ia sendo, pouco a pouco,
imerso naquele mesmo subterrâneo; o zumbido grave que ecoava,
vindo de não sei onde, farejando o seu vulto, as dimensões vazias
dos espaços, a sua impiedosa e atordoante inquietude.

(Conto muitas histórias ao mesmo tempo, porque meu


pensamento é mesmo assim: procura manter todo o meu pas-
sado acoplado, como se fizesse parte de um só bloco. Ou, pelo
menos, a minha gente de tal forma atrelada uma à outra, que
quase podem ser consideradas como um só corpo.
O passado parece pesar toneladas e resistir a ser carrega-
do, preferindo permanecer, para sempre, grudado naquela
zona limítrofe entre os sentidos e o irrazoável, entre o juízo
e as tentações. É, de meu lado, substância putrefeita, que mi-
nha consciência deseja sepultar, um excremento ou pus, mas aí,
inesperadamente, algum impulso porco e anti-higiênico cisma
de revirar o monturo com uma varinha flexível e que pode, im-
previstamente, nos lançar na face uma borra da matéria infesta.)

Sobre Rosana, pouca coisa restou; passamos (refiro-me a mim


e à minha mãe) a, tacitamente, optar pela alternativa de que re-

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almente fugira de casa, o que nos era confortável, acabando por
nos desonerar de culpa, ao mesmo tempo em que nos mitigava as
dores e os pesares. Ela continuava existindo, somente que agora a
porta do quarto não se abriria nunca mais. Qualquer outra solução
seria pior. É desse modo que funciona a mente da imensa maioria
das pessoas.
Ficou, portanto, como história inacabada, o que, convenhamos,
é condição secundária; o hábito de deixarmos as coisas todas em
seu destino é que tem nos transformado em seres maníacos ou neu-
róticos. O que ficou para trás não necessita de, obrigatoriamente,
ser resgatado. É como uma coleira esgarçada do cão que já morreu
ou caiu do caminhão de mudança em pleno movimento. Resta o
que deve restar. Eis tudo.

Duvido muito que algo lhe trouxesse entusiasmo maior que


conversar sobre futebol. O nome do uruguaio Giggia, por exem-
plo, ouvi pela primeira vez de sua boca: o ponta da seleção ce-
leste teria driblado o lateral esquerdo Bigode, aos trinta e quatro
minutos do segundo tempo, e chutado entre a trave e o goleiro
Barbosa, silenciando cento e cinquenta mil brasileiros presentes
no Maracanã.
Falava sobre aquela partida de maneira acesa e aflita, como se
ele estivesse presente no estádio e sofrido, na própria pele, o desen-
gano da derrota, quando, pelas minhas contas, ainda nem deveria
ter abandonado Camamu, no sul da Bahia.
E eu, do mesmo modo, sentia-me golpeado, criando no espí-
rito a imagem de uma multidão arruinada e sem arrimo, lançando-
se silenciosa pelas rampas do estádio, abandonando a arena. Meu
pensamento se tornava parecido com uma esfera imensa de in-
compreensão, imensa. Maior que minha cabeça, e repleto de uma
vacuidade intangível e entorpecedora.

A sua mão derrubada sobre a cama, cabeça pendida, cabelos

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escondendo os lados do rosto, pálida, enquanto eu contornava
o espaço exíguo por detrás da cama, transido e frio de medo, o
ventilador, hélices passeando, plúmbicas, no ambiente vazio, so-
prando um vento gelado.

O nome Giggia, assim, ficou durante anos armazenado em


minha memória, numa zona onde arquivamos os inóspitos, os
infensos, os inimigos, por mais absurdo que tal comportamen-
to possa parecer: uma partida de futebol se converter em cena
parecida com incursão militar; uma imagem de trincheiras e de
irreconciliável hostilidade.

Ela encolheu o corpo, catou a almofada sobre a colcha de


retalhos e pousou-a no colo, a coluna curvada em posição fetal.
Impassível e trancada, pasmada diante das portas e das gavetas
franqueadas, pasmada... os olhos pasmados.

O vento e as marés
Já disse que não me recordo das circunstâncias todas que propi-
ciaram o advento de Cristine em minha vida. Ou penso ter dito.
Eu praticamente não me dava conta do que ia acontecendo, não
atinava com o que ia se passando, do quanto se expandia, dentro
de mim, sua semente, que se sublimava, de pouco a pouco, que se
enchia feito as marés silenciosas e sorrateiras sobre os continen-
tes, sem que se dê conta.
Penso que seu desembarque definitivo em minha consciência,
apesar do quão curioso possa parecer, tenha se dado quando do
meu encontro com o professor Sílvio, naquela vez descendo o
morro do colégio. Esse foi uma espécie de divisor de águas, pois,
apesar das minhas reações nada confortáveis na ocasião, o fato é
que, ao final de duas ou três semanas, ao se arrefecer a tempesta-
de, passei a pensar cada vez mais e mais nela.
Estar a dois passos de distância de criatura tão encantadora,

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no seu círculo de tangibilidade, culminava por cristalizar em mim
a mais extrema sensação de conforto e magia. Eu verdadeiramente
me deleitava com sua presença, embora me recusasse a meter na
cabeça que não tivesse perfeito domínio da situação. Havia mo-
mentos em que meus centros nervosos, alarmados pelo que con-
sideravam ser uma imprudência ou, no mínimo, uma desrazão, pa-
reciam gritar que, por nada desse mundo, deveria dar mais passos
naquela direção; contudo, na maior parte do tempo, alguma tenta-
ção ia me arrastando, como um verdadeiro autômato ou demen-
te, procurando silenciar minha dissentida consciência. Quer dizer,
quando o meu racional ameaçava gritar pelo absurdo da condição,
o emocional fazia vistas grossas e tratava de subtrair da cena o que
não lhe fosse favorável. E o efeito é que não conseguia enxergar
nada de mais grave que estivesse por acontecer. A aventura não
havia atingido níveis de cerebração maiores em mim, eu não esta-
va “ciente”, vamos dizer assim, tudo se desenvolvia tão somente
como agradável vibração que emergia involuntariamente, vibração
esta sob a qual não tinha plena consciência, nem muito menos o
domínio das rédeas. Uma posição estranhíssima, pois não se trata-
va, em absoluto, de nada que tivesse a menor conotação de luxúria
ou devassidão. Não existia nada de impuro, nenhuma impetuosida-
de no sentido de seduzi-la, não, insisto, não era assim. Gastaria até
o último centavo para entender tudo direitinho.
Com o passar do tempo, foi se instalando um conflito a cada
dia mais crescente: relutavam, dentro de mim, ideias e reações
bastante delicadas e contraditórias: numa hora, procurava me ab-
solver; noutras, me recriminava ferozmente e, sobretudo, visse-me
preso às maiores perplexidades, sem conseguir separar um senti-
mento do outro. Elas – as ideias e as reações – oscilavam ao sabor
dos ventos, ou, melhor, dos tornados e maremotos e, é claro, os
impactos não deixavam de me alarmar. As vertentes da vida.
Quantas e quantas vezes me flagrei distraído, dentro de sala de
aula, passos de sonâmbulo diante do quadro-negro sei lá há quanto

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tempo, sem me recordar o ponto onde havia interrompido a matéria!
O pior que me podia suceder era não dar com ela, três vezes
na semana, às segundas, terças e quintas, quando tinha aulas co-
migo, sentada quase sempre do lado esquerdo, mais ou menos na
metade da classe. Ou mesmo nos demais dias, quando, usando de
todos os pretextos possíveis e imagináveis, eu a buscava nos luga-
res onde sabia que a encontraria, oportunidades em que procurava
trocar meia dúzia de palavras com ela.
Bom, com os desdobramentos todos, numa ocasião – e aí tal-
vez o meu maior erro – praticamente a “desafiei” a me fazer uma
visita em minha casa. Claro que foi um equívoco, quero admitir
logo de vez, porém isso só é fácil ser enxergado agora, no refúgio
do tempo, impossível de ser e depreendido sob o efeito pleno das
alagações e dos ciclones. Foi uma fatalidade, nada havia premedi-
tado nesse sentido.
“Desafiei” é o termo correto, pois a maneira como me ex-
pressei foi um tanto quanto viciosa e profana, lançando mão de
artimanha quase ilegítima. Penso que as coisas têm dimensões que
devam ser seguidas, que muitas vezes um diabinho interno acen-
de fogueira e força que as ultrapassemos. A frase que usei foi a
seguinte: “Cristine, se te convidasse para vir à minha casa, o que
você me responderia?”.
Ora, há nisso uma carga muito grande de logro, de encobri-
mento de minhas intenções, pois me mantinha ileso e imune, diante
de uma hipotética recusa da parte dela, ao mesmo tempo em que,
de fato, disfarçadamente, lançava no ar a indireta, livrando-me de
cometer alguma forma de indiscrição. Eu punha pele de ovelhas,
surrupiando praticamente todas as possibilidades de que ela poderia
lançar mão para se esquivar.
Tais artifícios são até admissíveis, quando se trata de uma situa-
ção normal, ou seja, quando se está diante de pessoas que possuam
plena capacidade de reação, ou quando se trata de condições so-
cialmente aceitas, mas não naquela circunstância.

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O que digo é que, de modo irrefletido, fiz o convite, sentindo-
me dominado por impulso até mesmo meio demoníaco e secreto,
repito, estranhamente arrastado por invencível excitação. Eu ardia
entre dois fogos: de um lado, procurava arregimentar forças para,
quem sabe, encontrar uma porta de saída; de outro, dominado
pela mais inquieta e febril atração, me atirava barranco abaixo.
Não há como esconder a ambiguidade de minha conduta.
Minha exaltada consciência ameaçava se subtrair, recolher-se
no casulo, amoitar-se nos recônditos mais interiores lá do meu psi-
quismo e deixar-me desimpedido para galopar a duas mil léguas do
juízo e da força moral (foi aquele episódio em que ela, insubmissa
e altiva, veio à minha casa, pela primeira vez, e ficou seguindo as
gravuras nas paredes da sala).
Pois bem; esse o estopim de tudo, imagino. A partir daí, Cris-
tine passou a se mostrar por aqui com frequência cada vez maior,
e, para isso, usava dos mais irrelevantes e esfrangalhados subter-
fúgios: era para elucidar algo das aulas, para pedir sugestões sobre
como agir diante dos mais insignificantes episódios da vida, sobre
isso ou aquilo, e até mesmo para tomar por empréstimo algum
livro, o qual devolvia, dias depois, sem tecer quase nunca qualquer
tipo de comentário. Desconfio de que nem ao menos os folheava,
pois eu “esquecia” marcadores de páginas em lugares previamente
escolhidos e eles retornavam na mesmíssima posição, como se
nem tivessem sido mexidos.
Numa oportunidade, inclusive, descobri seu endereço, num
envelope de carta vazio esquecido dentro de um dos livros (o
nome do remetente – do sexo masculino – não me era familiar;
nenhum aluno da escola, quero dizer). Se foi ali colocado por aca-
so, ou deixado com algum propósito, não sei responder.
Aos poucos, fui sendo, impressentidamente, cada vez mais cir-
cunscrito em esconsos círculos à sua volta, retido em calabouços
de indecisão, mas não conseguia deixar de pensar nela. Passei a vi-
venciar os mais imprevisíveis e perturbadores galeios, um misto de

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fascínio, mistério e medo, como parte cotidiana de minhas exalta-
ções mentais. Ao mesmo tempo, queria e não queria dar seguimento
àquilo, deixava fluir e estancava, soltava os freios e brecava, pois,
afinal, existiam também lampejos de tomada de consciência acerca
dos riscos a que me expunha.
O espírito da gente é mesmo assim: por vezes, instaura julga-
mentos que têm por base as questões da emoção, com um corpo
de jurados todo ele composto de elementos migrados das esferas
da razão. Alguém já disse que nosso cérebro reserva infinitésima
parte de si para dar pouso à razão; o restante fica todo para as
emoções. Ora, a razão é exatamente o contrapeso dos sentimen-
tos, e não pode por estes ser julgada, sob pena de inexistir isenção
na sentença.
Numa profunda introspecção, diria que o que estava acon-
tecendo comigo era como se a futuridade me estivesse sendo
solapada, se apagando feito lâmpada em resistência, enquanto o
presente se consolidava, impensado, esvoaçante e incoercível. O
presente adquiria luminosidade e acabava por me cegar de tudo
o que estivesse em volta. Era como se ignorasse a existência do
tempo e dos espaços, estes perdessem suas dimensões e se tornas-
sem grandezas abstratas e sem existência real. Cristine, de manei-
ra bastante especial, passava a tomar o centro da cena. A minha
mente, de modo quase obsessivo, permanecia todo o tempo ocu-
pado com ela, repetindo e repetindo a sonoridade daquele nome,
Cristine... Cristine, que ecoava e se alojava, mavioso, nas minhas
profundidades. Pronunciá-lo, mesmo que só mentalmente, era
motivo de máximo prazer.
Detalhe marcante dessa fase, e que preciso adiantar: ela pare-
cia fazer coincidir suas vindas – ao menos num primeiro momen-
to, insisto – exatamente quando havia alguém em minha casa, um
aluno ou aluna particular, por exemplo; em especial, as meninas
(eu dava umas aulinhas extras). Quer dizer, agia como se não se
importasse ser vista, ou até mesmo como se quisesse ser notada.

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Comportava-se, naquelas oportunidades, com uma naturalidade
incomum, uma intrepidez fenomenal, o que, convenhamos, dei-
xaria a sensação de que queria fazer entender às pessoas que tinha
livre trânsito entre minhas paredes. Tal procedimento era extre-
mamente embaraçoso e me criava constrangimentos, pois me dei-
xava em dúvida acerca do juízo que os demais alunos faziam. Eu,
naquela fase, mais do que nunca, precisava daquele dinheirinho,
porém temia pelas repercussões que dali adviriam. Não devia,
claro, manchar minha reputação. Sou indivíduo até certo ponto
regrado e previdente, e jamais esqueço de que habito um germe
de cidade, na qual o gosto pelo escândalo parece ser a mola pro-
pulsora de metade da população, na melhor das hipóteses. Disso
estou a cada dia mais e mais convencido. A intriguista da D. Erme-
linda, orelhas sempre de pé, nariz arrebitado, voz fanhosa, rosto
betuminado de pó-de-arroz, em sua rota de quinhentas vezes por
dia até a mesa do “capitão” Laurindo, além do próprio diretor, em
sua velhice repulsiva, ranzinza e sem higiene, são o mais perfeito
modelo do que estou afirmando.
Eu, portanto, como dizia, ia me vendo arrastado, lenta e imper-
ceptivelmente, pelas tropelias, do mesmo modo que as correntes
marinhas nos mudam aos poucos de lugar, nos deslocam para mais
e mais longe, quando, água à meia-perna, nos refluxos das vagas sen-
timos a areia fugir sob nossos pés, onda após onda, e o aconcheado
dos passos fica, a cada vez, um pouquinho mais no fundo, nos apar-
tando da orla, nos atirando para o meio da baía, do golfo, para os
estuários, o oceano, o seio... as sereias. E os ventos... Os ventos.

Sílfides
Que roupa está usando agora?
Um blusão longo, quase um vestido.
Só o blusão?
A-hã...

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Mais nada?
Huuum... Nada.
Nem por baixo?
Nada.
....
Acabei de sair do banho.
Então os cabelos...?
... ainda estão molhados.
Ainda?
... despenteados. Estou passando escova.
De que cor é o blusão?
Uhm... creme, amarelo bem clarinho. De crepe.
Você conhece tecidos?
Claro que não; a vendedora me falou.
Silêncio curto.
Está ocupada?
Não. Não tenho nada para fazer.
Algum dever de escola?
Depois eu faço. Hoje não tenho muitos.
Onde está agora?
Agora? Em casa, claro.
Não, eu sei, mas quero saber em que lugar da casa.
Ahh! Não tinha entendido a pergunta. Deitada
na cama.
Imaginei-a estirada, uma perna estendida, a outra, o joelho do-
brado e oscilando levemente no ar, a peça de roupa camuflando
as ondas do seu corpo.
Já penteou os cabelos?
Não, depois eu faço. Vou dar uma descansada aqui.
E os cabelos...?
O quê que tem?
Não vão ficar embaraçados?
Dou um jeito.

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Deixei a conversa morrer, por um tempo, para ver o rumo que
ela queria dar.
Por que não vem pra cá?, gracejou, depois de um instante
em que parecia refletir no que diria.
Está sozinha?, numa inflexão parecida com a dela.
Não respondeu.
Está sozinha?, insisti, num tom ameno.
Ela gargalhou.
Por quê? Se estivesse, teria mesmo coragem de vir?
Eu não sabia o que havia de brincadeira na sua fala.
Vamos admitir que eu vá. E se chegar alguém,
o que diria?
Ora..., que é meu professor.
E o que eu teria ido fazer aí?
Uuuhn... digamos... veio me dar umas
aulas particulares.
Pausava palavra por palavra, como se quisesse dar entonação espe-
cial a cada uma delas, ou como se refletisse no que ia dizer.
.................
Assim que desliguei o telefone, sentei-me na beirada da cama, pen-
sativo, minha mente focada num cômodo distante, um ponto ignora-
do, adivinhando uma composição de mobílias, que minha imaginação
desenhou de forma apressada e que nem era esteticamente elegante,
até sombria e descorada. Mas, em meio a tudo aquilo, vislumbrei o
corpo de Cristine, seminu, como iluminado por jogo de luz prateada,
que ressaltava a cor de seu blusão, a sinuosidade de seus cabelos vigo-
rosos – ela sabia que eu adorava vê-los molhados –, os olhos vítreos
de uma cor particular, nos quais, por vezes encontrava os “fulvos e
penetrantes” de Marcela, mas em outras, os de Capitu, os “olhos que
o diabo lhe deu”. Fantasiei leve sorriso insinuativo ensolarando seu
rosto – também passei a sorrir, absorvido que estava por tão encanta-
dora imagem –, arqueando o cantinho da boca, e repetindo o gesto de
apertar suavemente as pálpebras. Procurei me persuadir de que per-

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manecia estendida na cama, que pensava em mim, enquanto alisava
os cabelos fartos com os dedos entreabertos, que deflagrava no corpo
movimentos bêbados e impudicos.
Não sei por que a visualizei assim, nessa pose, mas o fato é que a
invenção se desenhou com tal realismo como se a tivesse ali, diante
de mim, ou como se a observasse por luneta poderosa, capaz de
atravessar paredes e alpendres e ..., até trazê-la para muito perto, o
suficiente para tocá-la com a mão, pouco além da lente da luneta.

***
E se ela nos descobrisse?
Ela quem?
A sua mãe.
Não vai saber.
Mas se descobrir?, insisti.
Pequena pausa, em que parecia refletir, do outro lado:
Não me importaria, num tom vacilante de quem não sabia o
que contra-argumentar.
Não!, quase gritei. Ela não pode saber de nada.
Por quê? Qual o problema?
Não pode. Isso nunca. Nunca.
E por qual razão?
Veja bem, Cristine – tentando suavizar um pouco a voz –:
há coisas tão óbvias que nem necessitam
ser explicadas.
Nunca mesmo?, numa ingenuidade fingida.
Entre as pausas, eu captava ruídos de casa habitada, vozes in-
decifráveis, cadeiras sendo arrastadas, portas batendo, criança aos
berros, um carro dando partida.
Pelo menos por agora, procurei reparar.
E quando então?
Não sei dizer.
Hein?

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Não sei dizer.
Minha imperícia dava as cartas. Claro, devia evitar, a todo cus-
to, tal assunto, mas uma mórbida e fútil curiosidade me mantinha
assoreado naquele tema.
Se ela descobrisse, nós fugiríamos – agora de um jeito que
diria insano e delirante.
Um enigma a qualidade de sua voz, que mudava a cada instan-
te, a cada frase, de modo que reviravam, na minha mente, cam-
biantes expressões de seu rosto.

***
Você está apaixonado por mim, não está, Vicente?
Ela me encarava com fixidez incomum, o rosto meio oblíquo,
semblante com aparência de aflito, como se corresse algum perigo
ou como se até mesmo sua sobrevivência dependesse da minha
resposta. Recordo-me de vários episódios parecidos, vários, em
que, por mais estranho que possa parecer, me sentia acuado diante
de menina tão mais nova que eu, abandonando o terreno de luta.
Acho que ela jamais se deu conta desse meu estado de ânimo, pois
se tratava de reação instintiva sua me acuar, que fazia parte do seu
temperamento e que, portanto, lhe devia passar invisível.
Preferi o silêncio para melhor dissimular minhas incertezas e
tornar ambíguo meu pensamento. Meus personagens prediletos,
meus autores preferidos, não me vieram em socorro, minha desa-
balada memória me deixou em falta. Era, digamos, urgente trazer
alguns embaraços e desencontros às ideias dela, ao seu espírito,
mas e cadê?

***
Posso te pedir uma coisa?
Eu a fitava sem compreender, a cabeça em vertiginosa busca
do que se passava dentro dela (sempre tive verdadeira obsessão
para conhecer seu pensamento), mas nada conseguia alcançar.

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Cristine era imensa nuvem escura de incertezas e imprevisibilida-
des, que lhe governava todas as atitudes.
Posso te pedir uma coisa?, repetiu, ante meu silêncio.
Aquela postulação ecoava surda, meus sentidos se moviam
desvairados, sem saber o que responder. Ela movia-se, incansável
e cadenciada, de um lado para outro, enquanto parecia estudar os
efeitos de sua fala sobre mim. Depois, sossegou-se um pouco e
acabou se recostando de lado na escrivaninha, mãos cruzadas nas
costas, estátua grega de linhas suaves e encantadoras.
Alguns segundos se passaram, enquanto ela, misteriosa e insa-
na, parecia sondar as linhas do meu rosto. Seus olhos não diziam
nada. Nada.
Não. Deixe pra lá.
Pode falar.
Não. Depois.
Fale agora.
Voltei a insistir, porém, ela permaneceu recolhida. Silenciosa,
focava incerto movimento na ponta dos dedos.
Posso mesmo te pedir?
Hum, hum, concordei.
Ela se aproximou ainda mais, quase o tanto de poder perceber
o seu hálito, saltando pelos meus olhos, tom entre desvairado e
provocante no rosto (que repetiu vezes sem fim na vida; sim, é
exatamente desse modo que me lembro dela com mais intensi-
dade). Ficamos nos defrontando, demoradamente, enquanto me
perdia em pensamentos, enquanto me desambientava e passava a
vivenciar progressiva sensação de penetrar no seu olhar, enquanto
me amortecia por detrás de sua retina, me acomodava no interior
dos seus hemisférios cerebrais, no fundo do seu pensamento (o
meu, parecia, naquela hora, drenado e crepuscular), lentas ondas
invasoras de cerebração carregando o espaço entre nós.
Afastei-me um tantinho, o suficiente para melhor poder enfo-
cá-la, para reajeitar a visão conjunta de seu semblante, da sua boca

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pubescente, dos seus olhos, das circunvoluções do seu cabelo sel-
vagem. Girei a lâmpada para melhor iluminá-la: o tom dourado de
sua pele tornou-se avivado; não pareceu se perturbar. Ao contrá-
rio, abriu-se num sorriso luxurioso e desnorteante e se aproximou
até quase colar seu rosto no meu, os olhos ao alcance.
E se eu te pedisse um beijo?

***
... incomum luminosidade em seu semblante. Ela verdadei-
ramente relumbrava. Os cabelos escovados, pontas esvoaçantes
e que compunham um penteado volumoso e leve. Calça vinho-
escuro e blusa branca (nunca a havia visto com aquela roupa). Eu
procurava decifrá-la, aprumada por debaixo das vestes. Depois re-
tornei para os cabelos, que adquiriram esplendoroso tom dourado
e leve. Redolente fragrância desprendia de seu corpo.
Perguntei-lhe o nome do perfume, mas se limitou a sorrir bre-
jeiramente, a inclinar de leve o pescoço e ficar enrolando uma me-
cha dos cabelos, numa atitude de quem se sabia examinada, e con-
sentia em permanecer sob o foco de minha vista. Estava magnífica!
Naturalmente, eu me deliciava com aquela contemplação,
aquela figura que mal se movia, as pernas juntas e cheias dentro
da calça, o desenho dos quadris, a cintura que se camuflava sob
a blusa justa, os ombros... Confortavelmente vestida num traje
de dia frio, deliciosamente abrigada – o clima frio, a meus olhos,
confere à mulher impressão de afago, de conforto.
Me diga uma coisa: sou bonita? Você me acha bonita?, in-
quiriu, com doçura insinuante e ao mesmo tempo juvenil.
Você sabe que é muito bonita, respondi, de um modo que
não ocultava a minha timidez.
Então tomou minha mão e a colocou sobre seu coração, para
deixar que percebesse o quão acelerado batia. Feito isso, foi vi-
rando-se compassadamente, imperturbavelmente, de forma que
parecia ter os gestos estudados. Leve sorriso nos lábios, olhos fe-

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linos e oblíquos, e foi-se embora, num ritmo nem tão lento, que
não permitia ser interpretado como desejasse ser sustada, nem
acelerado demais, como se zangada estivesse.
Quando escutei o portão se fechar, corri até a janela, a tempo
de ver um resto de seus cabelos, as costas de sua blusa, desaparece-
rem por detrás do muro. Mentalmente, segui-a pelas ruas em que
imaginava que percorreria, desenhando o seu mapa, até perdê-la.

A rainha das águas


Certa feita, com o tal envelope de carta (deixado dentro do li-
vro) no bolso da calça, saí de casa com a vaga ideia de ir explorar
aquele endereço. Em certa medida, havia em mim uma espécie de
curiosidade em conhecer onde ela morava, como se a informação
me fosse útil para compor a lembrança de Cristine, quando o de-
sejasse. Sim, pois, até então, as minhas concepções de seu mundo
eram um tanto quanto intangíveis e exigiam esforço suplementar
de meu cérebro para a composição do cenário, que era sempre
muito e muito parecido, mas que eu desconhecia o quanto distava
da realidade. É o caso de dizer que o envelope antecipava uma en-
cruzilhada em minha vida, e que representava, ao mesmo tempo,
uma imensidade de riscos e também de recompensas.
Ao passar pela ponte metálica, tão grande dilema se recusava a
me abandonar, pairando sobre minha cabeça como imenso ponto
de interrogação. Se optasse por jogá-lo no rio (o envelope) estaria
evitando, assim penso eu, o ingresso no perigoso mundo da ilusão,
dos prazeres insondáveis. Bastava me conformar de que, afinal, tudo
não passava mesmo de uma fenomenal impossibilidade e sempre, nas
eventualidades, o melhor caminho é mesmo facilitar ao destino a ta-
refa de nos lançar a boia.
Bom, adianto que o impulso de lançar fora a sobrecarta foi
contido por forças estranhas e tenazes: não tive determinação,
seria a maneira correta de me expressar (de hábito, sou mesmo

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refratário aos gestos definitivos, às decisões inexoráveis). O juízo
foi sendo abafado por fantasias, que meu mundo interior criou, e
tratou de retirar-se de cena.
No meio disso, dei com as vistas num pescador, a poucos me-
tros de onde me encontrava, o que acabou por me desviar a aten-
ção. Ele se conservava praticamente numa mesma posição – uma
perna enfiada no gradil do guarda-corpo da ponte, a outra esticada
até o piso –, como se uma movimentação sua, por menor que fos-
se, pudesse se transferir para a linha, daí para o anzol, e acabaria
por afugentar o nadinha de peixes que exista por ali; completamen-
te absorto, o olhar lá para longe, onde a linha desaparecia na água.
Debrucei-me sobre o parapeito, quase na mesma posição que
o pescador, o eixo de minha visão paralelo à sua, atenção volta-
da para aquele fio imóvel que penetrava inclinado na superfície
da água. Um tempo infinito. Nada poderia me trazer mais calma.
Mirei de novo o taciturno pescador, que acendera um cigarro; ha-
via trocado a posição das pernas. A água verde-musgo, bastante
escura, deslizando pesadamente. Três barcos presos a uma estaca
beira-rio. Na margem oposta, a tubulação da fábrica de tecidos
despejava um líquido espumoso, cor de café com leite. Pegado
com ela, quase ao nível da lâmina d’água, outro tubo mais fino
desprendia uma substância negra, espessa e oleosa, que calculei
provir do posto de gasolina. Um raciocínio desagradável, mas fu-
gidio, me percorreu: talvez centenas de outras descargas parecidas
existiriam rio acima, em todas as cidades a montante, e a jusante,
e em todos os rios e...
Uma folha de jornal erguida da pista por lufada de vento – exa-
tamente entre os trilhos do bonde, que a se viam a descoberto – e,
quando arriou, acabou atravessando a grade do guarda-corpo e caiu
na água. A primeira conjetura que me ocorreu, enquanto o papel
planava aos tombos, foi com o envelope de Cristine tendo o mesmo
destino, sendo depois levado pela corrente. Retirei-o do bolso e li
de novo o endereço, procurando memorizá-lo, caso algo viesse a

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acontecer com ele: Beco Luís Monteiro, 105.
Passava das dez da manhã. Carros circulavam lentamente, às
minhas costas. Na posição em que me encontrava, atravancava um
tanto o trânsito dos pedestres, a calçada extremamente estreita,
mal dando para uma pessoa, o que os obrigava a se desviarem para
a beirada da rua; contudo, não me arredei um nada.
Naturalmente, estava pensando em Cristine, mas eram pensa-
mentos em escaladas e acrobacias, feitos de análises descontínuas e
voláteis, sequências que saltavam de recordações em recordações,
que ora se convertiam em fontes de intenso prazer, ora de expec-
tativas, mas que em momento algum foram capazes de deflagrar
a mínima contrariedade em meu tempo interno. Não, nada disso.
Só a sensação intensa de vida calma e até de certa irresponsabili-
dade. E as reminiscências todas, sem o domínio dos itinerários da
mente, por onde fluem as utopias e ilusões. Quando está com
o cabelo amarrado, você fica linda; mas com ele solto, fica
mais bonita ainda, e ela sorria e me estudava, inabalável e acesa.
Seguindo-a no pátio, envolto na mais intensa sensação de fe-
licidade, o dia de cores e luzes, no seu modo de oscilar levemente
em cada passada, pupilas inquietas que saltavam pelos espaços,
sem perderam jamais o fascínio. Ela se descobrindo aos meus
olhos, como se o projeto mais importante do mundo fosse des-
pertar meus desejos, postada sempre onde contava que eu fosse
passar, o mais fascinante sorriso que seus lábios podiam.
Recostada, uma das pernas fletida e apoiada no muro, fronte
altiva, olhos francos que fingiam não ver, enquanto eu, para atrair
sua atenção, mudava e mudava de posto, retraído e cheio de receios,
na sombra das palmeiras imperiais, dos angicos, das palissandras.
Desfilando lépida e faiscante na borda da piscina, o corpo
dourado dentro do biquíni azul (provavelmente o escolhera por
saber de minha predileção pela cor), pele salpicada de gotas relu-
zentes de água e suor, mechas úmidas dos cabelos cadenciando
nas passadas impetuosas.

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Aprontada numa blusa de lese branca, sem mangas, com o
decote em arco um pouco fundo, jeans ligeiramente desbotado
desenhando-lhe as curvas dos quadris, o esculpido do ventre e a
cinzeladura das virilhas.
Você age assim também com os outros professores?, per-
guntei-lhe, bem baixinho, quase gaguejando, acreditando que nem
fosse me escutar, enquanto repassava, numa velocidade meteó-
rica, o restante dos alunos que, em aparente turbulência, haviam
permanecido em sala. Assim como?, lábios enganosos de ame-
tista, cheiro de flores do campo. Assim... tão próxima?! Sorriu
timidamente, abaixou os olhos, fingindo se entreter com a poeira
de giz sobre o tampo de compensado.
Quem é você, Cristine? Quem é você?, as circularidades
todas do pensamento.

Por que, em cada momento, ela cuidou de sonegar informa-


ções sobre suas origens, sua “biografia”? Por que não me permitiu
campos livres a fim de formar fundamentos sobre com quem es-
tava lidando? Isso incitava minha enfermiça curiosidade e acabava
por me trazer apreensões acerca das razões do silêncio.
A par disso, no entanto, com o pouco que consegui acumular
de informações acerca deles, tratava – vejam que estupidez! –, de
estabelecer uma espécie de paralelo entre a sua família e a minha,
que adquiria então o significado de paradigma, de imagem espe-
cular, através da qual poderia enxergar e compreender a dela. Era
como se eu reduzisse as pessoas a cópias umas das outras, sem
levar em consideração a heterogeneidade dos seres humanos, as
singularidades das criaturas.
Seu pai, até onde sei, fora indivíduo de tendências suicidas, e
que morrera há mais de dez anos, num sanatório não sei onde. Sua
mãe, nas palavras dela própria, era “mulher de vida pouco reco-
mendável”. Numa certa ocasião, pela mais indesculpável das indis-
crições, indaguei-lhe o que queria dizer com aquele “de vida pouco

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recomendável”. Ela simplesmente amarrotou a testa, abaixou um
pouco a cabeça, roendo as unhas, e, com o canto do olho me re-
talhando, caiu no mais profundo silêncio, atitude que me deixou
muitíssimo desconcertado, mas acabou servindo para me mostrar
que estava diante de trilho que não deveria ser percorrido de novo
(o tempo se encarregou de me mostrar o que queria dizer com tal
expressão; mais ainda, o quanto elas duas, mãe e filha, se pareciam).
Acontecia, vezes sem conta, de Cristine criar histórias que não
“fechavam”, que não faziam sentido, nas quais permaneciam al-
guns aspectos secretos e obscuros. Ou então, o que era pior, seus
relatos e versões mudavam de acordo com o tempo e com as con-
tingências, sucedendo inclusive de serem contraditórios e antagô-
nicos, porém, formulados com tamanha convicção que chegava a
imaginar que se enganara.
Não sei o quanto de suas narrativas eram falsas, o quanto era
invenção, nem seu propósito com tais encenações. Mas o fato é
que, para tentar compor a sua historieta, restava ao meu cérebro ir
juntando cacos e fazer sempre e sempre as minhas deduções. Não
existia outra via.
De qualquer modo, verdadeiras ou não, acabei por criar juí-
zos a respeito dos seus ascendentes, juízos que não eram muito
favoráveis, muito embora jamais me concedesse o direito de me
imiscuir em assuntos de tal ordem. Serei, por essa razão, obrigado
a saltar por cima de muitos e muitos detalhes de sua vida íntima
que, se levados a público, serviriam tão somente para achincalhar
sua memória, e nada trariam de útil. Não pretendo chocar quem
quer que seja, nem muito menos expor uma criatura humana tão
querida. Nem tudo pode ser dito e não o será, mesmo porque, em
nossa própria existência, a de cada dos seres humanos, há muitos
acontecimentos que de nós mesmos cuidamos de não franquear e
de deixar guardados sob sete chaves.

Como é mais que óbvio, muito do que acabo de narrar não era

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ainda do meu conhecimento, quando debruçado sobre o peitoril
da ponte. A maior parte só me teria chegado com o tempo. Mas,
era acerca dos mistérios ao redor de Cristine que estava meditan-
do, enquanto assistia à impassibilidade do pescador, à fixidez das
nuvens no céu azulzinho, ao entorpecimento das águas, pináculos
de telhados por detrás das moitas de bambu, que se refletiam, en-
sombrecidas, na beira-d’água, as enormes peças metálicas da pon-
te, as colunas, o vigamento, os arcos superiores. Um homem de
meia-idade, sem camisa, com os cabelos compridos e amotinados,
amarrados na nuca por elástico, passou por mim como um relâm-
pago e tropicou no meu calcanhar. Porém, seguiu atabalhoado em
frente, abrindo caminho no meio da pequenina multidão, se mo-
vendo em elipse, sem diminuir os passos – embora mancasse um
pouco. Nem ao menos se virou para se desculpar, nada. Carregava
um saco de aniagem às costas, com alguns objetos dentro, e usava
uma calça muito suja, em frangalhos, cor de vinagre, e chinelos
com tiras bastante largas, que deviam ter calçado antes outros pés
muito mais gordos. Confesso que, passados os instantes iniciais,
em que me vi irritado com sua desatenção e grosseria, aos poucos
foi me brotando uma pontinha de vontade de rir, não sei se pela
minha extraordinária disposição de espírito (o dia estava mesmo
muito bonito), ou pelo fato de que ele caminhava de jeito estra-
nho: as juntas parecendo bambas, as pernas trepidavam em cada
passada. Foi uma situação realmente meio cômica, repito, pois
parecia fugir de alguém que lhe viesse ao encalço, mas nem sequer
olhou para trás uma única vez, desaparecendo em meio à indife-
rença da procissão de moças e homens, empregados da fábrica,
que saíam do turno matinal.
Quando o perdi de vista, na outra extremidade da ponte, já na
subida da rua Floriano Cohen, minha reação me pareceu de injus-
tificada crueldade; ocorreu-me a ideia de que, decerto, tratava-se
de um miserável, ou um insano, e tal interpretação deixou-me pe-
saroso. Bom, mas já estava feito.

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E voltei-me de novo para a paisagem do vale, inclinado sobre
o rio, cabeça e tronco encurvados, demorando as mãos na cha-
pa de ferro do parapeito, braços abertos para receber no peito a
viração. Só abrindo e fechando um pouquinho a boca, como se
quisesse engolir todas as brisas, todas as aragens, refrescar o meu
interno, apesar dos lábios ressecados.
Alguém passou usando o perfume de Cristine: um arrebata-
mento, uma felicidade, os quais não tinham origem principalmen-
te no que se encontra fora, ao alcance da visão, mas que provinha
do meu íntimo, do meu espírito. Não era uma garota bonita; não.
Tinha o corpo meio roliço, quadris cilíndricos e estranho jogo de
mãos, enquanto caminhava.
Voltei-me para a escarpa negra da pedreira, onde, há muitos e
muitos anos, extraíam pedras, sob o estrondo de dinamites. Meu
pensamento num vau imaginário, que atravessasse a corrente de
um lado a outro. Um dos barcos se afastara da margem e, dentro
dele, o barqueiro remava vagaroso no remanso do rio Pomba. O
voo das andorinhas.
Juntei os braços e apoiei-me mais confortavelmente com os
cotovelos e os antebraços. Pela primeira vez na minha vida me
dispunha a ficar naquela posição, fitando o leito opaco em sua
lenta descida. Onde a vertigem? Onde a sensação aflitiva de estar
sendo atraído pelas correntes, durante anos e anos, ao transpor
uma das duas pontes? Onde as águas que ameaçavam, o grande
perigo, a voragem?
A mente, aos poucos, se retirou para descansar. Descansou
num rio longínquo e agradável, de leito concebido como estranha-
mente profundo, contudo paradisíaco e extasiante, tão profundo
que seria capaz de, no seu curso regular, aos poucos engolir coisas
inominadas e sem formas, sem que disso partisse um mínimo de
golpes ou aflições. Suave. Absorvia-me... O olhar vago e incerto
naquele azulejado, onde a luz fria do sol cintilava e se mexia fei-
to vidrilhos numa fruteira. Gradativamente, me absorvia... Águas

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fugitivas e hipnotizantes turbilhonando nos pilotis. Indo para o
vazio... para o vazio...
De novo Cristine. Cristine! Tão somente a sua imagem, sem a
concomitância de ações. Só o pensamento nela, o seu fulgurante
semblante. E a embriaguez, o tempo mágico, o frescor, não atribuível
à brisa que soprava, mas a um clima psicológico que emanava da alma
e se expandia centrifugamente pelo corpo, do tronco para o pescoço,
o rosto, a cabeça. A leve sensação de quem tomara ópio.
O balanço das levadas. O olhar entontecido e trôpego no mo-
saico de tintas das descargas, que se intercambiavam nos giros e
no estirão que as cores iam fazendo, na piorra das tonalidades, até
tudo ir se fundindo num mosqueado de tons e de rio, ir se homo-
geneizando a jusante, a espumarada e os giros me trazendo extra-
ordinária frouxidão, os bancos de areia, a calota da pedra quase
engolida pelo rebojo, cerebrações tangíveis borbulhando em mi-
nha cabeça, se misturando a outras que meu espírito criava, espi-
rais de águas se transfigurando em intermináveis ondas de transe,
meu espírito amortecido e soporífero forcejando para o invisível
das profundezas, para o mais abismal dos fojos, o universo irreal
das águas, para, bem lá no fundo, projetar Cristine. Ela, submersa
num rio estranhamente profundo, blandicioso chambre de mus-
selina transparente, brincava com os peixes, penteando os cabelos
com reluzente pente de ouro, desfrutando a água em inefáveis
movimentos erradios.

O advento dos sonhos


... como numa atmosfera nebulosa, feita de névoas marinhas e on-
das, de auroras invernais, que me elevavam a uma espécie de êxta-
se, a um interior de insuperável contentamento e que repetia uma
suave embriaguez; um delicioso delírio. Eu presumia a presença
de Cristine no compartimento ao lado (que lugar era aquele?). Po-
rém, meus sentidos se alarmaram: Virgínia também estava por ali,

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rigorosamente imóvel, me enfocando, estudando minhas reações,
meus gestos, ameaçando me desadormecer.
Uma interrupção momentânea, que durou frações de segundo,
como os cortes de cinema, suficiente porém para mudar o cenário:
o que verdadeiramente ansiava era descortinar Cristine, que ela se
revelasse de vez por todas, se tornasse visível; quando meu alum-
bramento se voltava para ela, me compreendia lépido e refestelado.
Aí uma ampulheta descomunal dava vazão a grãozinhos miú-
dos de areia cerúlea, que pareciam não ter fim, enquanto ela se ilu-
minava de pouco a pouco. Bastava que esperasse toda a areia passar
pela garganta para o recipiente de baixo, que esperasse... e esperas-
se... Eu, agradavelmente, não tinha pressa.
Subitamente todo o restante do cenário deixou de existir,
como se as luzes se apagassem, e só restou uma Cristine, que me
sorria encantada e púbere; azul. Um sorriso que me enchia de in-
concebível felicidade. Seus passos na dança de uma música silente
e sobrenatural, vinda das terras de longe, talvez do nascente, me
magnetizando... me magnetizando...

Depois que amanheceu, arrancado do mundo dos sonhos,


obstinava por regressar ao meu interior, ao mais recôndito de
mim, lá onde é moradia da memória, na esperança de encontrar
onde Cristine se teria guardado.

Afrodite
Ofegante, cabelos derramados sobre o travesseiro, como se assim o
fora disposto por cuidadosas mãos, enquanto os últimos espasmos
nos músculos da face se amainavam. Placidamente, abria as pálpe-
bras a intervalos, pupilas cristalinas, me sorrindo terna e meigamen-
te – era quando deixava escapar a aparência de fragilidade, que se di-
ria natural e involuntária. Toda a pele porejada de suor refrigerado e
apetecível, que se fundia numa mescla indistinta de odores; alquimia
de odores (por vezes, deixava a crença de que, de fato, adormecera).

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Eu a espiava na luz fosca do quarto, meu corpo, dorso en-
curvado, em conúbio com o dela, suas mãos me acariciando os
punhos, com suavidade, dando sinal de vida, ao ritmo de leve brisa
em dias de bochorno.
Os lábios se apertavam voluptuosos, os sobrolhos, os múscu-
los da fronte encarquilhando o cenho, as aletas do nariz se abrindo
e se fechando a cada respiração suspirosa, a garganta que engolia
em seco, têmporas empapadas de suor, olhos franzidos e ausentes
– ou em candeio –, fotografando.
Hipersensível, estremecia em alguma medida sob a ação de le-
ves assopros que eu impelia em partes distintas de sua carne, nos
pômulos, no colo, quadris, nos seios, a paisagem de pelos dourados,
o exíguo umbigo, esculpido por afiada goiva do mais hábil escultor.
Reconciliava-se a seguir, forcejando suave e instintivamente
para o domínio dos lençóis, numa carícia infinda, direcionando-
me para que prosseguisse na exploração atmosférica de seus ele-
mentos anatômicos (entrevia nela surpreendente energia, admirá-
vel altivez, apesar dos seus dezessete (?) anos, para pouco depois
encontrar em Cristine uma imagem angelical e serena, mergulhada
no mais profundo silêncio. Como fazia para mudar tanto suas ex-
pressões fisionômicas, e mesmo seu clima interior?!)

(A propósito, o hábito de silenciar, nos momentos em que se


via minimamente acuada, não é próprio de uma menor, mas de
quem já acumulou experiências na vida. Suas pupilas vigis jamais
abandonavam a guarda, não deixavam, em cada movimento, de cap-
tar os flagrantes do mundo ao redor, de modo que era impossível
não reconhecer nela, em quase todos os instantes, certa “vantagem
psíquica” em relação a mim: eu necessitava enfrentar, sempre e
sempre, o que conveniaria chamar de concordância de sua parte.
Concordância em tudo. Dela partia, numa palavra, a “sentença”, o
que me deixava em estranhíssima sensação de inferioridade, que só
se dissipava quando ela, por vontade própria, decidia arriar armas).

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Aqueles cabelos fartos combinavam com seu rosto – e até
com sua alma; leoas de pelos dourados. O aspecto insurgente dos
cabelos, que talvez pudesse ser percebido como um pouco ex-
cessivo e até desagradasse a alguns homens, constituía, de fato,
seu mais fascinante adorno. Mulheres assim são as mais atraentes;
suas belezas se tornam um verdadeiro teorema, pois revelam, ao
lado de quase imperceptível ferocidade, os mais sutis traços de
graciosidade, só observáveis por uma personalidade masculina
atenta, acostumada a enxergar encantos onde eles não são óbvios
demais. Aí está.

As pontas aceradas
Cristine estava ficando a cada dia mais bonita: o passo bambole-
ante, as mãos frescas (que estiveram estiradas diante de mim, so-
bre a mesa, enquanto me aliciava, empoadas de giz), os dedinhos
curtos e torneados, um anel fino com pedrinha carmim, o farol
de seus olhos varrendo o meu peito. Lembro-me dela debruçada
sobre a mesa da sala de aula, queixo na concha da mão, pele cor
de canela, rosto de olhos vivos querendo fisgar minhas aflições.
O tom de sua voz, proferida entre dentes, em tudo suplicante e
amável, traduzia, para mim, quase um rapto.
Tudo isso, aliado a uma preocupação mórbida de sermos
surpreendidos, fez com que eu aceitasse o convite, apesar de o
episódio, em si, ser considerado meio contranatural para o meu
temperamento e feitio, e me trazer até mesmo certo desconcerto.
Mas aconteceu de, num passe de mágica, me sentir excitado por
intensa e secreta sensação de subversão e que me era extremamen-
te agradável. Existiam ali matizes de algo diabólico e esfuziante.
Ela me esperaria lá, me soprou, quase ao meu ouvido, enquanto
me espetava o olhar.
O restante do dia passei-o inteiramente disperso e alheado.
Golpeavam-me, ora uns, ora outros, pensamentos de que cometia

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um crime ou, na melhor das possibilidades, uma impropriedade e,
por outro lado, convicções um tanto quanto dúbias de que, afinal,
nada havia de indevido ou ilícito. Não tão rápido assim, é claro,
havia tréguas entre as ocasiões, mas, de todo modo, os confrontos
voltavam e voltavam sempre. Como um vento, que troca as dunas
de lugar. Procurava me absolver, me convencer de que tudo era
natural, de que nada de tão grave sucedera, mas logo, logo, os
combates retornavam, voltavam a me fustigar, cada vez vestidos
com um figurino diferente, cada vez empunhando farpas diferen-
tes. Afinal, a enorme distância que enxergava entre nós dois apon-
tava-me na direção da loucura, da irracionalidade. Porém, como
tratar tais temas com uso da razão?
Para falar a verdade, acho que foi a primeira vez em que, por
detrás do delineio de rosto tão juvenil, afloraram para mim as con-
figurações de uma mulher. Ela, como por milagre, perdia os traços
de inocência, irrompendo imprevistos acenos de fascinação e sen-
sualidade. Estranhíssimo: passava a existir uma mulher habitando
aquele corpo, os cabelos anelados, alourados, o andar que, por
vezes, se tornava arrastado, feito pensasse o próximo passo. No
instante seguinte, porém, ressurgia, como um grito, a pureza de
Cristine –, quando ela, cabisbaixa, mansa e de maneiras discretas,
fantasiava olhos tristonhos ou meigos: a menina.
Por curtíssimo período, cheguei a conjeturar que o convite
para irmos ao baile se tratasse de alguma armadilha. Não entrava
na minha cabeça que eu pudesse, sem necessidade de demons-
tração, apresentar autêntico atrativo para ela, tão colossais nos-
sas diferenças. E a figura do diretor foi a primeira a se formar
(este, aliás, um fantasma que me perseguiu, incansável). Porém,
não demorou muito e me convenci da impossibilidade de pacto
entre eles; não conseguia vislumbrar situação em que Laurindo se
arriscaria a tanto, nem muito menos que da cabecinha de Cristine
partissem planos tão execráveis. Não. Ela não se submeteria a tal
vilania. Os professores, praticamente afastei todos. Apesar de não

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me terem lá grande estima, ao que imagino, devido ao meu jeito
meio absorto e taciturno, ao hábito de não frequentar muito as
áreas comuns e de fugir a contatos mais íntimos, não enxergava
em ninguém caráter suficiente para sordidez semelhante. Minha
cabeça saltava por fisionomias as mais diversas, e ia removendo,
um por um, os que julgava inocentes, e acabou por não restar nin-
guém. Aí pus foco sobre os alunos. É fato que não gozava da sim-
patia de muitos deles, assim como de seus pais, que, nas reuniões
do conselho de classe, queixavam-se de minha excessiva rigidez
disciplinar, no conceito deles. Na verdade, os moços, pervertidos
por pretenso valor social de sua família – o colégio é frequenta-
do por alunos de classe média –, convertiam-se, caso não fossem
domados, em verdadeiras ferazinhas insolentes, pois se fiavam na
opulência e na vida cômoda que levavam.
O fato é que tive pressentimentos trágicos, medo de ser ri-
dicularizado, de que alguém estivesse arquitetando algo para me
desmoralizar e, como é compreensível, cheguei a consumir uns
vagares com o assunto.
Evidentemente que o tempo foi tratando de atenuar meus
temores e, ao fim, acabei deixando me levar, quando finalmente
passei a acreditar que poderia decidir os passos com tranquilidade,
que seria capaz de retroceder, no momento em que sentisse os
primeiros efeitos das corredeiras. Tinha as rédeas nas mãos, ima-
ginava. Além do mais, havia a férrea consciência de que jamais me
perdoaria se recuasse.
Lembro-me que, numa noite, altas horas, fiquei na janela, con-
templando a escuridão do mundo, o pretume do céu com suas
estrelas, porém, não vendo nada. Sobre o que refletia? Refletia em
quão próximos nos encontramos, ao mesmo tempo, do risco e da
felicidade, dos corais e dos cardumes, dos penhascos e das fontes.
É coisa muito estranha!
Passei a despender com ela os meus intervalos todos, que não
eram exíguos, a sussurrar bem de leve o seu nome milhões de ve-

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zes, a fim de alcançar de volta o som: Cristine... Cristine... Aqueles
olhos, aquele encanto adolescente, o modo simples de se vestir.
Donde vinha a sua beleza? Para mim, um enigma. Bastava perce-
bê-la por perto, tê-la ao alcance da visão para sentir os primeiros
efeitos da magia. Sua voz era verdadeiramente encantadora; eu,
três vezes feliz quando despertado por sua fala.
Gosto de me lembrar dela, de seus cabelos revoltos, onde encon-
trava toda vez um doce perfume: fragrância de selva, de madressilva,
de alfazemas, aromas que desconhecia (ao meu olfato, de todos os
meus órgãos dos sentidos, devo as mais intensas captações do mun-
do que existem). Seu cheiro ficava em minhas mãos, quando ela se
ia, deixando em mim tão grande soma de si, de sua essência. Horas e
horas depois que ela partia, eu trazia as mãos para perto das narinas
e ia sorvendo Cristine.
Ligue-me sempre que tiver vontade, a qualquer hora.
Mesmo que seja de madrugada. Adoraria ser acordada e você
somente pronunciasse o meu nome. Pois em quase nenhuma
das vezes em que liguei ela estava ausente. Mesmo se calhava de
não encontrá-la, no dia seguinte fazia questão de me descrever
situações muito convincentes, que tinham “enredo” coerente e,
mesmo que a interrompesse, dando a entender que não me devia
explicações, ela insistia e ia até o fim.
Veja como bate meu coração, tomando minha mão e colo-
cando-a sobre seu peito. E eu sentia ainda as batidas aceleradas.
Ora, tal reação não poderia ser simulada, não haveria como. Uma
leoa domesticada, nessas circunstâncias, descansando sonolenta na
jaula, inteiramente despida de orgulho e de amor-próprio.

Penso que me adiantei um pouco. Creio que me confundi na


sequência dos fatos. Minha cabeça balança muito e não tenho bem
certa a cronologia dos acontecimentos. Mereço clemência, quan-
do cometer tais enganos. Mereço clemência.

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Leão
“Os nativos deste signo têm como principal característica a sobera-
nia e a realeza. Apesar de ser signo masculino, mesmo as mulheres
tendem a possuir um belo físico, inclinando-se à cor clara, cabelos
louros ou castanhos, olhos claros ou azuis ou castanhos dourados,
belos, luminosos e de ousada expressão. Não terão estatura muito
elevada, mas o corpo será benfeito e harmônico. Os tipos mais
elevados são de impressionante majestade, de gestos violentos e
seguros, emanando potente energia e serena autoconfiança.
Sendo signo de fogo, determina temperamento quente-seco,
com milagrosas reservas de vitalidade e enorme poder de recupe-
ração. Positivos, dominadores e enérgicos, gostam de conduzir e
comandar e são portadores de persistência inquebrantável, espí-
rito indomável e coragem a toda prova, não recuando diante de
nenhum obstáculo. Não gostam de obedecer, são independentes,
orgulhosos, desdenham a submissão e desconhecem a covardia.
Têm grande domínio próprio, natureza orgulhosa, altivez e muito
sangue-frio. Nas circunstâncias mais difíceis, ou nas conjunturas
mais perigosas, nunca perdem a confiança. São como fachos lumi-
nosos num mundo de sombras.
Os que possuem caráter fraco podem fazer uso da traição
como sua arma predileta.
Seu metal mágico é o ouro.”

O que a gritaria humana esganiça


Provavelmente, pelo que o conheço, o diretor já devia se encon-
trar junto à porta da sala na hora em que Cristine saiu, pois nem
cinco segundos depois ele invadia o recinto, passadas amortecidas
e deliberadas de quem prepara cilada. Minha aula havia acabado
de se encerrar, entretanto, alguns alunos ainda não haviam termi-
nado de sair, a anarquia vinda das rampas e dos corredores e de
tudo quanto é lugar.

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Cumprimentei-o formalmente – leve aceno e sorriso meio en-
cenado –, e me voltei para concluir as anotações no diário. Ele
então, sobranceiro e frio, puxou uma cadeira para si e sentou-se
ao contrário, isso é, de frente para o encosto, pernas arreganhadas
uma de cada lado do assento, braços sobre o espaldar, encarando,
com certo desdém, o restante dos alunos.
Suas expressões me pareceram sarcásticas, maliciosas mesmo,
no rápido giro em que, aflitíssimo, sondei o seu semblante: a boca
entreaberta, os dentes de cima mordiscando o lábio inferior, om-
bros regimentares erguidos. E um riso sardônico e cheio de artifi-
cialismos, que emergia do canto da boca e permanecia nas maçãs
do rosto largo e oleoso, que só se desfazia mesmo nos momentos
em que se encontrava terrivelmente encarrancado, por detrás de
sua mesa, quando, aos trancos e barrancos, secretariado por D.
Ermelinda, tentava solucionar as “complexas e dolorosas” tarefas
que o cargo lhe impunha. Esta, por sinal, a sua imagem que mais
constantemente me persegue – refiro-me ao seu riso, e não à sua
absoluta mediocridade.
Eu, por incrível que pareça, geralmente até suportava suas
aproximações, exclusivamente com o intuito de me precaver, ape-
sar da tremenda antipatia que nutria por todos eles – e aí incluo o
seu “braço civil”, o tal Silvério, e também a D. Ermelinda, que, dos
três, apesar de parecer a menos sórdida, se constituía, em compen-
sação, na mais arrogante. Acredito que a figura de Laurindo me
perturbava tanto, que chegava quase a ter o significado de fonte
de perigo, motivo de alarme, que pairavam em espaços incertos e
que não conseguia definir com precisão.
No fundo, no fundo, acredito que ele interpretava as situações
como se ainda vivêssemos a crueza dos anos do regime militar
e, uma vez mais, desempenhasse o papel de dedo-duro, ou, pior
ainda, de seviciador, apesar de já ir longe aquela época.
Bom, quando concluí minhas anotações, fechei o diário de
classe e voltei-me em sua direção. Estacado, permaneceu em abso-

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luto silêncio, batendo de leve com a ponta das unhas no tampo da
mesa. Parecia não ter percebido que encerrara minhas obrigações.
Eram dez para as nove da manhã e uma perturbação me ocu-
pava teimosamente o pensamento: qual a razão de ele não haver
me esperado na sala dos professores? Por que teria vindo à minha
sala? É preciso levar em conta que, em nenhuma ocasião anterior,
havia se portado desse modo. Então ele se virou na minha dire-
ção, no exato instante em que o último aluno atravessava o vão
da porta (eu, àquela altura, tratava de ajuntar direitinho todos os
meus pertences, meus livros e diários, batendo-os ruidosamente
de encontro à mesa, até com o intuito de dar-lhe a entender que
me preparava também para sair). Laurindo estendeu-me a mão e
apertou a minha com força, cumprimentando-me com tal efusivi-
dade que me levantou suspeitas; não era atitude costumeira num
sujeito tão carrancudo como ele.
Juntei as mãos sobre a pilha de livros e encarei-o, esperando
que dele partissem explicações para tão inusitada visita. Na porta,
uma moça expandia-se, gargalhando, com eufórica juvenilidade,
com dois rapazolas. A jovem olhou para dentro duas ou três vezes
e, ao dar de cara conosco, resolveu puxar a porta, fechando-a mais
um pouco. Nessa hora, espreitando aleivoso para os lados, o dire-
tor dirigiu-se a mim como se tivesse algo extremamente sigiloso
para me revelar e não quisesse ser ouvido por mais ninguém:
Repara, Vicente, como são as mulheres...
Outro circungiro com a cabeça, este agora bem mais breve,
enquanto parecia meditar na próxima frase:
Imagine o que acabei de saber agora!
E interrompeu novamente para recuperar o fôlego. Forjava
um rosto cheio de preocupações, fazia ares de suspense e de sábio:
Olha, tem um falatório danado aí fora... Há, entre nós,
um professor se embeiçando com alguma das alunas.
Foi o bastante. Instantaneamente me ensurdeci. Meus sentidos
se embotaram, como se tivessem sofrido os efeitos do estrondo da

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mais poderosa das bombinhas que, vez por outra, algum moleque
mais insolente estourava no banheiro ou dentro dos bueiros. Sen-
ti o sangue me fugir do rosto, e era certo que ele perceberia, que
notasse minha palidez, porque, inclusive, passou a perquirir com
maior fixidez a minha fisionomia. Perdi por completo o contato
com o mundo, por assim dizer, meu campo visual se restringiu a
uma sombra anuviada, no qual vislumbrava tão somente aquelas
narinas duras e ásperas, diante de mim – de onde, invariavelmente,
vazava meia dúzia de descuidados pelos negros e córneos –, e que
quase chegavam a se confundir com os do brutal bigode, nevoen-
tos beiços movediços. Minhas mãos, que estavam sobre a pilha de
livros e diários, pareciam crispadas por invisível força.
Nesse horizonte, para tentar me desvencilhar da agonia, refle-
xa e lentamente voltei-me para os imensos janelões de vidro: todas
as lâminas se encontravam abertas. Não havia explicações para a
imensa mornidão que fazia ali dentro. No pedaço visível de céu,
inertes nuvens cinzentas cambiantes, contra as quais as folhas e os
galhos mais finos das árvores oscilavam a uma brisa, que só muito
depois veio em meu socorro, para me desfazer as gotas de suor.
Não pude seguir mais nada do que Laurindo conspirava. Em
meio à náusea, que me tomava os internos, e ao atordoamento do
meu próprio espírito, percebi o suor fabricado em demasia. Comecei
a remexer-me na cadeira de forma incontida.
Houve brevíssimo instante em que, vendo o mundo desabar
sobre minha cabeça, e tomado pela mais extrema covardia, estive
propenso a confessar que o tal professor seria eu, era eu, e pedir-lhe
socorro. Essa a aturdida reação que minha diluviana aflição amea-
çou clamar. Mas, aí, meu gênio tutelador saiu em minha defesa,
principiando a dar sinais de vida: era imprescindível que parecesse
o mais sereno possível, que encenasse rigorosa tranquilidade para,
assim, tentar passar incólume. Secretamente, e com muita sutileza,
procurei imaginar como agiria uma pessoa impassível e inocente.
Bom, iniciei com o dedilhar lento e quase imperceptível sobre

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os livros, os cotovelos bem apoiados na mesa, o restante do corpo
quieto. Depois, procurei me ajeitar na cadeira, puxando devagar o
corpo para próximo do encosto. A língua lavou devagar a face ex-
terna dos dentes de cima e os lábios que, já umedecidos, passaram
a deslizar, para frente e para trás, de encontro um do outro. Dali
a pouco, com a mão direita em faca, juntava a poeira de giz sobre
a mesa. Eram gestos que me pareciam “naturais” e que poderiam
traduzir estado de indiferença ou desvalimento.
Não creio que seja verdade, Laurindo, aparentando o má-
ximo possível de firmeza.
Pois é o que dizem.
Quem diz?
Todo mundo.
Todo mundo quem?
Nos corredores, nos banheiros, na cantina, no pátio. Em
todo lugar. É só o que se comenta, hoje, aí, apontando para fora.
Aquela voz forte e acostumada a berrar ordens na caserna,
numa hora soava como cheia de ressentimentos, noutra, possuía
tons de suspeitas e de reprovações.
Aí o ato de a moça haver fechado a porta e estar rindo com os
dois rapazes adquiriu, para mim, forte significado de degradação e
de desonra. A imagem de Cristine se manchou de desdouramento
e desfez, como num jorro instantâneo, toda a sua ternura.
Dizer é fácil, retomei, no afã de me salvar, deixando escapar
este terrível clichê. Quantos boatos já circularam por aí e de-
pois se mostraram como não merecedores de crédito. Que
fulano é isso, que beltrano é aquilo. Uma mentirada dana-
da... Até que...
Ele aprumou-se na cadeira, diante de minha interrupção e ca-
lou-se, momentaneamente, como se tivesse sido abalado em seu
raciocínio.
Até quê...?!
Ia relembrá-lo de um episódio, tempos atrás, em que um dos

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colegas havia sido estigmatizado como homossexual somente por
sua maneira gentil de tratar as pessoas e por possuir aformosea-
da aparência física, o que acabou por desencadear reações extre-
mamente preconceituosas contra ele, o que o forçou a mudar de
escola e posteriormente de cidade. Contudo, achei que assim pro-
cedendo estaria ateando mais lenha na fogueira.
Ele voltou à carga:
O que você ia dizer?
Não; deixe pra lá. Esqueça. É bobagem!
(Aquilo me chocava).
Fez-se breve pausa:
Ah... Tais assuntos não me despertam, sabe, Laurindo?!,
encenando uma voz mansa e preguiçosa, porém com certa dose
de firmeza. Ele pareceu não entender a minha intenção de dar o
assunto por encerrado:
Não sei; acho perigoso para a boa reputação do colégio.
E concluiu, num tom hesitante, depois de um período em que
parecia fazer lá seus cálculos: mesmo que não seja verdade.
Então levantou-se. A barulheira infernal do pátio suspendeu-
se. Um aluno, intempestivamente, abriu a porta, espiou lá para
dentro e, ao deparar conosco, retrocedeu na ponta dos pés, fe-
chando de novo a sala.
Quero antecipar – penso que já é passada a hora – que desse
modo começavam sempre as pregações do Laurindo: moral, famí-
lia, reputação, costumes, religião, expressões que ele juntava para
construir um quase inalterável discurso moralista.
É muito difícil descrever o que se passou comigo. Em meio ao
meu estupor, à náusea que persistia, tomei consciência de que mi-
nha camisa se encontrava quase inteiramente empapada de suor,
em especial nas axilas. As têmporas latejavam. Sem mover a cabe-
ça, e em completo silêncio, olhei de novo para o relógio: faltavam
pouco mais de cinco minutos para as nove e, consequentemente,
para o final do intervalo. Assim consumira o meu tempo e não via

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como me desfazer daquela criatura.
Olhei por cima de seus ombros, esperando que viessem abrir
de novo a porta e assim conseguir me libertar.
Sua conversa desviou para “certa professora”, no dizer dele,
mas suas palavras iam me chegando amortecidas e confusas, de
maneira que não sei do que falava. Imagino que semeava mais
indiscrições, esperando ver o que me poderia atrair – ou trair, isso
sim. Sua cara reproduzia o sarcasmo.
Não se explicava tal feição, uma vez que possuía absoluta con-
vicção de que figura humana alguma sabia de nada do que se pas-
sava entre mim e Cristine e, mesmo se fosse o caso, de que não
cometera delitos, nem seria merecedor de censura. Porém, apesar
disso, era indiscutível que arvorecia, dentro de mim, o gérmen de
algo terrível. Como é de se esperar, àquela altura a lembrança de
Cristine adquiria fortíssima tonalidade fastidiosa e agastada. Toma-
do por insuportável pavor, enxerguei, com toda clareza, a enorme
loucura que aquilo representava e, sobretudo, a urgente necessida-
de de mudança de rumo (decisões como estas milhões de vezes me
passaram pela cabeça, mas foram sempre deixadas pelo caminho).
Antes mesmo de o sino bater o recomeço das aulas, Silvério
surgiu no vão da porta; juntando as partes do seu corpo, cumpri-
mentou-me solenemente, com uma flexão da cabeça e fugaz sor-
riso, e em seguida voltou-se para o diretor, anunciando, com voz
meio aveludada, que o chamavam ao telefone. Laurindo se levan-
tou bem devagar da cadeira, arrastando-a para diante e passando
uma das pernas sobre o assento, com destreza que não seria de
se esperar, na sua idade, deu-me um tapinha nas costas e escapou
sem dizer mais nada, deixando-me todo encolhido e desconcer-
tado pela minha imperdoável bisonhice: havia quase me entregue,
quase, o que seria um desastre e se converteria na maior asneira de
minha vida. Só fui salvo por um milagre da vida.
Meu cérebro em desvario ficou imaginando como me veria,
nas mãos daquele homem, que dedicava à inteligência e à liber-

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dade um desprezo proporcional à importância com que exaltava
a moral e a disciplina (frutos de seu tempo de caserna, imagino).
E aí ressaltaram, dentro de mim, suas enormes narinas, que pa-
reciam querer engolir todo o ar do mundo, seu bigode de arame,
como um resto de pesadelo, que relutava em se desfazer. Surpre-
endi-me enxergando-o, inflamado, discursando sobre Duque de
Caxias, sobre a Guerra do Paraguai, assuntos que tratava com tal
fervor, que era de se crer que tais acontecimentos houvessem su-
cedido tal como ele descrevia, como atos de bravura sem par e há
pouquíssimo tempo; feito ele próprio os tivesse presenciado (daí
que a imagem do patrono do Exército Brasileiro, dentro de um ca-
saco militar, fechado por alamares dourados, se tornou, para mim,
criação fraudulenta e até mesmo com certa dose de ignomínia).

***
Na manhã seguinte, despertei com um sonho terrível, no qual,
extremamente aflito, tentava pregar – com cola branca! – uma
cortina de pano num vidro de basculante, a fim de impedir que
sombras errantes esquadrinhassem o interior do meu quarto.

O trampista
Passei, noutras oportunidades, por situações parecidíssimas com
a que acabo de descrever. De umas poucas ainda me recordo, po-
rém, a maioria se perdeu naquilo que antes chamei de seletividade
da mente. É incrível como a gente se lembra de certas coisas, e
não de outras, apesar das intensas reações que provocaram, no
momento em que aconteciam. São coisas de Deus!
Numa delas, por exemplo, Laurindo se acercou de mim, na
mesa de café e, sem nenhum preâmbulo, deu conta de que ha-
via visto Cristine, numa atitude que descreveu como “indecente”,
com um rapaz:
Sabe, Vicente; ontem vi Cristine... Estava com uma
pessoa que não conheço...

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E depois de aguardar uns segundos, acrescentou a expressão
“indecente” no meio de uma frase qualquer, que nem me lembro
mais (é de se perguntar o que seria a decência para um sujeito
como ele. É de se perguntar).
Eu bebericava uma xícara de café, beliscava uns biscoitos mur-
chos e fui pego naquela situação. Claro, tive de reunir todas as mi-
nhas habilidades para disfarçar a imensa gama de tribulações que
me tomaram de assalto, enquanto ele, falsamente manso, prosseguia
com a sua torrente de leviandades e indiscrições, sem dar a menor
importância se alguém nos ouvia, ou até mesmo como se preferisse
que existisse vasta audiência.
Dizem que ela é sua ‘amiguinha’. Aí fez pequenina pausa:
você poderia conversar com ela, preveni-la dos perigos. Uma
menina com tantos problemas de família...
Foi o que disse.
Ora, a expressão ‘amiguinha’, já por si só permeada de uma in-
genuidade quase tola, soou com carga imensa de aleivosia e mor-
dacidade. Guardo de sua cara, naquele instante, uma delirante e
entorpecida recordação: sua imagem se formou em minha retina
como sombra tubular acinzentada e opaca, os vidros escuros dos
seus óculos e seu riso de triunfo e deboche.
Depois se evadiu, sem esperar por qualquer resposta, deixando
aquele petardo incendiando todas as minhas angústias e aflições.
Eu sempre digo o que penso, não me interessa se agrado
ou não. Pra mim, branco é branco, preto é preto. Essa a adver-
tência que usava, quase aos gritos, quando queria evitar o confronto
de suas estultas ideias, o aceno para que não lhe interpusessem con-
testação. Uns (a maioria, diga-se de passagem) acabavam se renden-
do, consentindo em que o assunto se encontrava mesmo encerrado,
fosse ele relevante ou não. Outros, dentre os quais me incluía, agiam
com reticências, como se deixassem de lado as coisas, sem porém
demonstrarem acuamento, mas tão somente com o propósito de
evitar conflitos gratuitos e excruciantes. É a lei do pouco esforço.

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Não sei se ficou clara a diferença entre os dois comportamen-
tos, que realmente podem ser confundidos, para quem esteja a mil
léguas de distância. Para nós, no entanto, que nos encontrávamos
intramuralhas, tornava-se bem perceptível: para os primeiros, a
resignação e submissão; para nós, o ardente desejo do sossego e o
de sentir-se em paz.
Recordo-me ainda de outra oportunidade em que ele e Silvé-
rio se fartavam com historinha da filha de uma professora, inclu-
sive minha aluna, menina por sinal muito discreta, de pouquíssima
fala e até meio melancólica: Sim, parece que agora nem mais
precisa das colegas do Colégio. Só sabe viver com a nova a-
mi-ga. E dava realce na pronúncia das sílabas, conotação ferina e
maliciosa. Até ao pai tem agradado a presença da amiguinha,
desgovernando-se. Dizem que foram vistas juntas, abraçadas,
de mãos dadas. São a-mi-gas, acentuando novamente as carac-
terísticas de malignidade.
Alguma parenta deles, Laurindo...”, o Silvério, com seu ar
de inventado recato, mãos entrelaçadas adiante do baixo-ventre,
cabeça submissamente inclinada, olhar solícito de quem esperava
para obedecer.
Parente? Coisa alguma... Mais que isto. Pelo menos, é o
que dá a entender, dando de costas.
Ao cabo de tudo, tratava de puxar outro assunto, de mudar a
conversa, e se afastava com aquele terrível ar de suficiência, dei-
xando para trás os sinais da destruição.
Intriga-me o fato de que, reiteradas vezes, recorria a matérias
dessa ordem, especialmente quando me via por perto. Não sei se
era um hábito dele, temas de sua predileção – refiro-me ao gosto
pela maledicência e pelas intrigas –, ou aquilo constituísse uma es-
pécie de isca, que lançava ao mar, esperando que eu a abocanhas-
se. Em outras palavras, como se portava nas conjunturas todas de
sua vida?

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Pássaros do outono
Aqui, entretido nestes escritos, quase nem me dou conta de que o
dia escureceu e uma tormenta se avizinha. O ar sufocante, venta-
nias varrem as ruas, socando janelas e venezianas de encontro aos
marcos, na vizinhança. Um sanhaço pia, desesperado, na parreira
de uvas do quintal.
Todos os anos, um casal de sabiás faz seu ninho ou na parreira,
ou no pé de jabuticaba, que quase já não produz mais frutos de
tão velho. Mas este ano é o sanhaço de plumagem incrivelmente
azul-brilhante, no seu desassossego de quem se prepara, segundo a
segundo, para uma fuga precipitada; os olhinhos ariscos, estudiosos
a indiscerníveis predadores.
Estive observando-os da varanda, na hora em que fui fechar
a porta da cozinha, até se darem conta de mim e, ressabiados,
debandarem-se para o quintal vizinho.
Uma pomba cinzenta, que não percebera até então, empolei-
rada na coluna que serve de esteio ao muro, ameaçou também ir
embora, mas susteve o voo sem, no entanto, deixar de exibir todo
seu receio.
Enquanto terríveis nuvens negras se acotovelavam, ameaçado-
ras, por sobre a cidade, enquanto a ventania ameaçava içar toda a
estrutura da latada que sustenta a parreira, enquanto aquele cheiro
de terra ia me chegando às narinas, a memória divagava em inferên-
cias vagas: sobre o quanto nossa vida é vazia de acontecimentos, o
quanto dela se consome em passagens sem nenhuma substância,
em tolices. Sobre quanto também a solidão transforma os homens.
Considero-me um cidadão comum e profissional mediano,
nada mais. No vaivém das pegadas, busco desempenhar meu dever
social da forma mais imperceptível possível, dentro do anonima-
to, a fim de que não encontrem motivos para deitarem sobre mim
candeeiros impróprios. Não tenho pretensões de ultrapassar estes
limites, que me são confortáveis e seguros. Minha personalidade
se abriga num mundo que criei, arredio, ermo, e deita almofadas e

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põe respiradouros no afortunado espaço limitado onde me abrigo.
Tornei-me uma espécie de eremita, por vontade própria, e pela mais
profunda intolerância para com certos vícios de seres humanos.
Não bastasse isso, curiosamente, venho notando minguarem-
se motivações que antes tinham significação para mim: vai longe
o tempo em que procurava me ombrear com meus semelhantes,
em que buscava agarrar-me a valores humanos elevados, à frater-
nidade, solidariedade, coisas do tipo. Significa dizer que, desilu-
dido, acabei por perder a noção de ideal, de abnegação, processo
que, insisto, não dependeu de meu domínio ou de minha vontade.
Foi ação que emergiu sem nenhum motivo aparente, determinada
muito mais pelo meu gênio e têmpera que por qualquer outro
fator. Tive, confesso, ao menos em outras épocas, alargada visão
social. Não posso esquecer que coexisti com um dos mais dra-
máticos momentos da história brasileira, e que participei, ainda
que modestamente, de muitos deles. Mas é que meus ânimos se
arrefeceram e não encontro mais alento para dar mais que poucas
passadas no espaço tépido desta cidadezinha desagradável e sem
alegria. Desse ponto de vista, encontro remissão num verso de
Brecht: “há homens que lutam um dia, e são bons” (não estou ab-
solutamente certo da exatidão dos termos, não consegui localizar
a obra, mas o sentido é mais ou menos este). E aí me relevo, me
indulgencio, mesmo descobrindo-me de braços cruzados.
Não sou, é claro, dos que se prostram ao pressentirem não ser
bem acolhidos, dos que se preocupam com o julgamento alheio e,
na atualidade, posso dizer que me porto de maneira quase opos-
ta à de há vinte, trinta anos, época em que facilmente me deixa-
va abater se descobrisse alguém que não me tivesse afeição. Sem
grandes dificuldades, acabei migrando para o polo contrário, acho.
A vida me empurrou, a vida ensina a gente, ensina o certo e o er-
rado, porque ela não possui giroscópio para nos apontar sempre
a direção correta e acaba nos conduzindo para um ponto onde
muitas vezes jamais imaginaríamos desembarcar. A experiência

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humana se constrói exatamente nos erros e acertos, nas idas e
vindas, e então é quando um homem se recolhe, se aparta, ao ver
aumentadas as fileiras inimigas (penso que posso ter deduzido de
forma invertida, ou seja, os adversários é que, ao se avolumarem,
fazem com que nos comportemos como misantropos. Não sei;
estou confuso acerca do pormenor).
Não me lamento, não estou reclamando de nada; só registrando
um fato flagrante e sólido. O que faço é reproduzir e testemunhar
que me encontro migrando de uma etapa, na qual me sentia como
uma espécie de idiota sentimental, para outra, de insensibilidade e
surdez. Acho que os anos trazem isso. Mas, caramba, eis aí o maior
adversário para quem se aventura a... vamos lá..., para quem se aven-
tura a ensaiar escritos e que possam vir a ter um mínimo de valor
estético: o sentimentalismo. Com frequência, e é preciso reconhe-
cer, tolerei excessos de humores e sentimentos, o que me deixa em
situação de risco. Todos nós, em passagens casuais da vida, agimos
de modo parecido; contudo, só merecemos perdão se elas não são
repetitivas em demasia. Mas, enfim, creio ainda ser tempo.

A tempestade despeja sobre a cidade. Abro a janela do quarto


o tanto de não permitir que os respingos molhem o interior, o su-
ficiente para enxergar as grandes extensões de morros recobertos
pelo cinza-azulado das nuvens, os filetes de água despencando,
lavando ruas e casas. O halo branco, que restou do céu, centrando
a torre de telefonia celular, galhos dos oitis sacudidos pelo agua-
ceiro e pelos ventos, desprevenidos pardais, que chegam atrasados
para seus assentos. Fico a pensar nos sanhaços, aqueles dois que
pousaram na parreira de uva; onde terão se escondido?
As luzes dos postes estão acesas e um rapazola sem camisa
bicicleteia, por aqui, todo risonho e desprecavido, não se impor-
tunando com o poderio dos açoites. O trem de minérios grita,
abafado pelo rugir dos trovões. A tarde escurece, transformando-
se em quase completa noite.

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Desapareceu também o halo branco do céu, que enquadrava
a torre de telefonia e há somente um cinza fechando a paisagem.
Ruídos de motor de automóvel acelerado em demasia; jato d’água
aos tombos nas calhas. A rua soturna e solitária, a fumaça cobrindo,
fachadas de casas descoloridas e feias, do outro lado. Ocorrem-me
montanhas de roupas acumuladas sobre camas miseráveis, recolhi-
das por mulheres ofegantes antes do irromper da chuva. Defronte
à estação, cavalos sossegados, indiferentes, resistindo aos arreios
atados nos varais das carroças. Pedreiros assistindo ao encharca-
mento do que restou de massa. Aposentados sob as marquises do
centro. A namorada esperando as estrelas. Um assobio anônimo,
cão latindo incessante e doidamente. Talvez alguém lhe estivesse a
infligir maus-tratos, uma pedrada ou paulada, não sei. Prestei ouvi-
do na latomia, que me deixava agoniado e sentido. Depois tateei: o
vira-lata descia para o lado da Visconde do Rio Branco seus pun-
gentes ganidos. Até se aquietar de todo. Há uma forma de melan-
colia nos olhos dos cães, nos olhos apagados dos cães vadios, no
seu contrito ganido, e que é desconhecida pelos seres humanos.
Algo que, na odisseia do dia a dia, nos escapa da compreensão e da
curiosidade, algo superior e que, exatamente por não o perceber-
mos, nos deveria retirar o título de senhores do universo.

Os tambores da guerra
Aí chegou setembro. Na véspera do feriado do dia sete – que caía
numa segunda-feira – ou seja, no domingo, seis, ao contrário do
que habitualmente fazia, entediado e insone, resolvi tomar ares,
permanecendo até bem tarde fora de casa. O que aconteceu foi
que, nas minhas andanças, passei ali pelo largo da Estação, que se
encontrava quase inteiramente lotado, apesar do adiantado da hora
- era época das campanhas políticas, dos comícios, quero dizer.
De cima do palanque, um figurão, que se apresentava como
candidato, um hipócrita de marca maior, pouco mais de metro

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e cinquenta de altura, que inclusive havia servido no primeiro
escalão de muitos governos militares, cuidava, com seu discurso
arrebatado e cheio de frases feitas, de avidamente se apossar da
consciência dos dóceis e aparvalhados cidadãos.
Parei por lá uma meia horinha. Não que tivesse interesse pelo
evento, de forma alguma. Na verdade, se fosse inquirido, não sabe-
ria explicar o que me reteve ali. Em geral, recolho-me relativamente
cedo, nunca depois de dez, dez e meia. Talvez a curiosidade de ver
tanta gente junta, o movimento das ruas, não sei, aliados ao fato de
que, no dia seguinte, não haveria aulas... Possuo certa curiosidade,
acho que posso dizer assim, para com gente estranha, adquiri o
hábito de observar detalhes irrelevantes nas pessoas comuns, sem
que parta de mim qualquer intenção sórdida ou obscena – e, na-
turalmente, sem que deixe que descubram o meu reparo. Estudo
o modo como as pessoas deambulam, as maneiras de cada um,
as suas expressões faciais, minudências destes tipos, que, como já
ficou dito, não traduzem nenhuma indignidade ou vileza de minha
parte. É costume até mesmo meio bobo, diria, que talvez tenha se
originado do fato de ter vivido muito sozinho, com exceção, obvia-
mente, dos instantes em que me encontro dentro de sala de aula,
mas aí meu foco de visão é mais panorâmico e difuso. É a única
explicação que encontro.
Passava pouco das onze da noite quando se deu o fato: Cristine
estava ladeada por um indivíduo, bem mais velho que ela – devia
beirar sessenta, sessenta e cinco anos –, por detrás do palanque,
retirada do grosso das pessoas, exatamente na lateral da estação
ferroviária, a cerca de trinta metros de onde me encontrava. Eles
confabulavam com um casal que não conhecia, ela, com a mulher,
e os dois homens entre si, formando assim dois pares, um diante
do outro.
Puh! Em menos de meio segundo, vi-me acometido pelo mais
explosivo abalo, por efervescência que ardia em toda a minha
massa e ameaçava desintegrar meu sensório. Os nervos se susta-

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ram num arranco e um zumbido surdo rapidamente me tomou
a audição. À deriva, senti-me quase cego, sofrendo correntes de
friagem e de quentura, que se aproximavam e se afastavam em
criações alucinantes e vulcânicas. Labaredas afogueavam meu ros-
to. Um horror!
Passada, no entanto, a primeira síncope, meu instinto procu-
rou me iludir: talvez houvesse me enganado, que se tratasse de ou-
tra pessoa muito parecida com ela...! Quantas vezes aconteceu de
me equivocar, nos trajetos da vida, e enxergar Cristine em outras
meninas, quantas vezes?! Para falar a verdade, este enredo me con-
vinha, a gente procura se enganar, diante das maiores atribulações
da vida, nosso cérebro é facilmente iludível, e isso se deve a uma
espécie de defesa da mente, acredito. Que diabos!
Contudo, infelizmente, era Cristine mesmo. Eu a vi com toda cla-
reza, quando deles me aproximei, meio à escondida, aquele fluxo visu-
al lampejou intensamente dentro de meu espírito.
Embora não houvera, até àquela época, verdadeiramente me
enciumado de Cristine, ainda não percebera, em mim, o menor
traço de reações do tipo (o que atribuo a certo equilíbrio que a
idade traz, e também à posição que eu ocupava, digamos, numa
“escala de relacionamento” entre nós dois, eu, homem formado e
estável, enquanto ela, uma jovem que mal tinha esboçado os pri-
meiros passos na vida), vi-me desesperadamente roído pela mais
lancinante mágoa.
Essa é das mais amargas experiências sensoriais a que se pode
submeter um ser humano. Acontece que nunca suspeitara de sua
infidelidade, nunca, isso seria inimaginável... Aquele mesmo olhar
furtivo, afiado feito navalha, o rosto felino, trincado de malícia, o
ar mais frio e indiferente que se pode enxergar.
Dez ou quinze segundos depois, no entanto, procurei rejuntar-
me; precisava urgentemente conter minhas reações, não permitir
que ela percebesse minha ruína, meu baque. Compenetrei-me de
que, se tal acontecesse, seria a minha derrota definitiva. Era impres-

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cindível que agisse com toda a tranquilidade do mundo, que levasse
à cena uma placidez e uma calma que chegassem até a confundi-
la, por assim dizer. Meu recuo foi deflagrado entre o segundo e o
terceiro minuto, mais ou menos. Não valia a pena fazer o menor
barulho, pois, além de não ser o meu estilo, por nada do mundo me
arriscaria a perder o controle da situação. Meu silêncio valia mais.
Todavia, quando o incêndio foi tratando de afrouxar um pouco,
passei a refletir também que não deixaria, de maneira alguma, de
tomar alguma atitude, por menor que fosse, não devia agir como
se nada houvesse acontecido. Então, o que fiz? Decidi passar dian-
te dela, a meio metro de distância, como se quisesse dizer “eu vi
tudo”, pois assim ela própria se converteria em minha testemunha.
Pois diante de tudo isso, e por mais incrível que pareça, ela
reagiu com a maior e mais fria indiferença; foi a impressão que me
ficou, embora tenha de admitir que possa estar equivocado, tal a
turbulência em que meus sentidos se encontravam. Conservou-
se o tempo todo impassível. Nenhum gesto, nenhuma expressão
de desespero, nada, nada, nada, as mãos nos quadris, o corpo
meio encurvado para o lado do homem, pernas descansando uma
adiante da outra, voltada só para a outra mulher.
Passei por eles baldio, numa velocidade um pouco maior do
que seria desejável, imagino; teria sido mais conveniente que re-
tardasse um pouquinho o passo; assim, tornaria mais fácil meu
propósito de ser enquadrado por ela. Parecia que eu fugia, ou que
houvesse cometido algum delito e necessitasse rapidamente me
esconder, qualquer coisa assim. Cheguei a pensar em repetir a ma-
nobra, tornar a passar diante deles, mas aí considerei também que
seria me rebaixar por demais.
Cristine era dotada de incríveis recursos cênicos, inimagináveis
mesmo para pessoa de sua idade, dos quais lançava mão nos mo-
mentos em que se sentisse acuada. E aí se revelava um ser árido e
que não ligava importância ao mundo. Simulou não haver nem me
notado, não me voltou os olhos um instante sequer, apesar de ter

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passado bem rente deles, como disse. O único gesto que se permi-
tiu foi dependurar uma das mãos no decote da blusa, os dedos em
gancho por entre os seios. E foi só.
Bom, dali fui direto para casa, e deixei cair-me no sofá só com
a roupa de baixo, a garganta minguada, a cabeça desparafusando.
Foi uma noite sem fim, onde se misturavam dor, amargor e uma
sensação de coisas preciosas que se perdiam em definitivo; uma
cessação brusca de tudo que significava luminosidade e sabor.
Forçava os olhos a permanecerem fechados, a não se abrirem
de jeito nenhum, a fim de que o sono surgisse, porém, as pálpe-
bras, incendiadas, insistiam em se manter acesas. A saleta, envolta
na mais sombria atmosfera, estava abafada, mas não alcançava âni-
mo para erguer-me e ir deitar-me na cama, mesmo sem atinar com
as razões dessa recusa. Enxergava assustado o vulto da estante, os
objetos, os livros – que se delineavam como mais alongados –, o
aprumo das paredes, a obscuridade do forro... O despertador tra-
balhava. Vi o tempo obstinar: uma... duas horas... Quando acredi-
tava que já havia se passado longo período, verificava, para minha
desilusão, que só transcorreram alguns poucos minutos. Deixei a
televisão ligada bem baixinho, confiando que ela me auxiliasse no
sono – durmo, em geral, com muita facilidade com o sonzinho mo-
nótono e arrastado dos filmes das madrugadas. Entretanto, indócil
e incrivelmente agitado, não conseguia adormecer de modo algum.
Reprisava insistentemente cada daquelas cenas, com intensa rique-
za de detalhes. Elas, as cenas, vinham carregadas de pensamentos
negros e atribulados.
O corpo de Cristine, pela vez primeira, se desfigurara em algo
como destroços de embarcação, em alto-mar, e que, desintegrada,
não me conduziria a ponto nenhum do litoral. Acima de tudo, era
a representação de algo que se enchafurdara numa matéria repe-
lente e empesteada e que vinha me dilacerar com objeto afilado
e retorcido. Cheguei a ver as primeiras claridades, desconforta-
velmente dobrado sobre o sofá. Quantos horrores não passaram

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pelo coração?! Procurava repelir que ainda a desejava, contestar
com as forças todas que a mente consegue reunir, mas, no fundo,
não acreditava muito, não.

Gênesis III
3, 15 – “Porei ódio entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a
dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar.”

O olhar vesgo
Vi-me obrigado a interromper por uns dias estes meus escritos,
pois que, enquanto reconstruía os derradeiros fatos, experimenta-
va um desgosto que, diria, era quase tão intenso quanto o daquela
noite, com todos os seus elementos e estados de espírito; como
se os vivenciasse novamente, com as cores nítidas da realidade. O
que quero dizer é que o final foi esse: não disse nada, não fiz nada
diante da perfídia.
Curiosamente, passei, a partir daquela noite, a não conseguir
mais reconstituir as feições de Cristine, por mais que me esfor-
çasse. Elas – as feições, quero dizer – me escapavam inteiramente.
Quando punha meu cérebro na operação, usando todas as forças
possíveis, suas expressões fisionômicas vinham inexatas e fugidias,
eivadas de componentes ilusórios e falsos: às vezes, só o contorno
incerto de uma cabeleira vasta e ondulada. Nenhum outro traço
parecia resistir. Meus neurônios, ou sei lá o que fosse, instintiva-
mente tratavam de apagar sua imagem. Tal estranho fenômeno,
aliás, repetiu-se muitas e muitas outras vezes. De qualquer outro
ser humano que desejasse, seria capaz de compor as suas perfeitas
configurações. Testava com uma e outra pessoa e a cabeça funcio-
nava na medida. Menos as dela. Do velhote, conseguia fazer certo
desenho, apesar de somente lhe haver dedicado ligeira olhadela: um
pouco magro, cerca de metro e setenta de altura, nenhum atrativo
físico especial e cabeleira quase inteiramente encanecida, aparada

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bem rente (exatamente como os cortes militares). Trajava roupas
descoradas e sem graça, calça de figurino de extremo mau gosto,
sobrecasaca escura, o rosto exageradamente escanhoado.
Suportei, como é fácil se prever, uma semana bastante ressen-
tido e atordoado. O que mais intimamente ambicionava era o di-
reito de condená-la à solidão eterna, ao degredo perpétuo – e isso
é quase inconfessável. Contudo, e por mais aberrante que pareça,
não consegui odiar Cristine. Havia imensa mágoa, é óbvio, mas
esta a gente até de certo modo já antecipa, no fundo de nós mes-
mos. Penso que todo mundo já passou por situações semelhantes
e que não devo estar narrando nada que a humanidade não tenha
perfeito conhecimento.
Pois bem; assim descobri a psicologia de Cristine, assim fiquei
conhecendo o seu caráter. Quem é capaz de acertar a personalida-
de dos outros? Quem está apto para antever do que é possível um
ser humano, quem?
Nunca conversamos sobre o acontecimento, nunca lhe pergun-
tei quem era o homem. Jamais. Aliás, sempre cuidei de não pôr
sobre a mesa coisas passadas. Ela é que, por vezes, tomada de sen-
timentos de vergonha e prosternação, se sentia no dever de rodear
aquele assunto. Aí criava as mais incríveis histórias, cheias de tortu-
osidades e de versões que não se encaixavam, buscando se absolver.
Chegou a afirmar, por exemplo, que, com tais atitudes – que se
repetiram muitas outras vezes –, o que almejava era me esquecer,
procurando, em vão, segundo ela própria, em outros homens, atri-
butos que enxergava em mim. Mas nunca, de fato, ouvi suas expli-
cações sobre o incidente de seis de setembro. Nunca. Se a aceitava
de volta, significava que já havia posto uma pedra sobre a ofensa,
e pronto. Além do mais, sempre acontecia dessas coisas se apaga-
rem de minha mente. É incrível como me recordo perfeitamente
dos fatos felizes de nossa vida, com os maiores detalhes possíveis,
os cenários, nossas revelações mais íntimas e até mesmo as datas
precisas em que aconteceram. Tudo, tudo, enfim, como se estivesse

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prestando atenção em cena decisiva de um filme. Tenho, como se
costuma dizer, memória fotográfica. No entanto, ela, a memória,
tratava de suprimir os acontecimentos desagradáveis e irremissíveis,
fazendo com que, neste meu itinerário, parte da minha vida se per-
desse, sem praticamente deixar pegadas. Passada a convalescença,
um ou dois meses depois, por fenômeno antimnemônico qualquer,
meu cérebro se encarregava, sabe-se lá como e por qual motivo, de
fazer com que se apagasse toda a sua capciosidade e devassidão,
não restando absolutamente nada, nem do comportamento dela,
nem do rancor acarretado. Desse exato modo. Nos eventos, nunca
atuou minha vontade própria, o meu arbítrio. Ainda hoje, se tento
estimular determinadas lembranças, resgatar alguns episódios para,
com eles, compor mesmo que seja uma minguada autoabsolvição,
o que constato é que existe imensa mancha negra preenchendo
grande parte do espaço na tela, que acaba por encobrir os destro-
ços do passado.
Não estou fazendo jogo ficcional, não se trata disso. Ora, o
que devo fazer para convencer de que não minto? Desaparecia por
completo, com o tempo, de dentro de mim, tudo aquilo e nunca
mais conseguia recuperá-lo. Tanto que, na atualidade, não teria, caso
desejasse, como fazer relato de mais que meia dúzia deles, que ainda
conservo, acredito, devido ao intenso sofrimento que me causaram.
Admito que seja muito confuso, em especial para quem está
de longe assistindo e esperando ser convencido. Logo eu, que me
vanglorio de ter memória prodigiosa! Só afianço que é possível.
Era assim mesmo que acontecia. Deixo a cargo dos estudiosos
da mente a elucidação de tal fenômeno, que escapa por inteiro de
minha compreensão.

Hipólito
FEDRA:
- Que será isso que todos chamam de amor?

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AMA:
- Nada é mais doce e também mais amargo, filha.

FEDRA:
- Pois eu conheço dele apenas o amargor.

As vazantes
Cristine desapareceu da escola. Não deu sinais de vida, não telefo-
nou e nem ao menos me mandou de volta dois livros – se não me
engano, Cartas a um Jovem Poeta, de Rilke, e Estrela da Vida Inteira,
de Manuel Bandeira – que lhe emprestara, num momento em que
ela, tomada de alento, manifestara o desejo de “escrever poesias”
(tinha uma maneira ingênua de pronunciar a palavra “poesia”).
A propósito, em quase todas as vezes que desertava de minha
companhia, coincidência ou não, retinha consigo algum objeto
meu, um livro, um CD, que se transformavam, em suas mãos, em
apólices ou promissórias, com as quais dava a impressão, lá com
a sua desvairada cabecinha, de querer obter “resgate” posterior.
Tal estratagema, que se repetiu vezes sem conta, acabou por per-
der a eficácia; passei a compreender sua tática e a me portar com
impassibilidade. Quer dizer, eu deixava em suspensão, que tudo se
ajeitaria mais adiante.
Num certo sentido – e retorno àqueles dias de setembro –, pos-
so afirmar, sem sombra de dúvidas, que, nem passado um mês, não
mais percebia em mim grandes sinais de perturbação. Ao contrá-
rio, me sentia até surpreendentemente apaziguado, imperturbável, o
que se constituiu numa enorme surpresa. Cristine como que se des-
fazia em meu interior, se despetalava, perdia as cores e o viço, sem
sofrimentos salientes, sem necessidade de recorrer a forças maiores.
Isso é verdade. Eu acordava, escovava dentes, coava café, trocava de
roupa, dava minhas aulinhas, coisas de todo dia, mas não me ocupa-
va em alimentar minha parte idiossincrásica, vamos dizer assim. Em

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poucas palavras: ela perdeu-se para mim.
Não que do processo de apagamento participasse consciente-
mente, que fosse decisão minha. Não se trata disso. Era um fenôme-
no espontâneo e natural, sobre o qual não possuía o menor arbítrio
ou determinação. Estou repetindo para dar ênfase e claridade. E
seria mesmo ideal que tudo ruísse por conta própria, como ninhos
abandonados nos galhos de árvores, como desmoronam as dunas
sob a ação das ventanias. O que tinha em mente era ir à procura de
outro alguém que, afinal, representasse para mim menor desarrimo.
Com ela, encontrava-me participando de um jogo perigoso, o qual
não me sentia mais encorajado de persistir jogando.
O ser humano, acredito, ao mesmo tempo em que é dado a
aventuras, instintivamente se acomoda e procura evitar os penhas-
cos. Eu estava, portanto, diante de extraordinária oportunidade,
que o acaso colocava para deixá-la de lado, sem maiores cicatri-
zes ou sequelas, pensava. Procurei racionalizar, é o caso, transferir
para pontos diversos dos meus sentidos a solução do problema.
A razão versus a emoção, embate que, com certeza, já arrastou
muita gente a cometer as maiores loucuras, e há séculos serve de
matéria-prima para muitas das formas de arte.
Sentia-me um tanto quanto vazio, naturalmente, desprovido
dos menores estoques de entusiasmo, indiferente, passivo, dei-
xando, por inadvertência, nas veredas, minhas bagagens e minha
instintiva condição de intemperança e inconformismo. Estranha-
mente, só trazia presentes seus atributos (de Cristine, quero di-
zer) que considerava os mais reprovativos. Queria evitá-la, hoje
compreendo, e, para tal, procurava acumular pensamentos ne-
gativos, seus vícios e imperfeições, os atritos que existiram entre
nós, cuidando de passar e repassar suas ciganices todas para, com
elas, formar uma interpretação desfavorável e cheia de nódoas.
Lançava mão deles – dos pensamentos – sempre que estava na
iminência de me sentir frágil. Era muito esquisito, porém meu
instinto ia obedecendo, ia seguindo os meus ditames. Foi nessa

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fase que perdi a capacidade de evocar sua fisionomia, a que antes
fiz referência: quando forcejava para trazê-la à memória, nunca
conseguia. Estranhamente, inclusive, acontecia de desenhar as de
uma outra pessoa, uma auxiliar da biblioteca, a qual, colocada lado
a lado com Cristine, não guardava praticamente nenhuma seme-
lhança. O que pode ser mais estranho?! Quando minha fantasia
ameaçava exigir a presença de Cristine, quando a utopia ensaiava
retomar as rédeas, empurrando para longe o intelecto e a razão, e
meus centros nervosos se afainavam na reconstrução daquele in-
vento, lá vinha pouco a pouco irrompendo a figura da funcionária
da biblioteca para tomar seu lugar. Vá entender os tumultos da
alma! Tanto é verdade que, em passagens casuais, cheguei até a me
sentir ligeiramente inflamado por esta última, a qual, observada
atentamente, não possuía nenhum atrativo. Acima de tudo, pro-
curava me persuadir de que, se conhecesse pessoas, outra mulher,
quero dizer, poderia me ser útil para desalojar Cristine de meu in-
terior. Uma esperança muito aderente. Minha cabeça destrambe-
lhada saía, feito meteoro, catando todas as figuras de minha cota
de mundo, desde as mais insignificantes, porém não conseguia me
fixar em nenhuma delas. Tudo funcionava como se eu olhasse, de
dentro de um vagão em célere movimento, fotografias e cartazes
fixados nas paredes das estações de metrô.
Virgínia foi uma delas. Sim, porque ela podia representar um
caminho curto. Imaginava que, ao meu menor aceno, retornaria
sem esquivas e fardos. Virgínia e seus cabelos arqueados até pou-
co abaixo das orelhas, e que lhe davam a aparência de ser mais ve-
lha do que realmente o era. Porém, o fato é que ela não conseguiu
alumiar nem meio grão de meu ânimo. Além do mais, não fazia
a mínima ideia de onde se encontrava, por onde andaria Virgínia.
Não sei se fiz boa defesa da tese de fazer uso de uma terceira
pessoa para apagar a memória de Cristine. Certamente que o ex-
pediente pode ser mal interpretado por quem não possua o dom
de depreender em que apuros se vê alguém prestes a despencar

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de uma cachoeira, e que, naquela situação, agarra-se a algo que lhe
surja ao alcance da mão para não se deixar arrastar. Eu me segu-
raria em qualquer coisa, desde, é claro, que não fosse um braço ou
uma perna de outro para arrastá-lo em meu afogamento.
Sobretudo, não existiam reações parecidas com insensibilidade
ou licenciosidade, quero deixar bem claro, mas sim uma busca de
remédios que aliviassem males da alma. Admito que seja ideia meio
assustadora e até mesmo cruel, mas não via – e não vejo ainda, sin-
ceramente – grandes motivos de autorrecriminação. Não se trata
de comportamento tão execrável assim e desconfio que todo mun-
do, pelo menos uma vez em sua vida, já se comportou de modo
parecido. Nas caladas, nosso íntimo reage conforme os meios de
que dispõe. Não somos tão perfeitos quanto imaginamos.
Não obstante, jamais dei passos verdadeiros nessa direção – es-
tou querendo dizer de usar uma terceira pessoa para suprimir Cris-
tine. Fiquei esperando. Acho que foi por essa época que comecei a
refletir em como os vícios e as paixões são fenômenos tão próximos.
Há imperiosas semelhanças entre vício e paixão e ainda terei oportu-
nidade de demonstrar o que anuncio.

À sombra das raparigas em flor I


“Quando um multimilionário, e homem encantador, apesar disso,
é despedido por uma mulher pobre e sem atrativos com quem
vive, e avoca a si, no seu desespero, todas as potências do ouro
e movimenta as influências todas da terra, sem conseguir ser de
novo aceito, mais vale, ante a invencível teimosia da sua amante,
supor que o Destino quer prostrá-lo e fazê-lo morrer de uma do-
ença do coração, que procurar uma explicação lógica. Esses obs-
táculos com que têm de lutar os amantes e que a sua imaginação,
superexcitada pelo sofrimento, procura em vão adivinhar, residem
muita vez nalguma singularidade de caráter da mulher que eles
não podem atrair para si, na tolice dela, na influência que sobre

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ela tiveram e nos receios que lhe sugeriram certas pessoas a quem
o amante não conhece, no gênero de prazeres que ela pede no
momento à vida, prazeres que o seu amante, e a fortuna de seu
amante, são incapazes de lhe oferecer. Em todo caso, o amante
está mal colocado para conhecer a natureza dos obstáculos que a
astúcia da mulher lhe oculta e que seu próprio juízo falseado pelo
amor impede de apreciar exatamente.”

Proust
Valentim Louis George Eugène Marcel Proust (1871-1922) nas-
ceu em Paris. Descendente da alta burguesia, desde a infância so-
freu de sérios problemas de saúde, o que o fez viver praticamente
isolado do mundo, num quarto fechado. Sua obra mais significati-
va, Em Busca do Tempo Perdido, é considerada das mais importantes
de todos os tempos e se compõe de quatro romances: No Caminho
de Swann, À Sombra das Raparigas em Flor, O Caminho de Guermantes
e Sodoma e Gomorra.

A voragem
“O tempo é um rato roedor das coisas, que as diminui ou altera no sentido
de lhes dar outro aspecto”. Esse trecho copiei do conselheiro Aires,
em Esaú e Jacó, e imagino que caia feito luva, nesta hora. O tempo,
digo eu, vai mudando os juízos definitivos em dilemas, o absurdo
em cabível, o infalível em rasuras, e por aí afora.
Não tive, em minha vida, muitas oportunidades de sonhar com
Cristine. Em noites sem fim, deitado enquanto o sono não vinha,
buscava ardentemente fixar nela o pensamento, gravar seus traços
e linhas, repetir situações da vida diária, acreditando que, em assim
agindo, fosse me aparecer em sonho. Decididamente, estou persu-
adido de que, nos estúrdios fenômenos psíquicos, o espírito cuida
simplesmente de soldar fragmentos aleatórios da memória uns nos
outros, para depois exibi-los para nosso interior, para o alumbra-

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mento, para as miragens, para a embriaguez, o que resulta em sur-
realíssimas cenas agradáveis e mágicas (ou patéticas, ou ridículas, ou
impressionantes, ou estranhas, de acordo com seu conteúdo).
Eu, como disse, raramente sonhava com Cris, repito. Assim
que se cerzia a minha insistência em fotografar o seu rosto, en-
quanto ainda desperto, como para franquear a ela o espaço das
minhas horas da noite. Pois naqueles dias de setembro passei a
vê-la inopinadamente em sonhos. Quer dizer, não eram sonhos
propriamente, nos quais existissem narrativas, cenas sensuais, ou
algo que o valha. Nada disso, mas tão somente flashs de ima-
gens, entrechos recortados, sonhos imóveis, mas que acabavam
por produzir intensos açoites em minha atividade mental. Sua
idílica fisionomia me trazia os maiores encantos, uma cintilância
flutuando num mundo misterioso e intangível. Os sonhos, ao que
imagino, foram me adulterando, pouco a pouco. Comecei, da noi-
te para o dia, a passar por estranhíssimas mudanças de resolu-
ção. Eis aí condição quase incompreensível! Mesmo aqui, neste
momento, tenho dificuldades para elaborar os pensamentos que
me tomavam de assalto, pois eles, os pensamentos, se perdiam na
imensidão do ardor e da ternura e funcionavam como um bastão
metálico, o qual uma das extremidades fora colocada na forja, a
outra, na Sibéria, as chamas avivadas por alguma espécie de com-
bustível extremamente inflamável. A porta da sala de aula, a cada
vez que se abria, dava-me a certeza (ou a alentada esperança) de
que ela entraria em cena, a carteira vaga, que os demais alunos pa-
reciam reservar para quando ela retornasse, e que, de dois em dois
minutos, eu encontrava em minha rota peregrina sobre a massa de
cabeças e corpos opacos.
Eu enganava meus desejos, hoje vejo isto, pois, não obstante
minha consciência repetir que me encontrava recuperado e que
nada dela restava, dentro de mim, o subconsciente, na escuridão,
já ultrapassara a soleira. Pegava-me repassando a efígie de Cristine,
que progressivamente ia recrudescendo em minha memória. Isso

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significava que, mesmo desejando o contrário, meu espírito se in-
surgia e tomava a iniciativa de dissolver ressentimentos e decep-
ções. Eu já não resistia com a mesma intensidade, ia me rendendo,
me deixando levar, abstraído por muitíssimas reminiscências, que
retornavam em revoada. Vá entender os mistérios do cérebro!
Conjunturas parecidas, nas quais migrei de um estágio de em-
botamento e indolência, para outro de inexcedível febre e ator-
doamento, repetiram-se em todas as nossas dezenas e dezenas de
separações que viriam dali por diante. Ouso dizer que estas duas
fases sempre existiram e se alternaram num intervalo de tempo
relativamente constante. Nem tudo na vida caminha conforme
desejamos, isso está à altura de qualquer inteligência meio lerda, a
cabeça da gente é como os ventos, que dão para lá, dão para cá, e
açoitam sem piedade e sem rumo certo.
Passei assim a conviver quase diariamente com um sentimen-
to que praticamente ignorava: a infelicidade. Sim, pois o que co-
nhecia até então era a vida sossegada, feita de noites dormidas, de
pensamentos brandos; brisas de abril, águas calmas dos açoites de
rio. Comecei então a arquitetar mil hipóteses que explicassem o seu
desaparecimento, nenhuma delas me servindo de lenitivo: uma en-
fermidade. Talvez tivesse adoecido e não houve oportunidade de
me avisar, suposição que inclusive me fez pensar em procurar por
Aline, sua amiga mais próxima, com a qual vivia a segredar pelos
cantos e corredores, e da qual eu inventava terríveis ilações: tinha
profunda insegurança de que Aline soubesse de tudo e que ali resi-
disse o meu calcanhar de aquiles. Por sorte, não a encontrei, naquele
dia; uma única noite foi o suficiente para me mostrar o quanto es-
taria rompendo as mínimas barreiras da precaução. Além do mais,
havia a terrível suspeita de que talvez Aline tivesse conhecimento
de algum “concorrente” (um termo que Cristine usava com muita
frequência, em tom jocoso, quando me ligava e encontrava a linha
telefônica ocupada). Puxa, há quase meia hora estou tentando
te falar! Alguma concorrente minha? E pronunciava estas pala-

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vras com entonação que era um misto de gracejo e de impaciência.
Num segundo momento, supus que tivesse viajado; uma ines-
perada viagem, decerto, mas logo em seguida desfiz tal crença; seria
pouquíssimo provável, pois estávamos em pleno final de bimestre.
Posteriormente, cheguei a cogitar que lhe houvera, com minha
natural e rotineira inabilidade, causado alguma mágoa. Ou seja, da
posição de vítima, me baldeava para a de algoz. Mas onde poderia
ter falhado? Por Deus, eis algo para o qual não conseguia resposta.
Ao cabo de tudo, o que era mais angustiante: que nosso segre-
do houvesse sido rompido para a sua família. Este pensamento
estourou como bomba e me deixou aturdido. E aí minha cabeça
começou a misturar, feito imagens de frenético cinetoscópio, fi-
sionomias de um monte de pessoas que imaginava serem capazes
de representar o papel de delatoras. Uma loucura!
Aliado a isso, uma incerteza, a mais obscura das incertezas:
ansiava saber se ainda me encontrava presente em sua memória.
Mais ainda: gostaria de sabê-la sonhadora, se distraindo com a
imagem de meu rosto, dos meus gestos, que não houvesse perdi-
do os movimentos destas mãos, a minha presença corporal. Ao
menos, não queria prescindir daquelas lembranças. Que guardasse
alguma saudade, restaurada sei lá de qual passado, que os estilha-
ços não tivessem sido de todo perdidos. Como me reconfortava
a ilusão de que ela também passava pelas mesmas conturbações,
que sofresse do que eu sofria! O mais terrível não era a ausência
de Cristine em si, mas a férrea desconfiança de que me tornara,
para ela, personagem comum, sem grandes vestígios. Repetida-
mente, fazia cálculos se se encontraria ou não em casa (esta, aliás,
a minha maior obsessão e fraqueza), e não posso negar que me
sentiria mais confiante e aliviado se tivesse tal garantia. Era o que
imploraria em silêncio. Mas para quê? De que me serviriam tais
certezas? Não é estranho que a dor de uma pessoa só encontre
alívio na de outra?!

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Os momentos felizes e as comoções devem ocupar sítios vizinhos
dentro de nosso cérebro, pois ambos se manifestam de maneira idêntica,
nos trazem reações orgânicas muito parecidas. É por esta razão que, nas
situações de transe intenso, o prazer e o pavor ficam ali, lado a lado,
se alternando em louca velocidade, cada um dardejando seus aguçados
efeitos na direção de domar o clima psicológico, como se fossem chuvas
de flechas de rumos opostos.

Sei que esta é matéria pueril, própria de quem ainda tem o ros-
to imberbe e coberto de espinhas; que estou caminhando sobre o
temerário fio da pieguice. Sei também que não é muito ‘literária’,
digamos assim, na concepção estética fin-de-siècle, muito em voga
em determinadas confrarias. E, principalmente, que corro riscos
de estar despertando a ira dos carrancudos e biliosos de pronti-
dão. Mas o que fazer? Jamais escrevo pensando em ser humano
algum, nunca levo em consideração as corriolas e as matilhas, não
me miro no séquito dos presunçosos e não tenho compromissos
outros além dos com a minha honestidade. Tudo o que achamos
certo assim deve ser firmado, a menos que venha a causar pade-
cimentos e mazelas em outros mortais. Além do mais, não com-
preendo por qual razão se deva temer tratar qualquer tema que
diga respeito aos dramas humanos. A gente não muda tanto com
o amadurecimento, não acredito que a experiência seja capaz de
trazer giros demais com a vida, de modo que, muito do que nos
ocorre na mocidade não está impedido de retornar, anos mais
tarde, como se a idade nos tirasse certos direitos.

O ideal seria que escrevesse uma espécie de “conto de fadas” para


adultos, que fizesse as pessoas sonharem, que lhes desse prazer e as
deixasse felizes. O mundo real é feito de pegadas e avarias, e é por
isso que urge inventar o prazer para acrescentar brisas ao imaginário.
Muitos já disseram algo parecido, e melhor, antes de mim. Gostaria
de ser lido, se um dia o fosse, por pessoas comuns, afetuosas e com-

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placentes. E sob fundo musical de Philip Glass. Ou Egberto Gis-
monti, se não peço muito.

Foi por esta época que comecei a pensar maduramente na rela-


ção entre os vícios e as paixões. Não sei se alguém já tratou antes do
tema, nunca li nada parecido, mas dentro de mim tal ideia aflorou
e se tornava cada vez mais insurgente. Gastei grande parte das mi-
nhas horas na reflexão. O que digo, em resumo, é que, nos dias que
se seguiam a cada um de nossos encontros, me sentia farto e pleno
(não no sentido de fastio, de asco, quero deixar claro); o que se po-
deria considerar como saciedade, na falta de termo mais acertado,
em que não sentia propriamente falta dela. Talvez fosse mais bem
compreendido se dissesse que estava como algum conviva, minutos
após copioso banquete, regado ao mais fino dos vinhos. Durava
a situação meia semana, ou pouco mais. Após essa distância, no
entanto, abria-se uma fase que equipararia à da abstinência, ao final
da qual, tomado pelos mais impetuosos e ardentes desejos, eu saía,
como um rendido, em desesperada busca por Cristine. Principal-
mente nos finais de semana. Sentia-me dominado por incontrolável
necessidade de vê-la, portando-me de maneira que em tudo se po-
deria considerar como doentia. Alguma substância, alguma molécu-
la, sei lá, do meu cérebro, estaria com seu estoque perigosamente
reduzido, de modo que minha fisiologia ficava de pernas para o ar,
só voltando a me sentir recuperado quando a tinha ao alcance das
vistas, ou quando escutava sua voz ao telefone. Eu pergunto: não é
o exato perfil de um viciado?
A propósito, recordo-me de uma passagem de Inês, em Escola
de Mulheres, de Molière, na qual ela se pergunta como é que se evita
aquilo que nos dá prazer. Como é que se evita aquilo que nos dá
prazer?, insisto eu.
Só sei que, tal qual na natureza, eu alternava instantes de tem-
pestades com outros de mansidão e de aragem. E comecei a sonhar
que Cristine, a qualquer hora, iria bater na porta de minha casa e,

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com aquele seu modo encolhido e ressabiado (que era como ence-
nava nas situações em que se sentia acuada – nas raras situações em
que se sentia acuada), permaneceria plantada diante de mim, meio
de banda, a beleza rústica, braços caídos, ombros caídos, mordis-
cando o lábio inferior, os cabelos volumosos, olhos admirados e
úmidos percorrendo devagar meu corpo de cima a baixo, e depois
saltando ora para uma, ora para outra de minhas pupilas.
Eu, pasmado e com as palavras aprisionadas, por nada deste
mundo deixaria de lhe abrir a porta, de lhe pegar pelas mãos e lhe
conduzir para dentro, com a mais suave convicção de que já havia
esquecido tudo, de já lhe haver perdoado antes mesmo do perdão
me ser solicitado, e o passado se dissolvia e se perdia nas evolu-
ções do espírito. E eram ausências e sonhos, segredos e latências...
Ela repetiria os mesmos gestos, ingressando na sala com passos
titubeantes, olhar desconfiado... Rastejaria junto à estante, roçan-
do as lombadas dos livros, fingindo que as lia, saltaria depois para
as gravuras das paredes, uma a uma, para, dali a pouco, virar-se na
minha direção, como cândida criança cheia de medo se volta para
o confessor, nos degraus da primeira eucaristia.
Também me serviria que o telefone tocasse, mesmo que fossem
altas horas, duas, três da madrugada, e, em seguida a um estilha-
ço de silêncio, ela murmurasse Sou eu... Queria apenas ouvir a
sua voz, desligando antes que eu tivesse tempo de dizer uma única
palavra, deixando-me engolido pela mais profunda perplexidade e
euforia que meus sentidos pudessem construir. Queria apenas que
ela me ligasse, nada mais.
Ou então me apressaria e impediria que desligasse e não se
sentisse humilhada por haver tomado a iniciativa. Eu enfiaria
um assunto qualquer que a minha cabeça desvairada conseguisse
criar... Os segundos oferecem oportunidades e a gente termina se
surpreendendo com a inspiração que acaba brotando, se surpre-
endendo positivamente (às vezes negativamente). Nosso cérebro
deixa as ideias brotarem qual água na fonte, que pode vir límpida

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ou não, boa de beber ou não, e aí depois nos vemos ridículos
ou virtuosos. Ficava espreitando o telefone, explorando a espaços
aquele aparelho meio brutal, de modelo bastante antigo, ainda de
disco, aguardando que chamasse (aumentei ao máximo o volume
da estridente campainha, para evitar não me despertar na hora em
que tocasse). Mas ela não veio, nem telefonou.
Eu ainda não sabia, porém, estava por conhecer outra Cristine,
toda feita de sismos e vendavais. De fato, ela agia como os roche-
dos, que, rígidos e inquebrantáveis, recebem incólumes os açoites
do mar, e também como as próprias ondas, a ressaca. Enfim, al-
guém de odores e de humores, reagindo da maneira mais ines-
perada possível, de modo que tornava-se impossível prever como
se conduziria. Seu comportamento oscilava tremendamente, duas
personalidades distintas pareciam habitá-la, uma diferente da outra.
E não é tudo: em certas ocasiões, ela se mostrava o oposto
do que era, em verdade, o contrário do que estava premeditando,
creio que com o intuito de manter em sigilo o que tinha em mente.
Desse ponto de vista, talvez fosse menos o mar que a tempestade;
menos a brisa que os furacões.
Suas inesgotáveis idas e vindas, por exemplo, sempre foram
assunto de impossível compreensão para a minha inteligência. Tal-
vez não para outra pessoa, que assistisse de certa distância, porém,
para quem se encontra tão intensamente mergulhado nos aconteci-
mentos... O que digo é que os sucessivos retornos de Cristine (uma
vez que as rupturas bem compreendo) não tinham explicação.
Não tenho dúvidas de que ela me dedicava considerável im-
pulso afetivo: suas reações corporais deixavam isto bem estam-
pado. Veja como bate meu coração, me dizia, puxando minha
mão para o seu seio esquerdo. Eu sentia os solavancos do seu
peito. Às vezes, me guiava na direção da umidade dos seus pelos
secretos, sob a mirada mais impudente e impetuosa que se pode
desenhar. Mas eram exatamente essas suas atitudes que me faziam
incuravelmente pensar que já possuísse enorme perícia no conví-

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vio com homens. E digo homens experientes, de certa idade; não
estou me referindo àqueles fedelhos que a cercavam na escola.
Muitas vezes assim a enxergava e talvez aí esteja a razão de eu,
naquelas tristes circunstâncias, passar a procurar, no seu invólu-
cro, por sinais de perfídia e ardileza. Era o caso de dizer que me
encontrava mergulhado num embate quase diário entre o que meu
prazer exigia e o que meus sentidos enxergavam. Enfim, minha
cabeça voava e vez ou outra sofria lá os seus assaltos. Aí está. Eu
ainda não sabia, mas muitos rios haveria ainda de cruzar.

As flores dos ipês amarelos


Por alguma razão, eu percebia a natureza com nitidez maior, com
intensidade de luzes e de cores quase alucinantes, quase esquizo-
tímicas; intensamente o verde, intensamente o amarelo..., o ver-
melho... Cheio de faiscante sensação de plenitude: as expressões
das pessoas, o desenho dos bloquetes das calçadas, o que restava
da matinha na encosta do morro, ipês floridos, um aqui, outro
acolá, pinceladas púrpuras e douradas num quadro impressionista
de fundo verde cambiante. A encosta que subia até as torres de
telefonia celular, a fileira de bambus como penacho, na corcova
do morro, as copas excelsas dos angelins, dos oitis, lá atrás, na
avenida, com folhagem nova, que brotara para a estação das águas.
Havia chovido, uma chuva fininha, mas que durou mais de hora e
serviu inclusive para apagar a poeira acumulada com a prolongada
estiagem, e de tornar mais ameno o ar respirado.
Fachadas de mansões, escadarias, balaustradas, alpendres, jar-
dins, paredes lisas e vernizes, gramados rompidos por palmeiras
exóticas, as heras que surdiam nos muros.
Iludia-me, vejam só, de que poderia até mesmo adivinhar os
arquitetos que teriam desenhado cada uma delas – Aldary Toledo...
Bolonha... Niemeyer... –, nomes que aprendera numa publicação
que fazia o levantamento arquitetônico da cidade. Iludia-me, sa-

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bia lá com quais conhecimentos de edificações. Os saguões, salas
de estar, vidraças frias e escuras, suntuosos cortinados em prumo,
detrás dos quais incutia aposentos enormes, mobiliário confortabi-
líssimo, poltronas de desenhos curiosíssimos, cadeiras de balanço,
sofás, dunquerques, mesas imensas; fantasmas refugiados da rua
transparente e amena.
Um mosaico sinuoso e alongado, que lembrava a figura de
um peixe dobrando-se na superfície da água, ocupando a facha-
da principal da mansão dos Contreras, uns uruguaios donos da
fábrica de tecidos, a mulher, artista plástica que, a cada três ou
quatro meses, alugava espaços para expor seus quadros – flores
exuberantes de cores primárias, marinhas tradicionalíssimas, natu-
rezas-mortas batidas, cândidas paisagens, retratos meio busto de
pessoas da alta classe –, verdadeiras obras-primas do mau gosto
e duríssimo de um dia dependurar uma delas na parede de minha
casa. Duríssimo!
Tudo, enfim, que em décadas me escapou do reparo, desde
quando eu, um molecote muito magro e dono de um rosto que me
causava profunda insatisfação (era por demais anguloso e cheio de
espinhas), desde os tempos em que eu e mais meia dúzia vivíamos
espatifando lâmpadas nos postes da avenida – embora eu próprio
tivesse a pontaria meio fora dos eixos, o que me fazia sentir-me
diminuído no meio da turma.
Pensando nisso agora, sinto um misto de vergonha e de leve
condescendência; no meio daquela corriola, com doze, quatorze
anos (de todos, o mais acanhado, o mais “fraco” e, afinal de con-
tas, nem achando muita graça naquilo), estourando lâmpada por
lâmpada, tomado pelo mais vivo terror de que, a qualquer mo-
mento, o carro da concessionária de energia elétrica, ou da própria
polícia, despontaria na esquina da Humberto Mauro com a Astol-
fo Dutra, em nosso encalço. Contudo, ainda assim, intimamente
forçado a prosseguir naquilo, sem ter a mínima noção por que o
fazia e o que esperava alcançar, além daquele estrondo do vidro se

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partindo, do vácuo que se rompia e dos cacos que se espalhavam
no piso de saibro ou de paralelepípedos – não me lembro com
certeza como era o chão.
Eu, como dizia, ia sem nenhuma pressa, desfrutando a paisa-
gem, abandonado em pensamentos órfãos e leves, a mente des-
cansando, vazia, o burburinho tranquilo da cidade despertando,
ônibus de rua despejando estudantes no fim da avenida, um ou
outro carro, a passarinhada atrevida que parecia habitar as ruas, os
galhos dos oitis, dos flamboaiãs – fertilidade dos pardais e melros
e tico-ticos. Não me recordo de ter feito referência antes, mas
quase sempre percorria o trajeto para o colégio pelo lado de lá
do córrego, na pista em sentido ao centro da cidade, exatamente
para evitar que algum professor que passasse de carro se sentisse
na obrigação de me dar carona. Seguindo o mesmo raciocínio, na
volta para casa pegava a pista de cá.
Lembro-me inclusive de que, naquele dia (ia me esquecendo
de dizer que estávamos numa quarta-feira, dezesseis de setembro,
pouco mais de semana após o episódio do comício na Estação), fui
alcançado por um indivíduo bem apessoado, que me tratou pelo
nome, com tom mesureiro e respeitoso, e me chamou de profes-
sor, apesar de não tê-lo reconhecido. Um senhor grisalho, próximo
dos sessenta anos, porém com a pele de rosto surpreendentemente
brilhosa e quase sem rugas. Metido num short azul vivo, camiseta
branca com uns dizeres em inglês que não pude traduzir, tênis caro
e meia soquete, fazia sua caminhada matinal, indo e voltando pelo
anel da avenida. Discorria de modo exaltado e alegre, gesticulava
em demasia, deixando transparecer energia e viço muito superiores
ao de se esperar, se considerássemos sua idade real.
Caminhamos uns cento e cinquenta metros juntos, calculo, até
que sua conversa – acerca de um vendaval que teria feito estragos
não sei onde – foi interrompida por incontido acesso de tosse, jus-
tamente na altura da pontezinha que cruza o córrego, na metade da
avenida, e que liga as duas pistas. Ele estancou, procurando con-

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trolar a tosse, enquanto eu aguardava a certa distância, sem saber o
que fazer. Como a tosse não parecia querer cessar, ele acenou que
seguisse em frente e atravessou a ponte, sem ainda controlar os es-
forços intensos do pulmão, tomando a direção contrária. De sorte
que permaneci ali, por uns minutinhos, fixado, de início, na sua figu-
ra que se afastava, depois, hipnoticamente na corredeira do córrego,
que, devido à chuva, encontrava-se um pouquinho mais cheio.
De fato, olhava era para dentro de mim, para as sombras inte-
riores, para os grandes espaços da inexistência e da fantasia, de apa-
gamento de todas as atividades psíquicas... Imerso nas estranhas e
oníricas ondas de suave letargia (o mundo real é feito de macicez e
de seixos, e é por isso que temos de inventar o prazer: para acres-
centar brisas e ficção). Até o silêncio ser estilhaçado por estrondo-
sas gargalhadas, às minhas costas, que partiram de um grupo de
estudantes – aquela teatralidade nos gestos, típica dos que ainda
não têm com o que se ocupar na vida, que, porém, cessou tão logo
passaram por mim – eram alunos da oitava série. Conversavam,
acredito, acerca de uma casa de jogos eletrônicos, inaugurada não
sei onde, e me remiraram com estranha curiosidade.
Dois deles me cumprimentaram, justamente os que haviam
tido aulas particulares comigo, no semestre anterior, apesar de um
terceiro, para o qual também dei aulas, ter desviado o olhar noutra
direção. Voltei a caminhar, estudando suas silhuetas por detrás.
Deixaram-me a forte e desalentadora sensação de que se tratavam
de uns pobres-diabos, que não pareciam saber nem um pouco o
que esperavam da vida. Tentei me enxergar no lugar deles, des-
cobrir como eu teria sido, na idade deles, um menino que atirava
pedras nos pratos dos postes; mas foi em vão. Tanto tempo havia
passado que chegava a parecer uma eternidade.
Penso que a idade traz coisas boas, mas, também o esqueci-
mento, o imperioso esquecimento, que, em certo sentido, é tam-
bém remédio: acama o insanável, a invalidez. O limo do tempo
faz suas lacunas e adensa com seus pesadelos, os quais a mente

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humana, até mesmo para se proteger, trata de pôr debaixo dos ta-
petes para, mais tarde, serem dali removidos por zelosa camareira,
no momento em que estejamos fora, e posteriormente colocados
nas calçadas, de onde serão retirados pelos carregadores dos lixos
de nossas vidas.

Sabe, Vicente; ontem vi Cristine. Estava com uma pessoa


que não conheço. Aquela cara solerte e maliciosa, o riso sardô-
nico que parecia querer se ocultar por detrás do imenso bigode
espinhado. E uns indefinidos espasmos no rosto – infelizmente,
digo eu, um semblante que esbanjava saúde e com previsão de
vida para muito tempo.
Cristine já sabe que você está aqui?, quando nos deparamos,
na curva da rampa, num momento em que não se esperava que
nem eu, nem ele – e muito menos Cris – estivéssemos por ali (eu
havia retornado ao colégio, lá pelas duas da tarde, em desesperada
busca de um compêndio que julgava ter esquecido em algum lugar,
mas que depois acabei encontrando-o caído atrás da poltrona).
Não a vi, naquele dia, diga-se de passagem, nem sei se ela se
encontrava mesmo na escola, o que era pouquíssimo provável. Mais
que depressa procurei dali me afastar, sem realizar procura mais
minuciosa pelo tal compêndio, até mesmo para não dar chance a
que, acaso Cris estivesse realmente por lá, nos encontrássemos sob
as vistas do Laurindo, deixando com a faxineira da tarde a incum-
bência de revistar as salas por mim.
As formas do dito cujo, por estranho e absurdo que pare-
ça, nos últimos metros da avenida, começaram, dentro de mim, a
duelar com as de Cristine, enveredando-me por tortuosas e aço-
radas travessias da consciência, por planos e cenas inquietantes e
surdas... Elas, as formas, se fundiam e se excluíam, se assomavam
e se encobriam, em inacreditáveis combinações, chegando a re-
sultar em figuras híbridas e estranhíssimas, enquanto procurava
resistir àquela vaga de criações desagradáveis geradas pelo meu es-

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pírito, àquelas desordenadas vibrações dos sentidos. Meu cérebro
emperrava. Laurindo: sujeitinho ridículo e digno de menosprezo
(não obstante considerar-se, e ser considerado pelos seus asse-
clas e cortesãos, um gênio), cujo prazer mais secreto talvez seja
o de desejar que todos expressem nitidamente seus pensamentos
desde, é claro, que não possam ser mais bem aproveitados se lhe
fossem segredados ao ouvido.

Vinte para as sete, no meu relógio de pulso. Diminuí ainda


mais os passos; decerto alguns professores já teriam chegado e es-
tariam tagarelando nas áreas comuns sobre as trivialidades da vida
(quando não dando unhadas em um ou outro colega ausente).
Tentei buscar pela matinha, que poderia me servir de refreamento
e brecha, mas ela ficara para trás (eu começava a subida da coli-
na). Placas do muro pichadas, termos e desenhos obscenos, de-
clarações de amor pueris, os moirões, de extremidades superiores
viradas para fora e atravessadas por arame farpado, que o diretor
mandara colocar, há uns pares de anos, para cercar o colégio, pois
temia que fôssemos “invadidos por traficantes”, apesar de não
existir, de fato, nenhum controle de quem chegava ou saía, na
subida do morro. Restaram-me as cabiúnas, os fícus, as palmeiras-
imperiais, que pensavam uma por cima da outra, no pátio. E o
canto das cigarras.
Veio-me de novo o episódio com o professor Sílvio Pena. Re-
cordei-me de nossa conversa, de suas expressões – que, bem pensa-
do, não me pareceram ferinas –, tudo clarinho. Ele foi, sem margem
a dúvidas, das figuras mais discretas e inofensivas, não aparentando,
em nenhum momento, a menor curiosidade pelos desdobramentos
de minha vida. É bom sujeito!
E aí chego ao pátio, que ainda se encontrava um tanto vazio –
acredito que nem a décima parte dos alunos havia chegado. Uma
luz serena, de céu lavado e confortante, impregnada de silêncio e
de frescor, desenhava no chão um rendilhado de folhas e galhos,

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além de minha própria sombra, que ia adiante. Seguia meu vul-
to, meus gestos, cabisbaixo, enquanto atravessava até a portaria,
trinta, quarenta metros de piso de pedras quadradas e superfície
irregular, formando, no espírito, o ardente desejo de que aquele
silêncio se prolongasse infinitamente; como seria extraordinário
se não houvesse a intromissão de tantos gritos, se a vida pudesse
ser reconstruída, tornando-se mais mansa e pacata!
Quando entrei no vão que dá acesso à portaria e ergui a cabe-
ça, quem lá se encontrava? ELA; óculos de lentes escuras, sorriso
perdurável nos lábios. O ziziar das cigarras, impregnando a imen-
sidão da natureza numa imensa sinfonia, que, de tão contínua,
parecia nem existir.

O poço
Certa feita, ia um andarilho por estrada desértica, quando defron-
tou com um seixo, perfeitamente arredondado e liso, o qual, pelo
seu brilho e polidez, de pronto lhe atraiu a atenção.
O passante, ao fim de uns momentinhos de muda contempla-
ção, agachou-se e o apanhou, seguindo depois em sua peregrina-
ção, entretendo-se de arremessá-lo da mão direita para a esquerda,
e vice-versa; recreava-se com seu peso, com aquele pendular, como
alguém com uma laranja esperando ser descascada.
Vez por outra, sustava a marcha e expunha a pedra diante dos
seus olhos, examinando em pormenores sua superfície luzidia e
amarronzada, salpicada de diminutos cristaizinhos, mil pequeninos
detalhes de cor, forma, relevo, enquanto especulava, como um fraco
em geologia, a natureza daquela rocha, as substâncias que constitui-
riam cada fragmento da rocha. Fosse o que fosse, tinha diante de si
algo admirável e extraordinário.
Foi pegando estrada. Em dado momento, no entanto, tomado
de ligeiro fastio, involutariamente lançou a pedra dentro de uma
cisterna, à margem da estrada. Na fração de segundo em que o sei-

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xo submergia, seguia-o com as vistas, até ela submergir na lama,
deixando visível tão somente uma pequena calota, que passou a re-
verberar no reflexo do sol, perturbando-se na refração quando as
pontas dos seus cabelos ou então seu nariz tocavam a superfície do
poço, ou quando uma brisa imperceptível vinha marolar de leve a
lâmina d’água.
O viajante fitava aquela imagem trêmula, movediça, e era quase
como se defrontasse com um objeto sobrenatural, ou que tivesse
tintas de sonho antigo, de mundos diversos do palpável. Como pu-
dera, por desapreço, lançá-la fora?, se perguntava. Ela, lá nas pro-
fundezas, mágica e enigmática, dançando com o ondular da água.
O imaginário fez lhe brotar o pensamento de lançar outra pe-
drinha ao seu encontro, esta agora uma brita sem graça e cheia
de arestas, que se acha em qualquer canto. Atirou-a, quer dizer,
largou-a simplesmente, quando julgou que ocupavam o mesmo
prumo, porém esta última passou a mais de palmo de distância, e
também se afundou no barro do poço.
Despertou-lhe então irresistível desejo de baixar ao poço, de
buscar o seixo lá onde se encontrava, para que pudesse voltar a
tê-lo nas mãos e apalpar o seu lustre, e acrobaticamente lançá-la
de uma mão à outra, num malabarismo que lhe deixava a estranha
sensação de indulgência. E tal aspiração se acendeu, apesar de algo
em seu interior sinalizar pela insanidade do plano. A curiosidade e
o espírito, o desejo e o instinto, debatiam-se dentro dele, sem que
claramente um dos lados prevalecesse sobre o outro.
Passou a estudar um jeito de descer as manilhas. Contou: uma,
duas, três..., seis manilhas cobertas de água. Três metros de fundu-
ra, calculou. Fundo demais... Horrorizou-se ao imaginar-se entala-
do no tubo de concreto, invenção que lhe trouxe terrível sensação
de sufocamento. Sentiu-se como uma criança, prestes a se preci-
pitar, álgida descarga elétrica perpassando seu corpo (não fazia o
menor sentido arriscar-se tanto, expor-se por tão pouca coisa).
Cuidadosamente, aproximou-se de novo da borda da cisterna.

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O espelho d’água se amainava, até voltar a refletir o céu azul, o
céu azul e nuvens brancas, que pareciam imóveis e adormecidas.
Mas era tudo ilusão, as nuvens se arredavam, se arredavam e mui-
to, teve certeza, quando ergueu a cabeça e fixou o poente longa,
longa, longamente.

Tânatos
Rajada de vento por entre os troncos das sibipirunas, dos fícus
enormes, dos prédios que circundam a praça, trocando de lugar
as folhas, que, durante a madrugada, os varredores cuidariam de ir
acumulando nas sarjetas, os troncos dos fícus que, na minha me-
mória, resistem imutáveis, as mesmas frondes, o mesmo diâmetro
dos caules, troncos franzidos e encarquilhados, cobertos de mus-
gos e heras e barbas-de-velho, afigurando-se como se em todo o
tempo estiveram naquele lugar, desde que o mundo é mundo, e que
seu plantio não tenha sido obra da civilização, oitenta, cem anos
atrás, os homens só vieram mais tarde e circundaram com bancos
as suas raízes... Os oitis, ninhos para a passarada quando cai a noite,
pardais, tico-ticos, oitis que acantoam e camuflam as cigarras, em
ignorada estação do ano, oitis de frutinhos miúdos que enlameiam
os capôs dos carros e o piso de pedras portuguesas, deixando neles
manchas horríveis, parecidas com excrementos dos pássaros...
Pouco mais de meio-dia, o comércio fechando as portas, e eu,
coisa extraordinária, sentado à toa, ligeiramente desconcertado,
sob o coreto – mais para desafogar o espírito. Há coisas tão natu-
rais na vida – como o simples fato de se tomar assento num banco
de praça – que não deveriam merecer ponderações maiores, mas
que se tornam estranhas e podem parecer um disparate para quem
não está acostumado com elas, fazendo-nos sentir ridículos.
Pois fui pôr a calva à mostra justamente sentando-me sobre o
parapeito do coreto, cuja inclinação extrema parece querer desa-
fiar a lei da gravidade – imagino o quanto tenha sido difícil para

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um mestre de obras construir a armação que lhe conferiu aquele
formato. Mas, apesar do desconcerto e da inquietude, concedia-
me o direito de permanecer por ali, desincumbido da vida, obser-
vando as pessoas que se desvaliam no quadrilátero da praça, os
motoristas de táxi, um deles, sorriso complacente, ajeitava sem-
piternamente a calça nos internos das coxas, nas partes, no que
parecia um vício impudente e obsceno, um grupo de aposentados,
diante da banca de jornal, um pastor que, mesmo diante da mais
perfeita indiferença dos presentes, aos gritos e gesticulando em
demasia, fazia pregações todos os sábados, pela manhã.
Um carro entrou pela Tenente Fortunato, azoinando uma mú-
sica ensurdecedora; deu voltas na praça, duas ou três, e depois desa-
pareceu. Desapareceu, como desapareciam em mim a consciência,
o espaço, o engraxate que me lustrava os sapatos...

O engenheiro despertou, tomado de sobressaltos; ruídos de botas


vindos do corredor. E, como um raio, deu um salto do catre (que cheira-
va horrivelmente a baratas e percevejos), pôs-se de pé, mãos engancha-
das nas costas, tronco inclinado para diante, feito examinasse fixamente
um ponto na parede escura e imunda. Fingia estar na mesma posição
há horas, e nem ter se dado conta da chegada dos...

... como se desfaz o plano de focagem, e a visão de mundo


perde então a nitidez, o cérebro, vazio e iludido, se descarrega dos
acontecimentos da vida real para devanear com o que há de mais
volátil, cedendo lugar a uma contemplação da insubsistência, das
vacuidades absolutas do pensamento, que passa então a flutuar sem
rédeas, sem peso. Quando o que mais nos apetece é permanecer
indefinidamente submerso num mundo em tudo assemelhado ao
dos sonhos e das ilusões.

Viriam interrogá-lo, estava certo, perdera a conta do número de


vezes em que fora acordado a qualquer hora para os interrogatórios. In-

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clusive já buscara engenhar um modo de se proteger, que lhe assentasse
como uma espécie de armadura emocional, até um milagre ou provi-
dência o vir dali resgatar, milagre este que não conseguia conceber sob
que forma surdiria, nem de onde partiria, não, não tinha a mínima
ideia. O que lhe restava para esquivar-se da loucura e conter as terríveis
aflições que lhe tomavam conta durante as sessões de tortura. Contudo,
nenhum estratagema lhe viera em socorro. Via a distância do tempo ir
se arrastando e principiava a lhe fugir a capacidade de refletir sobre
o que lhe reservava o destino, os longes brumosos do futuro. Ou então
o espírito simplesmente rejeitava tal tarefa, recusava-se a elaborá-la,
eximia-se, exatamente porque não encontrava a saída, a fuga... Um
sonho de louco, aquelas paredes túmidas e infrangíveis.

... porque o nada-ser é refrigério para o cérebro, válvula de des-


pressurização, enquanto o pensar é fonte de arquejos e nevoeiros.
Muito arrastamos que não tem serventia e devia ser deixado no
caminho, deixado feito um seixo, o qual, por mais tentador, nem
sempre justifica a providência de nos abaixarmos para apanhá-lo,
não é incomum que, logo adiante, tomados de enfaro, nos damos
conta da falta de sentido de ficarmos transportando pedras falsas
pelas geografias todas e então a lançamos fora, é a lógica que ultra-
passa até mesmo nosso arbítrio e nossa capacidade de entendimen-
to, e deixamos correr o mundo, pois o maior engano é acreditar
que podemos modificá-lo a valer; muito mais fácil é que ele nos
transfigure até o ponto de nos tornarmos irreconhecíveis.

O prisioneiro, cabelos desgrenhados e castanhos, metro e sessenta


de altura, roupa amarrotada, barba de muitos dias, míope, perdera
os óculos no instante em que, detido, algemado e encapuzado, descia
as escadas do prédio antigo, de quatro andares, em Higienópolis, onde
alugara um quarto e sala – o elevador de portas sanfonadas não fun-
cionava. Os órgãos de segurança estouraram um “aparelho”, no andar
abaixo. Nunca, nem uma vez sequer havia visto aquela porta aberta,

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nem o menor sinal de que ali residisse alguém. Acreditava inclusive
que estivesse desocupado, aliás não conhecia nenhum morador do pré-
dio, com exceção do turco do primeiro andar, dono de lojas de móveis
usados, e sua mulher que, sempre de mau humor, levava e buscava as
crianças na escola, de manhã e à tarde, descendo e subindo a escada
arrastando as crianças com violência desmesurada e inconcebível.
Dentro da solitária, como um tique, mordiscava nervosamente o
lábio inferior com os dentes de cima. Olhem aqui, olhem aqui, apon-
tando para o ponto fixo da parede, virando-se discretamente de banda.
Uma aranha... uma aranhazinha... No rosto, olhos alucinados e
que pouco se moviam.
O de bigode, sobrancelhas espessas e queixada de buldogue espan-
tado – quase uma réplica dos facínoras nos filmes de suspense, década
de quarenta –, plantado na porta da cela, estufava as bochechas com a
língua, como se as lavasse por dentro, sacudindo, obsessiva e irritante-
mente, um molho de chaves nos bolsos.
Cochichou no ouvido do negro grandão e feroz, que, por sua vez, no
meio do cubículo, resmungou algo por entre os dentes e, pé ante pé, se
aproximou do engenheiro, esticando o pescoço e firmando a vista na mes-
ma direção (nada pôde enxergar, é claro). Ele voltou-se para o de bigode e
pescoço curto, limitando-se a erguer os ombros, abrir as mãos espalmadas
e arquear as sobrancelhas, numa mímica de incompreensão ou impaci-
ência, o engenheiro, imóvel e boquiaberto, maxilar inferior parecendo
desarticulado do resto da face transtornada, o braço suspenso no ar....
... porquanto, no fim, só levamos mesmo em conta aquilo que
nunca nos pertenceu, ou então o que já foi nosso e deixamos fugir
e, depois da perda, a consciência ou a fantasia, uma das duas, ou
ambas, a um só tempo, reconhecem a relevância do que nunca
deveríamos nos ter privado. Esta é que é lógica maior, coisa que se
sabe desde Platão, há mais de dois mil anos, portanto, que ninguém
pode dizer que deixou de sentir na carne, pelo menos uma vez;

O que que tem aí?, o de bigodão e cara desagradável enterrada no

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tronco. O engenheiro não respondeu de pronto; ao contrário, até mesmo pare-
ceu fixar, com ares de incompreensão e desatino, o vulto na porta da solitária,
como se fosse surdo, ou não temesse a sua presença, o que fez subir a ira do
homem de bigode, o qual repetiu a pergunta, numa inflexão de voz terrivel-
mente dura, deixando de balançar as chaves no bolso, dedos grossos e peludos,
a unha do indicador futicando entre os incisivos de cima, dedos que associava
com a ideia de asfixia e sevícias.
Uma aranha..., respondeu, num tom seguro, contudo delirante. E fal-
tando uma perninha. Olhem, completou, mudando discretamente a po-
sição da cabeça, como se procurasse o melhor ângulo de visualização, em meio
à penumbra do ambiente (ainda não sabia, mas o próprio cardeal-arcebispo
havia intercedido por ele, e até o Alto-comando do Exército passou a exigir
notícias de seu paradeiro)...

Porque é lei universal, da qual ninguém escapa, e o melhor é


encerrar-se com véus, recriar utopias e idílios, entende-se que sim,
disso é feita a vida aprazível e tranquila, muito diversa da do coti-
diano, que só a alguns poucos premia e traz conforto, só a alguns
poucos, à espécie humana está destinado o mover-se em sinuosi-
dades e às cegas, num itinerário em que ela, a humanidade, acredita
como acertado, mas que, ao contrário, encontra-se apinhado de
sofrimentos, o que requer aplicação e que, por ruína, ao fim torna-
se tarefa sobre-humana (devo dizer subumana?), impossível de ser
completada, é a conclusão a que se pode chegar.
O homem troncudo e de bigode, no mais profundo indiferentismo,
e tomando como alvo o corpo do prisioneiro, reabriu a porta da cela
com o calcanhar, num lento movimento circular. Depois, assoou o
nariz ali mesmo no chão e, num estalido de língua, sinalizou para o
negro grandão para irem-se embora.
O engenheiro conteve os menores sinais de vida; a garganta insu-
portavelmente seca. Fecharam a solitária atrás de si e, na noite silen-
ciosa (noite?), os passos se afastaram no corredor.
Caramba! No meu modo de vista, este cara é pancadão, ain-

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da ouviu, antes de deixar o corpo se afundar silenciosamente no catre.
Bem encolhido, abraçou as pernas fortemente, queixo fincado nos joe-
lhos, olhos perdidos numa ambiência de furnas e senzalas. Sua visão
se confundia e passava a não mais vislumbrar o apagado mórbido das
paredes. Tentou calcular o tempo em que permaneceram lá dentro –
dez minutos? Cinco? Há muito perdera a noção de tempo, a faculdade
de calcular o curso das horas e dos dias.
Mudou de posição, descansando a cabeça na concha da mão. O que
teriam vindo fazer ali, se nada quiseram lhe arrancar, daquela vez?
Seu tronco e braços percorridos por ondas de calafrios e formigações.
Ficou na mesma posição, pensando um pensamento entrenublado,
que se volatizava e, estranhamente, tomava como realidade a fanta-
sia, e que durou todo o tempo do silêncio, só interrompido pelo rugido
dum motor dando partida – sempre pareciam chegar ou sair a toda
pressa, sempre, sempre. E se deu por feliz, se deu por feliz por ter nos
tímpanos aquele trovão do carro, e não o espocar de projéteis simulan-
do execuções, gritos que se ensaiavam e cessavam, alarmes berrando
ordens, estampidos emergindo enquanto dormia e que, de tão repeti-
tivos, acreditava até que eram produzidos por algum sistema de som.
Ou então alguém raspando de leve do outro lado da parede – soube
se tratar de um frei dominicano e que também respondia, quando ele
próprio, o engenheiro, fazia o mesmo de seu lado.

O retumbo surdo da escova de sapato de encontro à caixa de


engraxar trouxe-me de novo à tona – o sinal para que trocasse de
pé. Com suas sobrancelhas finas e arqueadas, sorriso zombeteiro, o
molecote, cerca de quinze anos, mulato e cabelos aloirados artificial-
mente, parecia interrogar meu rosto (ou se divertia com meu pro-
longado entorpecimento). Trocou de joelhos no degrau do coreto e
reacomodou o corpo, quando me encontrou saído do espírito.
Revirava o interior de sua caixeta, retirando lá de dentro uma
tralha de objetos: um canivete de duas lâminas, cabo vermelho es-
tropiado, um chuço, um apito sujo de graxa de sapato, um gancho

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metálico, uma bolsinha de náilon, onde, pude avaliar, depositava
as moedas, e um pé de chinelo de dedo (não sei se o outro ficou
lá dentro). De tempos em tempos circungirava, órbitas ariscas e
desconfiadas, todo o perímetro da praça, parecendo controlar os
movimentos de dois outros engraxates, um deles bem pequenini-
nho e que mal podia suportar o peso de sua caixa.
O céu limpo, azul claro e fresco, sol se espraiando no retângu-
lo da praça, como só se é possível encontrar nos meses de abril.
O mesmo vento de antes, porém mais brando, incitando os ciscos
do chão, o leve ondular das folhas miúdas das árvores e a indolên-
cia no rosto das pessoas. Um velho muito magro, de barba rala e
descuidada, sentado a dois ou três metros de mim, pernas abertas,
fumava, meditabundo, olhar perdido na fronteira dos céus com
os telhados. Fiquei procurando adivinhar o que lhe ia por dentro,
procurando dissuadir-me de que a sensaboria revelada em seu ros-
to não durasse todos os seus momentos, não fosse eterna e que
conseguia ter na vida instantes de aprazimento.
O engraxate retocou o salto do sapato e acertava o brilho final
com um pano escuro e ensebado. Havia, afinal de contas, consegui-
do arrancar um efeito quase impensável daquele couro “nunca dan-
tes navegado”; isso fez por brotar em mim uma ponta de admiração
por aquele torso esquelético recurvado sobre minha perna, e que
febrilmente se agitava na circunferência do calçado. Até despontar a
imagem do canivete e do chuço sobre o degrau, que veio para cons-
purcar a imagem fraterna e afetuosa que dele construí, demolir de
vez uma personificação de desamparo e humildade, e deflagrar, no
mais fundo de mim, ligeira representação de apreensão e até mes-
mo de perturbadora hostilidade, apesar de, no meu instinto, isso
me causar ligeiro assombro. Tais situações, analisadas friamente, não
deixam de ser alarmantes. Não deixa de ser espantoso que um ho-
mem como eu, de quarenta e seis anos, quase quarenta e sete, sinta-
se alarmado diante do que se poderia ainda considerar como uma
criança; contudo, o fato é que todos somos prisioneiros do medo

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e da insegurança e, a seguir desta maneira, é de se perguntar como
estará a humanidade daqui a meio século... Tinha aparência tão de-
sagradável... Nos primeiros minutos, ele havia até tentado entremear
conversa, Aquele moleque ali, ó, tá vendo?, e apontou para o
pequenininho, que se atrapalhava todo arrastando a sua caixa, abre
carro sem precisar de chave. E como é que você sabe disso?,
perguntei, incrédulo e não levando muito a sério a advertência. Se-
mana passada mesmo um moço de fora tinha fechado o carro
e esquecido a chave lá dentro, e ele conseguiu abrir com um
araminho que tem dentro da caixa. Só pediu para ninguém fi-
car vendo como ele fazia, não queria que ninguém visse, redar-
guiu, sem praticamente interromper sua ginástica. E abriu mesmo,
concluiu, depois de haver parecido perder o fio da conversa.
Num misto de intimidação e resguardo, não comentei nada,
deixei o assunto morrer, contudo a verdade é que minha curiosida-
de se mantinha acesa, em especial pelo fato de o tal menino ter se
aproximado e ficado assim meio de lado, espreitando o serviço. Eu
não podia, de jeito nenhum, enxergar, naquela figurinha, esperteza
e perícia necessárias para tal feito, era inconcebível, a vida ensina,
a vida escola, mas não com velocidade tão grande. Ele estendeu a
mão e entregou uma guimba de cigarro para o meu engraxate, que,
sem dizer palavra, guardou-a no bolso de trás da bermuda.
Aquela cena fez com que me recordasse da mulher decrépita e
seus três filhos, que havia encontrado pelas ruas, tempos atrás. Eu
tratava de enxergar, naquela pequenina criatura, o maiorzinho dos
meninos, que o destino colocou novamente diante de mim. Con-
tudo, a verdade é que não havia os mínimos traços de semelhança
entre eles, conclusão que me trouxe certo afago, por estranho que
isso possa parecer, uma vez que não é lógico supor que restasse
menos pensativo só pelo fato de descobrir que aquele menino
não era o mesmo que se arrastava atrás de sua mãe, que diferença
isso fazia?, afinal nada desmentia que o futuro dos dois não seria
diverso. Além do mais, minha angústia não soluciona a dor do

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mundo, piedade não imuniza contra o mal, não é recurso contra as
mazelas alheias e, a meu ver, muitas vezes, para nos pouparmos de
sofrimentos, cruzamos os braços diante da miséria humana, mu-
damos de contemplação, pois senão, ao invés de trazer solução,
seremos uma criatura a mais a padecer. Com certa frequência, o
nada ser e o nada saber acabam servindo de lenitivo, são poções
que nos vacinam contra a loucura e representam elevação a ca-
pacidade de abstração, o alheamento, a fantasia. Eu penso assim.
O engraxate ajeitava seus apetrechos na caixa, o canivete, o pé
de chinelo. As luzes do poste no meio da praça, por um defeito qual-
quer, estavam acesas, mas acontecia de piscarem fracas e intermiten-
temente, o que, junto com a claridade do dia, dava estranho efeito
acobreado. Mergulhando na mais profunda preguiça cerebral, e mui-
to mais devido a um estado de alheamento do que a qualquer forma
de sensação agradável, fui me deixando por ali, não importando tan-
to se parecesse um vadio, um desvalido, embora a todo tempo ca-
tasse, nas adjacências, reações de reprovação ao meu procedimento.
E, por razões inteiramente desconhecidas, veio-me pela pri-
meira vez à tona o sonho que tivera à noite e que me deixou com a
impressão de haver durado toda a madrugada: nele, compreendia
que as crianças nasciam dentro de açudes, envoltas em sacos com
a opacidade de membranas amnióticas ressecadas, e que chegara a
hora de Lucas vir ao mundo. Pus-me aflitivamente a esgotar reser-
vatórios, que se sucediam, uns após outros, numa várzea enorme,
a fim de encontrar a figura que me subira à consciência como se
chamando Lucas e que seria um filho meu.
No último dos açudes, ao se completar o esvaziamento, dei
com um cubículo, uma espécie de banheiro ou vestiário, paredes
revestidas até o teto por nata de cimento, absurdamente enxuto e
limpo, porém úmido e sombrio, como se todos os dias fosse lavado.
Sem nenhum vestígio da lama dos tanques, uma atmosfera penum-
brenta e angustiante. Lá dentro, gélidos armários de aço guardavam
fileiras de vidros grandes, todos fechados com tampas e, dentro de

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cada um, sobrenadavam embriões, fetos, bebês e figuras antropo-
mórficas num líquido cristalino e gelatinoso, que eu, impressiona-
díssimo, ia repassando, um a um. Coisa extremamente assustadora
e que só se espera ver nos mais tétricos filmes de horror. Foi isso.

Cartamina
Depois de meia hora, ou até menos – pois não me vejo com paci-
ência e sociabilidade suficientes para deixar-me ver em lugares pú-
blicos –, saí andando, sem rumo certo, sem pensar na vida, parando
aqui e ali, diante das vitrines das lojas, apreciando o movimento nos
cafés, os jornais do dia dependurados na banca. Subi e desci o cal-
çadão um sem-número de vezes, contornei a praça, entrei numa rua
e saí na outra, o cérebro à toa, enquanto o centro da cidade tomava
as feições de fim de semana. O que mais ardentemente desejava era
não topar com nenhum conhecido, alguém da escola ou vizinho,
por exemplo; não me via com ânimo para deter-me em conversas
estéreis com quem quer que fosse, nada, preferia falar a um surdo.
Enquanto tomava o rumo de casa, meus caminhos mentais
colocaram em relevo as figuras das duas irmãs solteironas, Esme-
raldina e Aninha, moradoras da casa ao lado da minha, ambas im-
pressionantemente altas e magras. A última cobrava ser chamada
sempre pelo diminutivo, e a outra jamais permitia que lhe tratas-
sem por senhora, cortando, num golpe, todas as ocasiões em que
alguém, por deferência, lhe dirigia este tratamento – “senhora” –,
asseverando, num tom imperativo e lacônico, apesar de polido,
o seu estado civil, mesmo que tivesse que repisar isso duzentas
vezes na mesma conversa. A tal de Esmeraldina, “Dina”, a mais
velha, é míope – usa óculos fundo de garrafa horrorosos –, acam-
betada e tem cabelos hirtos e grudados, por todos os séculos pen-
teados para trás como se fosse um elmo enterrado sobre o couro
cabeludo, penso que a poder de doses cavalares de laquê, pois não
há outra maneira daquilo se manter com tão afetada armação.

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Saíam para a igreja todas as manhãs, bem cedinho, e só retorna-
vam pouco depois das sete, sete e meia, apertadas uma ao corpo da
outra, passadas uniformes e rompentes, sempre e sempre abatinadas
em vestidos de feitios antiguíssimos, encapotadas de blusas, fizesse
ou não frio, o que se poderia descrever como mórbido e mofino.
Nos tempos de Virgínia, rondavam sem descanso diante de mi-
nha casa, indo e vindo sucessivas vezes, até se fazerem notadas. Aí,
após dois tostões de prosa toda cerimoniosa e falsamente afetuo-
sa, Homem precisa de uma mulher ao seu lado, faz falta na
vida... Principalmente uma pessoa que se pareça com você,
tachavam, com o ar mais distinto que se pode modelar. Com as
bênçãos de Deus, a outra complementava, balançando a cabeça,
e no final faziam o sinal da cruz juntinhas... Parecia coisa ensaiada.
Isso até descobrirem a nossa situação, que não éramos realmente
casados; aí, expressão máxima da perplexidade e da dessacralização,
debandaram-se em desordenada carreira, não sem antes nos fuzilar,
a mim e a Virgínia, com rapidíssimos relanceados, como se esti-
véssemos cometendo o mais terrível dos crimes, ou o que de mais
impuro houvesse. Nunca mais nos dirigiram a atenção.
Numa manhã, inclusive, passadas duas ou três semanas do
episódio, flagrei-as aparentemente conspirando defronte ao meu
portão, espionando, apejadas de curiosidade, para ver se desco-
briam se alguém estaria cá dentro. E não se deram conta de que
eu vinha pela mesma calçada, só que na direção oposta à qual nor-
malmente chegava, ou seja, pelas costas delas. Mas foi tão grande
o susto quando deram comigo que, despavoridas e embaralhadas,
desapareceram de minha vista em menos de meio segundo. De
noite, nós dois, Virgínia e eu, quase nos escangalhamos de tanto
rir do episódio; era ridículo vê-las se atropelando portão adentro,
cada uma mais aturdida que a outra, ridículo.
O fato é que não se poderia pensar em ninguém mais inopor-
tuno e ridículo que pudesse encontrar ali pelo centro a não ser es-
tas duas. Quero crer que nem mesmo a figura do “capitão” me

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faria sentir-me tão agastado. E olhem que esse é o tipo de sujeito
sobre quem, vitaliciamente, projeto minhas angústias, quando, por
exemplo, afloram as inapagáveis visões dos Federais, numa manhã
do ano de 1975, se não me equivoco, invadindo o Campus Univer-
sitário, a pretexto de buscarem por drogas, e estouraram todos os
armários dos banheiros, o estrugido das ferramentas arrombando
as portas metálicas, ocasião em que, por razão misteriosíssima, não
deram com o Voz Operária, jornal do então Partido Comunista Bra-
sileiro (que, obviamente, se encontrava na clandestinidade), dentro
do meu escaninho, enquanto eu, lá fora, sobrevivia à mais terrível
aflição. Via-me apanhado e encarcerado como o mais inominável
dos seres, jogado nos aterrorizantes porões da ditadura, constran-
gido a delatar quem os havia me passado; a bem dizer, até mesmo
considerando a possibilidade de voluntariamente me render, abrir o
armário e apontar os jornais, contando que, com tais gestos, seria
poupado dos piores maus-tratos, da tortura. Sim, pois não era pos-
sível que não lhes chamasse a atenção o embrulho, o qual poderia
passar por um tijolo de maconha, por exemplo, o qual fatalmente
lhes chamaria a atenção; não havia salvação, gritava meu combalido
espírito. Até hoje não compreendo por qual razão não deram com
os referidos jornais, o que me teria vindo em socorro. Creio que,
pelo fato de se encontrarem em meio a uma infinidade de revistas
técnicas, acabaram passando despercebidos. Ou então, e acima de
tudo, que tenha se tratado mesmo da providência divina, pois outra
explicação é que não existe.
O fato é que a visão corpórea ou inferida do diretor sempre
me remete àquele episódio e àquele cerco, sempre o coloco lado
a lado com os truculentos e seviciadores da época, em especial
porque não perdeu os seus conceitos: esses comunistas, não
cansava de repetir, com a expressão mais aterrorizadora na cara.
Comunistas! Comunistas!, repetia, com ira inquisidora, enquan-
to jamais descobri contra quem lançava seu ódio e veneno, quais
personagens da história política brasileira contemporânea ele es-

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tigmatizava, pois, para ele, todos equivaliam a bolcheviques.
Só não compreendo por qual razão faço referência às duas ir-
mãs e ao “capitão”. Tantos assuntos passam coriscando por nossa
mente, sem que saibamos propriamente de onde provieram, sem
que compreendamos os seus fundamentos; como os ventos num
arrozal, que açoitam, carregam e trazem de volta, de tal sorte que
é de se perguntar o que põe ordem na natureza, o que disciplina a
vida, o que permite que os dias sucedam as noites, o que move o
relógio da existência.
Depois de meia hora andando sem rumo, logo após o meio-
dia, o centro da cidade tomando o jeito dos entediados fins de
semana, retornei para casa. No caminho, fui seguido por um vira-
latas, de olhar penoso e comovente. Enxotei-o duas ou três vezes,
mas ele dava uma voltinha e retomava a rota de minhas pegadas.
Adiantava um pouco a marcha, mas, quando o procurava de volta,
lá vinha ele me seguindo. Não era de todo feio, até imagino que,
bem cuidado e alimentado, poderia ser adotado como cão domés-
tico, mas tal ideia não me agradava inteiramente.
Aí entrei numa pastelaria, comprei um pastel, mordisquei-o
num canto e, de volta à calçada, joguei-o na direção do cão, que,
sofregamente, apanhou-o de uma só bocada e se afastou sem de-
tença. Segui-o com as vistas desviando-se, a meio trote, até perdê-
lo. De pelagem amarronzada... Mas o que não deixei de lado foi a
lembrança daquele olhar triste e de desamparo.

A noite da cidade
Alta madrugada e Cristine, uma verdadeira esponja em copos de
cuba libre, debruçada no peitoril da ponte. Uma coisa a gente
tem em comum, com voz engrolada. Uma coisa, pelo menos,
repetiu, depois de pequena pausa. Fiquei mirando-a, aguardan-
do que desse seguimento ao seu raciocínio. Acontecia, porém, de
muitas vezes abordar um assunto e não dar sequência a ele, não

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terminá-lo, recolhendo-se e trancando-se, deixando suspensa a
ideia no seu limiar, que circunstancialmente podia nem fazer sen-
tido, cobrindo-se de mistérios e segredos – outras vezes de ligeiro
desdenho –, mergulhada fundo nas brumas de sua alma, deixan-
do-me às cegas, furtado nos caminhos de suas tramas e urdiduras.
Confiei então lhe indagar o que achava que tínhamos em co-
mum, o que queria dizer com aquilo. Ela, absorta e fazendo-se de
surda, namorava as águas, a escuridão, meneando a cabeça de lon-
ge para perto. Como se saísse de um sonho, encolheu os ombros
e exclamou que, tanto quanto eu, ela gostava de ficar olhando as
águas, aquele movimento que, de tão pesado e lento, parecia nem
existir; porém, ao contrário de mim, gostava mesmo era da noite,
das madrugadas, pois as sombras, segundo ela, agrandavam o con-
teúdo de mistérios e temeridades das profundezas.
Eu me pus a rastrear as trevas, o brilho fosco das luzes fibrilan-
do, as do clube, das casas beira-rio, as da outra ponte, mais abaixo,
sem perceber o conteúdo de vaticínio daquela fala.

Qual a razão de o episódio permanecer tão arraigado em mi-


nha memória, tão rico em detalhes e recordações? Não teria a
resposta. Quem sabe pelo fato de ser a primeira experiência, a
infância das minhas aflições. Meus instintos não estavam acostu-
mados a passar por práticas desse tipo, a sofrer tais perturbações,
eu, um “estreante” em semelhantes experiências... Fui, portanto,
pego desprovido de um mínimo de imunidade, acho que se pode
dizer assim. É a única explicação que encontro.

Ela se virou na minha direção, sorrindo de modo encanta-


dor, porém, logo no instante seguinte, seu sorriso se contaminou
por uma espécie de tontice e ingenuidade (a bebida?). Você gosta
é do dia, não é mesmo?, completou, voltando a fitar o vulto
do rio, sem esperar pela minha resposta. Eu nada disse, nada en-
contrava de inspirado para comentar, o raciocínio e a inteligência

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devastados por turbulências internas, pouco me valeram. Fiquei
imóvel, sem saber onde colocar as mãos, se dentro dos bolsos ou
ao lado das dela, que seguravam, geladas e brancas, duas hastes
metálicas diagonais do peitoril. Uma carreta se arrastava pela Vila
Minalda, sacolejando a quietude do instante.

Enquanto excursionava, de mochila e guarda-chuva, pelos en-


solarados territórios do autodomínio, eu até enxergava engenhos
sólidos e estacas às quais pudesse agarrar, caso pressentisse riscos
de naufragar. Contudo, quando diante de Cristine, a realidade aca-
bava por se dissipar, deixava de ter peso e volume, se espargia no
ar, e inopinadamente eu me perdia. Abandonava os paládios, me
embrenhava por furnas escorregadias e penosas e, Deus sabe a
razão, me sentia apequenado e sob seu domínio.
Dia após dia, semana após semana, procurava premeditar
como agir, como me portar diante dela; meu intelecto traçava
estratégias, acertava as veredas, porém, na hora, eu falhava, não
alcançava pé e me sentia como se dentro de um bote, num rio
intrépido, sem ter os remos nas mãos. E o mais grave: procurando
me convencer de que tinha noção de onde me encontrava. Em
outras palavras, a razão me apontava um rumo, me aconselhava,
mas eu, alumbrado e adormecido, acabava arrastado para os cami-
nhos que, para mim, Cris deixava pavimentados.

Ela se pôs a cantarolar baixinho, só para si, como se desper-


tada por um andarilho noturno, o suficiente, porém, para que eu
também a ouvisse:
“Eu gosto tanto de você
Que até prefiro esconder
Deixo assim ficar
Subentendido...”
A sombra da noite já se ia movendo, as primeiras luzes da ma-
nhã, claridade fosca, perfumada e lúbrica, manchada pela neblina

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vaporosa sobre o vale do Pomba. Lua quarto crescente, Vênus no
céu, em meio a nuvens furiosas, estrelas se apagando.
Vicente, você é tímido, não é?
Bastante... mais até do que gostaria..., tartamudeei.
Mas por que pergunta isso?
Por nada. Só por perguntar...
Oscilava cadenciadamente um dos pés para baixo e para cima,
tal qual acelerasse um carro, apoiando o bico da sandália no chão.
Meus miolos davam voltas, mil voltas.
... é pelo seu jeito que estou falando, prosseguiu.
Às vezes, você parece... misterioso. Fica meio
pensativo, desconfiado, sei lá...
Ouvi galos cantando em ronda, pássaros se despedindo da
noite, sapos em burundum demorado.
Voltou a vocalizar arrastadamente a mesma melodia:
“hum-hum-hum, hum-hum, hum-hum-hum-hum....”
E, na sequência:
Você gosta de mim?
Claro, respondi afirmativamente, não podia ser diferente, mas
minha fala veio enfestada de desajeitos, de estupefações, foi a impres-
são que me restou e que, de certa forma, ainda permanece em mim.
Mas eu gosto mais, contrapôs.
Mirava para longe, lá onde não se via nada em meio à noite,
de onde vinha o murmúrio surdo das águas carregadas, no qual
eu ainda não pusera a atenção, não havia trazido para o nível da
consciência e que devia ser como o burburinho do trânsito, nas
grandes cidades, que, de tão contínuo, nem é sentido pelos ouvi-
dos. Ela, abstraída, batendo com a ponta do indicador no corri-
mão da ponte.
Eu então, para procurar quebrar meu obtuso silêncio, lhe in-
daguei como é que ela tinha conhecimento disso, como sabia que
gostava mais de mim que eu dela.
Eu sei, reiterou, esquecida e cativa, num semblante indiscernível.

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Você tem como medir?, inquiri, timidamente, algum apare-
lho, algum dispositivo que meça o ‘gostar’?
Porém, o efeito de minha pergunta pareceu-me pior do que
se tivesse permanecido calado, soou-me como fala boba e de uma
tolice sem tamanho; ela se limitou a sorrir, balançando os punhos
e as mãos suspensas sobre o vão do rio, cotovelos fincados no
corrimão, como se regesse alguma toada.
“Se amanhã não for nada disso
Caberá só a mim esquecer
O que eu ganho e o que perco
Ninguém precisa saber”.
O que se passava dentro daquela cabecinha, que segredos en-
cobria, o que intentava dissimular? (dissimulação, aliás, uma adver-
tência sazonal que pairava sobre mim e que me trazia sentimentos
de absurda insegurança e perturbação diante dela, ou mesmo na
sua ausência). A fisionomia que parecia esconder algo.
A gente sabe destas coisas, o interior revela. Não preciso
de aparelho nenhum para entender, sustentou.
Permaneci longos instantes procurando destelhar aquele pen-
samento, compreender-lhe as entranhas, mas meu cérebro flutua-
va feito bola de soprar, feito painas que se desprendem de folhas
tenras das árvores, e não pousava em lugar algum. O sono, os
resíduos do álcool que circulavam no meu sangue, ou qualquer
outro fenômeno mágico dos sentidos me mantinham num estado
de lúdica estranheza, de rapto da realidade.
Aí principiei a raspar uma bolha na chapa metálica, uma crosta
espessa de ferrugem, coberta de tinta vermelho-alaranjada. Ras-
pando e raspando, até uma partícula aculeada me fisgar debaixo
da unha e brotar um pouco de sangue. Incontinenti, levei o dedo à
boca, procurando disfarçar o que havia acontecido – ela, por sor-
te, olhava na direção oposta e não percebeu absolutamente nada
do que se passara.
Ouça esta letra: ‘Se amanhã não for nada disso / Caberá só

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a mim esquecer / O que eu ganho e o que perco / Ninguém
precisa saber’, dessa vez numa voz mais alta, contudo afetuosa.
E acrescentou, depois de ligeira pausa:
Do Lulu Santos. Gosta dele?
Respondi com um gesto ambíguo de balançar de cabeça.
Simples relanceado na minha direção, um pouco para o lado,
olhos postos ao léu, de maneira que não me fixava propriamente,
mas ainda assim me mantinha sob seu campo de visão. Uma ex-
pressão séria e firme, diria, ereta, pernas como as de estátuas que
se erguessem do chão, braços pendidos ao lado do tronco. Com
a mesmíssima aparência de um seu retrato, que me presenteou
certa feita, o mesmo corte de cabelo, quero dizer, retrato este que
acabou arrancando de minhas mãos, exaltadíssima, mal passadas
poucas semanas, picando-o em pedacinhos na minha frente, cena
terrível, terrível, à qual felizmente pude reagir de forma serena, o
que até a mim próprio causou surpresa. Não me alterei um milí-
metro sequer, enquanto ela, em labaredas, e esbracejando pelos
espaços, ia dispersando estilhas da foto no chão do quarto.
Comportei-me desse modo não porque me sentisse acuado
ou impressionado, mas por ser a melhor maneira de não municiar
ainda mais o seu gênio e furor, e para evitar que o entrechoque ga-
nhasse proporções abissais, quando ela se tornaria absolutamente
incontrolável. Dei tempo a que se aquietasse, simplesmente igno-
rando aquele impulso, aguardando a centelha se abrandar, vigian-
do, porém, sinais de que enchessem o candeeiro com algum tanto
novo de combustível. Foi assim.

Bom, mas isso sobreveio tempos depois, e devo fazer tudo


para não permitir que emoções e situações tão díspares se em-
baralhem neste momento. Urge acomodar-me, deixar de novo o
peito se acalmar e tornar de novo à ponte.
Sem despregar-lhe os olhos, pouco a pouco vi-me entregue a
uma observação sonhada de seu corpo, um reparo que se dissolvia
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e se volatizava numa imagem intangível e que parecia emergir dos
sonhos (ainda a bebida?): uma perna enfiada nas grades do para-
peito, joelho ligeiramente dobrado e imóvel, a outra, na vertical,
corpo ligeiramente inclinado, o pescoço que girava com suave in-
constância. O vento dando na barra da saia, nos cabelos grossos
e revoltos – leoa de pelos dourados –, marcando o bico dos seios
na blusa branca de um tecido brilhoso, um blazer por cima, azul,
totalmente desabotoado, anel de bijuteria ornando o dedo frágil,
pedra carmim. Confundindo a menina com a mulher, o frescor e
a ânsia, pubescência e madurez.
Há algo, penso, que deve ser dito: mesmo nas oportunidades
em que não distinguia grandes traços de beleza em Cristine, mes-
mo quando não enxergava nenhum sentido lógico naquele avassa-
lador fascínio, era certo que bastaria um dia, depois de outro dia,
para que minhas incertezas logo se dissipassem. Ela despontava,
lasciva e jovial, ninfa extraordinária, dona de superiores encantos.
Ela regenerava, é o que quero dizer, restando-me atribuir a desa-
feição a uma circunstancial indolência e tibieza, talvez insensibi-
lidade aos odores, aos impulsos, eu calculava. Afinal, o ânimo e a
natureza não se mantêm acesos vinte e quatro horas por dia e têm
seu próprio ritmo, sua ciclicidade, que sei eu?
O vento dando na saia, dizia eu, vento de assobios, comprimin-
do o formato dos seios, desenhando-lhe os seios, agitando-lhe os
fios de cabelo, recortando-lhe os perfis, as formas, enquanto perma-
necia absolutamente indiferente à ameaça de ver erguida a sua saia.
Se bem me recordo, ela disse que não gostava nem um pouco
desta cidade, que tinha horror das pessoas, que ficava amargurada
– acho que ela falou que “ficava com o espinho atravessado”, uma
expressão mais ou menos assim – com o fato de todo mundo se
conceder o direito de imiscuir-se na vida alheia. Compreendi que o
que insinuava estava relacionado à sua vida pessoal ou de sua estra-
nha família, pois estava convicto, absolutamente convicto, de que
nenhum ser, na face da Terra, fosse possuidor da menor luz acerca

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do que havia entre nós dois (apesar de Cristine jamais ter adotado
sólidos procedimentos que concorressem para manter o nosso se-
gredo). Até alguns acontecimentos virem apontar na direção oposta,
como o episódio com o professor Sílvio Pena, na descida do colégio,
o com o Laurindo, cínico e artificial, lá está a sua Cris, além de
um terceiro incidente, que constitui evento essencial para a compre-
ensão de sua personalidade (uma outra aluna, da mesma classe de
Cristine, se acercou de minha mesa e esticou-me um pedacinho de
papel, com duas ou três linhas escritas, no qual reconheci imediata-
mente a caligrafia de Cristine).

O mais estranho é que, vezes sem conta, vemos insurgir, den-


tro de nós, indomáveis exercícios de imaginação, absurdas cria-
ções do espírito, os quais não tomamos iniciativa de gerá-los, nem
fazemos a mínima ideia de onde emanam, mas que acabam fun-
dando, em nossos sentimentos, as mais intensas aflições. Estou
me referindo a pensamentos devastadores e atrozes, que se man-
têm envolvidos em mantilhas, incubados dentro do nosso psico-
lógico e, intempestivamente, pulam em cena, sem que saibamos o
que os deflagraram, sem que compreendamos como os inventa-
mos. Cito, como exemplo, o impulso de se jogar do alto de uma
ponte, enquanto a atravessamos, ou saltar de uma escarpa que
se abre a nossos pés, ou debaixo de composição em movimento,
coisas desse tipo, que acabam acarretando terríveis experiências
sensoriais e não têm a menor necessidade de serem vividas. Tais
reações, incontroláveis hordas invasoras, só encontram contrave-
neno se lançamos mão de muita força psíquica, pois, caso contrá-
rio, estamos sob iminente risco de cometer as mais disparatadas e
aterrorizantes atitudes. Uma voz interna tem de gritar bem alto, de
berrar nesse preciso instante para suster a gente. Embates tais já
me assomaram à mente dezenas de vezes e trazem consigo carga
enorme de sofrimento, exatamente como os pesadelos medonhos
e aflitivos que, vez por outra, tratam de nos assaltar às horas da

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noite. Não somos donos de nossas profundidades, as ideias e os
maus sonhos fluem sem que tenham subordinação, porém acon-
tece de a fantasia nos apartar tanto do espírito humanitário e do
senso moral que a gente chega a se perguntar quem somos, em
verdade. Felizmente, essas são invenções acidentais – em ambos
os sentidos que o termo comporta – e se dissipam tão rápido
quanto baixaram. Nem tão perfeito é o gênero humano quanto
imaginamos, nem tão perfeito, e indago se tem aí alguém que nun-
ca viveu situações parecidas. Ou será que isso faz parte só dos que
têm inclinação natural para a loucura?

Vaga-lumes nas margens do rio, miríades de vaga-lumes acen-


dendo luzinhas, em meio aos feixes da vegetação ribeirinha. O céu
clareando num trecho, adquirindo a tonalidade safira das lustrosas
estolas de Sexta-feira Santa. Logo brotaria o dia.
Quantas horas, Vicente?
Estou sem relógio.
Estiquei o corpo, espreguiçando, arrumando as pernas. Minha
sombra se projetou, escanchada e silenciosa, na contraluz da água.
Ela olhou para o céu longamente, circundou todo o céu que se
mostrava entre os recortes dos morros, dos prédios, das moitas de
bambus, como se pudesse ler o tempo nas estrelas.
Umas cinco horas, balbuciei.
Cristine também se ergueu. Alongou o corpo, estirando os
braços bem acima da cabeça, mãos entrelaçadas no alto, estalan-
do as juntas dos dedos. Só voltou à posição normal depois que
viu seu corpo atravessado por calafrios. Aí se recostou na grade,
dessa vez de costas para o rio. Parecia repassar alguma reflexão,
os olhos perdidos, dorso ligeiramente encurvado. Mordiscava de
leve o lábio inferior.
Apesar de estarem acesas as luzes no vão da ponte, ela se co-
locava numa zona de meia-sombra. As lâmpadas tinham a apa-
rência de serem fraquíssimas, mas não o eram, estado sinestésico

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estranho que fez brotar em mim fugazes e delirantes concepções
de acendedores de lampiões, motorneiros de bondes... Cobriu o
rosto com as mãos, e assim permaneceu por longo tempo.
Sabe duma coisa?, com o rosto oculto e abafado pelos de-
dos. Às vezes, fico com a impressão de que você repete os
livros que lê.
Foi a sua frase, exatamente essa, dita da forma mais dura e
insípida.
Minha visão se amontoou, como dentro de centrífugas que giras-
sem lerdas, dentro de um caleidoscópio cujos vidrilhos tivessem tons
escuros, cinzas cambiantes, e não cores vivas, como normalmente
costuma ser. Aquilo soou estranhíssimo, não podia interpretar o que
ela queria insinuar. Ecoou como um estampido surdo e, mal compa-
rando, me senti feito despertasse inteiramente nu e em plena via pú-
blica. Essa a primeira reação, a que despontou logo na estreia. Dois
minutos depois eu já nem fazia ideia se aquilo era um galanteio ou,
ao contrário, uma zombaria. Procurei o significado no seu semblan-
te, mas ele, o semblante, parecia esquecido e impenetrável.
Por que fala isso?, lhe indaguei.
Porque penso assim, sinto assim.
E de onde tirou esta ideia?
Quando fala para mim, quando estamos juntos, nós dois,
sozinhos. Não sei, mas tem momentos que suas palavras
são muito certinhas e parecem, sei lá, o resultado de um
cálculo que você faz na cabeça.
Intervalo de silêncio.
Como se você pensasse muito cada palavra, entende?
Fica parecendo um pedreiro que, assentando azulejos deco-
rados, procura o lugar certo para cada um deles no desenho.
Outro instante de segredo.
Dentro de sala, não. No colégio, parece mais... solto...,
arrematou.
Reconheci-me perdido, sem saber como compreender-lhe a

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essência daquela queixa, o que me punha numa posição constran-
gedora, a qual é marca maior de minha personalidade, a timidez, o
que pode soar falso, admito, não parecer verossímil... Como ima-
ginar um sujeito, na minha condição, que se veja de faces no chão
só pelo fato de alguém supor que ele fique reproduzindo trechos
de livros que tenha gravado na memória? Entretanto, estou sendo
sincero. Vi-me metido numa concha, para fazer uso de expressão
bastante banal, mas que traduz minha situação psicológica. Daí a
razão de, em muitas oportunidades, preferir lhe escrever cartas, ao
invés de dar à língua meus pensamentos, pois aquela é a posição
em que me sinto menos tolo e medíocre. O que quero dizer – e
estou repetindo o conceito – é que muitas vezes me sentia em
absurda e incrível inferioridade, pode-se assim dizer, enxergava as
cenas quase como um campo de batalha, onde, armado de dardos
e setas, combatia inimigos que dispusessem de obuses e baionetas.
Existiam, portanto, instantes de derrotismo e aflição, que eram
ilógicos e inconcebíveis quando a circunstância era analisada fria-
mente. Mas também existia resignação, o que acabava por me vir
em socorro, por me servir de armadura.
Foi muito estranho o meu embaraço, repito, e, diante da mais
absurda palermice, decidi buscar socorro no silêncio, expediente
de que faço uso quando não encontro saídas. O não pronunciar-se
pode afigurar-se como reflexão profunda, como expectativa ou,
melhor ainda, como fantasia, e a incapacidade passa por erudi-
ção. Aliás, a mesma deformidade que encontrei em Laurindo, mas,
quero crer, preciso crer, que o senso moral que nos norteia seja
diverso, mesmo não me considerando, como não me considero,
nenhum modelo de criatura humana.
Cristine, com o tempo, aprendeu a agir do mesmo jeito. Certa
vez, por exemplo, inquiriu-me se costumava escrever cartas para
Virgínia, cartas cortejadoras, queria dizer, como fazia para ela,
Cristine. Respondi-lhe que sim, que também escrevia, mas tomei
o cuidado de acrescentar – e estava sendo honesto – que, quando

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o fazia, estava realmente sentindo o que procurava exprimir. Ela
ficou quietinha e, ao final de alguns segundos de meditação, sorriu
doce e sonhadora e veio me abraçar.
Não consegui dar conta de extrair-lhe a essência do pensamen-
to – refiro-me aqui à insinuação de que eu “parecia repetir os livros
que lia”. Afinal, estava me chamando de espirituoso ou de imbecil?
Em meio ao seu mergulho no silêncio, indaguei-lhe se aquilo
era bom ou ruim, mas ela não me respondeu nada. Limitou-se a
girar o corpo de novo para o rio, debruçar-se no parapeito – um
pardal afoito pousou na grade. Fez um gesto obscuro e descartá-
vel, desenhando uma espécie de circunferência no ar e apontou
para as águas fundas que o rio levava.
O mais interessante é que eu, por vezes, tinha a mesmíssima
impressão dela, apesar de não serem tão numerosos os livros que
Cristine se dispôs a percorrer com a vista. Creio mesmo que não se
deteve em nenhum outro além dos que lhe competia como tarefa
escolar, e meia dúzia a mais, que lhe estimulei a fazer. Nada além.
Dom Casmurro, por exemplo, ela o conheceu por inteiro. Sabia de
cor todo o parágrafo final e vivia a repeti-lo, quando queria me ale-
grar: “E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma
das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira
amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos
também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-
me... A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios”. Com
aqueles sobranceiros lábios reais, em voz enfeitiçada e lúbrica.
Um dia, encontrei-a no corredor e ela estancou diante de mim,
deixando no ar a seguinte sentença: Se fosse possível, faria um
recorte da realidade e traria você para mim. E desapareceu de
minhas vistas. Foi precisamente o que mencionou, sem que lhe
tenha alterado nenhum dos termos. Tenho absoluta certeza, pois
tomei o cuidado de anotar a frase para que não me escapasse. Ain-
da guardo comigo o papel onde está escrita, no caos das gavetas de
minha escrivaninha. É só procurar por aqui que logo o recupero.

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“Se fosse possível, faria um recorte da realidade e traria você
para mim!” Desconfio que o tenha extraído de algum livro, acho difí-
cil que ela mesma o haja formulado; todavia, desconheço sua autoria.
Admito que possa soar um tanto quanto meloso, cheio de sentimen-
talismos, mas é inegável que possui certa dose de energia criativa.

Nessa época, por desses estranhíssimos fenômenos da men-


te para os quais não alcançamos a menor explicação, acontecia
de, quando me esforçava para fazer vir à memória a fisionomia
de Cristine, eu não conseguir. Nenhum detalhe do rosto, que me
servisse de orientação, ressaltava, nada, absolutamente nada. Meu
cérebro dava em vias erradas, como se Cristine recuasse para um
passado remotíssimo, até o ponto em que só restassem um dúbio
contorno de cabeleira e seu típico modo de andar. Seus traços
se tornavam confusos, indistintos, e se convertiam numa imen-
sa lacuna branca em minha memória. Posso estar enganado, mas
penso que nossos neurônios, diante das mais imperiosas experi-
ências psíquicas, alcançam tão elevado grau de perturbação, que
têm magras possibilidades de desempenhar a contento sua tarefa.
Nessas condições, pode ocorrer de a fisionomia de determinada
pessoa – exatamente aquela que nos causa a perturbação – se per-
der, mesmo que nos compenetremos muito, o mesmo não acon-
tecendo com outros seres humanos, os quais conseguimos gerar,
com a maior facilidade do mundo, seu perfeito delineio.
Penso que, na ausência de informações exatas e indefectíveis,
o cérebro trabalha fabricando figuras a partir de matérias-primas
que, com mais facilidade, encontre à mão. Ele, o cérebro, me acu-
dia tratando de exibir uma figura que não correspondia à que pedi,
mas que, por acaso, se encontrasse “armazenada” logo ao lado,
em sítios vizinhos da memória. Cristine, assim, se convertia numa
espécie de miragem. Uma vez, inclusive, conversamos sobre o as-
sunto e ela me inquiriu se sabia o porquê disso acontecer. Pon-
derei algo semelhante ao que descrevi acima, que achava que o

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espírito, ao sofrer a ação de intensos abalos, se desnorteia, perde a
rota. Foi o que aleguei, mas não sei se consegui convencê-la.

Os tons da noite que fugia, estrelas sumindo no céu, Vésper


sobranceira, cheiro de lavanda – ou funcho? – exalando de seu
corpo. As primeiras garças levantando voos das árvores imensas
e secas, beira-rio, flanando sobre o vale do Meia-Pataca, se orien-
tando pela quietação dos ribeirões, a calmaria dos corguinhos cho-
chos, nas vargens, pela claridade nascente nas planícies entre os
morros; indo para não sei onde. Vão-se as nuvens.
Tomado de lassidão, os olhos meio moles, pálpebras ameaçan-
do arriar, lembrei de lhe perguntar se não estava com sono, porém
ela replicou, um tanto quanto ríspida, que eu podia ir, se quisesse,
que ainda iria ficar por ali. Não parecia minimamente cansada, en-
quanto eu sentia-me como mergulhado num outro tempo, cheio
de letargia, no qual Cristine se desfazia quase por inteiro de seus
encantos. Afastei-me meio passo, a fim de a observar mais acura-
damente (sem que ela percebesse meu enquadramento, é claro),
enquanto ela nem dava conta de minha presença, tão metida em
si mesma. Batia de leve a pontinha do sapato no chão, ao ritmo de
uma canção que só dentro dela existia. Pouco depois, no entan-
to, Cristine ressurgiu. E ressurgiu na pele de Capitu, metamorfo-
seou-se “na linda Marcela”, de Brás Cubas (mesmo que tais visões
viessem roídas em turbulentas e implausíveis sugestões, mesmo
que contivessem conotações de desvario ou mistério). Por razões
inabordáveis, passei a enxergá-la, debruçada sobre a mesa da sala
de aula, sussurrando que um dia iria me beijar na frente de todo
mundo, ali mesmo, ou na cara do diretor, com um risinho pouco
perceptível entre os dentes. Só está me faltando um pouquinho
de coragem. Ou sublinhar que, se um dia você me deixar, me
jogo no rio. E ria, e franzia o cenho sem, no entanto, perder o
tom de voz petrificado e marmóreo.
Ela se virou e, calada, percorreu o meu rosto longamente, os

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olhos arregalados e desafiadores; longamente, debulhando o meu
semblante, parecendo que, daquela vez, não lhe agradava me ver.
Um animal furioso, que deixava no rosto um sorriso desconfia-
do; quase como se eu fosse intruso ou estrangeiro. Ela cambiava
nos extremos do temperamento, tão intensamente que era como
se fosse dona de uma dualidade de alma, como se portasse duas
identidades. Entre as duas, existia uma diferença secular que eu,
míope, nunca vislumbrei perfeitamente, nunca. Num surto, des-
pojava-se de todo afeto, despia-se de seus encantos, entocando-os
nos mais longínquos rincões. Em questão de cinco minutos, tinha
a faculdade de ir de uma situação da mais extrema felicidade a
outra de intumescida hostilidade, sem a menor razão aparente.
Num verdadeiro espetáculo de transmutação, ela alterava impres-
sionantemente até mesmo de aparência, adotava gestos acirrados,
além de outras indefiníveis exterioridades, as quais deixavam pa-
tente que a transfiguração já estava em curso, e o mais seguro seria
zarpar de suas cercanias. Mas, de fato, eu nunca tomava o cuidado,
jamais dava crédito, sempre julgando que aquilo não fosse autên-
tico, que se tratasse de burla ou recurso cênico, tão absurdo me
parecia. Como se compreender tal diferença de espírito, em tão
curto intervalo de tempo? Há casos assim?
Lembro-me ainda de que me perguntou sobre o Sílvio de Cas-
tro, se éramos amigos, o que não deixava de me trazer certa curio-
sidade. Por que, especificamente, fez referência ao Sílvio?
Da mesma forma, teceu considerações acerca do diretor da
escola – o “suíno”, maneira como se referia a ele. Outras vezes,
Cristine se reportava ao Laurindo usando a expressão “um sem-
vergonha”. Nunca lhe inquiri acerca do que queria dar a entender
com aquela expressão, se Laurindo teria, em algum momento, en-
saiado alguma atirada para cima dela. Não conseguia enxergar na
figura dele os menores dotes para aventuras do tipo, mas tal hi-
pótese não foi desprezada de todo; sua indignidade era suficiente
para tanto. Deixei o assunto morrer no nascedouro.

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De qualquer modo, as conversas sobre Laurindo e Sílvio de
Castro eram oportunas, pois perdurava em mim, de certa forma,
uma pontinha de desconfiança acerca dos intentos de Cristine.
Eu me conservava quase permanentemente na expectativa de
que algo partisse dela, eu, enfim, buscava por sinais de que esta-
va caminhando, todo alumbrado, para terrenos movediços; não
me entrava na cabeça, de jeito nenhum, que ela deixasse de lado,
por exemplo, rapazes de sua idade, e que lhe viviam à mão, para
mover-se na minha direção, em especial um deles, também aluno
da escola, mas não de minhas turmas, de seus vinte anos, pele
clara, cabelos negros ao extremo, ondulados, de ótima aparência,
com quem o via frequentemente às voltas. Suspeitei que entre os
dois havia alguma ligação, principalmente pela enorme proximi-
dade entre eles, pelo modo de manter o corpo de ambos, quando
juntos, o que acaba por denunciar um homem e uma mulher em
posturas de sedução. Qualquer um, com um mínimo de senso de
observação, seria capaz de detectar quando uma criatura confabu-
la com outra com intenções insinuantes: o principal detalhe é, sem
dúvida, a distância que os separa; nunca ultrapassa mais que um
passo. O segundo detalhe é que permanecem praticamente todo o
tempo absorvidos um no outro, sem se voltarem para o mundo ao
redor, como se nada mais fizesse parte de sua vida. E sempre um
sorriso encenado de quem quer parecer a figura mais agradável e
acolhedora do mundo. Entre eles existiam poses e atitudes que me
deixavam confuso, para se dizer o mínimo.
Tais situações, no início, não me desagradavam, até chegavam
a me convir, pois contava com este quadro para dirimir suspeitas
que porventura viessem a ser levantadas contra nós dois. Isto no
início, repito. Entretanto, coisa singular, esgotados os primeiros
passos, enquanto ainda tinha perfeito controle sobre meu emocio-
nal, tornou-se quase impossível enxergá-los juntos: ela, no pátio,
livros e cadernos abraçados ao peito, trejeitos de cigana astuta,
repleta de segredos e feitiços, diante daquele ardiloso adônis. Não

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sabia o que significavam alguns de seus gestos: riam muito, segre-
davam algo e, vez por outra, ele tomava as mãos de Cristine e as
retinha por longo tempo. O que aquilo significava?! Faço pesar
também a diferença de anos entre nós dois, que era suficiente para
definir hábitos e costumes diferentes, mas, mesmo assim... Ah,
abismos escuros das gerações!
Jamais inquiri Cristine acerca deles dois, estou insistindo nisso,
em tempo algum, em circunstância alguma, sobretudo porque um
homem, ao que creio, nunca deve se permitir tais cochilos, mas, ao
contrário, mostrar-se sempre valorizado e seguro de si. Até mesmo
do ponto de vista estratégico seria indispensável que me mostras-
se frio e impassível. Aprendi com ela própria, no nosso convívio
diuturno, que, nas circunstâncias mais resvaladiças da vida, deve-se
exatamente deixar à mostra o oposto do que, em verdade, se passa
no interior da gente; deve-se ocultar o que planejamos e julgamos.
Tal tática, por vezes, é a única arma de que dispomos para se conhe-
cer o que vai dentro do outro, o que está tramando, para assim nos
sentirmos mais seguros. Cristine isso me ensinou sem querer; só
com a observação acurada de suas atitudes, de seu comportamento.
Por essa razão é que digo que nossos contatos funcionavam como
verdadeiros lances de xadrez, em que cada um aguardava, prudente,
o mover das peças por parte do adversário, considerando sempre a
possibilidade de que estivesse prestes a receber o xeque-mate.

Umas cinco horas, lhe disse, e acrescentei, meio desajeitada-


mente e sem muita convicção, que poderia ser perigoso para ela
permanecer ali, sozinha. Perigo nenhum, retrucou, entorpecida
com o deslizar das águas, com a contorção das águas. Pode ir
tranquilo e me deixar aqui, completou, como se abstraída num
breve sonho.
Vamos caminhar?, procurei romper o gelo, mas ela não res-
pondeu, nem mudou de posição.
Muito depois, enclavinhou os dedos uns por entre os outros,

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ergueu o corpo e estirou os braços para diante, estralando as jun-
tas, os covos das mãos voltados para o nascente. Você não está
mesmo acostumado a ficar acordado até esta hora, senten-
ciou, dizendo aos ventos, enquanto contava ondas, rebojos, en-
quanto invadia os repuxos das corredeiras. Esperando, talvez, os
tiradores de areia, os barcos dos tiradores de areia, de eras passa-
das, e que há muito desapareceram daquela paisagem, no tempo
em que despertava um horizonte de galos, o rumor distante da
manhã, no tempo em que a noite se prateava no vulto dos morros.

Os mastins
No meio daquela manhã de domingo, sol escaldante, despertei de
um sonho estranho: eu me encontrava em um ambiente magica-
mente preenchido por tons vivíssimos e muito agradáveis, toma-
do pela mais extasiante sensação (é curioso como, nos sonhos, as
cores e as emoções parecem sofrer uma espécie de amplificação,
se impregnarem da mais intensa impressionabilidade).
No espaço completamente despovoado do gênero humano, de-
zenas e dezenas de cãezinhos dóceis e ágeis se remexiam, serenos e
afáveis, por entre minhas pernas. Filhotes de mastins, filas brasilei-
ros e outras raças como que buscavam salvaguarda sob meus impo-
tentes braços; um poodlezinho, do mais puro branco, destacado da
matilha, descia, cauteloso, de uma colina próxima.
Catastroficamente, compreendia que, por alguma razão, de-
veria pôr a salvo o maior número possível dos bichinhos. Os que
ficassem para trás iriam morrer, e eu sofria diante de minha im-
potência, em especial quando me vinha a figura do poodle, sua
graciosidade e fragilidade.
Terrivelmente atormentado, principiei a me arredar dali, a me
arredar, de costas, lenta e pesadamente, tão pesadamente quanto
os passos carregados e extenuantes me permitiam.
O extraordinário é que sentimentos tão díspares e mesmo con-

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traditórios conviviam, simultaneamente, dentro de meu transe: a
mais tenebrosa angústia, de um lado, e de outro, uma intensíssima
e amena felicidade, que se irradiava do que se podia considerar
como o verdadeiro paraíso onírico.
Em determinadas circunstâncias, meus sonhos vêm adorna-
dos em intensos matizes, em cores vivas e tons quase psicodélicos,
e minhas reações interiores, mesmo diante de situações relativa-
mente comuns, encarnam desproporcional assombro ou arreba-
tamento, o primeiro ou o segundo, conforme o caso. Desconheço
se esse é um fenômeno costumeiro, que ocorra com toda a raça
humana, mas em mim é assim que se dá. Gostaria muito de con-
versar sobre isso com outras pessoas, de ouvir suas experiências,
mas ocorre que não enxergo nenhum ser humano em que possa
confiar e me servir de interlocutor. Assim...

O cisne e o touro
Na semana que se seguiu ao baile e à estada sobre a ponte, Cristine
agiu com a mais inesperada e perturbadora frieza. No início, e para
meu desespero, desapareceu da escola, deixando-me com a dispa-
ratada suspeita de que havia abandonado a cidade. Quarta-feira era
o dia da semana em que eu tinha folga. Era razoável supor que o
reservasse para sua reaparição, eu inferia que seu sumiço fizesse
parte de um estratagema qualquer, desconfiava de alguma esperte-
za da parte de Cristine, alguma maquinação, pois reiteradamente se
comportava de forma que se poderia considerar, no mínimo, como
surpreendente. Acontecia de, até mesmo nos episódios mais sim-
ples e cotidianos, ela reagir de maneira mais inesperada, contrária
mesmo ao que o bom senso fazia crer, de modo que eu não sabia
nunca de quais atos de afeição ou perversidade era capaz.
Quer dizer, eu acreditava e não acreditava que sua inteligência
pudesse ser capaz de traçar táticas de dominação, vamos chamar
assim, e que ela procurasse, com seu gênio, ser a figura proemi-

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nente entre nós dois. Cristine sempre soube me surpreender. Por
exemplo, deixava-se mostrar sistematicamente no corredor, ron-
dando a sala dos professores, ou junto à portaria, em pontos mais
ou menos fixos, onde não passaria despercebida por mim, nas
horas em que calculava que eu passaria. Punha-se como se ali es-
tivesse por mero acaso, como se aquela não fosse ação premedita-
da. Fingia extraordinária naturalidade, além de resistir, imperiosa,
a me dedicar uma mínima olhadela que fosse, ou de me reservar o
menor gesto de afeição ou simpatia, tarefas que, para mim, eram
quase uma impossibilidade.
Numa ocasião, que aqui cito tão só para realçar seu compor-
tamento e suas reações, tomado pela mais movediça tortura dian-
te de seus sumiços e ausências – havia desaparecido há mais de
uma semana –, emparelhei-me com ela na subida da rampa, em
meio àquela horda que, aos berros, parecia escapar do manicômio.
Sussurrei-lhe que tinha urgência – ou necessidade, não me lembro
o termo que usei – de lhe falar.
Em verdade, não havia nada de urgente para tratarmos; era,
claro, somente uma desculpa para atraí-la.
Hoje não, ela disse. Talvez amanhã, separando as palavras,
pensando as palavras. Hoje à noite eu...
Não concluiu; acelerou o passo e afastou-se rapidamente,
deixando-me imerso numa espessidão de desapontamento diante
daquela recusa, ou o que, pelo menos, acreditava ser uma negativa.
Recordo-me que, de dentro da sala dos professores, pouco
depois a vi passar no corredor, ar glacial, desfilando a mais perfei-
ta inalterabilidade do mundo. Cheia de ânimo, confabulava com
outras meninas como se nada houvesse acontecido apenas vinte
ou trinta segundos antes, o mais brando dos sorrisos, mergulhada,
ao que parecia, num profundo estado de alumbramento e prazer.
Ela se comportava como o mais destro dos esgrimistas, que
era como Sílvio de Castro gostava de interpretar as questões da
sedução. Para ele, dois amantes logo, logo passam a se comportar

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como requintados e corteses adversários de esgrima, onde cada
um, em empertigada e nobre postura, busca espetar o florete, com
golpe direto, não no tronco do “adversário”, mas na ínfima ponti-
nha do coração, sem, no entanto, pretender provocar ferimentos;
só pelo desejo de demonstrar dominação; um duelo permanente
entre dois seres que se digladiam, veladamente, para ver quem
prepondera, quem tem mais cartas para pôr sobre a mesa. Sílvio
me falou sobre isso numa festa de fim de ano, na escola – que já
não mais se repetem –, estando nós dois sentados numa mesinha
de armar, destas que se vê ocupando calçadas diante de bares e
carros de lanche, e que havia sido emprestada ao Ginásio, para
aquela ocasião, pela distribuidora de bebidas. Sílvio é uma espé-
cie de Quincas Borba; por exemplo, parafraseando o Conselheiro
Aires, vivia repetindo: não é a verdade que vence, meu amigo,
mas a adulação. E, meneando a cabeça, o pescoço, apontava na
direção do Silvério e de dona Ermelinda, às vezes acrescentando
uma careta debochada. Um sujeito brincalhão!
Fiquei sem compreender se estava querendo fazer graça, com
a história de duelo, ou se expressava seriamente o que pensava.
Como havia bebido um pouco além do normal, falava tão exci-
tado que era como se quisesse ser ouvido por todo mundo. Po-
deria ser que estivesse sendo espirituoso, somente. O fato é que
tal ideia jamais me abandonou e, de vez em quando, passa pela
minha cabeça, aflorando sem nenhuma autorização e, com o pas-
sar do tempo, vem cada vez mais revestida de tom de argúcia e
profundeza. Então, vejo-me numa espécie de assalto, acossado
por Cristine, uma Cristine atiradora, coberta por indumentária de
prata oxidada e luzidia, máscara e barbela negras, pé de frente em
posição de ataque, braço armado em riste chicoteando a lâmina
no ar, chamando-me ao desafio, enquanto eu, prostrado na pista,
lado aberto exposto, não consigo esboçar a menor resposta, nem
ao menos uma esquiva, certamente por sabê-la inútil ou que o
contra-ataque viria ainda mais ferino.

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Isso também me remete novamente ao Conselheiro Aires: “o
amor, que é a primeira das artes da paz, pode-se dizer que é um duelo,
não de morte, mas de vida”. O enunciado é meio parecido com o de
Sílvio, bastante parecido, aliás, só que o deste é mais escancarado.
Engraçado que ocorreu-me, ainda agora, uma passagem bas-
tante relacionada com a ideia de esgrimistas: numa manhã fria e
coberta de nevoeiro – chovia há quase semana –, encontrei Cris-
tine, à hora do almoço, o pátio já quase de todo vazio. Justamen-
te quando ela saía para a área descoberta, girou o corpo, olhos
esgazeados, sorriso meio maroto e, estirando a sombrinha ainda
fechada na minha direção, brandiu-a de leve bem rente ao meu
tórax como se o apunhalasse seguidas vezes.
Como se pode ver, não era fácil lidar com ela. A bem dizer,
em nossa relação, ela por vezes se comportava como se fosse o
elemento masculino, enquanto, para mim, reservaram os papéis
femininos. De nós dois, fui o ingênuo, esquivo e dócil, enquanto
ela, escorpiônica, agia de forma impiedosa e calculista. Como é
possível se imaginar tanta força interna, tal inquebrantável ener-
gia? Como podia compreender que, por aquela cabecinha, pas-
sassem tantas manobras e porfias? Por fim, e o mais grave, como
antecipar o que ela esperava com cada de suas cartadas?

(Com o tempo, fui levado a entender que seu aparente auto-


domínio não tinha sustentação, não existia de verdade, era obra de
minha imaginação combalida e atraiçoada. Penso que eu superlati-
vava sua capacidade, que a enxergava com impressionantes lentes
de aumento, e isso se devia a uma inexplicável perturbação que sua
presença provocava em mim. Como supor que, com seus trunfos e
canastras, reunisse tanta experimentação na arte da vida, tanto po-
der sobre os desejos? Tais predicados contrastavam com seu porte,
com a sua menoridade e até com seus conhecimentos, para não se
fazer referência à sua modesta posição social, o que, convenhamos,
não deixa de conferir fragilidade a uma pessoa).

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Retorno agora ao ponto anterior: restava-me esperar pela quar-
ta-feira, pelo regresso de Cristine. Retive-me no pátio, fazendo cam-
pana, até o sino chamar para as aulas, andando para lá e para cá,
puxando conversa com um e outro, mergulhado, é óbvio, na mais
intensa inquietação e descontrole. Até descobri-la, o que demandou
uns bons cinco minutos, ao que acredito. O que aconteceu foi que
(não sei onde estava com a cabeça) acabei interceptando-a bem no
meio de toda a gente, justamente quando o pátio estava aos cotove-
los, o que nos era favorável, pois, a par de reproduzir um encontro
de aparência acidental, a multidão acabava por nos subtrair da intri-
ga e das troças. Disse-lhe algo bastante tolo (recordo-me muito bem
do que lhe falei, mas nem por dinheiro nenhum do mundo repetiria
aqui, tão ridículo e atrapalhado pareci). Ela sorriu de maneira que
não deduzi com perfeição, mas não me respondeu nada. Postou-se
meio de lado, a visão fincada na superfície do laguinho, junto à vi-
draça da secretaria. E foi só.
A partir do dia seguinte, quinta-feira, dentro de sala, procurei
o quanto pude não me fixar no rumo dela, mas não garanto que
tenha sido muito eficiente nesse meu esforço. Em várias oportu-
nidades, vi-me desconcentrado e perdido no que ia expor. As mi-
nhas digressões me estorvavam, se aproximavam e se afastavam
como uma obsessão, ou melhor, a convicção que nasceu em mim,
naquela situação, era a de que Cristine seria, sim, bastante inteli-
gente para confeccionar os mais imprevistos e dolorosos ardis, de
incitar à tortura gratuita, de maneira quase inesgotável (por essa
razão, quase nunca me despregava da cabeça a imagem de duelo
de esgrima, que Sílvio me deu a conhecer).
Do seu lado, achei-a mais fria e impassível, o que só fazia au-
mentar meu desequilíbrio e minha comoção, apesar de tal impres-
são estar recheada de artificialismos e desfigurações. Isso me fez
lembrar um trecho de Brás Cubas: “... em verdade, há dois meios de
granjear a vontade das mulheres: o violento, como o touro de Europa,
e o insinuativo, como o cisne de Leda” .

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O violento e o insinuativo...
Vou empregar o termo “violento” não com o sentido que
Machado quis imprimir, o de atropelo e acelerado, mas, para me
servir como mero objeto de reflexão, conforme é encontrado nos
dicionários. A simples ideia de uso da força bruta contra Cristine
causava-me tão asfixiante inquietação, que logo cuidava de jogá-la
porta afora. Eram reações reincidentes, admito, mas fugazes, e que
exigiam lançar mão de toda minha energia moral para suprimi-las,
tamanhos o tormento e o horror que me provocavam. De algum
modo, existia uma noção parecida com a de exorcismo, com a de
arrancar demônios, pois não me abandonava a sugestão de que
eles, os demônios, existissem de verdade entocados no espírito de
Cristine. Do contrário, como explicar suas fúrias e danações, seus
silêncios e extravios?
O comportamento que me convinha era o da insinuação, “a
insinuação do cisne”, apesar de enxergar sua difícil operacionali-
dade; dentre meus defeitos, não se encontram a impertinência, a
inconveniência. Exatamente por essa razão, conservava na mente
o pressentimento de que era possível ser eu o causador das tribu-
lações ou dissabores, e assim, diante de atitude que desconfiava
como de rejeição ou menosprezo, da parte dela, eu me recolhia,
punha-me a distância. Desaparecia do seu círculo, esperando res-
surgirem sinais de que tinha novamente autorização para me abei-
rar, sinais que os dias e os meses se encarregavam de trazer de
volta. Eu enganava o desejo, abdicava deles e vestia antolhos para
não perceber o que se passava em volta.
Ocorria-me, por exemplo, a ideia de lhe comprar um presente,
“joia e seda”, como faria Brás Cubas para sua Marcela, uma joia,
para ser mais exato e contemporâneo. Contudo, a precaução e a dis-
crição acabavam falando mais alto, pois não estava bem certo de não
estar dando passos em falso. Nunca se sabe os acasos que os cami-
nhos põem diante da gente e então me acomodava, me aquietava,
deixando por conta da incubadora do tempo a decisão e o norte. O

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silêncio, a espera, quase sempre solucionam melhor os episódios da
vida do que as expedições e os arremessos, é o que creio, em especial
quando se tem diante de si um ser com as características de Cristine.
No fim do turno, vi-a saindo do Colégio junto com uma co-
lega de sala, Clícia, com quem passei a vê-la trocar confidências.
Confesso que cheguei a procurar me aproximar delas, sem tomar
o mínimo cuidado com relação à espevitada da Clícia, mas Cris-
tine, já de longe, tratou-me novamente com desdém. Pelo menos
foi a impressão que tive, por reserva ou por descaso mesmo, não
sei. Fiquei como náufrago, inerte espectador, observando-as se
afastarem, explorando em surdina o seu caminhar – depois dos
olhos, já disse, a particularidade de seu corpo que maior atração
exercia sobre mim: as pernas empertigadas e firmes, mas, ao mes-
mo tempo, leves e amortecidas, o que produzia sensualíssimo
bamboleio de cintura. Uma marcha cálida e galante.
No restante da semana, ao final das aulas, ela juntava seus per-
tences e se apressava em sair. Aconteceu, porém de, numa tarde,
enquanto aguardava ficarem prontas algumas cópias xerográficas,
postei-me na soleira da loja – na verdade, um pequeno cômodo, no
centro da cidade, de uma única porta de tipo antigo, fechado por bal-
cão alto de madeira e com um espelho amarelo-dourado, manchado,
na parede do fundo, de péssimo gosto e que desfigurava ainda mais
aquele deplorável interior.
Pois nem meio minuto fazia que estava ali, parado, quando
deparei com Cristine. Vinha na direção em que me encontrava.
Arrastava-se com ares de tédio ou de cansaço, não sei, como de
hábito nas vezes em que não se encontrava muito disposta, ou
assaltada de alguma “macacoa” – termo que usava com certa fre-
quência. Logo que me viu, abriu um sorriso ligeiro e meio força-
do, e ficou me controlando, enquanto se aproximava. Seus passos
pesadões ganharam aprumo e balanço (parecia “fabricar” o ritmo
de suas passadas). Ao passar por mim, fez sinal com a mão e com
a cabeça e ampliou o sorriso cúmplice, mas não disse palavra.

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Limitei-me a responder-lhe com o mesmo gesto e a mesma
mudez, atitude que, passados poucos minutos, me deixou extre-
mamente desgostoso comigo mesmo; ao certo, ela esperava algu-
ma iniciativa de minha parte, alguma atitude minha, sei lá. Poderia
tê-la interrompido, dirigido-lhe qualquer conversa... Isso pelo mí-
nimo. Mas nada. Meu cérebro, mouco e abestalhado, como num
pesadelo, permaneceu suspenso, puxando para o alto meu cor-
po vertiginosamente levitante – quando Cristine era ausência e
mistério, ela adquiria dimensão e robustez que se diriam mesmo
inacreditáveis.
Segui-a até desaparecer, ereta e impenetrável, na esquina da
praça, os meneios, os requebros, a dança dos cabelos, sem, no
entanto, se virar para trás nem um minuto sequer.
Penso que a vida da gente, a vida de todo mundo, não é nunca
estrada pavimentada, mas, ao contrário, senda irregular e cheia
de acidentes de terreno, de descampados e desfiladeiros, de espi-
nhaços e valados, a qual cada um, a duras penas, necessita percor-
rer. Penso também que a existência é como um pobre-diabo que,
cuidadosa e serenamente, pelas manhãs torna sempre e sempre a
erguer sua choupana, destruída que foi na madrugada pela fúria
do mar, ante o olhar incrédulo dos que simplesmente passeiam de
calção de banho, pela areia ensolarada. Penso que a vida é pôr pre-
gos em tabiques e telhados, mesmo que as ressacas, os maremotos
e as intempéries, como bumerangue, reapareçam um dia ou outro
e lancem tudo de novo ao chão. Sem a menor dúvida.

Centelhas
São três da manhã e acabo de despertar sobressaltado por uma cena
mental: Cristine se materializava, rutilante qual um clarão, à margem
de uma estrada asfaltada, erma e que se perdia no infinito. Calça cor
dos trigais, blusa negra, na qual existia, na altura de um dos seios,
uma estampa grande e dourada. Movimentos arrastados, balanço

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suave do corpo, tais quais os produzidos por câmera lenta, muuuiii-
to lenta. Contraía meigamente os olhos, ar tímido, sereno, sorrindo
com aparência de ingênua, os fios dourados dos cabelos levitando
em amortecido sobe e desce. Muda e inteiramente fiel, cheiro de per-
fumes e de plantas úmidas, à feição das manhãs de sol alegre e fresco
após as chuvas. Uma locação onde tudo transcorria sem ruídos; ou
somente há sons de fontes, de marulhos, de pedras de rio, de rochas
frias, de musgos e raízes. Os ventinhos amainando.
Não sei o que provocou esta visão, não sei; talvez proviesse
dos sonhos, dos escaninhos dos sonhos, que é onde se oculta o
que nossa fantasia nos oferta para vagar pelas trilhas das utopias.
Ou teve sua origem em estúrdios fenômenos sensoriais que meu
cérebro tenha tecido e que, até hoje, não tivera a oportunidade
de experimentar. Assim mesmo: calça dos trigais maduros, blusa
enfuscada, os cabelos abancando docemente, suavemente...

Os cata-ventos
Minha trajetória errática por estas páginas arrisca-se agora a de-
sandar por completo. É a forte sensação que me fica. Durante as
noites, ou melhor, pelas madrugadas, costumo despertar, vez ou
outra, com ideias “brilhantes”, que julgo – naquela hora – pro-
veitosas para meus escritos. São expressões, flashes, fragmentos
de sonhos que meu subconsciente cria; aí busco me fixar nelas,
imprimi-las na memória, para que meu cérebro não as perca, ou
até mesmo anotá-las em folhas de papel, que me ficam à mão,
sobre a escrivaninha, para, no dia seguinte, ter de onde beber água.
É fato que muitas de tais anotações tiveram serventia, e estão
entremeadas em trechos que a imaginação criou, mas ocorre que,
nos últimos tempos, tenho sido dominado por mórbida dormi-
deira, de pouco préstimo – pois não me descansa o corpo –, de
modo que, mal acomodado na cama, vejo-me fundeado pelo mais
mórbido e estirado dos sonos. Portanto, até mesmo dessa fonte

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tenho me visto privado e, lógico, trastejo em meus pensamentos
drenados, enquanto pesa sobre a cabeça a sombra de uma espada,
que diligencia febril culpa. Minha generosidade e tolerância para
comigo mesmo se esvaíram e encontro-me severamente descon-
tente com o resultado obtido até o momento. Sou um homem
comum, sem ilimitados defeitos, nem também grandes qualidades,
mas o passar e o repassar da vida trazem estranhezas que a mente
não assenhoreia. Desconheço como funciona com os demais seres,
mas, pelo menos para este Vicente de Avelar Campos é assim. Não
me absolvo com facilidade, não tenho grandes complacências para
comigo mesmo e talvez esteja aí a fonte de minhas perturbações.
Meu quarto, minha escrivaninha, funcionam como verdadei-
ros confessionários; sento-me aqui, diante da fosforescência desta
lâmpada de leitura, as noites mais silenciosas e vazias do mundo
e, abstraído como por um giro de listras concêntricas de um cata-
vento, um inverno inteiro permaneço focando esta claridade, igual
àquelas lampadazinhas que ficam acesas nos altares dos templos
católicos, que recordam aos fiéis que se encontra presente o espíri-
to de Deus. A minha exprime que meus espíritos estão acesos e que
buscam penitência. Aqui deve estar o meu ádito, meu tabernáculo.
Creio até mesmo ser procedente, a essa altura, indagar quem
afinal é o protagonista desta história: Cristine ou eu próprio? Sim,
sim, pois, como autor, sou quem em verdade mais parece se mo-
ver pelo tablado, encenar os enredos, repetir as falas, percorrer
os calendários, enquanto ela, duma certa maneira, figura muitas e
muitas vezes em segundo plano; ela contracena. De alguma ma-
neira, não consegui pôr o foco onde tencionava, projetar a vista
no autêntico centro de gravidade, ou esta luz é difusa demais e
acaba por não iluminar absolutamente nada, muito menos quem
pretendia de verdade. Um erro.
Alguém que penetrasse neste aposento teria de compreender
minha aflição e se portar com indulgência. Não encontro facilida-
de em esquecer tudo, sou uma figura humana comum, meu infer-

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no pessoal ainda não extinguiu de todo suas chamas, suas crateras
não se aplanaram, e expor o que me vem à cabeça quase traduz
o que considero como minha absolvição. Sei que seria absurdo
considerar-me inocente, sei disso, nunca se é completamente per-
feito e justo, ninguém é essencialmente bom. Devo ter cometido
erros, essa é a sorte, há sempre algo de falibilidade, algo de rasuras,
mas o caso é que não consigo delineá-los – os erros, quero dizer –
com perfeição, nem deixar para trás os dolorosos sacrifícios dessa
busca. Estou sendo sincero; nada posso fazer de melhor.

A cigana de Merimée
“- Venha comigo – eu disse a ela.
- Está bem! Vamos!
Fui buscar meu cavalo, e, com ela na garupa, marchamos todo o
resto da noite sem dizer uma única palavra. Paramos ao clarear do
dia num albergue isolado, não longe de uma pequena capela. Então
eu disse a Carmen:
- Escute, quero esquecer tudo. Não lhe falarei de nada; mas jure-me
uma coisa: é que vai acompanhar-me à América, e que lá ficará sossegada.
- Não – disse ela, zangada -, não quero ir para a América. Sinto-
me bem aqui.
- É porque está perto de Lucas: mas pense bem, se ele escapar, não
será para morrer de velho. De resto, para que meter-me com ele? Estou
cansado de matar todos os teus amantes; é você que eu matarei.”

O diário secreto
Por onde recomeçar, por onde recuperar a memória de Cristi-
ne, agora já indelevelmente manchada por amargas lembranças,
por onde principiar a rota? Eis a tarefa mais complexa, o quebra-
cabeça maior: detectar o exato ponto de retomar o fio da meada,
de voltar atrás.
Desorienta-me a indagação que algumas vezes lhe formulava e

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que ela se recusava a responder, quem é você, Cristine?, inquiri-
ção que não compreendia nenhum propósito de devassar seu pas-
sado, de ser inconveniente, não existia nem a mais tênue sombra
de sordidez de minha parte, afianço. Mas é que seu reiterado si-
lêncio acabava por despertar em mim não pouca curiosidade. Não
se pode desembarcar num ancoradouro qualquer, arriar âncoras,
abaixar as escotilhas, sem conhecer direitinho os canais de acesso,
os arrecifes, os fojos, as insídias. Cristine silenciava-se, agia com
reticências, comportava-se com extraordinária frieza, o que me
forçava, como antídoto, a também procurar aprimorar meu senso
de reserva. Essa a estratégia que tive de adotar, contando com isso
forçar uma mudança de conduta nela.
Estou narrando esta história e acho que necessito ainda fazer
menção a outro acidente: verdadeiramente, ainda não havia che-
gado a sondar, com tamanha profundidade, até onde chegam os
sentimentos de um homem por uma mulher – ou vice-versa. Tudo
o que conhecera era tão só uma experiência de vida tranquila e es-
tável, navegando em altas calmarias e arejos, não sujeito às lufadas
e às assolações dos grandes arrebatamentos, quero dizer. Presen-
ciava unicamente os episódios da vida, seguia as rotas sem muitos
assomos, cuidando apenas de nunca escorregar, de desprezar as
experiências arriscadas; a vida da razão, na qual se procura atender
aos instintos mais primários e emergentes. Acima de tudo, eu me
constituía na típica figura humana que convivia com a ideia de
paz, de sossego e, por conseguinte, desconcentrado da concepção
de liberdade, os dois polos a que faz alusão Alexander Segeevich
Pushkin, em sua obra apócrifa, O Diário Secreto.
De fato, ao longo da existência de cada um de nós, uma ou
outra, a paz ou a liberdade, tem de ser sacrificada, é incontestável.
Digo que sou capaz até mesmo de dividir a humanidade nas duas
metades, de relacionar cada qual dos que conheço no espaço do
sossego ou no da independência, sem encontrar dificuldades no
tracejo da linha reta que limita os dois lados. Às vezes, até por mera

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distração, ponho-me a acertar neste raciocínio de discernimento,
situando os que se encontram de um lado e doutro. Há uma zona
nítida entre os dois setores, não comportando a menor confusão.
Um homem e uma mulher, ao se unirem, acabam elegendo um dos
extremos para gastar sua vida. É imperativa a opção, é preceito do
qual não se pode escapar nunca, mesmo que seja impressentida a
opção. Aos interessados no tema, aconselho a leitura do referido
drama autobiográfico. E quando em minha consciência – ou, talvez
melhor ainda, em meu subconsciente – emergia este conceito de li-
berdade, aí, exatamente aí, a imagem de Cristine se interpunha. Não
perfeitamente delineada, não tão manifesta, mas mesmo assim in-
quebrantável e vasta; essa a impressão que me ficava, ainda quando
revestida na fragilidade de um corpo de menina. E, como corolário
imperativo, a quietude necessitaria ser sacrificada.
Enquanto pulsa o coração, a voragem e o encanto habitam
igual endereço nos centros encefálicos. Ambos, o encanto e a vo-
ragem, se exteriorizam no corpo por reações bastante parecidas.
O ritmo da vida é esse constante ir e vir, sobre o qual nunca se
tem domínio perfeito, por mais inquietante e penoso possa pare-
cer. Imagino que equivalha, por exemplo, ao que experimentam
mergulhadores principiantes, os quais, ao mesmo tempo em que se
deixam fascinar pelas cores e formas submarinas, não conseguem
evitar imprevistos ataques de pânico, quando metem na cabeça a
profundidade em que se encontram, quando tomam consciência
de estarem a dez, vinte metros da superfície, do brilho do Sol. É ou
não uma loucura!? Bom, mas o que entendo disso? É embrenhar-
se em áreas de desvãos e segredos, em caminhos obscuros, em pas-
sagens tortuosas e turvas, e por aí não me meto. O mais prudente
é deixar de lado tais trilhas e buscar estradas mais seguras. Porém,
involuntariamente, salteia a força moral, desentoca-se a minha na-
tureza, o que, vira e mexe, acaba me empurrando de novo ladeira
abaixo, e faz brotar certo sentimento de condenação. Nossa sensi-
bilidade tem desses mistérios.

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Pauso um pouco, uns minutos, vazio de tudo. As memórias e
os juízos me ocorrem desordenados e turbulentos. Regressa-me a
sensação de que torno sempre ao início, sempre e sempre, como
se estivesse dando voltas em círculos, constringindo-me em torno
de mim mesmo e urge sair do redemunho. Semblantes incertos de
mulheres – duas ou três – desfilam em meu tempo interior: uma ou
outra colega de trabalho ou de faculdade. Rosana, um surto. Minha
mãe. Virgínia: inexcitabilidade. Preservo, colada na mente, uma cena
terrivelmente degradante para ela, acho, e um bocado repulsiva para
um homem: a porta do banheiro escancarada e Virgínia, sentada no
vaso sanitário, em repugnante ato de fazer sua higiene pós-cópula.
Cada vez que disto me recordo tenho a mesma sensação de nojo
daquele remoto dia. Será que teria se tratado de descuido? Despu-
dor, não creio. Ela me encarou com ar de forte afronta ou indig-
nação, esperando que me afastasse prontamente. Apressei-me na
direção da cozinha, terrivelmente vexado, fingindo ocupar-me com
tarefas que rendessem ruídos, vasilhas, torneira enchendo o filtro de
água, abrindo e fechando a geladeira, coisas do gênero.
Minutos depois, seus passos no corredor, já estou indo, num
tom seco, de quem não esperava respostas, nem muito menos ser
acompanhada até a porta.

As superfícies e as depressões
É impossível imaginar condição que ultimamente tenha me trazido
mais absorvimento e, ao mesmo tempo, tanta dedicação e vigilân-
cia, que a forma de rematar esta narrativa. Minha cabeça é uma
gangorra, que reluta entre deter-me judiciosamente em todos os fa-
tos, para assim traçar um perfil fidedigno de Cristine, com os quais
possa convencer ao mundo da minha inocência, ou expor o que
resta em duas ou três penadas e me desincumbir de vez do fardo.
Na primeira hipótese, arrisco-me a produzir reles pastiche, a
repetir, mediocremente, um número quase infinito de prosado-

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res que a história se encarregou de perpetuar, estes sim, pela sua
genialidade e talento. Na segunda, fica o temor de estar promo-
vendo verdadeira amputação no remate, uma conclusão manca,
estropiando as formas e as peças, o que, sem sombra de dúvida,
desvalorizaria o produto final.
De qualquer modo, parece-me que, de um jeito ou de outro,
falando destes males, no mínino encontro alívio para a minha
consciência e me identifico cada vez mais no caminho da tempe-
rança e do sossego. Eles, os males, já não têm formas tão assusta-
doras e descomunais e me fazem, hoje em dia, menos mal à alma.
Não pretendo dizer tudo, e este texto não diz. É tempo de
procurar meus atalhos.

À sombra das raparigas em flor II


“Naturalmente achava agora que aquela hipótese, em que antes tantas
vezes se detinha, de que as fantasias do seu ciúme eram a única coisa
que enegrecia a vida de Odette, na realidade inocente, aquela hipótese
(afinal de contas benéfica, porque, enquanto durou a sua enfermidade
amorosa, lhe mitigara os sofrimentos, apresentando-os como imaginá-
rios) não era certa, que o seu ciúme é que via claro, e que, se Odette
o havia amado mais do que ele supunha, também o enganara muito
mais do que ele imaginava. Outrora, quando sofria tanto, jurara que,
logo que não mais amasse a Odette, e não mais temesse incomodá-la ou
fazer-lhe crer que a amava demasiado, dar-se-ia à satisfação de elucidar
com ela, por simples amor da verdade e como um ponto de história, se
Forcheville estava ou não estava deitado com ela no dia em que ele toca-
ra a campainha e batera nas vidraças sem que lhe abrissem ...”

A enfermidade amorosa
“Enquanto durou a enfermidade amorosa”; estou tornando a inscul-
pir a frase de Proust. Quanto resiste a enfermidade amorosa? Ela
pode ser regularmente delimitada em quinzenas ou meses, como

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o próprio Sílvio de Castro acreditava – para ele, nunca persistia
mais que meio ano – ou é ação humana que não se mede em pon-
teiros e calendários?
Mais ainda: somos capazes, por quanto tempo, de proporcio-
nar alegria a alguém? Quinze minutos de satisfação sexual por dia
ou por semana, bastam?

Simulacros
Afinal chegou a época em que passei a receber ligações altas ho-
ras da madrugada. Um ou dois toques, somente, e desligavam em
seguida, quando adivinhavam que já me encontrava sacudido do
sono. Foi exatamente em decorrência disso que decidi instalar em
minha casa desses aparelhos detectores de chamadas telefônicas.
E Cristine foi das únicas a ter acesso à informação. Fiz-lhe men-
ção das ligações e da compra do referido invento, mostrei-lhe in-
clusive o seu funcionamento, recordo-me muito bem, numa tarde
chuvosa de um domingo em que não me encontrava muito dis-
posto, ainda não de todo refeito de forte gripe que me lançara na
cama por dois dias e que me fizera inclusive perder alguns quilos.
Ela apareceu por aqui, os olhos grandes e fulminantes me es-
crutando atrevidamente, deixando-me com a forte sensação de eu
haver cometido algum delito, ou existisse algo do que me arrepen-
der; como se buscasse em mim sinais de perfídia ou outra inquali-
ficável incorreção qualquer. Fiquei um tempão estudando minhas
mais recentes atitudes, na pressuposição de existir alguma falta gra-
ve de minha parte que lhe houvesse causado mágoa, buscando, nas
suas expressões fisionômicas, nos movimentos de suas sobrance-
lhas, no fulgurar de suas íris, o sentido do seu comportamento. O
que se passava dentro daquela cabecinha, nem Deus saberia.
Creio já haver dito antes que, de todos os seus defeitos morais, o
que mais dissabor me causava era o de que fazia uso da falsidade e da
dissimulação com exageradíssima frequência, mesmo para justificar

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atos os mais banais, o que me forçava a crer que estivesse diante de
um quadro psicopatológico até. Para não fazer conta da facilidade
com que perdia a paciência, discutindo em voz alta com qualquer um
que fosse, desafiando ou rejeitando ativamente as regras e a ordem
natural das coisas. Tomava atitudes com o deliberado propósito de
aborrecer pessoas, transferindo para outros os seus próprios erros.
Bom, mas não era sobre isso que pretendia discorrer. Nesse
domingo, na minha casa, ela introduziu, mesmo brevemente, um
assunto, que voltaria à carga cerca de uma semana depois, para
posteriormente repeti-lo dezenas de vezes, e que versava sobre a
existência de outra mulher em minha vida. Eis aí tema que, de tão
assíduo e invariável em nossas conversas, acabou por me trazer uma
pontinha de enfaro e até mesmo de aridez, forçando-me inclusi-
ve a tomar a atitude de silenciar-me completamente quando ela o
reintroduzia, o que se configurou como remédio inútil, pois ela, até
os últimos momentos, insistia na hipótese (acusava-me inclusive de
possuir um filho com a tal). Extremamente furiosa, os olhos que
pareciam saltar das órbitas, fisionomia leonina de quem se prepara
para investir sobre o inimigo, dirigia-me palavras insensatas e desca-
bidas, não me permitindo a menor contra-argumentação.
Naquela primeira vez, reagi da forma mais fria possível, ence-
nei fazer pouco-caso, em parte pela minha real indisposição e fra-
queza, outro tanto porque não me sentia nem um pouco tocado.
Quando, enfim, compreendeu o meu estado de saúde, ela acabou
se calando. E ficou por ali, inquieta, zanzando de um lado para
outro, até que o monumental silêncio entre nós dois a fizesse ver
que deveria se pôr em retirada.

No detector de chamadas telefônicas, a partir desse dia, du-


rante quase uma quinzena, fez-se silêncio total. Nenhuma ligação,
nada, nada. Quando amanhecia, acionava as teclas, acreditando
que não havia despertado, mas, de verdade, não existia nenhum
registro. Não demorou muito para compreender que partiram

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exatamente de Cristine as tais ligações.
Numa noite, porém, ela ligou e, após quase um minuto sem di-
zer nada e também sem desligar, em que permaneci na expectativa
do que viria do outro lado, escutei-a dizer unicamente o seguinte:
Na verdade, você bem que merecia que eu te traísse.
E bateu com o telefone no gancho.
A partir desse episódio, retornaram as chamadas, umas vezes
feitas de telefones públicos, outras, de números incertos e que
jamais se repetiam.
De certo modo, nos primórdios, apesar do desprazer e da con-
turbação que me causava o fato de ser despertado quando já me
encontrava ferrado no sono, no fundo sentia uma ponta de con-
tentamento com aquela situação. Contentamento por saber que,
afinal de contas, Cristine não conseguia se desprender de mim. O
silêncio seria pior. Tal condição me aliviava e não quis acreditar que
poderia ser outra pessoa que me telefonava. Em outras palavras, o
rastreio a que era submetido tinha seus pontos positivos. Sabia que
era ela, e bastava.
Até um dia – lembro-me, no feriado de dois de novembro –,
em que uma divindade qualquer dos infernos veio para me em-
purrar, inexplicável e irracionalmente, para a mais terrível das des-
graças: resolvi checar de onde havia partido a chamada daquela
madrugada – do dia primeiro para o dia dois. Pois bem; eram mais
de oito da manhã, disquei e atendeu-me uma voz masculina, so-
nolenta e com exagerada agressividade. Vendo-me embaraçado e
com os nervos sem controle, indaguei-lhe o endereço, mas a voz,
trovejando do outro lado, inquiriu-me rispidamente com quem
desejava falar. Lembro-me que fui desembuchando, tateando se se
tratava da rua tal e tal, um endereço qualquer, inventado na hora,
ao que ele deixou escapar, em altos brados, não, é da avenida...
Ele forneceu a direção, a qual oculto, nesse momento, por todas
as razões do mundo. E bateu o telefone no gancho.
Corri ao catálogo e localizei o número que aparecia no detector:

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no finalzinho da avenida. Exatamente a residência do filho dum ri-
quíssimo empresário, com quem, de concludente maneira, ela havia
passado a noite. Vou chamá-lo de Leonardo, para quando necessá-
rio fazer referência ao mesmo. Realmente me recordo de havê-la
visto, dias antes, perambulando por aquelas imediações. Quer dizer,
ela fazia questão de me revelar que tinha outros homens.
Aquele miserável aparelho: acabei fazendo-o em pedaços,
pois, ao invés de me ser de valia, acabou, em verdade, por me tra-
zer arranhaduras e flagelos, acaso ela ligasse ou não ligasse; afinal,
nesse último caso, me restaria a certidão de que Cristine me havia
perdido da memória.

Oseias ou o castigo da esposa infiel


Castigo de esposa infiel
4 Protestai contra vossa mãe, protestai, porque já não é minha
mulher e já não sou seu marido. Afaste ela de sua face suas fornica-
ções e seus adultérios de entre os seus seios, 5 para que não a desnu-
de como no dia de seu nascimento e não a torne como um deserto;
para que eu não a reduza a uma terra seca e não a deixe perecer de
sede. 7...Ela disse consigo mesma: “seguirei os meus amantes, ...
8 Por isso, fecharei com espinhos o seu caminho; cerca-la-á de
um muro e ela não encontrará mais saída.
12 Vou descobrir sua abjeção aos olhos de seus amantes e
ninguém a libertará de minha mão. 13 Porei fim a todos os seus
divertimentos, suas festividades, suas luas novas, seus sábados e a
todas as suas festas. 15 Eu a farei expiar os dias..., quando lhe quei-
mavam ofertas, ataviada de seu colar e de suas joias para cortejar
os seus amantes, sem pensar mais em mim.

Amor à esposa infiel


3 Por muitos dias ficarás aí, sem te prostituíres nem te entre-
gares a homem algum,...

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Quando sopra o noroeste
Um episódio, durante a noite passada, cruzou-me a mente, do qual
não mais guardava a mínima lembrança. Não sei o que o fez des-
pontar, mas, ao que parece, quanto mais escavações vou realizando,
quanto mais faxina, mais o que me vai por dentro teima em des-
pontar, em se exibir à luz. Tomei a resolução de revelá-lo, pois estou
certo de que, se pulasse esta parte da história, ela ficaria frágil e
manca e, uma vez o sol-fora, não mudei em nada minha disposição.
Recapitulá-lo me traz, nas vísceras e na pele, quase os mesmos
padecimentos da época; contudo, no abrigo da serena introspec-
ção que a calma dos serões nos transmite, e também dos mais
severos ditames, ficou a segurança de que, em assim agindo, deixo
mais claro quem realmente foi Cristine.
Durante o dia, ela me telefonou duas vezes, dona da maior
animação e fervor possível, ajustando que passaríamos juntos
aquela noite. Nunca me inteirei acerca do que ela dava conta em
sua casa para justificar suas ausências, de quais desculpas lançava
mão... O essencial era que viesse, e ponto. Só o que digo é que, à
hora combinada – deixava o portão e a porta somente encostados,
para não retardar a sua entrada –, ela não apareceu.
E os minutos
Os quartos de hora.
E os relógios, e a inquietude que tomava corpo.
Nove, nove e meia, dez horas. Nada.
Jamais havia sucedido nada parecido, jamais, Cristine era ex-
traordinariamente pontual, esta, aliás, uma de suas maiores virtu-
des, pelo menos para o meu ponto de vista e para o meu ritmo de
vida, marcado pela precisão e pela regularidade.
Eu não sabia explicar o que estava acontecendo. No meio
daquele nevoeiro, comecei a formular hipóteses e mais hipóteses
para justificar o imprevisto, algumas terríveis, terríveis, outras mais
brandas, que meu juízo criava para atenuar meu sofrimento, armas
de que dispomos em alta conta como mecanismos de defesa, das

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quais lançamos mão tantas vezes na vida.
Arrisquei-me a ligar para sua casa acho que uma dezena de
vezes, uma atrás da outra, atitude que evitava a qualquer preço – a
não ser no começo, quando, por uma espécie de pacto existente
entre nós, eu deixava dar somente um toque, para sinalizar que es-
tava pensando nela. Pois ninguém atendeu, o que contribuiu para
acentuar ainda mais o meu pânico.
Por volta de onze da noite começou a relampejar. Nunca vi tan-
tos relâmpagos em minha vida, clarões vazando as vidraças da jane-
la, estilhaçando o quarto. Depois, a ventar, batendo portas e janelas
na vizinhança. E silvos remugindo nos frisos da veneziana, e sons
indefinidos das ruas, estalidos zumbidores, que anunciavam chuva
após o longo período de estiagem.
Mil vezes aterrorizado, fiquei imaginando-a surpreendida pela
intempérie, aqui ou ali, junto de alguém ou desacompanhada. Foi
horrível! Pressentia passos se aproximando, acompanhava-os ir-
rompendo defronte da casa, supunha-os junto ao portão e, quan-
do calculava que fossem estancar e entrar pelo corredor, seguiam
na mesma batida, calçada adiante. Enfiado no pijama, andava para
lá e para cá, incendiado e confuso, acertando comigo mesmo
amanhã, ou quem sabe, segunda, ela me explica o que acon-
teceu, tinha de haver explicação plausível, era só dar tempo. O
fato de ninguém haver atendido ao telefone era indicativo de
que alguma coisa sucedera. O instinto me fazia pensar assim.
Apaguei as luzes e deitei-me, acreditando que abreviaria meu
trânsito em direção ao fojo dos sonos. Huuum! Ledo engano. A
atividade cerebral, às carreiras, mantinha-me eletricamente aceso
e ardente, fermentando ruidosa e diligente vigília. Remexia-me na
cama, inquieto, as ideias em alvoroço, rastreando milhões e mi-
lhões de possibilidades. Recapitulava, quase à deriva, suas falas ao
telefone, especulava sobre sua expressão fisionômica, enquanto
proferia sua promessa, e não conseguia distinguir nela o menor
sinal de relutância ou de golpe, nada, nada.

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De súbito, fui violentamente sacudido por refulgência de gran-
deza espantosa: avistei Cristine vítima de sequestro (a que ponto
chega uma mente perturbada!). Quase sem pestanejar, saltei da
cama, vesti a primeira muda de roupa que encontrei pela frente e,
sem dar tempo a nenhuma nova reflexão, despachei-me para as ruas.
A chuva havia molhado os paralelepípedos e as calçadas, pe-
quenas poças aqui e acolá. A noite refrescara bastante, apesar de,
dentro de casa, ainda não haver destemperado nada. Somente um
chuvisco ralo embaçava a paisagem túrbida e de sombras. Varredo-
res de rua se abrigavam debaixo da marquise do banco. Um deles
enxotou um bando de cães com sua vassoura de folhas de bambu.
Pequeno grupo, visivelmente alcoolizado, elevava-se, em algazar-
ra, diante do carro de lanche. No meio da praça, feito estátua, um
demente sem camisa e enfiado numa calça muito larga, sustentada
por suspensório desajeitado, cortada um palmo abaixo do joelho.
Mulher esquiva, protegida por sombrinha, vinha na minha direção,
mas desviou-se para a calçada do outro lado uns vinte metros antes.
Fui andando sem rumo, andando, a garganta seca, minhas per-
nas me levando às cegas, que é como fazem os ginetes, os refu-
giados, os giramundos. Buscando vestígios de Cristine. Estive até
mesmo na sua rua, perigosamente a poucas casas de distância, mas
nada. As duas janelas de treliça marrom inteiramente fechadas. A
mais angustiosa e longa das noites. No meio disso, e para cúmulo
da desgraça, dei conta de um Fiat estacionado, ocupado por duas
pessoas e, na posição do carona, percebi que havia uma mulher.
Vivi a terrível premonição de que era ela, meus sentidos me ad-
vertiram disso e entrei em alerta máximo. Ao menos o volume e o
desenho dos cabelos me faziam crer nessa possibilidade. Acerquei-
me prudentemente do veículo, coração prorrompendo pela boca...
Fiz menção de bater no vidro, porém com o cuidado de pelo lado
do motorista, atitude que certamente seria interpretada como me-
nos atrevida e inconveniente. Um rapaz de meia idade abaixou,
com ares de extrema agressividade, uma fresta no vidro esfumaça-

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do pela neblina e, como não poderia ser diferente, me encarou de
maneira hostil e me perguntou, num tom arrogante e impaciente,
o que estava procurando ali.
Ixi...! Aproveitando a oportunidade, curvei o tronco, abaixei-me
um pouco e, pelo sim pelo não, perscrutei, pela abertura estreita,
quem se encontrava do outro lado. Não era ela. Não era!
Percebendo a estupidez do meu gesto, afastei-me logo dali,
tratando de dar à fuga uns passos que talvez simulassem os de
um bêbado, ou de um abilolado andarilho noturno: manquitolan-
do e me movendo aos tombos, encenando agitar convulsamente
um dos braços. Já distante, senti enorme alívio, apesar de ainda
constrangido; como se me desoprimisse de pesada armadura que
envergasse há dias, como se descalçasse de um sapato de ferro.
Virei-me para trás, a fim de estudar se era seguido. Eu, a única
sombra da rua.

A chuva apertava e abrandava, apertava e abrandava. Esgota-


do, pernas bambas, peito arfando, busquei refúgio debaixo de uma
árvore de copa imensa, perdido na via pública, a qual não seria ca-
paz de dar conta da latitude, procurando retomar o fôlego. Sentia
o estômago nauseoso, lábios enregelados, espasmos nos músculos
da face. Gotas de chuva respingavam pelas minhas frontes, pela
franja desarranjada do cabelo, e iam me entrando pela boca, pelas
narinas a cada inspiração profunda. Comecei a tremer de frio e a
tossir. Revi o semblante pouco esclarecedor e dúbio de Cristine,
o seu vulto latejante e etéreo. Uma casa se encontrava com luzes
acesas. Diante da paisagem inóspita e esvaziada, minha atenção se
voltou para o quadrado da janela, muito baixa em relação à calça-
da, por onde vazava a fulgurância do televisor ligado.
Permaneci estancado ali uns bons cinco ou dez minutos, minhas
mãos chapinhando nas vestes ensopadas, patética sensação de extra-
vio, dos sorvedouros. Até compreender o desatino de todo o meu
procedimento. O que estava fazendo? O que esperava encontrar?

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Então, vibrações internas, num jorro intenso e volátil, passa-
ram a se apresentar, como flashes anímicos: Cristine, desdobran-
do-se em torno do corpo de outro homem... contorcendo-se...
invertendo a posição. Ela estirada, à deriva, instantâneos que se
mesclavam aos relâmpagos do céu, que alumiavam numa cinti-
lação rápida e coruscante e cortavam feito navalha. Sobre minha
cabeça, seus lábios pronunciando meus enfeites atraíram para
mim, dos homens, somente o abandono, a desconfiança.
Nunca o amor. Ou não poderemos ser amigos nunca, repi-
sando esta sentença, enquanto parecia me percorrer de cima a
baixo, nunca poderei ser sua amiga, quando nos separarmos,
dizia toda vez que eu deixava escapar que tudo tinha fim, quando
não lhe assegurava que, passados meses ou anos, ainda estivésse-
mos juntos. E formulava aquilo num tom seguro e aparentemente
sem ressentimentos, tão seguro quanto o do pescador de larga
prática, para bisonho aprendiz que lhe viva nas abas, propalando,
cheio de mistério, que não vem peixe quando sopra o noroeste.
Não tem peixe porque o vento empurra os cardumes para longe
da costa, atrás dos navios.

O fio do novelo
Os que me seguiram até este ponto devem ter observado que estou
aprontando as páginas finais destas confidências (ou o melhor seria
considerá-las inconfidências?). Não resta muito para ser dito. Talvez
um punhado de pequenos testemunhos e impressões, a maioria deles
de pouquíssima substância, avalio.
No embate entre me deter em pormenores, previdente de agir
com o máximo de cuidado possível, ou lançar tudo de uma só vez
em cima da mesa e ir-me embora, tenho preferência pela segunda
condição, não só por economia de tempo e papel, mas também, e
principalmente, por preguiça e comedimento. Em algumas deze-
nas de linhas bem poderia dar remate à narrativa, encerrar minha

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empreitada, só tomando precaução de não invalidar e deteriorar
por completo todo meu trabalho anterior.
Alguma coisa será mantida em reserva; faz parte da prudência
e da discrição. Outras estão mortas na memória e se recusam a
vir à tona, a serem exumadas, e o instinto, ao que creio, se encar-
rega de deixá-las onde estão. Revolver por demais a terra acaba
contribuindo para os aluviões e para abrir voçorocas num terreno
previamente fértil.
Mas o que necessito, quase como fecho, de fazer referência
é que a ponta do novelo, que urgia ser desenrolado, estava justa-
mente num bilhete por ela deixado em minha casa, após os episó-
dios dos telefonemas noturnos. Recordo que estávamos perto do
final do ano, menos de mês de aula pela frente e, com as férias, as
chamas, penso, acabariam por se extinguir. Contudo, o calendário
não pôde esperar.
No bilhete, Cristine confessava, num texto bastante sucinto,
que conhecera uma pessoa e tal – não dava detalhes –, o que, claro,
provocou-me o mais impressionante e penoso açoite, deixando-
me num estado de espírito pior do que antes. Coisa de momentos.
Nas horas que se seguiram, no entanto, à medida que meu racional
punha seus equipamentos para funcionar, fui percebendo o ardil.
Obviamente não existia outra pessoa, uma vez que ela, com sua
ação própria de causticidade e crueza, jamais tomaria o cuidado de
me prevenir de tal fato. Jamais. Na vida de todos os dias, com seus
disfarces habituais (que no início me pareceram inocentes, mas
que, com o passar do tempo, foram tomando proporções ameaça-
doras), ela procurava sempre ocultar sua legítima face, mostrando-
se exatamente o contrário do que era, em verdade. Ora, já tratei
antes desse assunto. Por exemplo, confessava, reiteradas vezes:
Procurei por você em todos os homens com quem estive.
“Em todos os homens com quem estive”. “Homens”, no plural.
Algo mais duro de se ouvir? Mas aí o bestial conforto: procurava
por mim.

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A declaração de que havia conhecido alguém tratava-se, ob-
viamente, de estratagema para semear em mim o pólen do ciúme,
arte da qual fez uso a vida toda. Tantas foram as traições – pro-
curo calcular o número de vezes em que cometeu seus desatinos,
e avultam a dezenas, talvez a centena –, tantas as agonias, tantos
os abandonos que, com o tempo, cheguei a me sentir impassível
e calejado diante de suas ações. Foi, no entanto, tarefa inglória
desmarcar sua duplicidade de atitudes e movimentos, ver-me pro-
tegido contra tais arcabuzes.
Contudo, a mais essencial revelação do tal bilhete ainda está
por vir; não propriamente o que se encontrava nele contido, mas
‘como’ foi escrito. Ou, melhor ainda, ‘com o que’ foi escrito. Ex-
plico melhor: enquanto lia aquelas poucas palavras, para minha es-
tupefação, meus olhos se fixaram em duas palavrinhas: ‘gostando’
e ‘amigo’ – com esta última, manifestava o desejo de que continuá-
ssemos como tal, contrariando suas invocações anteriores. Em am-
bas, a letra ‘g’ não possuía aquela bolinha inferior, fazendo com
que se parecesse com um ‘o’ meio inclinado. Reconheci, imedia-
tamente, os tipos da máquina: eram os mesmos da carta de meses
antes, que me foi passada às mãos por Virgínia, prevenindo-a de
Cristine, provavelmente de um teclado antiguíssimo. Só que, dessa
vez, ninguém completara a letra com caneta, como da anterior.
Num primeiro momento, é verdade, e meio sem raciocinar,
atribuí os erros a alguém pouco versado em datilografia. Porém,
com os quadros e as inferências, fui me movendo no sentido de
concluir que a autoria dos dois textos era da mesma pessoa; logi-
camente, Cristine. Não sei se me fiz claro: ela própria, lá atrás, me
havia denunciado a Virgínia.
Eu acho que, naquele ponto, já havíamos atingido o cimo da
montanha, como com Cubas e Virgília, e começávamos a descida,
do outro lado da encosta, onde o declive é acentuado, onde o des-
penho é rápido demais e, mesmo que não queiramos, fogem do
controle de nossas pernas. Nada me faz tirar tal ideia da cabeça.

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Penso também que ela me empurrava com força e eu, titubeante,
fazia o mesmo com ela, pois não é possível compreender que duas
pessoas descaiam assim tão rapidamente.

Mulher ao piano
Dali por diante, e por infelicidade, o comportamento moral de
Cristine foi se deteriorando cada vez mais, perseguido bem de
perto por assustadora queda no seu rendimento escolar, o qual
praticamente caiu na poeira, não só em minha disciplina, mas, se-
gundo soube, em todas.
Ao mesmo tempo, assistiu-se ao que se poderia considerar
como um descaso para com seu próprio corpo, fazendo pouco de
seus dotes físicos: cabelos penteados com extremo desleixo, como
uma rotunda feita de algodão hidrófilo – logo eles, que exigiam
maior atenção –, lábios exageradamente pintados de batom ver-
melho vivo, que não lhe caíam bem, esmaltes berrantes e sombras
que deixavam suas pálpebras com aspecto funéreo e conjurante. De
resto, um agravamento nos seus traços de deterioração mental, se é
que posso assim considerar.
Numa tarde, Cristine, sabedora de que eu dava umas aulinhas
particulares, e enfiada num traje estranhíssimo, bateu à minha por-
ta. Estava totalmente desfigurada. Confesso que, completamente
estupefato, plantei-me no vão da entrada, com o propósito delibe-
rado de fechar-lhe a passagem; contudo, ela pareceu não perceber
minha intenção; esticou o pescoço e forçou um pouco, passando
entre meu corpo e o umbral. Tive ímpetos de exigir que se reti-
rasse e voltasse outra hora, o que passaria como o máximo da
indelicadeza. Mas me entalei por completo. Quando acabei de en-
costar a porta e girei para dentro, surpreendi-a, diante da estante,
enovelando uma mecha de cabelo, uma das mãos no quadril.
Os chamados do despertador: tiquetaque, tiquetaque... Dali a
pouco, ela se virou e passou a examinar as reproduções de pintu-

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ras nas paredes, como se o fizesse pela primeira vez, estancando
diante de uma gravura de Gromaire, ‘Mulher ao Piano’. Ela se
tornara estranha!
O despertador...
As alunas, na cozinha, em inexplicável silêncio.
Cristine sentou-se no sofá e cruzou as pernas.
Ainda demora?, inquiriu.
Eu me desfiz de minha imobilidade, de meu recolhimento,
como bonecos iniciam suas cabrioladas ao serem-lhes ligadas as
pilhas, ou lhes dado corda, uma infinidade de sentimentos se en-
trecruzando, em louca velocidade, dentro de mim. Primeiro, um
terror: como se acabasse de ser assaltado por macabra visão; e
me percebi medroso e hediondo, um misto destas sensações. Sim,
muitas vezes, covardemente, me ocultei diante de situações que
vislumbrava como de risco ou ameaça. Covardia não era sentimen-
to que estava se inaugurando naquele momento em mim, não...
Depois, vi-me extremamente perturbado, sem saber por onde dar
seguimento às minhas escapadelas e travessias. Meu pensamento
se fundia numa imensa sombra de vacuidade e escuridão, deixan-
do-me abandonado e entregue à vazão das águas; dissolvia-se o
mundo real, trazendo-me a fortíssima sensação dos pesadelos e
das grandes ilusões. Ela se apagou bem no meio daquela indistinta
mancha solar, que se expandia e se encolhia ao ritmo de minhas
batidas cardíacas, acompanhando o sangue fervescente nas veias.
Perdi-a de foco, os olhos turvados no centro de meu plano visual,
apesar de manter a visibilidade periférica, a estante, a extremidade
da poltrona... Cristine cavalgava por cima de minha derrocada.
Até onde me lembro, ela se ergueu e, num gesto circular,
apontou-me o interior da casa: Vai. Continue a aula. Eu espero,
numa abordagem atrevida e incrivelmente rude.
Eu permiti, como veem, sem mexer um dedo, que ela me espe-
zinhasse, me atacasse com toda cólera. Não reagi, não procurei res-
ponder na mesma moeda, em parte pela minha estupefação diante

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de sua audácia, mas também porque julgava que nada importava
mais. Contava que minha concórdia e meu silêncio a pudessem
atormentar mais que minhas emulações. Mesmo nas circunstâncias
mais difíceis, aprendi a me conter.
Voltei-me para o interior da casa, inteiramente transtornado,
tratando logo de encerrar a aula. Dispensei as alunas mais cedo –
eram três moças, da mesma faixa etária de Cristine – e segui-as até
o portão, a fim de vigiar suas reações ao darem-se com Cris. Pala-
vra que nada percebi. Foram naturais, diria. Cristine, na poltrona
do canto, passava os cds.
É interessante como há flagrantes da vida que jamais esque-
cemos, que jamais se apagam, mesmo passado tanto tempo, e
que, analisados com frieza, nem tanta substância assim tiveram.
Recordo-me perfeitamente dela sentada, recordo-me inclusive do
seu jeito e do ponto exato na poltrona – seria capaz de desenhar
o contorno de seu corpo no assento e no encosto – saia branca
e camiseta azul, sem mangas, inclinada sobre a pilha de discos.
Havia enrolado a barra da camiseta, expondo um pouco o lado do
tronco queimado de sol.
Pegou um cd e leu em voz alta: Ludwig von Beethoven...
Appassionata... Põe essa música.
Levantei-me, incontinenti e maquinal, liguei o aparelho, co-
loquei o cd e voltei a sentar-me no mesmo lugar. O que mais
vivamente desejava era que ela não estivesse ali, que não existisse,
não tivesse jamais existido. É a verdade. Ou, no mínimo, que dali
a pouquíssimo anunciasse que estava de partida definitiva. Eu a
entrevia como se observa um objeto comum, mas que necessita
permanecer sob vigia. Permaneci todo o tempo aquietado, acua-
do. É ou não estranhíssimo como se havia alterado tanto a situa-
ção entre nós dois?
Então ela se ergueu e caminhou lentamente pela sala. Não sei o
que lhe atraía no ‘Mulher ao Piano’. Meneava a cabeça para um lado,
para o outro, como se desejasse fixar aquela figura em coordenadas

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diferentes. Seus gestos me pareciam calculados.
Alguém cantava aos berros na vizinhança. A violência dos acor-
des do piano de Beethoven sacudia dentro dos meus ouvidos. Er-
gui-me para apagar a luz do corredor, mais para romper o enfado
e a ansiedade. Quando voltei, ela se encontrava sentada sobre as
almofadas, comprimindo as pernas, fetalmente.

Os divãs
Com o tempo, certas coisas começaram a ficar claras, como, por
exemplo, o fato de aparentemente todos – ou quase todos – terem
tomado ciência do que se passou entre nós dois. Não fiz caso, no
início, de sua imprudência ou, quem sabe, de sua necessidade de
se manter sob a luz dos holofotes. Nunca deitei real preocupação
nessa direção, confiando que ela, antes de tudo, também pactuasse
dos meus cuidados. Bem, acho que, em verdade, ela se expunha
cruamente, e me levava junto na correnteza.
Só para exemplificar o que digo, relato uma oportunidade em que
Cristine, no início da rampa, se recreava com um grupo de moças
e rapazes. O diretor, sem que o houvesse percebido, se aproximara
pelas minhas costas. Chegou, descansou a mão no meu ombro e pro-
feriu entre dentes: lá está a sua Cris. E se afastou em seguida, dono
do maior sorriso picante nos lábios.
Digo e repito que menosprezei sua capacidade inventiva (es-
tou me referindo a Cristine). Estava confiante de que seria desne-
cessário realçar a exigência de mantermos tudo em sigilo, acredi-
tava até que isso fosse óbvio demais para precisar adverti-la dos
riscos, mas minha desatenção acabou trazendo prejuízos. Tive de
pagar o meu preço, que não foi barato, nem caro, a depender do
ponto de observação. Teve seu custo, e Deus sabe o que padeci
nas mãos de certa raça que me rodeava. Também não digo que
tenha me saído caro, principalmente porque, se tivesse tido o dom
de conhecer de antemão o que me esperava, se pudesse adivinhar

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o futuro, é quase certo que teria feito tudo do mesmo modo. Eu
ou qualquer outro homem, talvez com pequenas correções aqui
e ali. Não me arrependi de nada, insisto. Non, je ne regrette rien.
Rien de rien. Aclamo para quem quiser ouvir. Não voltaria atrás,
não mudaria o fluxo natural da história. Se, ao final de minha vida,
pudesse escolher um lema que a tenha norteado, elegeria este: levo
como arrependimento unicamente o que não fiz; nunca o que rea-
lizei. Apesar de tudo, vivi com ela uma temporada vendo o mundo
de forma mais intensa e menos estúrdia, o que deu plenitude à mi-
nha existência. Do contrário, perfeitamente poderia me converter
nestes que despertam pela manhã, empanturram-se com sua ra-
ção, frequentam, contritos e afetados, missas e cultos diários, enu-
meram, hipocondríacos, lista infindável de doenças, infamam, rito
sumário, qualquer mortal e, ao deitarem, enchem de ventosidades
o debaixo do cobertor. A perspectiva de frequentar o clube, por
exemplo, chegou a se tornar, para mim, algo aceitável, algo que
tivesse cabimento, ao contrário de outrora, quando tal atividade
chegava a soar como inconcebível e mesmo ridícula. Mais de uma
vez fiz coincidir minha ida àquele ambiente, quando sabia que Cris
estaria por lá. Acontecia de sair de casa, dizendo comigo mesmo
não vou. Contudo, quando dava por mim, via-me caminhando
naquela direção. Não vou, repetia, e já estava batendo às portas.
Só passo e vejo como estão as coisas e já me via penetrando
pela roleta, sem conseguir estancar os passos.
Não digo que tenha alterado tão radicalmente meus hábitos.
Afinal, não deixava de me sentir constrangido, lá dentro, de achar
insuportáveis os frequentadores, com suas conversas banais, suas
afeições calculadas e seus sorrisos dissimulados. Ainda por cima,
perdurava a sólida impressão de que éramos permanentemente
espionados, mesmo que ficássemos distantes um do outro. Não a
acompanhei lá tantas vezes assim, apesar de sua insistência, ape-
sar de ela tomar minha recusa por desconsideração ou então in-
timidação de minha parte. Com efeito, no último sentido havia

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um tanto de veracidade; realmente pressentia o peso do medo,
o hediondo medo, as dobras da vacilação cavando suas crateras,
dentro de mim, e acabava capitulando. No fundo, algo me alertava
acerca da imprudência, do desmedido, e ainda não me encontrava
preparado para enfrentar as reações de toda a sociedade. Estou
confessando meus pecados também. E assim, vítima das incer-
tezas, das marés baixas e preamares, via-me como barqueiro sem
rumo, que rema num mar de aparência tranquila, cujo barco, de
velames destruídos e remos que se perderam, vai arrastado para
longe da costa por correntes marinhas profundas e não percebidas
por quem se encontra no continente. De modo que até hoje fico
sem saber se os instintos de vingança que, obviamente, existiam
em Cristine, advinham de alguma incompreensão, da parte dela,
das minhas indecisões e meus temores, ou – o que é mais prová-
vel e também mais grave –, se os mesmos instintos ajudavam a
compor um quadro de verdadeiro desequilíbrio psicológico, que
se abria de par em par, mas que meus olhos infantes e toldados
não puderam antever.
Eu não tenho a resposta.

As fissuras
Gosto de pensar que ela sofria de desvios psicológicos, que não
lhe iam bem as faculdades mentais. É mais leve e menos traumá-
tico que acreditar em falhas de caráter. Não se pode imaginar o
número de vezes em que, mergulhado sob o silêncio dos lençóis,
debati comigo mesmo a questão. Em inúmeras oportunidades, a
insanidade e a alucinação, em suas verdadeiras cores, davam nos
olhos como o brilho dos cristais; noutras, no entanto, era levado
a crer que se tratava meramente de perfídia, venenosidade por
parte de Cristine, e que suas atitudes refletiam uma personalidade
e índole degradantes.

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De cabeça descoberta
Numa noite, encontrei-a desacompanhada, numa rua erma e bem
distante de sua casa. Ora, não havia o menor sentido de estar ali,
completamente fora de seus albergues e hábitos. Eu, que já vi-
nha levantado sérias dúvidas sobre sua firmeza, pus-me então a
formular mil e uma hipóteses, algumas até para absolvê-la e con-
fortar-me o espírito, a maioria, porém, e as mais vigorosas, me
causando pujante amargor e perturbação.
Houve alguma coisa?, ela arguiu.
Cristine, eu queria...
Pergunte.
Minha intuição uivava que estava colocando em confronto
meu senso libertário, que existe de verdade e que gostaria de acla-
mar bem alto, e o instinto ou visão masculina, qualquer coisa mais
ou menos assim, que sobrevive como herança milenar (desde os
tempos das cavernas) e, por maior que seja nossa coerência, neces-
sita de passar por contínuos processos de aprimoramento e lapi-
dação, exatamente pelo fato de existir há milênios. Eu já lhe havia
feito suficiente mal, cerceado por demais sua liberdade, mesmo
que inconsciente ou involuntariamente, atando-a, de certo modo,
às minhas ilhargas, “reservando-a” para meus impulsos e apetites.
Porém, precisava dela, não tinha suficientes forças para me de-
satar, mesmo que antevisse tenebroso abismo se abrindo a cinco
passos de distância, mesmo que fosse prevenido do naufrágio imi-
nente. Nada havia a ser feito; restava-me aguardar pelo desenlace
proposto pelo destino, pelas soluções que o futuro apresentasse.
Mas... o que ela fazia naquele lugar? Ou, mais claramente: de
onde estaria vindo?
Pode perguntar o que quiser e vou te responder, com a
mais imperturbável segurança.
Por vezes, chego a acreditar que um tanto de sua magia residia
exatamente na sua frieza. Sei que é difícil para outros compreen-
derem, quase impossível. Porém, é indiscutível que sua inabalável

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autoconfiança exercia verdadeiro encanto sobre mim. Ela sus-
tentava um olhar resoluto e determinado, fincada numa postura
imóvel e serena, imune às intempéries e às emoções, deixando a
impressão de não se perturbar, não sofrer abalos ou conturbações,
de não conhecer os desfiladeiros do inferno. Ao invés, caminhava
segura pelas trilhas mais inconcebíveis e impressentidas, e o ines-
perado sempre excita, sempre contribui para não permitir que a
chama se extinga por completo. Como se interessar e se deixar
seduzir pelas fórmulas banais, pelos padrões, pelo rotineiro?
Fiquei como uma pedra, por instantes, refletindo se deveria
ou não prosseguir naquela verdadeira intromissão. Arriei as mãos,
os olhos saltando entre o colo dela – custava-me encará-la direta-
mente – e o caule de uma palmeira-imperial, à margem do Meia-
Pataca, às suas costas. Ela, entretanto, com ar distinto e sereno,
permanecia fixa em mim, sorrindo de um jeito que interpretei
como tranquilizador.
Não vou repetir o restante do diálogo, todo ele feito de frases
tolas e ingênuas, como, aliás, são ingênuas e tolas as falas dos da
raça de Otelo, com a única exceção talvez as proferidas pelo pró-
prio Otelo, mas aí diz presente a engenhosidade de Shakespeare.
Saltarei esta parte, como também saltei, para trás, escritinhos que
ela deixava em cima de minha mesa, dentro de sala, quando se
aproximava a um pretexto qualquer, nos quais cuidava de trans-
crever ditos de grandes autores, que eram ingenuamente reveza-
dos com pregações de autoajuda, sentenças moralistas, evangelhos
pequeninos, coisas desse tipo, que copiava não sei de onde e eu ia
acolhendo sob efeito dos mais variados estados de ânimo. De volta
à sua carteira, ficava de lá controlando as minhas reações.
Não vou repetir todo o restante do diálogo, porque tenho ver-
dadeiro pavor de que possa parecer excessivamente sentimental e
bobo. Tenho, aliás, seríssimas dúvidas se estou conseguindo evitar
que muitas e muitas passagens grotescas e piegas estejam se repe-
tindo, em profusão, nestas páginas. Temo que elas existam.

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Estava te procurando, buscou aplacar.
Fez uma pausa, soltando o corpo, distendendo as pernas.
Já nos encontramos uma vez aqui, lembra-se?, rodeou.
Não me recordava, em absoluto, de haver nos encontrado ali,
mas, acabrunhado e cheio de dúvidas, não rebati.
Vamos, instou-me, estendendo-me a mão.
Pela persuasão, uma alma é capaz de tornar-se serva de outra
alma. Pela persuasão e pela impotência, é o que digo. De manei-
ra que aprumei os ombros, ajeitei o corpo e deixei-me arrastar,
seguindo-a como um autômato, o raciocínio e o arbítrio pedindo
com instância para tomar pé. Olhei-a de relance; sua expressão
afetuosa e confortada. E um chamado lampejando dentro de mi-
nha febre: honra.

No caminho de Cubas
Entrando em casa, arriei-me no sofá e deparei com um livro que
ali fora parar por razões que desconheço. Fui para o quarto, meio
flutuando, com ele debaixo do braço. Abri-o ao acaso e li a seguinte
passagem: “e disse consigo que a gente não conhece a própria desgraça,
e nunca se é tão feliz quanto se pensa”. Fechei-o momentaneamente
e li na capa (um dedo ficara marcando a página): No Caminho de
Swann. Marcel Proust. Em seguida, abri-o outra vez no mesmo
trecho. Mais adiante: “A gente não conhece a própria felicidade. Nunca
se é tão infeliz quanto se pensa”. Sentindo-me reconfortado, fechei
de novo o tomo, sem, porém, deixar de marcar a página com uma
tira de papel. Depois, fui deitar-me. Enquanto o sono não vinha –
quanto me custa revelar isto! –, pesava retidamente o mesmíssimo
plano de Brás Cubas: comprar-lhe um cordão de ouro.

A arte de amar
Durante grande parte do dia seguinte a ideia de comprar-lhe um
cordão cuidou de me ocupar o juízo, em alternância com outras

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bastante desagradáveis, que representavam um sentido de segrega-
ção e esquivança. Contudo, outra convicção, mais funda, vinha para
me servir de indulgência: efetivamente, nunca procurei controlar-
lhe os passos, não lhe pedia os destinos, não lhe seguia a trilha. Nem
poderia ser diferente. Ao contrário; Cristine vinha quando o capri-
cho encomendava, saía quando a indolência prescrevia, não pare-
cendo haver deixado nada para trás. Isso contribuía para abrandar
minha severa autorrecriminação, atenuava meu balanço, acho que
posso dizer assim. Caramba, eu era um homem seguro, pelo menos
supunha, e aquele comportamento – de deixá-la desimpedida e em
grandes cabotagens –, correspondia exatamente ao que sempre de-
senhei como procedimento correto.
Antes de tudo, considerava que já me metia demais em sua
vida, estou repetindo este conceito para que fique bem claro, e
não se pode enxergar incompatibilidade entre o ser feliz e o viver-
se a condição de seres humanos de caminhos abertos. Acho que
a maturidade traz segurança, de forma que não considero que a
desconfiança e o ciúme sejam permitidos aos que já ultrapassaram
certo número de anos em idade. Assim sendo, não me afligia –
pelo menos, exteriormente – se ela frequentasse as dependências
do clube, a sauna, o bar, a piscina, até mesmo se fosse assedia-
da enquanto se visse enfiada em trajes ardentes e tentadores. A
bem dizer, sentia até uma pontinha de orgulho de, como homem,
“conceder” que ela tivesse a possibilidade de exercer, na íntegra,
o livre-arbítrio, como se diz. Considerava que, em assim agindo,
meu conceito moral se elevava dentro dela.
Quando, por exemplo, lhe telefonava e não a encontrava em
casa, ela fazia questão de, posteriormente, preencher a lacuna de
tempo com explicações, que quase sempre se mostravam muito
lógicas e convincentes. Chegava, inclusive, a fazer verdadeiros
relatórios de suas atividades, sem minha solicitação, diga-se de
passagem, só interrompendo quando lhe acenava para que não
prosseguisse (também nunca soube se tais alegações eram ou não

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verdadeiras, pois Cristine, com sua inteligência, seria capaz de
criar histórias persuasivas e com feições de verdade verdadíssima).

(Não... Acho que ela mentia. Mentia compulsivamente. Aliás,


meu primeiro julgamento negativo acerca de Cristine foi o de que
ela nunca agia com sinceridade, e o embate entre razão e emoção
tornou-se presença marcante a me ocupar o espírito).
No dia seguinte, dizia, fiquei com o pensamento incerto se
deveria ou não presenteá-la com o dito cordão. Eu pesava os prós
e os contras, num momento tomando uma direção, no outro, o
caminho contrário, debatendo-me entre alternativas a cada des-
dobramento do raciocínio. Por via das dúvidas, no fim acabei por
me conter, calculando que a aquisição equivaleria a um suborno;
estaria conquistando seu afeto a peso de metais, a léguas de dis-
tância, portanto, do que me permitia a consciência. Ao anoitecer,
sentei-me num banco da praça e fiquei deparando as construções:
o mural de Djanira, no frontispício da igreja, a escadaria do Colé-
gio do Carmo, o chafariz abandonado, os jardins floridos de lírios,
dálias, crótons, hibiscos... Depois, saí pelas ruas, mãos enfiadas
nos bolsos, olhos perdidos nos paralelepípedos, nos ladrilhos das
calçadas, a cabeça retratando sequências aleatórias de minha vida
– porque o pensamento é rebelde, não respeita o mando do olho,
e segue caminho a seu bel-prazer, como um barco enfuna a vela
e toma o curso fustigado pelas rajadas dos ventos movediços, e a
vida é lembranças, é retratos e vestígios. Divagava em como nos-
sos sentidos são capazes de formular alumbramentos e sonhos,
nem todos muito agradáveis, porque também existem dolorimen-
tos e flagelos, e com a mistura dessas coisas é que criamos a lição
dos tempos, com elas tecemos o fio da vida, as biografias todas.
Num transe quase mediúnico, senti-me subitamente tomado
por profunda tristeza, que chegava a me parecer sinal de doença.
Pensando bem hoje, acho natural que me sentisse assim, pois, du-
rante aquela fase toda, me via transportado dos céus ao inferno,

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com a maior facilidade do mundo; era vítima da mais confusa
mescla de emoções, temores, encantos, ardor e calvários a que
se pode submeter um ser humano. A sensação de intenso prazer
de tê-la ao meu lado, os momentos de paixão, as experiências de
ternura, tudo isto tinha preço alto, de modo que eu também con-
vivia com crepúsculos de extrema melancolia e com evanescente
sensação de vida fútil e estéril, de dias sem luzes e sem hálitos, que
constituíam uma espécie de ‘preço a pagar’.
Para que se convençam de que não estou fazendo falsos alar-
des acerca do caráter ardiloso de Cristine, de que não falto com a
verdade, vou revelar um pequeno episódio, bastante elucidativo,
do que estou querendo insinuar: a partir de certa época, todas as
vezes que alguém do sexo masculino dela se aproximava, estando
sob o alcance de minha vista, procurava esticar indefinidamente a
conversa, alongava ao extremo o tempo em que permanecia com
a outra pessoa, enquanto, a breves trechos, estendia imprevistas e
impetuosas miradas na minha direção, só para medir o impacto do
dano sobre minha substância. Ela assustava.
E assim, repelido uma, duas, dez, trinta vezes, cuidava de me
resguardar, de me manter ainda mais dentro do espaço de minhas
paredes, de fortalecer meus bastiões, acreditando que este seria o
caminho mais curto para apagá-la da mente. O candeeiro se extin-
guiria por si próprio, quando acabasse o azeite que lhe sustentava
a chama, e o encanto, ao morrer, não deixaria cicatrizes.
Eu, inclusive, buscava me convencer de que a melhor saída seria
rapidamente encontrar outra criatura para ocupar o espaço deixado
por ela, de preferência, de mais idade. Uma mulher na madureza,
figurava, quando o juízo e a experiência, característicos desse estádio
da existência (recordo-me especialmente do seu primeiro beijo, um
beijo inábil de quem umedece em excesso os lábios, quando o espe-
rado seria que, pelo estado de sobressalto, sua boca deveria estar tão
seca quanto a minha), serviriam para contrabalançar a falta do frescor
da moça. Tratava-se, enfim, de dar lei ao coração. Mas... qual mulher?

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Porém, e dizendo francamente, bastavam soprar os primeiros
ventos, as primeiras monções (sempre e inevitavelmente prece-
diam e anunciavam novos ciclones e tufões), para que eu desistisse
do meu intento, para que eu cedesse e então tudo voltava à esta-
ca zero. Por meio de invisível e misterioso intercâmbio de sinais
entre nós dois, que compreendiam gestos, sorrisos, esperas, por
meio de invisíveis e misteriosos sinais, repito, ela adejava nova-
mente, refluindo como se tudo fosse outra vez uma estreia; podia
perdoá-la. As fagulhas escondidas sob as cinzas logo se reacen-
diam, como a neve nos Andes se dissolve com os primeiros raios
da primavera. Ela era como um pássaro, que despertava antes da
primeira raiada, e ficava piando, esperando a aurora.
A propósito, cito aqui dois pensadores do século passado, cujas
declarações são pertinentes ao tema: Erich Fromm e Sigmund Freud.
O primeiro deles, em A Arte de Amar, referente ao amor, afirmava que
“nada começa com tamanha expectativa e desejo e termina em tão
vasto sofrimento”. Já para Freud, o ser humano busca, em sua jorna-
da, o princípio do prazer. Mais tarde, porém, diante da incontestável
evidência da destrutividade humana, reformulou sua teoria, passando
a afirmar que existe em nós um instinto de morte (thanatos), o qual,
com seu poderio e significação, bloqueia o primeiro dos princípios.
Perdoem-me os versados na matéria se cometo equívocos de inter-
pretação. Pois minha visão não foge muito das duas análises: estou
convencido de que a paixão, ou qualquer outro termo que queiram
cunhar para definir tal forma de sentimento, seja estado tão enceguei-
radamente possessivo e dominador, que principia por sugar por inteiro
os membros do par um para o outro. Exatamente aí residem a origem
do ciúme e a explicação de tantos terem sido condenados à morte, em
seu nome. Eu, de meu lado, não concederia perdão a alguém que ma-
tasse em nome da paixão, mas, em determinadas circunstâncias, até o
compreenderia. Não absolveria Otelo e Don José, eu os declararia cul-
pados e os meteria em celas, porém lhes dedicaria certa complacência.
Então, como dizia, absorto e viajando no tempo e no espaço,

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e ao mesmo tempo infernado pela ideia de ciúme, passei a experi-
mentar cenas mentais sumamente desagradáveis: a pior delas, a mais
insuportável, o ato de outro afagar as costas frescas e desnudas de
Cristine. Eis a fonte de meus maiores calvários, apesar de, tal como
descrita, não conter grandes elementos de alfinetadas. Sim, porque
minhas invenções poderiam me conduzir a situações muito mais
terríveis, a passagens muito mais escabrosas e humilhantes. Qual-
quer um conseguirá entender o que estou querendo dizer. Contudo,
para mim, e fazendo um balanço parcial, visualizar um desconheci-
do deslizando as mãos no seu dorso convertia-se na cena mais tirâ-
nica a que me poderia expor. Vá se entender os mistérios da mente!
Anoitecia, como disse antes, luzes dos postes acesas, céu lim-
píssimo, limpíssimo.

Pescadores nas espias


Um estranho, recém-chegado a autêntico paraíso terrestre, vencia
horas e horas, dias inteiros, a contemplar, embevecido, o mar safi-
ra e transparente que se lhe abria adiante.
Passadas semanas, movido por tenaz êxtase, inventou de cons-
truir sua choupana, num esteiro aparentemente remansoso, ante o
olhar estupefato dos nativos, que não se furtaram em alertá-lo acer-
ca de episódicas fúrias do oceano. Ele, fazendo-se de surdo, toscava,
descansado, o manso vaivém das águas ao largo, a barra, as pequeni-
nas vagas, marolas levezinhas lambendo, ingênuas, a estreita faixa de
areia. Nesse horizonte, ali ergueu sua choupana, telhado de folhas
de coqueiro, sebe de junco (colhido numa lagoa próxima), varanda
voltada para a extensão do infinito.
Até que um dia, o mar se enfureceu assombrosamente, se en-
capelou, e as águas revoltas e as ondas violentas vieram deitar
abaixo sua construção.
Passada a tormenta, no entanto, sozinho e resignado, o pobre-
diabo voltou a reerguer as paredes... teto... tabiques... traves... es-
teios... o aguieiro... as esteiras... as redes... tudo novamente...

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Assim a história se repetia: todas as vezes que o mar lança-
va sua fúria, a destruição tornava a acontecer, e o estranho, sem
esboçar mínimos sinais de impaciência, tomava o encargo da re-
construção. Não existiam nele sinais de renitência, propriamen-
te, recalcitrância, não existia um propósito de tourear o reino de
Netuno. Não... Somente uma pacífica obstinação, uma resignação
diante daquilo que se convencionou chamar de as forças da natu-
reza, contra as quais quase nunca se encontra remédio.

O mouro
Desdêmona – Quem está aí? Otelo?
Otelo – Sim, Desdêmona.
Desdêmona – Quereis vir para a cama, meu senhor?
Otelo – Já rezastes hoje de noite, Desdêmona?
Desdêmona – Sim, meu senhor.
Otelo – Se vos recordais de algum crime que vos deixe irreconci-
liável ainda com o céu e com a graça divina, implorai logo o perdão.
Desdêmona – Ai, meu senhor, que estais querendo dizer
com isto?
Otelo – Vamos, fazei logo e sede breve! Enquanto isto, vou
andar um pouco. Não gostaria de matar vosso espírito sem que ele
estivesse preparado. Não... Que o céu não permita! Não gostaria
de matar vossa alma.
Desdêmona – Estais falando de matar?
Otelo – Sim, estou.

Close-up
Principiam a se apagar, de minha memória, os traços fisionômicos
de Cristine, se apartam em trevas, e abismos, e incredulidades, e
desrazões. Volta e meia, quando ocioso meu pensamento, e mo-
bilizo forças no sentido de reconstruir as particularidades de seu
rosto (urgência não requerida tempos atrás), elas relutam em não

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vir, em não aflorar, restando tão somente uma sombra informe e
incorpórea do que foi sua figura. Deus sabe por qual razão foi se
tornando hercúleo o esforço de conseguir remontá-la na mente,
de tecer seus talhes, o esboço dos seus lábios e sorrisos, o feitio do
nariz, o lineamento dos cabelos, o olhar movediço, o arranjo no
andar; para tal, urge concentrar firmemente todas as minhas for-
ças psíquicas, todas, todas, até alcançar vê-la, devagarinho, ressur-
gir. Devagarinho, como as sereias dos sonos e das noites ressur-
gem nas brumas, na luz baça; devagarinho ela se expõe, quando
um golpe feliz a restaura, a vida a ressuscita.

Horóscopo
Os nascidos neste signo, em virtude de sua simpatia pessoal,
terão vários casos amorosos em sua vida...

Por que alguém tem de morrer?


“Possuímos a razão para esfriar nossas furiosas paixões, nossos
impulsos carnais, nossos desejos desenfreados”. Se tivesse de
adotar uma epígrafe para este capítulo, nenhuma outra poderia
encontrar que seja mais apropriada.
É muito estranho o que agora vou revelar, contudo, corres-
ponde fielmente à verdade: a partir de certo momento, passei a
vivenciar crescentes estágios de frieza e inapetência por Cristine,
em que não parecia mais subsistir o menor vestígio de ardor por
ela, nada, absolutamente nada. Rien de rien. Minha natureza se
abatia, declinava, até, por fim, sucumbir. O cérebro abolia Cris-
tine, que assim perdia todo seu encanto. Meu sensório, sem en-
contrar explicações para tal fenômeno, me conduzia a atribuir tais
transfigurações de sentimentos àquilo que os estudiosos da mente
chamam de Razão. Por isso disse que a epígrafe acima cairia como
luva para este capítulo.
A fim de que compreendam o estágio que alcancei, ponde-

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ro que houve um período em que, quando minha imaginação se
sentia prestes a retomar suas formas, a própria imaginação, ou sei
lá qual outro componente dos meus centros nervosos, cuidava
logo de pulverizá-las – as formas, quero dizer –, de dispersar cada
dos minúsculos pontinhos de que são feitas as imagens, que se
repeliam e acabavam por se perder nos espaços. Em determina-
das circunstâncias, inclusive, constrangia minha mente a não mais
reconstruí-la, a não mais traçar seu desenho. E sentia-me bem
assim agindo. Esse fenômeno, ao final, desenvolvi a habilidade de
desenvolver, de magnificar: retirar algo de dentro, remexer, com
artefato pontiagudo, um ponto indefinido qualquer do meu inte-
rior até desalojá-la; uma espécie de aborto.
Do alto dos meus quarenta e seis anos, não mais me concedia
o direito de me perder nos tortuosos labirintos da insensatez, das
arremetidas no escuro, o que acabava por me trazer resultados
benéficos, como já disse, deixando-me mais leve do que enquanto
me debatia em desvarios, que transcendem os limites do ponderá-
vel e do compreensível. Estranho, não?
Numa noite encontrei-a, hipnotizada e hirta, na esquina da Eu-
gênio de Melo com a Evaristo Maciel. Parecia completamente alhea-
da e apática: os olhos perdidos, cabelos despenteados, mal arranjada
de vestes e maquiagem exagerada, no meu entender, e muito mal
retocada. O ar falsamente sossegado, mas que eu sabia prestes a ser
detonado a qualquer incompreensível expansão de temperamento,
a qualquer perda de governo. Fria e distante, não fez a mínima ques-
tão de esconder o desaponto de me ver naquele lugar. Limitou-se
a responder o que lhe inquiria com frases curtas ou monossilábicas
ou por ligeiros acenos de cabeça e, ao final, recusou, um tanto irri-
tadiça, minha oferta de levá-la em casa (eu me inquietava pelo que a
aguardava ali). A dimensão do tempo começava a provocar também
nela seus carunchos e desagregamentos.
De meu lado, passei a dedicar-me a atividades que não me eram
comuns, algumas até meio exóticas, pode-se assim considerar, como

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o cultivo de violetas, às quais ainda não fiz referência até este ins-
tante, mas agora o faço, cujos vasinhos começaram a se multiplicar
sobre a meia-parede que separa a cozinha do corredor (possuo, ain-
da hoje, pequena coleção deles; os que vingaram desde aquela fase).
Cristine reaparecia uma ou outra vez, se comportando cada
vez mais estranhamente. Era mais gritante que se encontrava mes-
mo tomada de grave enfermidade. Aliás, a sensação de ser dona
intermitentemente de espírito desequilibrado se constituía numa
verdade segura e inquestionável. De modo espantoso, e sem a me-
nor motivação, ela se fizera hostil e audaciosa: com dureza extre-
ma na voz, cintilações de ira extrema nos olhos, que se tornaram
dilatados e com aspectos de vingança. Parecia pronta para, a qual-
quer fração de segundo, precipitar maquinal e ferina arremetida
sobre quem quer que fosse, com armas que trouxesse às esconsas.
Toda a sua compleição metamorfoseara-se em ares mortificantes.
Nela, ao longo da vida, reconheci e sofri os efeitos de variados
figurinos: havia etapas de ternura, interpretadas em tempos de bo-
nança, quando se vestia de suavidade tão impressionante que seria
impossível existir em outro lugar qualquer. Mas também existiam
as de aridez e armadura, por mais contraditório que possa parecer,
ocasiões em que, desfigurada e intumescida da mais intensa iniqui-
dade e malícia, se iluminava por impetuoso e felino olhar, que nem
de longe descobriria suas origens.
Para ser exato, penso serem verdadeiramente três os papéis
que Cristine desempenhou: o de ninfa radiosa, dotada de extre-
ma magia; o da mulher erótica, na personagem de fêmea concu-
piscente (ambos marcavam os contornos de sua natureza dupla,
qual seja, o da frágil menina e o da mulher indomável). Por fim, o
terceiro dos retratos, o de uma Cristine ardilosa e impulsiva, dona
de incomum ferocidade e sujeita aos mais apavorantes acessos
temperamentais. Todos esses vinham compor o carnaval de senti-
mentos que constituíam sua alma, as mais abarbaradas manifesta-
ções de perturbação do lume a que já presenciei e que acabavam

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deflagrando um outro carnaval, agora gerado dentro de mim, no
qual alas de fantasias, tentações e desvarios desfilavam ao ritmo
de bumbos e reco-recos, que socavam em meus delírios. É muito
difícil descrever a situação.
Agora que me acerco do fim, não tenho mais esperanças de
alcançar êxito em dar a entender, convincentemente, como era a
história clínica de Cristine. Digo somente que se tratava de um
caso patológico. E ponto. Quando tomava a decisão de me punir
– sabia-se lá por qual razão –, ela simplesmente desaparecia. Eu
perdia sua pista, o que acabou por comprometer seu rendimento
escolar (já mencionei a notícia).
Com o tempo – com o tempo, é preciso reforçar –, tais ex-
pedientes foram perdendo o efeito; fui aprendendo que o melhor
caminho seria procurar amainar meus sentimentos, desertar paci-
ficamente dos alvos, criar os meus escudos. Até para minha sur-
presa, fui desenvolvendo, com perfeição, essas qualidades, e seus
sumiços se tornaram surdos e amortecidos, não mais me deixando
marcas ou cicatrizes profundas. Conscientemente, passei a fazer
uso de suas mesmas táticas, a desconhecê-la nos espaços públicos
e, mais importante, evitando me exibir aos seus olhos, nem que
para isso tivesse de me enfiar na salinha da tal Dona Ermelin-
da, durante os intervalos das aulas, encerrando-me numa cadeira
de palhinha que ficava a um canto, único ponto fora da visão de
quem passasse pelo corredor. Percebia que a minha posição in-
comodava Dona Ermelinda, mas importava-me lá... Tratava de
suportar os quinze minutos com aquela velha ranzinza e pronto.
Pour ta femme infidèle, bravo! É preciso saber arrumar a casa,
fechar as janelas!

Dança das chamas para encantar serpentes


Mas nem tudo é eterno, nada tem duração definitiva. Uma vez
cicatrizadas as feridas, podiam de novo subir as preamares, como

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fenômenos insuspeitos e inexplicáveis. Mal comparando, meus
sentimentos se comportaram como camareira, que todo dia nos
ajeita a cama, estica os lençóis, posiciona o travesseiro e o tapete,
abre as cortinas e as janelas para arejar o cômodo, espana mó-
veis, varre o quarto... Com isso, a camareira costuma passar por
despercebida e barata, como dispensável. Na primeira manhã em
que nos falta, acreditamos piamente poder prescindir de suas ope-
rações e providências, que teremos ocasião de abrir mão de seus
ofícios e presença. E na segunda, e na terceira. Até que, num de-
terminado dia, começam por se enovelar as dificuldades, e o quar-
to, de pernas para o ar, e a vida ficam numa anarquia sem-fim, e
então a figura da camareira adquire volume e passa a traduzir tudo
aquilo que de mais essencial existe.
Ela voltou a frequentar sistematicamente todos os bailes do
clube. Todos. Foi o que fiquei sabendo. Assim, mantinha-me ace-
so pelas músicas que me chegavam direitinho aos ouvidos, que
traziam vapores para dentro de mim. Insone e amargurado, ima-
ginava mãos e mãos que deslizassem pelos seus ombros nus, pelas
suas costas, sua nuca, seus cabelos. Minha cerebração me condu-
zia para aquele ambiente hostil e irreconciliável, seguia seu vulto
esguio revoluteando, rodopiando, nos flashes de luz que lâmpadas
fortíssimas formavam na escuridão.
Numa refulgência, enxergava Cristine esgueirando-se pela pis-
ta de dança, rosto colado no de “alguém” que minha imaginação
traduzia, no mais das vezes, como o filho do empresário. Essa
era uma doentia perseguição. Lembro-me com perfeição da fisio-
nomia do topetudo do tal Leonardo, de seu porte espevitado e
petulante que só a abastança traz aos de espírito curto, de sua cara
aberta, do seu ar superior e de sua maneira de enxergar o mundo
como se escarnecesse dos demais seres humanos.
Então fantasiava mil situações, vendo seu corpo luxuriosa-
mente pelo salão, aliciando homens à farta, numa rota como a de
fotogramas sucessivos de película cinematográfica que se proje-

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tassem, segundo após segundo, com efeito de fosforescência, num
ambiente tépido e de escuridades. Ritual de dança do fogo nas lu-
zes relampagueantes. E a visão de pupilas oblongas de serpentes.
Eu, um tolo e desvalido. E aquilo, de pouco a pouco, ia minando
minha resistência. Como é difícil, não?

(Engraçado que já é tarde e nem percebi o correr das ho-


ras. O céu enegreceu e a chuva veio em menor intensidade
que a prenunciada pelas nuvens. Um mocho curua misterioso
e agônico na vizinhança. São oito da noite e estou sem fome.
Debruçado sobre a janela, as brancas e empinadas paredes do
casarão, na transversal da praça: varanda com balaústres de cores
castanhas, janelas e portas azuis, telhado de quatro águas, de
declive muito acentuado, com forro branco meio palmo abaixo
das telhas. No jardim, um amontoado de folhagens, um pé de
carambola e uma buganvílea de tronco grosso e encarquilhado,
que se debruça sobre o muro alto na divisa com a casa ao lado.
No lado direito da construção, uma calçada de pedras irregula-
res e uma infinidade de vasos).

Restam poucas informações, que passarei sumariamente. Uma


delas, que os sinais da insanidade mental de Cristine se acentua-
ram nos dias que se seguiram. Nos seus olhos, naqueles olhos,
surgiu estranho brilho, que eu nunca vira: alucinado e insensato.
Após desaparecer das aulas, passou a conviver com pessoas estra-
nhíssimas, suspeitíssimas. Mais de uma vez a vi tragando cigarros
nas proximidades do colégio. Modificou por completo o modo de
trajar-se. Os cabelos perderam o viço: trazia-os sempre penteados
em coque. Envelheceu anos em poucos meses. E parecia curvada.
Tais mudanças coincidiram com o período em que ela, verdadei-
ramente, me pôs a faca no peito. Tentou extorquir-me dinheiro
(uma única vez, mas o fez), ameaçou delatar-me aos seus pais e só
então compreendi a tolice em que havia me metido.
Pouco mais de dois meses depois... a ponte... o salto... as águas.
E assim termina a história. Foi uma fatalidade! Por muito tem-

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po reconheci-me como vítima da mais terrível das perturbações,
vigiado pela maior soma de pares de retinas reprovativas e infen-
sas, encerrado em coxias de naves iluminadas por resplandecentes
vitrais, de cujo teto pendia a espada do Eterno, tal qual nas cenas
da expulsão do Paraíso.
Não me julgo totalmente culpado, nem totalmente inocente,
contudo, quem não for cruel, me dará a absolvição, estou certo.
Afinal, muito escapa de nossa vontade, pouco está sob domínio
total da consciência, de maneira que, passados os infortúnios ini-
ciais, hoje me sinto relativamente em paz. Foi sua insânia que a fez
dar a si o destino que infligiu; nem tanto minha presença, nem a
dos demais homens, aos quais estendo a absolvição.
Pergunto-me: se pudesse girar para trás os ponteiros dos reló-
gios todos do mundo, se pudesse corrigir o tempo, o que conserta-
ria e o que faria de novo? Em que momento estancaria o curso da
história, em que instante chegaria para mim e diria bom, você sabe
o que está te esperando, então pare enquanto é tempo? Sim,
as perguntas procedem, pois aí estaria transmitindo o comando aos
sentidos e à inteligência. Não poderia mudar tanta coisa. Só me re-
crimino por não haver compreendido e assimilado, desde cedo, cer-
tos engenhos e sutilezas, quando, presumo, a crônica teria tomado
rumo diverso. Mas que condenação merece um incapaz por possuir
a concepção lenta, por não contar com largueza de vistas?
Li, creio que em Dom Casmurro, que a Terra é o palco de uma
grande ópera, em que Deus é o poeta e a música é de Satanás.
Como não houve ensaio, o resultado teria sido o enorme descon-
certo da vida. Mais ou menos assim. Se isso é verdade, qual teria
sido meu papel na ópera? Ahn?

O cheiro doce das violetas


Durante muito tempo persistiu em mim a imagem da jarra de
louça sobre a cristaleira da sala, praticamente a única decoração

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dali, a cozinha, os dois quartos e o banheiro espremido entre eles,
de minha casa triste, como todas as demais daquelas ruas estreitas,
edificadas de maneira simples, umas quase iguais às outras, caia-
das em cores pobres, quinta de terra socada, onde, na sombra do
oitão, vicejava o canteiro de violetas. Não me recordo do fim que
levou a jarra. Deve ter se partido, por desleixo de minha mãe, nos
seus anos de melancolia. Aliás, muita coisa não sei dizer onde foi
parar. Minha mãe tinha braços enormes, gordos, as mãos gran-
des, quentes, aliança larga, o rosto largo. Acho estranho quando
encontro nela a sensação de força. Há, dentro de mim, um duelo
recorrente nesse particular, e que não se quer calar, custa-me dei-
xar me convencer sobre algo tão absurdo: a energia de mamãe e
não a de meu pai.

O medo, fui conhecendo pela vida. Primeiro, no rosto de mi-


nha mãe, nas rugas da pele, nos cabelos esbranquiçados. E depois
com meu pai, com seu modo de ciciar as palavras e de passar qua-
se sem ser notado. Habituei-me a vigiar o que se passava dentro
de casa, a procurar ler nas entrelinhas. Imaginava que poderia ser
necessário um dia ter de tomar alguma providência, mas não fazia
a menor ideia do que se tratava. Permanecia acordado até altas
horas, meu pai ouvindo rádio, quando se encontrava em casa, e eu
vagando com os olhos pelas tábuas do forro, pelas paredes, pelo
cômodo vazio, imorredouro cheiro de mofo, o calor. Os cães, na
vizinhança. O trem de ferro passava todas as noites. Por entre as
frestas do forro, espreitava as luzes dos outros cômodos, o chiado
do rádio – ele dormia com o rádio ligado. Entretinha-me com o
interruptor, que pendia desde o teto por um fio e que ficava so-
bre a cabeceira da cama. Afastava-o do seu ponto de repouso até
onde alcançava e, em seguida, soltava-o, fazendo-o oscilar como
pêndulo rente à parede.
Guardo por meu pai um sentimento estranho, parecido com
compaixão. Muitas vezes estabelecemos, pela simples observação

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da fisionomia, uma série de conceitos e juízos, que correspodem
ou não à realidade. Há dessas coisas; isso é humano. Durou cerca
de quinze anos nossa vida. Quase nada! Quando fiz quinze anos,
ele saiu de casa e não nos vimos mais enquanto viveu. Foi numa
tarde-noite estranha, em que a própria natureza parecia participar
de meus sentimentos. Não importa agora esmiuçar o cenário e a
circunstância. Basta dizer que havia no mundo inexprimível sen-
sação de estranheza, de desnaturalidade.
Admito certa culpabilidade da parte de minha mãe no desenla-
ce dos acontecimentos. Não estava habituada à sua presença. Além
disso, mamãe falava desmesuradamente – acusava-o de adúltero –,
e eu ficava olhando as paredes da casa, sentindo as coisas desmo-
ronarem. Nas noites, abraçava-me ao cobertor, ao travesseiro, e
sonhava sonhos sem cor, cinzas, de meios-tons, de claros-escuros,
como nuvens que se remexem na imensidão dos céus.

Sempre esperei que chegassem meus quinze anos. Imaginava


que, naquele dia, algo de extraordinário viesse a acontecer, comigo
ou com o que me cercava... Pois a manhã, para minha extrema de-
cepção, foi exatamente como as demais, sem que no mundo nada
prenunciasse de grandeza, de transcendente. Ganhei de mamãe um
conga azul, com bico reforçado com o mesmo látex do solado.

Não sei exatamente o que mamãe achava da vida deles dois,


não sei. Talvez, por serem mais sensíveis, as mulheres percebam
melhores as minúcias dos acontecimentos. Isso é o que imagino.
Nunca conversamos sobre esses assuntos, nunca, havia uma espé-
cie de manto a nos cobrir o passado. Eu procurava nela, nas vezes
em que nossos olhos se cruzavam, os sinais que me servissem
de revelação, mas nada enxergava, e assim o silêncio vinha para
remediar a questão.

Até quando meu pai se foi. Eu parecia adivinhar que um dia

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isso fosse acontecer. Lembro-me que era tempo de calor, a noite
custou a vir, o ar parado, ar sufocante, um céu de cobalto, umas
nuvens esquisitas a oeste. Ele costumava, nos fins de tarde, sentar-
se num banco de madeira, ao fim da rua, próximo ao corguinho.
Eu, ali por perto, observava-o dissimuladamente, buscando no
seu rosto os traços da infidelidade. Nenhum. Não era possível.
Lembro-me que choveu muito durante toda a noite, e, cheio de
maus presságios, dormi imaginando a tempestade açoitando seu
caminhão, talvez seu corpo.
Trinta anos se passaram. Trinta? Minha mãe morreu faz cinco
anos, agora, em setembro. Rosana desapareceu no mundo.
Esse meu jeito, que diria melancólico, de ver o mundo, acho,
herdei dele, de meu pai. E de minha mãe, o gosto pelas violetas, o
cheiro doce das violetas.

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Os títulos em Helvetica Neue 45 Light,
texto em Garamond Regular - Corpo 11,7/14,75.
Miolo Pólen Soft Imune 80g/m2. Impressão
e acabamento foram feitos em maio de 2011,
na Sermograf Artes Gráficas e Editora, Petrópolis - RJ

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