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DOMINGOS DE AGOSTO

Ficha Técnica

Título original: Dimanches d’août


Título: Domingos de Agosto
Autor: Patrick Modiano
Tradução de António José Massano
Edição: Cecília Andrade
Revisão: Clara Boléo
Design da capa e ilustração: Rui Garrido
ISBN: 9789722056427
Publicações Dom Quixote
uma editora do grupo Leya
Rua Cidade de Córdova, n.º 2
2610-038 Alfragide – Portugal
Tel. (+351) 21 427 22 00
Fax. (+351) 21 427 22 01
© Éditions Gallimard, 1986
© Publicações Dom Quixote, 1988
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor
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Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.


Para Jacques Robert
Para Marc Grunebaum
O seu olhar acabou por se cruzar com o meu. Foi em Nice, no princípio
do Boulevard Gambetta. Ele estava sobre uma espécie de pódio diante de
um estendal de casacos e sobretudos de cabedal, e eu tinha avançado para a
primeira fila dos basbaques que o ouviam apregoar a sua mercadoria.
Ao ver-me, perdeu a sua lábia de vendedor ambulante. Falava de um
modo mais seco, como se quisesse distanciar-se do seu auditório e dar-me a
entender que a profissão que ali exercia, ao ar livre, estava abaixo da sua
condição.
Em sete anos, não tinha mudado muito; só a sua tez me parecia mais
avermelhada. Estava a anoitecer e uma rajada de vento penetrou na Avenida
Gambetta com os primeiros pingos de chuva. A meu lado, uma mulher de
cabelo loiro encaracolado experimentava um sobretudo de cabedal. Do seu
pódio, ele inclinava-se para ela e observava-a com um ar encorajador:
– Fica-lhe às mil maravilhas, minha senhora.
A voz continuava a ter o seu timbre metálico, um metal que, com o
tempo, se tinha enferrujado. Os mirones começaram a dispersar por causa
da chuva e a mulher loira tirou o sobretudo que colocou, timidamente, na
borda do estendal.
– É uma ocasião única, minha senhora… ao preço da chuva… Devia…
Mas sem lhe dar tempo de prosseguir, ela virou-se depressa e esquivou-se
com os outros, como se tivesse vergonha de dar ouvidos às propostas
obscenas de um viandante.
Ele desceu do pódio e encaminhou-se para mim.
– Que bela surpresa… Eu sou de olhão… Reconheci-o imediatamente…
Ele parecia incomodado, quase receoso. Eu, pelo contrário, estava calmo
e descontraído.
– Tem piada encontrarmo-nos aqui, não é verdade? – disse-lhe eu.
– É verdade.
Ele sorria. Tinha recobrado a sua segurança. Uma camioneta parou junto
do passeio, ao pé de nós, e saiu um homem com um blusão vermelho.
– Podes desmontar tudo isso…
Depois olhou-me de frente.
– Vamos beber um copo?
– Se quiser.
– Eu vou ao Forum beber um copo com este senhor. Vai ter comigo
dentro de meia hora.
O outro começou a carregar os sobretudos e os casacos de cabedal do
estendal para a camioneta, enquanto, à nossa volta, a vaga de clientes saía
pelas portas do grande armazém que fica na esquina da Rua Buffa. Um
toque agudo anunciava o fecho.
– Já está… Já quase não chove…
Ele trazia a tiracolo um saco de cabedal muito achatado.
Atravessámos o boulevard e seguimos pela Promenade des Anglais. O
café ficava muito perto, ao lado do cinema Le Forum. Ele escolheu uma
mesa por detrás da vidraça e deixou-se cair sobre o banco.
– O que há de novo? – perguntou-me. – Está na Côte d’Azur?
Quis pô-lo à vontade:
– Tem piada… Vi-o, há dias, na Promenade des Anglais…
– Devia ter-me cumprimentado.
A sua silhueta pesada, ao longo da Promenade, e esse saco de cabedal a
tiracolo que certos homens usam, por volta dos cinquenta anos, com
casacos muito cintados, para manterem uma silhueta juvenil…
– Eu trabalho há algum tempo na região. Tento vender stocks de roupa de
cabedal…
– Como vai a coisa?
– Assim-assim. E você?
– Eu também estou a trabalhar na região – respondi-lhe. – Nada de
interessante…
Lá fora, os grandes candeeiros da Promenade acendiam-se pouco a
pouco. Primeiro, uma claridade cor de malva e vacilante que uma simples
rajada de vento ameaçava apagar como a chama de uma vela. Mas não.
Passados uns instantes, essa luz incerta tornava-se branca e forte.
– Então, estamos a trabalhar na mesma zona – disse-me ele. – Eu vivo em
Antibes, mas viajo muito…
O seu saco de cabedal abria-se da mesma maneira que as pastas dos
estudantes. Ele tirou lá de dentro um maço de cigarros.
– Já não vive no Val-de-Marne? – perguntei.
– Não, já não.
Houve, entre nós, um instante de embaraço.
– E você? – perguntou-me ele. – Voltou lá?
– Nunca mais.
Só de pensar em me encontrar junto do Marne causou-me calafrios. Olhei
para a Promenade des Anglais, para o céu alaranjado que escurecia, e para o
mar. Sim, eu estava de facto em Nice. Tinha vontade de suspirar de alívio.
– Por nada da vida gostaria de voltar a tal sítio – disse-lhe.
– Eu também não.
O empregado colocava sobre a mesa o sumo de laranja, o fine à l’eau1 e
os copos. Tanto um como o outro nos agarrávamos com o olhar ao mínimo
dos seus gestos, como se quiséssemos adiar o mais possível o momento de
retomar a conversa. Foi ele que acabou por quebrar o silêncio.
– Gostaria de tirar a limpo consigo umas coisas…
Ele observava-me com um olhar mortiço.
– Pois é… Apesar das aparências, eu não era casado com Sylvia… A
minha mãe não queria esse casamento…
Durante uma fração de segundo, a silhueta da Sr.ª Villecourt apareceu-me,
sentada no pontão, junto do Marne.
– Lembra-se da minha mãe… Não era uma mulher fácil… Havia entre
nós problemas de dinheiro… Ela ter-me-ia retirado a mesada se eu tivesse
casado com Sylvia…
– Surpreende-me muito.
– Pois bem, por isso…
Parecia-me um sonho. Porque é que Sylvia nunca me disse a verdade? Eu
lembrava-me de que ela usava uma aliança.
– Ela queria fazer crer que éramos casados… Para ela, era uma questão
de amor-próprio… E eu, eu comportei-me como um cobarde… Devia ter-
me casado com ela…
Devia render-me à evidência: este homem não se parecia com o de há sete
anos. Ele já não manifestava aquela confiança em si mesmo e aquela
grosseria que me levavam a odiá-lo. Pelo contrário, agora ele estava
impregnado de uma doçura resignada. Até as suas mãos tinham mudado. Já
não usava pulseira.
– Se eu tivesse casado com ela, tudo teria sido bem diferente…
– Acha?
Decididamente, ele falava de uma outra pessoa que nada tinha a ver com
Sylvia, e as coisas, com o correr dos anos, tinham para ele um sentido que
não tinham para mim.
– Ela não me perdoou essa cobardia… Ela gostava de mim… Eu era o
único homem que ela amava…
O seu sorriso triste era tão surpreendente como o saco que trazia a
tiracolo. Não, não se tratava do mesmo homem das margens do Marne.
Talvez ele tivesse esquecido fragmentos inteiros do passado ou tivesse
acabado por se persuadir de que certos acontecimentos, de consequências
tão graves para todos nós, nunca tinham ocorrido. Eu tinha uma vontade
irresistível de o abanar.
– E o projeto de restaurante e de piscina numa pequena ilha, para os lados
de Chennevières?
Eu tinha levantado a voz e aproximado o meu rosto do dele. Mas em vez
de ficar embaraçado com a minha pergunta, ele conservava o seu sorriso
triste.
– Não estou a ver o que quer dizer… Como sabe, eu ocupava-me
sobretudo dos cavalos de minha mãe… Ela tinha dois cavalos de corrida
que competiam em Vincennes…
Ele parecia de tão boa-fé que não ousei contradizê-lo.
– Viu, há pouco, o tipo que carregava os meus sobretudos de cabedal para
a camioneta? Pois bem, ele aposta nas corridas… A meu ver, só pode haver
um mal-entendido entre os homens e os cavalos…
Estava a troçar de mim? Não. Ele nunca tinha tido o menor sentido de
humor. E a luz do néon acentuava a expressão enfadada e grave do seu
rosto.
– Entre os cavalos e os homens, a coisa só raramente funciona… Por mais
que lhe diga que faz mal em apostar nas corridas, ele continua mas nunca
ganha… E você? Continua a ser fotógrafo?
Ele tinha pronunciado as últimas palavras com o timbre metálico que, há
sete anos, era o seu.
– Na altura, não entendi lá muito bem o seu projeto de álbum
fotográfico…
– Eu pretendia fazer fotografias sobre as praias fluviais dos arredores de
Paris – disse-lhe eu.
– Praias fluviais? E foi por isso que se instalou em La Varenne?
– É verdade.
– No entanto, não se trata realmente de uma praia fluvial.
– Acha? Há apesar de tudo o Beach…
– É. Suponho que não teve tempo de tirar as suas fotografias, não é
verdade?
– Se, se… se quiser, posso mostrar-lhe algumas…
A nossa conversa tornava-se inútil. Era estranho exprimir-se assim, por
meias-palavras, ou por subentendidos.
– Em todo o caso, posso dizer que aprendi coisas bem edificantes… E
isso serviu-me de lição…
A minha observação deixou-o petrificado. E, além disso, eu fizera-a num
tom agressivo. Insisti:
– Suponho que também você guarda uma má recordação de tudo isso?
Mas arrependi-me imediatamente da minha provocação. Ela deslizara
sobre ele, e ele envolvia-me com o seu sorriso triste.
– Já não tenho qualquer recordação – disse-me ele.
Olhou para o relógio de pulso.
– Daqui a pouco vêm à minha procura… É pena… Gostaria de ficar mais
tempo consigo… Mas espero que voltemos a ver-nos…
– Quer realmente voltar a encontrar-se comigo?
Eu sentia um certo mal-estar. Ter-me-ia sentido menos desamparado em
presença do mesmo homem de há sete anos atrás.
– Sim. Gostaria de voltar a vê-lo de tempos a tempos para falarmos de
Sylvia.
– Acha que vale realmente a pena?
Como podia eu falar-lhe de Sylvia? Era de perguntar se, passados sete
anos, ele não estava a confundi-la com outra. Ele lembrava-se de que eu
tinha sido fotógrafo mas, nos velhos que perderam a memória, subsistem
ainda alguns fragmentos do passado: um lanche de aniversário da sua
infância, a letra de uma canção de embalar que lhes cantavam…
– Já não quer falar mais de Sylvia? Meta bem isso na cabeça…
Ele batia com o punho na mesa e eu esperava as ameaças e as chantagens
de outrora, diluídas pelo tempo, evidentemente, como as declarações
daqueles criminosos de guerra caquéticos que são levados, quarenta anos
depois das suas perversidades, a tribunal.
– Convença-se de que nada teria acontecido se eu tivesse casado com
ela… Nada… Ela gostava de mim… A única coisa que ela queria era que
também eu lhe desse uma prova de amor… E eu fui incapaz de lha dar…
Ao observá-lo, ali, na minha frente, ao ouvir aquelas palavras de um
pecador arrependido, perguntei-me se eu não era injusto para com ele. Ele
divagava mas tinha melhorado com o tempo. Nunca, nessa altura, ele podia
ter tido este tipo de raciocínio.
– Eu creio que se engana – disse-lhe eu. – Mas isso não tem qualquer
importância. Em todo o caso, a intenção é boa.
– Não me engano absolutamente nada.
E ele batia novamente com o punho na mesa com um ar de bêbedo.
Receei que recuperasse a sua brutalidade e o seu mau génio. Felizmente,
naquele instante, o homem da camioneta entrou no café e pôs-lhe uma mão
no ombro. Ele virou-se e olhou-o fixamente, como se o não reconhecesse.
– Já vou… Dentro de momentos estou ao teu dispor…
Levantámo-nos e acompanhei-os até à camioneta que estava estacionada
em frente do cinema Le Forum. Ele correu a porta, mostrando uma fila de
sobretudos de cabedal, pendurados em cabides.
– Escolha um…
Eu fiquei imóvel. Então, ele examinou os sobretudos de cabedal um a um.
Retirava os cabides e voltava a pô-los um de cada vez.
– Este deve ser a sua medida…
Passou-me o sobretudo de cabedal, ainda com o cabide.
– Não preciso de sobretudo – disse-lhe.
– Se… se… Faça-me a vontade…
O outro esperava, sentado no guarda-lamas da camioneta.
– Experimente-o.
Peguei no sobretudo e vesti-o na sua frente. Observava-me com o olhar
penetrante de um alfaiate, durante uma prova.
– Não o incomoda nos ombros?
– Não, mas digo-lhe que não preciso do sobretudo.
– Fique com ele, faça-me a vontade. Faço questão.
Ele próprio o abotoava. Eu estava muito hirto, qual manequim de
madeira.
– Fica-lhe muito bem… E a vantagem, para mim, é que tenho muitos
números grandes…
Eu consentia para me ver livre dele o mais rápido possível. Não queria
discutir. Queria era vê-lo partir.
– Se houver algum problema, venha trocá-lo por outro… Estarei na
minha banca, no Boulevard Gambetta, amanhã à tarde… E, em todo o caso,
dou-lhe a minha direção…
Remexeu no bolso interior do seu casaco e deu-me um cartão de visita.
– Tome… a minha direção e o meu número de telefone em Antibes…
Fico à sua espera…
Abriu a porta da frente, subiu e sentou-se no banco. O outro instalou-se
ao volante. Ele baixou o vidro e inclinou-se para fora.
– Sei que não simpatiza comigo – disse-me ele – mas estou disposto a
retratar-me… Eu mudei… Compreendi quais eram os meus erros…
Sobretudo em relação a Sylvia… Só a mim ela amou verdadeiramente…
Voltaremos a falar os dois de Sylvia, está bem?…
Ele media-me dos pés à cabeça.
– O sobretudo fica-lhe às mil maravilhas…
Fechou o vidro sem me largar com os olhos. Mas bruscamente, no
momento em que a camioneta arrancava, o seu rosto ficou com uma
expressão de espanto: não consegui evitar fazer-lhe – gesto incompreensível
por parte de um homem reservado como eu – um manguito.
Algumas pessoas entravam no Forum para a sessão das nove da noite.
Também eu senti a tentação de me ir sentar na velha sala de cinema de
veludo vermelho. Mas eu queria desfazer-me daquele sobretudo de cabedal
que me apertava nos ombros e me impedia de respirar. Com a pressa,
arranquei um botão. Dobrei o sobretudo, coloquei-o num banco da
Promenade e afastei-me com a sensação de deixar para trás de mim algo de
comprometedor.
Seria a fachada deteriorada do cinema Le Forum? Ou o reaparecimento
de Villecourt? Mas pensei nas confidências que a mãe dele me fizera a
respeito do assassinato misterioso do comediante Aimos numa barricada do
bairro da Gare du Nord, durante a libertação de Paris. Aimos sabia muita
coisa, tinha ouvido muitas conversas, tinha convivido com muita gente
duvidosa nas hospedarias de Chennevières, Champigny e La Varenne. E o
nome de toda essa gente, que a Sr.ª Villecourt me indicara, evocavam-me as
águas lodosas do Marne.
Consultei o seu cartão de visita:
Frédéric Villecourt, comissionista.
Noutro tempo, os caracteres do seu nome teriam sido pretos e gravados.
Hoje, porém, eram cor de laranja, como os de um simples prospeto, e o
termo bem modesto de «comissionista», se nos lembrássemos do Frédéric
Villecourt das margens do Marne, indicava que, muitas vezes, bastam
alguns anos para se conseguir o que se pretende. Ele próprio escrevera a
tinta azul a sua direção: Avenida Bosquet, n.º 5, Antibes. Telefone:
50.22.83.
Eu caminhava ao longo da Avenida Victor-Hugo, porque decidira voltar
para casa a pé. Não, nunca deveria ter entabulado conversa com ele.
Da primeira vez, quando o vi passar na Promenade des Anglais com o seu
passo pesado, com esse ridículo saquinho de cabedal a tiracolo, não senti
nenhuma vontade de lhe falar. Nesse domingo, estava um lindo sol de
outono e eu estava sentado na esplanada do Queeni. E, na Promenade, ele
parou e acendeu um cigarro. Depois permaneceu ainda uns instantes
imóvel, por detrás da chusma de automóveis. Ia atravessar com o semáforo
vermelho e ficar no passeio, precisamente à minha frente. E, nesse
momento, podia ver-me. Ou então, não se mexeria, a noite cairia e a sua
silhueta, qual sombra chinesa, recortar-se-ia para sempre sobre o mar,
diante de mim.
Ele prosseguiu o seu caminho em direção ao casino Ruhl e ao Jardim
Alberto I, com o saco de cabedal a tiracolo. À minha volta, homens e
mulheres, rígidos como múmias, tomavam chá, silenciosos, de olhar fixo na
Promenade des Anglais. Talvez também eles espiassem, por entre essa
multidão em procissão, silhuetas do seu passado.

Volto sempre para casa atravessando o que foi a sala de jantar do antigo
Hotel Majestic, precisamente na esquina do Boulevard de Cimiez. Agora, já
não passa de um hall, que serve de sala de reuniões ou exposições. Ao
fundo, na semipenumbra, um grupo coral cantava canções em inglês. Junto
da escadaria, havia um cartaz com esta inscrição: «Today: The Holy Nest.»
As suas vozes agudas ainda me chegavam ao segundo andar, quando fechei
a porta do meu quarto. Deviam ser canções de Natal. Aliás, o Natal estava
próximo. Estava frio neste quarto mobilado, um antigo quarto de hotel com
casa de banho, de que ainda subsistia o número, numa placa de cobre,
dentro do armário: 252.
Liguei o pequeno radiador elétrico mas o calor que deitava era tão pouco
que acabei por desligá-lo. Estendi-me na cama, sem tirar os sapatos.
Há, no edifício Majestic, apartamentos de três ou quatro divisões, as
antigas suites do hotel, ou quartos simples que se ligaram entre si no
decurso de obras de reparação. Eu prefiro viver numa só divisão. É menos
triste. Tem-se ainda a ilusão de viver no hotel. A cama continua a ser a do
quarto 252. Também a mesa de cabeceira. E pergunto-me se a secretária de
madeira escura, pretensamente Luís XVI, pertenceria ao mobiliário do
Majestic. A alcatifa, essa, não existia no quarto 252: uma alcatifa cinzento-
beje, gasta em alguns sítios. A banheira e o lavatório também mudaram.
Eu não tinha vontade de jantar. Apaguei a luz. Fechei os olhos e deixei-
me embalar pelas vozes longínquas do grupo coral inglês. Ainda estava
estendido na cama, no escuro, quando o telefone tocou.
– Alô… É Villecourt…
A sua voz era muito baixa, quase um cochicho.
– Incomodo-o? Descobri o seu número na lista telefónica…
Fiquei em silêncio. Ele voltou a perguntar-me:
– Incomodo-o?…
– De modo nenhum.
– Gostaria simplesmente que as coisas ficassem claras entre nós. Quando
nos despedimos, tive a impressão de que você me odiava…
– Não o odeio…
– No entanto, o gesto que me fez…
– Foi uma brincadeira.
– Uma brincadeira? Você tem um sentido de humor realmente singular.
– É assim – disse-lhe eu. – Têm de me aceitar como sou.
– Achei esse gesto de tal modo agressivo… Tem algo a censurar-me?…
– Não.
– Nunca lhe perguntei nada… Foi você, Henri, que me procurou. Você
estava à espera diante da banca, no Boulevard Gambetta.
– Não me chamo Henri…
– Desculpe… Estava a confundir com outro… Esse tipo moreno que
estava sempre a dar palpites sobre as corridas… Não sei que piada é que
Sylvia lhe encontrava…
– Não tenho vontade de falar de Sylvia consigo.
Era realmente penoso prosseguir aquela conversa telefónica no escuro.
Do hall, as vozes do grupo coral inglês continuavam a chegar-me e
acalmavam-me; nessa noite, não estava completamente só.
– Porque é que não quer falar de Sylvia comigo?
– Porque não estamos a falar da mesma pessoa.
Desliguei. Passados breves instantes, o telefone voltou a tocar.
– Foi uma falta de delicadeza ter desligado… Mas não vou largá-lo…
Ele pretendia pôr um pouco de ironia na sua voz.
– Estou fatigado – disse-lhe.
– Também eu. Mas não é razão para não voltarmos a falar. Doravante, só
nós dois sabemos certas coisas…
– Pensava que você tinha esquecido tudo…
Fez-se silêncio.
– Realmente não… Isso incomoda-o, não é verdade?
– Não.
– Convença-se de que era eu quem melhor conhecia Sylvia… Era eu
quem ela mais amava… Como está a ver, não me furto às minhas
responsabilidades.
Desliguei. Passaram alguns minutos e o telefone voltou a tocar.
– Havia entre mim e Sylvia uma ligação muito forte… Tudo o mais não
tinha qualquer importância para ela…
Ele falava como se tivesse achado natural que eu tivesse desligado pela
segunda vez.
– Gostava de falar de tudo isso consigo, quer queira quer não…
Telefonar-lhe-ei até que aceite…
– E eu corto o telefone.
– Nesse caso, esperá-lo-ei diante da sua casa. Não poderá livrar-se de
mim lá muito facilmente… Em suma, foi você que veio procurar-me…
Desliguei mais uma vez. Novamente, a campainha do telefone.
– Eu não esqueci certas coisas… Ainda lhe posso causar muitas
chatices… Quero ter consigo uma conversa séria sobre Sylvia…
– Você esquece que também eu lhe posso causar muitas chatices –
respondi-lhe.
Desta vez, depois de ter desligado, marquei o meu próprio número de
telefone e meti o auscultador debaixo da almofada para não ouvir o ruído do
telefone.
Levantei-me e, sem acender a luz, fui para a janela. Em baixo, o
Boulevard de Cimiez estava deserto. De tempos a tempos, um automóvel
passava e, sempre que isso acontecia, eu perguntava-me se iria parar. Um
bater de porta. Ele sairia e levantaria a cabeça em direção à fachada do
Majestic para ver em que andar ainda havia luz. Ele entraria na cabina
telefónica, no começo da curva do boulevard. Deveria deixar o auscultador
desligado ou responder-lhe? O melhor seria aguardar o toque e pôr o
auscultador ao ouvido, sem dizer nada. Ele repetiria: «Alô… Está a ouvir-
me?… Alô, está a ouvir-me?… Estou muito perto da sua casa… Responda-
me… Responda-me…» A essa voz, cada vez mais inquieta e mais
plangente, eu responderia apenas com o silêncio. Sim, gostaria de lhe
transmitir a sensação de vazio que eu próprio sinto.
O grupo coral calou-se há muito, e eu continuo postado diante da janela.
Espero que a silhueta se recorte, lá em baixo, na iluminação branca do
boulevard, tal como se recortava, no outro domingo, na Promenade des
Anglais.

Ao fim da manhã, desci à garagem. Pode-se lá chegar a partir do rés do


chão do prédio por uma escada de cimento. Basta seguir um corredor, ao
fundo do hall, abrir uma porta, e acender a luz da escada.
É um local muito amplo, na parte de baixo do Majestic, que já devia
servir, no tempo do hotel, de recolha para os automóveis.
Ninguém. Os três empregados tinham saído para almoçar. A bem dizer,
tinham cada vez menos trabalho. Alguém apitava do lado da estação de
serviço. Um Mercedes aguardava e o condutor pediu-me para atestar o
depósito. Deu-me uma boa gorjeta.
Depois dirigi-me para o meu gabinete, no interior da garagem. Uma
divisão com o chão de mosaico, paredes verde-pálido e envidraçada.
Tinham deixado um envelope em meu nome sobre a mesa de madeira
branca. Abri-o e li:

«Fique tranquilo. Nunca mais voltará a ouvir falar de mim. Nem de


Sylvia.
Villecourt.»
Por descargo de consciência, tirei do bolso o seu cartão de visita e
marquei o número de telefone da sua casa de Antibes: ninguém respondeu.
Pus ordem no meu gabinete, onde velhos dossiês e faturas estavam
empilhados desde há meses. Guardei-os no armário metálico. Dentro em
breve, já nada disso restaria: o administrador do prédio, que me tinha
arranjado este lugar de direção nesta garagem, tinha-me avisado de que a
iam transformar num simples parque de estacionamento.
Olhei pela vidraça: a uma certa distância, estava um automóvel
americano, de capot aberto, com o pneu de uma das rodas de trás
completamente em baixo. Quando os outros voltassem, tinha de lhes
perguntar se se tinham esquecido dele. Mas voltariam? Também eles tinham
sido avisados do encerramento próximo da garagem, e tinham sem dúvida
encontrado algures outro emprego. Eu fui o único que não tomou
precauções.

Mais tarde, depois do almoço, marquei novamente o número de


Villecourt, em Antibes. Não houve resposta. Dos três empregados, só um
tinha voltado e acabava a reparação do automóvel americano. Disse-lhe que
me ausentava durante uma ou duas horas e pedi-lhe que tomasse conta da
estação de serviço.
Havia sol e um tapete de folhas mortas no passeio da Avenida
Dubouchage. Enquanto caminhava, pensava no meu futuro. Dar-me-iam
uma indemnização pelo encerramento da garagem, com o que subsistiria
algum tempo. Conservaria o meu quarto no Majestic, cujo aluguer era
irrisório. Talvez conseguisse que Boistel, o gerente, não me obrigasse a
pagar mais o aluguer como sinal de agradecimento pelos meus serviços.
Sim; ficaria na Côte d’Azur para sempre. Para quê mudar de horizontes?
Poderia mesmo retomar a minha antiga profissão de fotógrafo e aguardar,
na Promenade des Anglais, com uma polaroide, a passagem dos turistas. O
que pensara ao dar uma vista de olhos pelo cartão de visita de Villecourt,
também se me aplicava. Muitas vezes bastam alguns anos para se conseguir
o que se pretende.
Sem me dar conta, tinha chegado ao Jardim da Alsácia-Lorena. Virei à
esquerda, para o Boulevard Gambetta, e senti um ligeiro aperto no coração
perguntando-me se encontraria Villecourt detrás da sua banca. Desta vez,
observá-lo-ia de longe para que ele não pudesse notar a minha presença e ir-
me-ia imediatamente embora. Seria um alívio contemplar aquele vendedor
ambulante, que já não era o antigo vendedor ambulante, e que nunca tinha
estado ligado à minha vida. Nunca. Um vendedor ambulante inofensivo
como os que há nos passeios de Nice por altura das festas de Natal. E nada
mais.
Vi uma silhueta que se agitava por detrás da banca. No momento de
atravessar a Rua Buffa, apercebi-me de que não era Villecourt mas um loiro
enorme com cara de cavalo e casaco de cabedal. Como da primeira vez,
dirigi-me para a primeira fila. Não utilizava o pódio nem o microfone, e
debitava a sua arenga com uma voz muito forte, enumerando as
mercadorias que tinha na frente: miopótamo, pele de carneiro tratada,
coelho, doninhas, botins todos em couro, simples ou forrados… A banca
estava muito mais abastecida do que na véspera e o loiro atraía mais gente
do que Villecourt. Muito pouco cabedal. Peles em abundância. Talvez não
achassem Villecourt digno de vender peles.
Ele fazia descontos de vinte por cento nos casacos de miopótamo e nos
fatos de pele de carneiro tratada com jaqueta. Carneiro? Havia-o de todas as
cores: preto, chocolate, azul-escuro, verde-bronze, fúcsia, violeta-claro…
Como bónus, para os compradores, um pacote de marrons glacés. Ele
falava cada vez mais depressa e provocava-me tonturas. Acabei por me
sentar na esplanada do café que ficava próximo e esperei cerca de uma
hora, antes de os mirones dispersarem. O dia tinha caído há muito.
Ele estava sozinho detrás da sua banca, e eu aproximei-me dele:
– Está encerrado – disse-me ele. – Mas se quiser alguma coisa… Tenho
casacos de cabedal… muito baratos… trinta por cento de desconto… ou
casacões de carneiro macio… forno de tafetá, números 38 a 46… Deixo-
lhos por metade do preço…
Se não lhe cortasse a palavra, nunca mais se calava. Estava embalado.
– Conhece Frédéric Villecourt? – perguntei-lhe.
– Não.
Ele começava a empilhar peles e casacos uns sobre os outros.
– Mas ontem à tarde ele estava aí, no seu lugar.
– Como sabe, somos muitos a trabalhar na Côte d’Azur para a France-
Cuir…
A camioneta parou junto da banca. O mesmo condutor desceu e correu a
porta.
– Boa-tarde – disse-lhe eu. – Vimo-nos ontem à tarde com um amigo
meu…
Ele observava-me franzindo as sobrancelhas e parecia não se lembrar de
nada.
– Você foi ter com ele ao café do Forum…
– Ah sim… Ah sim. Realmente…
– Carrega-me tudo isso depressa – disse o loiro enorme com cabeça de
cavalo.
O outro pegava nos sobretudos e nos casacos de cabedal uns a seguir aos
outros e enfiava-os nos cabides antes de os pendurar na camioneta.
– Não sabe onde é que ele está?
– Talvez já não trabalhe para a France-Cuir…
Ele respondera-me com uma voz seca, como se Villecourt tivesse
cometido uma falta muito grave, e como se fosse realmente um privilégio
trabalhar para a France-Cuir.
– Eu pensava que ele tinha um emprego fixo…
O loiro enorme com cabeça de cavalo, com as nádegas apoiadas na borda
da banca, anotava qualquer coisa num bloco. As contas do dia?
Tirei do bolso o cartão de visita de Villecourt.
– Ontem à noite deve tê-lo levado a casa… à Avenida Bosquet, n.º 5, em
Antibes…
O condutor continuava a arrumar os sobretudos e os casacos na camioneta
e nem sequer se dignava olhar para mim.
– É um hotel – disse-me ele. – É lá que ficam os vendedores da France-
Cuir… Lá avisam-nos se têm de trabalhar em Cannes ou em Nice…
Eu passei-lhe um casacão de carneiro, depois um casaco de cabedal, e a
seguir botas forradas. Se o ajudasse a carregar a camioneta, talvez acedesse
a dar-me algumas informações suplementares sobre Villecourt.
– Como quer que eu tenha tempo de os conhecer a todos…? Revezam-
se… Dez novos por semana… Vemo-los dois ou três dias… Voltam a
partir… Vêm substituí-los outros… Com France-Cuir, a coisa não para…
Temos stocks em toda a região… Não apenas em Cannes e em Nice… Em
Grasse… Em Draguignan…
– Sendo assim, não tenho qualquer hipótese de o apanhar em Antibes?
– Ah não… o seu quarto já deve estar ocupado por outra pessoa… Talvez
pelo senhor…
Indicou-me o loiro enorme com cara de cavalo que continuava a tomar
notas num bloco.
– E não há nenhum meio de saber onde é que ele está?
– Das duas, uma… Ou já não trabalha para a France-Cuir, foi posto no
olho da rua porque não era um «vendedor» à altura…
Ele tinha acabado de pendurar os sobretudos e os casacos na camioneta e
limpava a testa com a ponta de um lenço.
– Ou então mandaram-no para outro sítio… Mas se perguntar à direção,
não lhe dirão nada… Segredo profissional… Suponho que o senhor nem
sequer é da família dele.
– Não.
O seu tom tinha serenado. O loiro enorme com cara de cavalo tinha vindo
juntar-se a nós.
– Já arrumaste tudo?
– Já.
– Nesse caso, vamos embora…
Subiu para a cabina da camioneta. O outro fechou a porta e verificou se
estava travada. Depois subiu ele e inclinou-se para mim pela janela
entreaberta.
– Às vezes a France-Cuir manda-os para o estrangeiro… Eles têm
armazéns na Bélgica… Se calhar, mandaram-no para a Bélgica…
Encolheu os ombros e arrancou. Eu segui com os olhos a camioneta que
desapareceu na esquina da Promenade des Anglais.

Estava agradável. Caminhei até ao Jardim da Alsácia-Lorena e sentei-me


num banco, por detrás dos baloiços e do parque de areia. Gosto deste sítio,
por causa dos pinheiros mansos e dos prédios que se recortam tão
nitidamente no céu. Pela tarde, vinha algumas vezes sentar-me aqui com
Sylvia. Encontrávamo-nos seguros no meio de todas aquelas mães que
vigiam os filhos. Ninguém iria procurar-nos neste jardim. E as pessoas, à
nossa volta, não nos prestavam atenção. Em suma, também nós podíamos
ter filhos a deslizar pelo escorrega ou a construir castelos de areia.
Para a Bélgica… Se calhar, mandaram-no para a Bélgica… Eu imaginava
Villecourt, pela tarde, debaixo de chuva, a vender à socapa porta-chaves e
velhas fotografias pornográficas no bairro da Gare du Midi, em Bruxelas.
Ele não passava da sombra de si mesmo. O recado que, nessa manhã, me
tinha deixado na garagem não me tinha surpreendido: «Nunca mais voltará
a ouvir falar de mim.» Eu tinha esse pressentimento. O mais espantoso é
que ele me tinha escrito esse recado, que constituía, pois, uma prova
material de que estava vivo. Quando, ontem à tarde, estava por detrás da
sua banca, levei tempo a reconhecê-lo, a persuadir-me de que era realmente
ele. Eu tinha-me prantado na primeira fila dos mirones e olhava-o
insistentemente como se quisesse despertar a sua atenção. E, sob esse olhar
fixo, ele esforçara-se por se tornar o antigo Villecourt. Durante algumas
horas, tinha continuado a representar esse papel, tinha-me telefonado, mas
sem grande convicção. Agora, em Bruxelas, encaminhava-se pelo
Boulevard Anspach para a Gare du Nord e apanhava um comboio ao acaso.
Encontrava-se num compartimento cheio de fumo com caixeiros-viajantes
que jogavam às cartas. E o comboio largava para um destino
desconhecido…
Também eu tinha pensado em Bruxelas para aí me refugiar com Sylvia,
mas tínhamos preferido não sair de França. Havia que escolher uma cidade
importante onde passássemos despercebidos. Nice tinha mais de quinhentos
mil habitantes, entre os quais podíamos desaparecer. Não era uma cidade
como as outras. E depois, havia o Mediterrâneo…
Iluminou-se uma janela no terceiro andar do prédio que fica na esquina da
praceta com o Boulevard Victor-Hugo, onde vivia a Sr.ª Efflatoun Bey. Será
que ainda é viva? Devia tocar à sua porta ou perguntar à porteira.
Contemplo a janela iluminada com uma luz amarelada. Já na altura em que
chegámos a esta cidade, a Sr.ª Efflatoun Bey tinha vivido a sua vida desde
há muito e eu perguntava-me se ela conservava dela vagas recordações. Era
um fantasma simpático, entre os milhares de outros fantasmas que povoam
Nice. Por vezes, pela tarde, vinha sentar-se num banco do Jardim da
Alsácia-Lorena, ao nosso lado. Os fantasmas não morrem. Há sempre luz
nas suas janelas, bem como nas de todos os prédios ocres e brancos que me
rodeiam e cujas fachadas estão semiocultadas pelos pinheiros mansos da
praceta. Levanto-me. Sigo pelo Boulevard Victor-Hugo e conto
maquinalmente os plátanos.
A princípio, quando Sylvia aqui veio ter comigo, eu via as coisas de uma
maneira diferente da que as vejo nesta noite. Nice não era esta cidade
familiar por onde caminho para encontrar o hall do Majestic e o meu quarto
com um radiador avariado. Felizmente, os invernos são amenos na Côte
d’Azur e isso livra-me de dormir de casaco. É da primavera que eu tenho
medo. Chega sempre como uma vaga de fundo, e eu pergunto-me sempre se
não vou desequilibrar-me e sair borda fora.
Eu pensava que a minha vida tomaria um novo rumo e que bastaria ficar
algum tempo em Nice para apagar todo o passado. Acabaríamos por já não
sentir o peso que nos importunava. Nessa noite, eu caminhava com um
passo muito mais rápido do que o de hoje. Na Rua Gounod, passara diante
do salão de cabeleireiro. O seu néon cor-de-rosa continua a brilhar – tive de
o confirmar antes de prosseguir o meu caminho.
Eu ainda não era um fantasma, como nesta noite. Dizia para comigo que
íamos esquecer tudo e recomeçar tudo do zero nesta cidade desconhecida.
Recomeçar do zero – era a frase que eu repetia para mim próprio enquanto
caminhava pela Rua Gounod com um passo cada vez mais apressado.
«Em frente», disse-me um transeunte a quem perguntei o caminho para a
estação. Em frente. Eu tinha confiança no futuro. Estas ruas eram novas
para mim. Não tinha qualquer importância se eu me guiasse um pouco ao
acaso.
O comboio de Sylvia só chegaria à estação de Nice às dez e meia da
noite.

Ela tinha como bagagem um grande saco de cabedal vermelho-escuro e,


ao pescoço, a Cruz do Sul. Eu estava intimidado por a ver avançar para
mim. Tinha-a deixado uma semana antes num hotel de Annecy porque tinha
querido partir sozinho para Nice e assegurar-me de que podíamos fixar-nos
nesta cidade.
A Cruz do Sul brilhava sobre a camisola preta na abertura da gola do
sobretudo. Cruzámos os olhares, ela sorriu e baixou a gola. Não era
prudente trazer essa joia de uma maneira ostentatória. E se, no comboio,
tivesse vindo sentada diante de um diamantista e tivesse despertado a sua
atenção? Mas, a este pensamento despropositado, também eu acabei por
sorrir. Peguei-lhe no saco de viagem.
– Não havia nenhum diamantista no teu compartimento?
Eu olhava de alto a baixo os poucos passageiros que acabavam de descer
do comboio em Nice e que, no cais, caminhavam a nosso lado.

No táxi, tive um momento de apreensão. A casa mobilada que eu tinha


escolhido e o aspeto do quarto poderiam não lhe agradar. Mas era preferível
vivermos neste tipo de sítio a vivermos num hotel onde os empregados da
receção nos teriam identificado.
O táxi seguiu o trajeto que, em sentido inverso, eu fizera: Boulevard
Victor-Hugo, Jardim da Alsácia-Lorena. Foi na mesma altura do ano, em
finais de novembro, e os plátanos tinham perdido as folhas, como nesta
noite. Ela tirou do pescoço a Cruz do Sul e eu senti na palma da minha mão
o contacto do fio e do diamante.
– Toma-o… Senão vou perdê-lo…
Meti cautelosamente a Cruz do Sul no bolso de dentro do meu casaco.
– Já viste se houvesse um diamantista no teu compartimento, à tua frente?
Ela apoiou a cabeça no meu ombro. O táxi parara na esquina da Rua
Gounod para dar passagem a outros automóveis que vinham da esquerda.
No princípio da rua, a fachada do salão de cabeleireiro brilhava com o seu
néon cor-de-rosa.
– De qualquer maneira, se tivesse vindo sentada em frente de um
diamantista, ele teria pensado que era pechisbeque…
Ela segredara-me a frase ao ouvido para que o condutor não ouvisse, e
com a entoação que Villecourt qualificava de «suburbana» quando ele,
Villecourt, pretendia parecer distinto, essa entoação que eu adorava, eu,
porque era a da infância.
– Sim, mas imagina que ele te pedia para a examinar mais de perto… com
uma lupa…
– Ter-lhe-ia dito que era uma joia de família.
O táxi parou na Rua Caffarelli, em frente da vivenda Sainte-Anne, de
quartos mobilados. Ficámos ambos imóveis um instante, no passeio. Eu
segurava o seu saco de viagem.
– O hotel é ao fundo do jardim – disse-lhe eu.
Receava que ela ficasse dececionada. Mas não. Deu-me o braço.
Empurrei o portão que se abriu num ruído de folhagem e seguimos pela álea
escura até ao edifício iluminado por uma lâmpada que ficava sobre o átrio
da entrada.

Passámos diante da marquise. O lustre estava aceso no salão onde a


proprietária me recebeu quando aluguei o quarto por um mês.
Sem chamar a atenção de ninguém, demos a volta ao edifício. Abri a
porta das traseiras e subimos as escadas de serviço. O quarto era no
primeiro andar, ao fundo de um corredor.
Ela sentou-se no velho sofá de couro. Não tinha tirado o casaco. Olhou à
sua volta, como se quisesse habituar-se à decoração. As duas janelas que
davam para o jardim do edifício estavam protegidas por cortinas pretas. Um
papel pintado com motivos cor-de-rosa cobria as paredes, exceto a do
fundo, cuja madeira clara evocava um chalé de montanha. Não havia mais
móveis além do sofá de couro e da cama bastante larga com varões de
cobre.
Eu estava sentado na borda da cama. Esperava que ela dissesse qualquer
coisa.
– Em todo o caso, não virão procurar-nos aqui.
– Claro que não – disse-lhe eu.
Queria detalhar-lhe as vantagens do lugar para melhor me convencer a
mim próprio: paguei um mês adiantado… É um quarto independente…
Guardaremos sempre a chave connosco… A proprietária vive no rés do
chão… Ela deixar-nos-á em paz…
Mas ela parecia não me ouvir. Observava o candeeiro que lançava sobre
nós uma luz fraca, depois o soalho, e em seguida as cortinas pretas.
Com o seu casaco, ter-se-ia pensado que ia sair do quarto de um momento
para o outro, e tive medo que ela me deixasse sozinho sentado na cama. Ela
continuava imóvel, com as mãos apoiadas nos braços do sofá. Uma
expressão de desalento, do desalento que também eu sentia, perpassou pelo
seu olhar.
Foi preciso que poisasse os olhos em mim para que tudo mudasse. Talvez
ela sentisse que experimentávamos as mesmas coisas nos mesmos
momentos. Sorriu-me e, em voz baixa, como se receasse que alguém
ouvisse atrás da porta, disse-me:
– Não devemos preocupar-nos.
A música e a voz grave de um orador, no rés do chão do edifício,
cessaram. Tinham desligado a televisão ou o rádio. Estávamos os dois
estendidos na cama. Eu abrira as cortinas e, pelas duas janelas, uma luz
fraca atravessava a escuridão do quarto. Via o seu perfil. Ela tinha os dois
braços atirados para trás, com as mãos a rodear os varões da cama, e a Cruz
do Sul ao pescoço. Preferia usá-la enquanto dormia: assim, não corria o
risco de lha roubarem.
– Não achas que há um cheiro estranho? – perguntou-me.
– Acho.
A primeira vez que visitara este quarto, um cheiro a mofo tinha-me
invadido a garganta. Abrira as duas janelas para deixar entrar um pouco de
ar fresco, mas isso não servira de nada. O cheiro impregnava as paredes, o
couro do sofá e o cobertor de lã.
Aproximei-me dela e, pouco depois, o seu perfume era mais intenso do
que o cheiro do quarto, um perfume pesado de que já não podia prescindir,
algo de doce e de tenebroso, como os laços que nos ligavam um ao outro.

1 Bebida muito popular em França nos anos 1960, composta por uma parte de conhaque e três
partes de água. (N. do E.)
Nessa noite, no antigo hall do Majestic, realizava-se a reunião semanal da
Associação Terras Longínquas. Em vez de subir para o meu quarto, poderia
ter-me sentado num dos bancos de madeira – iguais aos das pracetas – e
ouvir o conferencista entre as pessoas que se reuniram e que trazem todas
elas, na lapela, um círculo branco onde está inscrito T. L. em caracteres
azuis. Mas não há nenhum lugar livre e eu esgueiro-me, roçando a parede,
até à escada.
O meu quarto atual parece-se com o da Pensão Sainte-Anne, na Rua
Caffarelli. No inverno, devido à humidade e aos móveis de madeira velha e
de couro velho, paira o mesmo cheiro. Com o correr do tempo, os lugares
impregnam as pessoas, mas, na Rua Caffarelli, com Sylvia, o meu estado de
espírito era diferente. Hoje, tenho muitas vezes a impressão de ali
apodrecer. Reflito. Ao cabo de um instante, esta impressão dissipa-se e só
resta um desapego, uma sensação de calma e leveza. Nada mais tem
importância. No tempo da Rua Caffarelli, por vezes sentia-me desanimado,
mas o futuro apresentava-se-me com cores favoráveis. Acabaríamos por
sair dessa situação delicada em que nos encontrávamos. Para nós, Nice não
passava de uma etapa. Muito rapidamente, partiríamos para longe daqui,
para o estrangeiro. Estava a iludir-me. Eu não sabia que esta cidade era um
lodaçal e que eu me afundaria nele pouco a pouco. E que o único itinerário
que seguiria, durante todos estes anos, seria o que vai da Rua Caffarelli ao
Boulevard de Cimiez, onde agora vivo.
O dia seguinte à chegada de Sylvia era domingo. Fomos sentar-nos na
esplanada de um café da Promenade des Anglais, ao fim da tarde, na mesma
esplanada de onde, na outra noite, vira Villecourt passar, de saco a tiracolo.
Ele tinha acabado por se juntar às sombras que desfilavam diante de nós a
contraluz, a esses homens e mulheres que, a mim e a Sylvia, nos pareciam
muito velhos… Ao voltar a fechar a porta do meu quarto, tenho medo.
Pergunto-me se, doravante, não sou um deles. Nessa noite, eles bebiam
lentamente o seu chá nas mesas ao lado da nossa. Eu e Sylvia observávamo-
los, a eles e aos outros que continuavam a desfilar pela Promenade des
Anglais. Fim de um domingo de inverno. E eu sei que pensávamos os dois
na mesma coisa: tínhamos de encontrar, entre toda aquela gente que
deambulava à mesma hora pela Côte d’Azur, alguém a quem vender a Cruz
do Sul.

Choveu durante vários dias seguidos. Eu ia comprar os jornais ao


quiosque que fica à beira do Jardim da Alsácia-Lorena e voltava para a
Pensão Sainte-Anne, debaixo de chuva. A proprietária dava de comer aos
seus pássaros. Estava vestida com um velho impermeável e tinha atado ao
queixo um lenço para se proteger da chuva. Era uma mulher de uns sessenta
anos, de porte elegante. Falava com o sotaque de Paris. Fazia-me um sinal
com o braço e dizia-me «Bom-dia» e, depois, continuava a abrir as gaiolas
uma a uma, a pôr a comida, a fechar de novo as gaiolas. Por que acaso teria
também ela ido parar a Nice?
De manhã, ao despertarmos, quando ouvíamos os pingos de chuva
tamborilar sobre o zinco do pequeno alpendre, no jardim, sabíamos que
estaria assim durante todo o dia e, muitas vezes, ficávamos na cama até ao
fim da tarde. Preferíamos esperar que a noite chegasse para sairmos.
Durante o dia, a chuva na Promenade des Anglais, sobre as palmeiras e os
prédios claros, deixava no coração um sentimento de tristeza. Ela
impregnava as paredes e, pouco depois, a decoração de opereta e as cores
pastel estariam completamente diluídas. A noite abafava essa desolação,
graças às luzes e aos néons.
A primeira vez que tive a sensação de que estávamos metidos numa
cilada, nesta cidade, foi debaixo de chuva, na Rua Caffarelli, quando ia
comprar os jornais. Mas, quando regressei, estava de novo confiante. Sylvia
estava a ler um romance policial, com o tronco apoiado nas grades da cama
e a cabeça inclinada. Enquanto ela estivesse comigo, eu não tinha nada a
recear. Ela envergava uma camisola de gola alta cinzento-clara muito justa
que a tornava ainda mais delgada e que contrastava com os cabelos pretos e
o brilho azul do olhar.
– Os jornais trazem alguma coisa? – perguntava-me.
Eu folheava-os, sentado junto da cama.
– Não, nada.
Tudo acabou por se confundir. As imagens do passado confundem-se
numa massa leve e transparente que se distende, incha e toma a forma de
um balão de várias cores, prestes a rebentar. Desperto sobressaltado, com o
coração a bater. O silêncio aumenta a minha angústia. Já não ouço o
conferencista da Terras Longínquas, cuja voz monótona era trazida até ao
meu quarto por um microfone. Essa voz e a música do documentário que se
lhe seguira – sem dúvida um filme sobre o Pacífico, por causa do queixume
de guitarras havaianas – embalavam-me e eu adormecera.
Já não sei se encontrámos os Neal antes ou depois da chegada de
Villecourt a Nice. Tenho de rebuscar na minha memória, tentar encontrar
pontos de referência, não consigo deslindar os dois acontecimentos. Aliás,
não houve acontecimentos. Nunca. Esta palavra não é adequada. Sugere
qualquer coisa de brutal e de espetacular. Mas não. Tudo se desenrolou com
doçura, impercetivelmente, tal como se tecem lentamente na talagarça os
motivos de uma tapeçaria, tal como desfilavam os transeuntes pela
Promenade des Anglais, diante de nós.
Pelas seis da tarde, estávamos sentados numa mesa da esplanada
envidraçada do Queenie. A luz cor de malva dos candeeiros vacilava. Era
noite. Esperávamos, não sabíamos muito bem o quê. Éramos semelhantes a
centenas e centenas de pessoas que, ao longo dos anos, também tinham
esperado sentadas na mesma esplanada da Promenade: refugiados em zona
livre, exilados, ingleses, russos, gigolôs, croupiers corsos do Palais de la
Méditerranée. Alguns não tinham mudado de lugar em quarenta anos e
bebiam o seu chá nas mesas ao lado das nossas com pequenos gestos
sofreados. E o pianista? Desde quando arrancava as suas notas entre as
cinco e as oito da tarde, no fundo da sala? Tinha tido curiosidade de lhe
perguntar. Desde sempre, dissera-me. Resposta evasiva, de alguém que sabe
de mais e que quer esconder um segredo comprometedor. Em suma, era um
tipo do nosso género, de Sylvia e de mim. E, sempre que nos via entrar,
fazia-nos um sinal de conivência: um aceno amistoso com a cabeça ou
então alguns acordes que executava vigorosamente no teclado.
Nessa tarde, ficámos mais tempo do que o habitual na esplanada. Os
clientes tinham abandonado, pouco a pouco, a sala e só restávamos nós e o
pianista. Era um momento de vazio, antes da chegada dos primeiros clientes
para o jantar. Os empregados acabavam de pôr as mesas na zona de
«restaurante» do estabelecimento. E nós, nós não sabíamos muito bem em
que ocupar essa noite. Voltar para o nosso quarto da Pensão Sainte-Anne? Ir
à sessão da noite do cinema Le Forum? Ou, pura e simplesmente, esperar?
Eles sentaram-se numa mesa junto da nossa. Estavam colocados um ao
lado do outro, de frente para nós. Ele tinha um ar bastante descuidado, de
blusão de camurça, o rosto pálido, como se regressasse de uma longa
viagem ou não dormisse há quarenta e oito horas. Ela, pelo contrário, estava
bem arranjada: o cabelo e a maquilhagem deixavam supor que ia a uma
festa. Trazia um casaco de peles que devia ser de zibelina.

A coisa aconteceu da maneira mais banal e mais natural. Creio que,


passados uns instantes, Neal veio pedir-me lume. Além deles e de nós, não
havia ninguém na esplanada e eles compreenderam que era hora de fechar.
– Então, não podemos ao menos beber um copo? – disse Neal, sorrindo. –
Estamos completamente sós?
Um empregado encaminhou-se para a mesa deles com um passo dolente.
Lembro-me de que Neal pediu um café duplo, o que corroborou a minha
ideia de que ele não dormia há muito. Ao fundo, o pianista martelava as
mesmas teclas, sem dúvida para verificar se o seu instrumento estava bem
afinado. Não aparecia nenhum cliente para jantar. Na sala, os empregados
aguardavam, rígidos. E as notas do piano eram sempre as mesmas… Chovia
na Promenade des Anglais.
– Não se pode dizer que haja muito ambiente – observou Neal.
Ela fumava, em silêncio, ao lado dele. Sorria-nos. Houve entre Neal e nós
o esboço de uma conversa:
– Vivem em Nice?
– E vocês?
– Vivemos. Estão cá de férias?
– Em Nice, a chuva não tem grande piada.
– Talvez ele pudesse tocar outra coisa – disse Neal. – Provoca-me
enxaquecas…
Ele levantou-se, entrou na sala e encaminhou-se para o pianista. A mulher
continuava a sorrir-nos. Quando Neal regressou, ouvíamos os primeiros
acordes de Strangers in the Night.
– Gostam desta música? – perguntou-nos.
O empregado trouxe as bebidas e Neal convidou-nos para tomar um copo
com eles. Sylvia e eu sentámo-nos à sua mesa. Nem o termo
«acontecimento» nem o termo «encontro» são aqui os adequados. Não
encontrámos os Neal. Foram eles que caíram nas nossas malhas. Se não
tivessem sido os Neal, nessa noite, teriam sido, no dia seguinte ou dois dias
depois, outras pessoas. Há dias e dias que eu e Sylvia permanecíamos
imóveis em lugares de passagem: salas e bares de hotel, esplanadas de cafés
da Promenade des Anglais… Parece-me, hoje, que tecíamos uma gigantesca
e invisível teia de aranha e que esperávamos que alguém lá caísse.

Eles tinham os dois um impercetível sotaque estrangeiro. Acabei por


perguntar:
– São ingleses?
– Americano – respondeu-me Neal. – A minha mulher é inglesa.
– Fui educada na Côte d’Azur – corrigiu ela. – Não sou inteiramente
inglesa.
– E eu não sou inteiramente americano – disse Neal. – Vivo há muito
tempo em Nice.
Eles esqueciam a nossa presença e depois, no instante seguinte, falavam-
nos com uma simpatia calorosa. Este misto de distração e euforia explicava-
se nele pelo estado secundário provocado por uma fadiga extrema e pela
diferença horária: na véspera, ainda estava na América, dizia-nos ele, e a
mulher tinha-o ido buscar nessa mesma noite ao aeroporto de Nice. Ela não
esperava um regresso tão rápido. Preparava-se para sair com uns amigos no
momento em que ele telefonou do aeroporto. Era por isso que trazia aquele
fato de noite e aquele casaco de peles.
– De vez em quando, tenho de fazer uma viagem aos Estados Unidos –
explicava ele.
Também ela dava a impressão de pairar. Por causa do martíni que tinha
bebido de um só gole? Ou por causa do lado sonhador e excêntrico dos
ingleses? De novo a imagem da teia de aranha invisível, que eu e Sylvia
tínhamos montado, me veio à cabeça. Eles tinham vindo cair nela num
estado de menor resistência. Eu tentava lembrar-me de como eles tinham
aparecido naquela esplanada de café. Não tinham eles o rosto um pouco
alucinado, e o andar titubeante?
– Creio que não tenho forças para ir a casa dos teus amigos – disse Neal à
mulher.
– Não tem importância. Cancelo a visita.
Ele tinha bebido um terceiro café.
– Sinto-me melhor… É realmente agradável chegar a terra firme… Não
suporto o avião…
Eu e Sylvia trocámos um olhar. Não sabíamos se devíamos despedir-nos
ou ficar com eles. Teriam eles vontade de travar um conhecimento mais
profundo connosco?
As luzes da esplanada envidraçada apagaram-se com o estalido de um
interruptor, ficando apenas acesas as da sala do restaurante que nos
envolviam numa semipenumbra.
– Se bem entendo, querem pôr-nos na rua – disse Neal.
Remexeu nos bolsos do seu blusão.
– Que estupidez… Não tenho dinheiro francês.
Eu preparava-me para pagar a nossa conta mas a mulher de Neal já tinha
tirado da mala um maço de notas, e punha uma, negligentemente, sobre a
mesa.
Neal levantou-se. Nessa penumbra, a fadiga cavava-lhe o rosto.
– São horas de irmos para casa. Já não consigo ter-me em pé.
A mulher deu-lhe o braço e nós seguimo-los.

O seu automóvel estava estacionado um pouco mais à frente, na


Promenade des Anglais, precisamente junto de um banco iraniano cuja
vitrina poeirenta indicava que estava fechado há muito tempo.
– Tive o maior prazer em vos conhecer – disse-nos Neal. – Mas tem
piada… Tinha a impressão de que já nos tínhamos encontrado…
E olhava insistentemente para Sylvia. Lembro-me bem disso.
– Querem que os deixemos em algum sítio? – perguntou a mulher dele.
Disse-lhes que não valia a pena. Receei que Sylvia e eu não
conseguíssemos mais ver-nos livres deles. Pensei nos bêbedos que se
penduram numa pessoa e que querem arrastar-nos para cada bar para um
último copo. Muitas vezes, tornam-se agressivos. No entanto, o que é que
havia de comum entre bêbedos vulgares e os Neal? Eles eram tão distintos,
tão plácidos…
– Em que bairro vivem? – perguntou Neal.
– Para os lados do Boulevard Gambetta.
– Fica-nos em caminho – disse a mulher dele. – Se quiserem, deixamo-los
lá…
– Está bem – disse Sylvia.
E eu fiquei surpreendido com o seu tom categórico. Ela puxava-me pelo
braço, como se quisesse arrastar-me, contra minha vontade, para o
automóvel dos Neal. Encontrámo-nos os dois no banco de trás. A mulher de
Neal estava ao volante.
– Prefiro que sejas tu a conduzir – disse Neal. – Sinto-me tão fatigado que
me arrisco a espetar-me.
Passámos diante do Queenie, cujas luzes estavam completamente
apagadas, e, depois, diante do Palais de la Méditerranée. As suas arcadas
estavam fechadas com redes de arame e o edifício, de janelas entaipadas e
estores corridos, parecia votado à demolição.
– Vivem num apartamento? – perguntou-nos a mulher de Neal.
– Não. Neste momento, vivemos num hotel.
Ela tinha aproveitado o semáforo vermelho, na Rua de Cronstadt, para se
virar para nós. Ela cheirava a pinheiro e eu perguntava-me se aquele odor
seria o da sua pele ou o do seu casaco de peles.
– Nós vivemos numa vivenda – disse Neal – e tínhamos o maior prazer
em os convidar.
A fadiga tornava a sua voz sumida e acentuava o seu ligeiro sotaque
estrangeiro.
– Ficam muito tempo em Nice? – perguntou a Sr.ª Neal.
– Sim, estamos de férias – respondi eu.
– Vivem em Paris? – perguntou Neal.
Porque é que nos faziam este tipo de perguntas? Há pouco, no café, não
tinham mostrado nenhuma curiosidade especial em relação a nós. Pouco a
pouco, eu começava a inquietar-me. Queria fazer um sinal a Sylvia.
Desceríamos do automóvel no próximo semáforo vermelho. E se as portas
estivessem trancadas?
– Vivemos na região de Paris – disse Sylvia.
O seu tom calmo desfez os meus receios. A mulher de Neal pôs os limpa-
para-brisas a funcionar, por causa da chuva, e o seu movimento regular
acabou por me acalmar.
– Para os lados de Marnes-la-Coquette? – perguntou Neal. – A minha
mulher e eu já vivemos em Marnes-la-Coquette.
– Não. Nada disso – disse Sylvia. No leste de Paris. À beira do Marne.
Ela tinha lançado esta frase como um desafio e sorria-me. A sua mão
tinha deslizado para a minha.
– Não conheço nada dessa zona – disse Neal.
– É uma zona que tem um encanto muito especial – disse eu.
– Exatamente onde? – perguntou Neal.
– Em la Varenne-Saint-Hilaire – disse Sylvia com uma voz muito nítida.
E porque não teríamos respondido às perguntas da maneira mais natural?
Porque teria sido preciso mentir?
– Mas não contamos voltar para lá – acrescentei eu. – Gostaríamos de
ficar na Côte d’Azur.
– Têm razão – disse Neal.
Eu estava aliviado. Não tínhamos falado com ninguém desde há tanto
tempo que acabávamos, Sylvia e eu, por andar à roda nesta cidade como
numa gaiola. Mas não, não tínhamos peste. Podíamos manter uma conversa
com alguém, e até entabular novas relações.
O automóvel meteu pela Rua Caffarelli e eu indiquei à Sr.ª Neal o portal
da vivenda Sainte-Anne.
– Não é um hotel – disse Neal.
– Não. É uma pensão mobilada.
Arrependi-me imediatamente dessa palavra que poderia despertar uma
desconfiança em relação a nós. Eles tinham talvez preconceitos em relação
às pessoas que viviam numa pensão mobilada.
– Apesar disso é suficientemente confortável? – perguntou Neal.
Não, aparentemente, ele não tinha qualquer preconceito desse tipo mas
tinha até uma certa simpatia por nós.
– É provisório – disse Sylvia. – Esperamos encontrar outra coisa.
O automóvel tinha parado diante da Pensão Sainte-Anne. A Sr.ª Neal
tinha desligado o motor.
– Poderíamos ajudá-los a encontrar um outro alojamento – disse Neal
com uma voz distraída. – Não é, Barbara?
– Com certeza – disse a Sr.ª Neal. – Temos de voltar a ver-nos.
– Dou-lhes a nossa direção – disse Neal. – Podem telefonar quando
quiserem.
Tirou uma carteira do bolso e, da carteira, um cartão de visita que me
estendeu.
– Até breve… Espero voltar a vê-los rapidamente…
A Sr.ª Neal tinha-se virado para nós.
– Tive um enorme prazer em os conhecer…
Era ela realmente sincera ou não passava de uma fórmula de cortesia?
Observavam-nos os dois, em silêncio, na mesma posição, com os rostos
perto.
Eu não sabia que dizer. Sylvia também não. Creio que teriam achado
natural que ficássemos no automóvel e que tudo lhes era indiferente. Eles
teriam aceitado qualquer proposta nossa. Cabia-nos a nós tomar uma
iniciativa. Abri a porta.
– Até breve – disse eu. – E obrigado por nos terem trazido.
Antes de abrir o portão, voltei-me para eles e olhei para a matrícula do
automóvel. As duas letras CD deram-me um baque no coração. Aquilo
queria dizer CORPO DIPLOMÁTICO mas, durante um instante muito breve,
confundi essa matrícula com a de uma viatura da Polícia, e pensei que
Sylvia e eu tínhamos caído na armadilha.
– É um automóvel que uns amigos nos emprestaram – disse Neal num
tom divertido.
Ele inclinava a cabeça pelo vidro aberto da porta e sorria-me. Deve ter
notado a minha expressão de espanto quando vi a placa da matrícula. Por
mais que eu empurrasse o portão, não mexia. Girei e voltei a girar a
maçaneta. Por fim, a porta cedeu bruscamente, com um encontrão de
ombro.
Voltámos a fechar o portão atrás de nós e tanto eu como Sylvia não
conseguimos evitar olhar para eles uma vez mais. Continuaram no
automóvel, um ao lado do outro, imóveis, como que petrificados.

Reencontrámos o odor de humidade e de mofo no quarto. Muitas vezes,


quando regressávamos, no final desses dias vazios, sentíamos uma tal
sensação de solidão que essa humidade e esse mofo nos invadiam.
Estávamos bem encostados um ao outro nessa cama cujas molas e cobres
rangiam e tínhamos acabado por nos persuadir de que as nossas próprias
peles estavam impregnadas desse odor. Tínhamos comprado lençóis que
perfumámos com alfazema. Mas o odor não nos abandonava.
Nessa noite, tudo era diferente. Pela primeira vez, desde a nossa chegada
a Nice, tínhamos rompido o círculo mágico que nos isolava e nos asfixiava
pouco a pouco. Este quarto parecia bruscamente provisório. Já nem sequer
tínhamos necessidade de abrir as janelas para o arejar, nem de nos
embrulhar nos lençóis perfumados com alfazema. Mantínhamos o odor à
distância.
Encostei a testa ao vidro da janela e fiz sinal a Sylvia para que viesse para
junto de mim. Por detrás da vedação gradeada do jardim, o automóvel dos
Neal continuava ainda parado, com o motor desligado. Que estariam a dizer
um ao outro? De que estariam à espera? Constituiria aquele automóvel
cinzento e imóvel uma ameaça? Veríamos qual o rumo que as coisas iam
tomar. Tudo era preferível à prostração em que nos tínhamos deixado cair.
O motor começou a trabalhar. Mais um longo momento, e o automóvel
arrancou e, depois, desapareceu na esquina da Rua Caffarelli com a Avenida
Shakespeare.
Agora, tenho a certeza: Villecourt aparecera depois do nosso primeiro
encontro com os Neal. O acontecimento teve lugar na semana seguinte.
Ainda não tínhamos voltado a ver os Neal, porque decorreram dez dias até
conseguirmos apanhá-los pelo telefone e eles nos marcarem um encontro.
Acontecimento: também aqui o termo não é adequado. Tínhamos de
esperar cruzar-nos com Villecourt no nosso caminho.
Nas manhãs de sol, íamos ler os jornais para um banco do Jardim da
Alsácia-Lorena, junto do escorrega e dos baloiços. Aí, pelo menos, não
chamávamos a atenção de ninguém. À laia de almoço, comíamos
sanduíches num café da Rua de França. Depois, tomávamos um autocarro
até Cimiez ou até ao porto e passeávamos na relva do Jardim des Arènes ou
pelas ruas da Nice antiga. Por volta das cinco da tarde, na Rua de França,
comprávamos romances policiais em segunda mão. E como a perspetiva de
regressar à Pensão Sainte-Anne nos acabrunhava, os nossos passos
arrastavam-nos sempre para a Promenade des Anglais.
No enquadramento da vidraça, as grades e as palmeiras do jardim do
Museu Massena recortam-se no céu. Um céu de um azul límpido ou um céu
de um cor-de-rosa de crepúsculo. Pouco a pouco, as palmeiras tornam-se
sombras antes de o candeeiro da esquina da Promenade e da Rua de Rivoli
lançarem sobre elas uma claridade fria. Ainda me acontece entrar nesse bar
pela porta de madeira maciça da Rua de Rivoli, para evitar atravessar o hall
do hotel. E sento-me sempre diante da vidraça, como nessa noite, com
Sylvia. Não tirávamos os olhos da vidraça. O céu claro e as palmeiras
contrastavam com a semipenumbra do bar. Mas, ao cabo de um momento,
tinha-se apossado de mim uma inquietação, uma impressão de sufocamento.
Estávamos prisioneiros de um aquário, e olhávamos através do seu vidro o
céu e a vegetação do exterior. Nunca poderíamos respirar ao ar livre. Eu
sentia-me aliviado por a noite ter caído e ter escurecido a vidraça. Então
todas as luzes do bar se tinham acendido e, sob essas luzes vivas, dissipava-
se a inquietação.
Atrás de nós, ao fundo, a porta metálica de um elevador deslizava
lentamente e dava passagem a clientes do hotel que desciam dos seus
quartos. Eles sentavam-se nas mesas do bar. Eu espreitava sempre a
abertura lenta e silenciosa e o aparecimento dos clientes, como se vigiasse
uma engrenagem de relojoaria cuja regularidade me acalmava.
A porta metálica abriu-se e apareceu uma silhueta de fato cinzento-escuro
que reconheci imediatamente. Eu nem sequer ousava fazer um sinal de
cabeça a Sylvia para que também ela visse o homem que saía do elevador:
Villecourt.

Estava de costas para nós e dirigia-se para o hall do hotel. Transpôs a


saída do bar e já não havia qualquer perigo de dar pela nossa presença.
Segredei a Sylvia:
– Ele está além.
Ela mantinha o seu sangue-frio. Dir-se-ia que se tinha preparado para esta
eventualidade. Também eu, aliás.
– Vou verificar se de facto é ele…
Ela encolheu os ombros como se isso não servisse para nada.
Atravessei o hall do hotel e postei-me detrás da entrada envidraçada. Ele
continuava no passeio, na esquina da Promenade des Anglais com a Rua de
Rivoli, no sítio onde estão os enormes automóveis de aluguer. Estava a falar
com um dos motoristas. Tirava qualquer coisa do bolso mas eu não
distinguia o quê: Um bloco de notas? Uma fotografa? Estaria a pedir-lhe
que o levasse a uma determinada direção? Ou estaria a mostrar-lhe
fotografias nossas, esperando que o condutor com cabeça de fuinha nos
tivesse visto?
Em todo o caso, o condutor abanava a cabeça e Villecourt dava-lhe uma
gorjeta. Depois, no semáforo vermelho, atravessou a rua. Afastava-se com
um passo indolente, pela Promenade, do lado esquerdo, em direção ao
Jardim Alberto I.

Da cabina do Boulevard Gambetta, telefonei para o Hotel Negresco.


– Posso falar com o Sr. Villecourt?
Passado um instante, o rececionista respondeu:
– Não há nenhum Sr. Villecourt no hotel.
– Mas se… Acabei de o ver no bar… Traz um fato cinzento-escuro.
– Toda a gente usa fato cinzento-escuro.
Desliguei.
– Não está no Negresco – disse eu a Sylvia.
– Esteja ou não esteja, não tem importância.
Será que tinha dado instruções ao rececionista? Ou um nome falso? Era
terrível não poder localizá-lo e senti-lo presente em cada esquina de rua.
Fomos jantar ao café que fica junto do cinema Le Forum. Tínhamos
decidido comportar-nos como se Villecourt não constituísse qualquer
ameaça para nós. Se, por acaso, voltássemos a encontrá-lo e ele quisesse
falar-nos, fingiríamos não o reconhecer. Fingiríamos? Bastava persuadirmo-
nos de que éramos pessoas diferentes do Jean e da Sylvia que, dantes,
tinham frequentado as margens do Marne. Nós já não tínhamos nada em
comum com esses dois. E Villecourt não poderia provar o contrário. Para
começar, Villecourt não era nada.
Depois do jantar, procurávamos um pretexto para não regressarmos
imediatamente para o nosso quarto. Comprámos dois bilhetes de primeiro
balcão para o cinema Le Forum.
E antes de as luzes se apagarem na sala forrada com velho veludo
vermelho e de o painel da publicidade local dar lugar ao ecrã, fizemos sinal
à arrumadora para que nos trouxesse dois gelados.
Mas, à saída do cinema, eu sentia a presença difusa de Villecourt. Era
como o cheiro a mofo do quarto, algo de que nunca mais voltaríamos a
livrar-nos. Isso colava-se-nos à pele. Aliás, Sylvia chamava por vezes a
Villecourt «o russo carraça», porque ele afirmava que o pai era russo. Mais
uma mentira.
Subíamos lentamente o Boulevard Gambetta, pelo passeio da esquerda.
Ao passar diante da cabina telefónica, tive vontade de telefonar aos Neal.
De casa deles, até agora, ninguém respondia. Talvez lhes telefonássemos
sempre à hora errada ou então tinham saído de Nice. Eu quase me admiraria
se eles respondessem, de tal modo continuavam enigmáticos e flutuantes na
minha recordação… Existiam eles verdadeiramente? Ou não passavam de
uma miragem causada pelo nosso estado de extrema solidão? No entanto
ter-me-ia reconfortado ouvir vozes amigas. Eles teriam tornado a presença
de Villecourt em Nice menos sufocante.
– Em que estás a pensar? – perguntou-me Sylvia.
– No «russo peganhoso».
– Estamo-nos nas tintas para o russo…
A ligeira inclinação da Rua Caffarelli. Nem um automóvel. Nem um
ruído. Algumas vivendas, ainda, entre os prédios, sendo uma delas, de
aspeto florentino, rodeada por um grande jardim. Mas sobre o portão, um
cartaz de uma sociedade imobiliária anunciava a sua próxima demolição,
para dar lugar a um prédio de luxo cujo «andar modelo» já se podia visitar,
ao fundo do jardim. Numa placa de mármore esboroada, li: «Vivenda
Bezobrazoff». Tinham lá vivido russos. Indiquei a placa a Sylvia:
– Achas que eram parentes de Villecourt?
– Seria preciso perguntar-lhe.
– O Sr. Villecourt-pai vinha talvez tomar chá a casa dos Bezobrazoff
quando era novo…
Eu tinha pronunciado esta frase com o tom solene de um camareiro.
Sylvia desatou a rir.
No rés do chão da pensão, ainda havia luz no salão. Caminhámos o mais
suavemente possível para não fazermos ranger o cascalho. Eu tinha deixado
as janelas do quarto abertas e o perfume da folhagem molhada e da
madressilva misturava-se ao odor de mofo. Mas, pouco a pouco, o odor
tornava-se mais intenso.
O diamante brilhava com um reflexo de Lua sobre a sua pele. Como era
duro e frio comparado com aquela pele doce, parecia indestrutível sobre
aquele corpo delicado e enternecedor… Mais do que o odor do quarto, mais
do que Villecourt rondando à nossa volta, esse diamante que cintilava na
semipenumbra era bruscamente, a meus olhos, a marca evidente de uma má
sorte que pesava sobre nós. Eu quis tirar-lho, mas não conseguia encontrar o
fecho do fio atrás do seu pescoço.
O incidente deu-se dois dias depois, debaixo das arcadas da Praça
Massena.
Voltávamos a pé do Jardim Alberto I quando demos de caras com
Villecourt. Ele saía do quiosque dos jornais. Trazia o fato cinzento-escuro
que eu lhe tinha visto no bar do hotel. Desviei imediatamente a cabeça e
puxei Sylvia, apertando-lhe o braço.
Mas ele tinha-nos visto no meio dos transeuntes bastante numerosos
daquela tarde de sábado. Dirigia-se para nós dando encontrões às pessoas
que nos separavam dele, de olhos esbugalhados e olhar fixo. Na
precipitação, tinha deixado cair os jornais que trazia debaixo do braço.
Sylvia forçou-me a afrouxar o passo. Ela parecia muito calma.
– Tens medo do russo?
Ela esforçava-se por sorrir. Metemos pela Rua de França. Ele caminhava
a uns dez passos de nós, porque tinha sido retardado por um grupo de
turistas que saíam de uma pizzeria. Apanhou-nos.
– Jean… Sylvia…
Ele interpelava-nos num tom falsamente amistoso, mas nós
prosseguíamos o nosso caminho, sem lhe dar atenção. Ele seguia as nossas
pisadas.
– Não querem falar comigo? É estúpido…
Ele pôs-me uma das mãos sobre o ombro e a pressão dessa mão tornou-se
firme. Então, virei-me para ele. Sylvia também. Estávamos os dois imóveis,
diante dele. Ele deve ter lido algo no meu olhar que o inquietou porque me
observava com uma espécie de receio.
De bom grado o teria esmagado como uma barata, se tivesse sido
possível, e teria tido em seguida a sensação de um nadador que regressa ao
ar livre.
– Então… nem sequer me cumprimentam?
Sim, se tivéssemos estado sozinhos, tê-lo-ia certamente matado de uma
ou de outra forma, mas neste troço da Rua de França reservado a peões,
num sábado, em plena tarde, os transeuntes que eram cada vez mais
numerosos formariam, ao menor incidente, um ajuntamento à nossa volta.
– Já não se reconhecem os velhos amigos?
Eu e Sylvia caminhávamos com um passo mais rápido, mas ele
continuava a seguir-nos, colava-se a nós.
– Só cinco minutos para tomarmos um copo… e falarmos um pouco…
Apressávamos o passo. Ele alcançava-nos, ultrapassava-nos, tentava
bloquear-nos a passagem. Saltitava diante de nós como um jogador de
futebol que procura intercetar uma bola. O seu sorriso exasperava-me.
Quis afastá-lo com um gesto do braço um pouco mais largo e o meu
cotovelo atingiu-o nos lábios. Sangrava. Eu tinha a impressão de que tinha
acontecido algo de irremediável. Os transeuntes já se voltavam para
Villecourt, cujo queixo deitava sangue. Mas ele continuava a sorrir.
– Não me escapam…
O seu tom era mais agressivo. Continuava a saltar diante de nós ora num
pé ora no outro.
– Seja como for, temos uns problemas a resolver, não é verdade? Ou
então, serão os outros a resolvê-los por nós…
Desta vez, ele estava disposto a chegar a vias de facto. Eu imaginava os
transeuntes, em círculo à nossa volta, num círculo de onde já não podíamos
escapar-nos, alguém a avisar a polícia e a carrinha de transporte de presos a
aparecer de uma rua transversal… Era isto sem dúvida o que Villecourt
pretendia provocar.
Voltei a empurrá-lo. Agora, ele caminhava ao nosso lado, com um passo
tão rápido como o nosso. O sangue escorria-lhe por debaixo do queixo.
– Temos de falar os três… Tenho muitas coisas interessantes a dizer-
vos…
Sylvia agarrara-me no braço e nós afastávamo-nos dele, mas logo de
seguida, como um polvo, vinha atrelar-se a mim.
– Vocês não podem pôr-se de parte… Eu existo, eu… Temos de resolver
tudo entre nós… Senão os outros vão meter-se…
Ele apertava-me o pulso com uma força que pretendia tornar amistosa.
Para me libertar, dei-lhe um golpe violento com o antebraço nas costelas.
Ele deu um gemido.
– Querem que arme escândalo na rua? Querem que grite «agarra que é
ladrão»?
Ele tinha um ricto estranho que lhe torcia o nariz.
– Encontrar-me-ão sempre no vosso caminho… A não ser que
consigamos entender-nos… É a única maneira de impedir os outros de
intervir…
Começámos a correr. Graças ao efeito de surpresa, distanciámo-nos dele
um bom bocado. Empurrou alguém quando nos perseguia e dois homens
interpuseram-se imediatamente e começaram a acusá-lo. Nós sumimo-nos
num portal. Por uma ruela e pelo pátio interior de um prédio, chegámos à
Promenade des Anglais.

No Boulevard Gambetta, na cabina telefónica, marquei de novo o número


dos Neal. Os toques sucediam-se mas ninguém respondia. Sylvia e eu, não
queríamos voltar para a pensão, e esperávamos que os Neal nos
convidassem a ir a casa deles. Aí, estaríamos a salvo de Villecourt.
Mas passado um instante, no passeio cheio de sol, entre os grupos de
passeantes que se dirigiam para o mar, este incidente pareceu-nos irrisório.
Não havia qualquer razão para tomar precauções. Também nós, tal como os
outros, poderíamos aproveitar este ameno dia de inverno. Villecourt, apesar
de todos os esforços, não conseguiria imiscuir-se na nossa nova vida. Ele
estava caduco.
– Mas porque é que ele saltava diante de nós? – perguntou-me Sylvia. –
Ele não parecia estar no seu estado normal…
– Não. Não parecia estar no seu estado normal.
A maneira de nos seguir, as ameaças feitas sem grande convicção,
revelavam um certo desgaste da sua parte. Ele estava longe da realidade.
Até o sangue que lhe salpicara dos lábios e lhe inundara o queixo não
parecia ser sangue verdadeiro mas um artifício de cinema. E nós tínhamo-
nos visto livres dele com uma facilidade desconcertante.
Escolhemos um banco do Jardim da Alsácia-Lorena, ao sol. Umas
crianças deslizavam pelo escorrega verde, outras brincavam no parque de
areia, e outras ainda brincavam a cavalo nas tábuas dos baloiços, subiam,
desciam, subiam, com um movimento regular de metrónomo, que acabava
por nos entorpecer. Se Villecourt por ali passasse, não nos identificaria no
meio de toda aquela gente que vigiava os filhos. E mesmo que nos visse
entre aquela gente, que importância tinha isso? Já não estávamos no
ambiente perturbador das margens do Marne, onde sobem, da água
estagnada, maus cheiros de lodo. Nessa tarde, o céu estava muito azul, as
palmeiras eram muito altas, as fachadas dos prédios muito brancas e muito
cor-de-rosa, para que um fantasma como Villecourt resistisse a essas cores
estivais. Ele não resistiria. Dissipar-se-ia no ar onde pairava um perfume de
mimosa.
Passo por vezes diante da vivenda onde viviam os Neal. Fica no
Boulevard de Cimiez, à direita, uns cinquenta metros antes do cruzamento
dominado pela fachada do antigo Hotel Régina. É uma das raras residências
particulares que se mantêm no bairro. Mas não há dúvida que também estes
vestígios desaparecerão. Nada detém o progresso.
Eu pensava nisso, na outra manhã, quando regressava de um passeio que
tinha dado, por Cimiez, até ao Jardim des Arènes. Tinha parado diante da
vivenda. Desde há algum tempo, está a ser construído um edifício na parte
do jardim que estava ao abandono. Pergunto-me se eles vão acabar por
destruir a própria vivenda, ou se acabarão por conservá-la, como uma
dependência do edifício novo. Talvez tenha algumas hipóteses de subsistir:
não é de modo nenhum vetusta e tem o aspeto de um Petit Trianon, ao gosto
dos anos 30, com as suas janelas de sacada em arcos abobadados.
Mal se vê, porque domina o boulevard. Para a ver bem, é preciso
colocarmo-nos no passeio em frente, na esquina da Avenida Eduardo VII,
em cima do grande muro com balaustrada. A parte de baixo do muro foi
aberta ao meio por um portão em ferro forjado por detrás do qual uma
escadaria em pedra, no flanco do talude, leva ao patamar da vivenda.
O portão está permanentemente aberto, para dar acesso ao estaleiro de
construção. No muro, está afixada uma placa branca onde se podem ler os
nomes da sociedade imobiliária, do arquiteto e dos empresários, e a data da
licença de construção. O edifício ficará com o nome da vivenda: «Château
Azur». O proprietário é a sociedade S.E.F.I.C., que tem a sede na Rua
Tonduti-de-l’Escarène, em Nice.
Um dia, dirigi-me a esse endereço para saber o nome da pessoa a quem a
sociedade S.E.F.I.C. tinha comprado o Château Azur, e deram-me alguns
pormenores que eu já conhecia. A vivenda tinha pertencido, entre outros, à
Embaixada Americana que a alugava a particulares. Dei-me conta de que as
minhas diligências pareciam inteiramente indiscretas – e até suspeitas – ao
agente imobiliário afável e loiro que me tinha recebido, e não insisti.
Para quê? Muito antes de a sociedade S.E.F.I.C. ter comprado o Château
Azur e de ter realizado a sua operação imobiliária, eu tinha tentado saber
mais coisas. Tal como no escritório da Rua Tonduti-de-l’Escarène, as
minhas perguntas tinham ficado sem respostas satisfatórias.
Há uns sete anos, a vivenda tinha ainda o seu aspeto habitual. Não havia
estaleiro de construção, nem placa no grande muro com balaustrada. O
portão de entrada estava fechado. Junto do passeio, estava estacionado o
automóvel cinzento cuja placa de matrícula tinha as letras CD. Era aquele
mesmo automóvel no qual os Neal nos tinham levado, a Sylvia e a mim, à
Pensão Sainte-Anne, na noite em que os conhecemos. Toquei ao portão da
vivenda. Apareceu um homem moreno, de uns quarenta anos, de fato azul-
marinho:
– Que pretende?
Ele fizera-me esta pergunta abruptamente, com sotaque parisiense.
– Reconheci o carro de um amigo meu – disse-lhe, apontando para o
automóvel cinzento. – Queria saber notícias dele.
– Como se chama ele?
– Neal.
– O senhor está enganado. É o automóvel do Sr. Condé-Jones.
Ele mantinha-se por detrás do portão e observava-me com a maior
atenção possível, para avaliar devidamente o eventual perigo que eu
representava.
– Tem a certeza – disse-lhe eu – de que este automóvel pertence a esse
senhor?
– É evidente. Sou o seu motorista.
– Mas o meu amigo vivia aqui…
– O senhor está enganado… Esta casa pertence à Embaixada
Americana…
– Mas o meu amigo era americano…
– A casa é habitada pelo cônsul americano, o Sr. Condé-Jones…
– Há quanto tempo?
– Há seis meses, senhor.
Por detrás do portão, ele observava-me como se eu não estivesse bom da
cabeça.
– Posso falar com esse senhor?
– Tem entrevista marcada?
– Não. Mas sou cidadão americano e preciso de me aconselhar com ele.
A cidadania americana que eu tinha invocado inspirava-lhe bruscamente
confiança.
– Nesse caso, pode ver o Sr. Condé-Jones agora mesmo, se quiser. É a
hora a que ele recebe.
Abriu-me o portão e desviou-se à minha passagem, com todo o respeito
devido à minha cidadania americana. Depois, precedeu-me na escadaria.
À beira da piscina vazia, diante da casa, um homem estava sentado num
cadeirão de madeira branca e fumava, com o rosto ligeiramente atirado para
trás, como se quisesse expô-lo aos fracos raios do Sol.
Não nos ouvia chegar.
– Senhor Condé-Jones…
O homem olhou-nos e sorriu atentamente.
– Senhor Condé-Jones, este senhor quer falar-lhe… É cidadão americano.
Nessa altura, levantou-se. Era um homem de pequena estatura,
corpulento, de cabelos pretos penteados para trás, bigode, e grandes olhos
azuis.
– Em que posso ser-lhe útil?
Ele fizera esta pergunta em francês, sem o mínimo sotaque, com uma voz
tão doce que me lançou bálsamo no coração. A fórmula que ele tinha usado
não revelava apenas amabilidade mas uma atenção delicada para com os
outros. Foi pelo menos o que me pareceu pela entoação da sua voz. E, de
resto, há muito que ninguém me perguntava: «Em que posso ser-lhe útil?»
– Pretendia precisamente uma informação – balbuciei.
O motorista tinha-se retirado e eu experimentava uma sensação estranha
por me encontrar à beira daquela piscina.
– Que tipo de informação?
Ele olhava-me com um ar benévolo.
– Menti para falar consigo… Eu disse que era de nacionalidade
americana…
– Americano ou não, meu caro amigo, não tem importância…
– Pois bem – disse-lhe eu. – Queria saber informações sobre as pessoas
que viveram nesta vivenda antes de si.
– Antes de mim?
Ele virou-se e chamou em voz alta:
– Paul…
E apareceu imediatamente o motorista, como se se tivesse dissimulado
pertinho de nós, detrás de uma árvore ou de um muro.
– Pode trazer-nos qualquer coisa para beber?
– Imediatamente, senhor Cônsul.
Condé-Jones fez-me sinal para me sentar num dos cadeirões de madeira
branca. Ele instalou-se a meu lado. O motorista colocou-nos junto dos pés
uma bandeja com dois copos cheios de um líquido leitoso. Pastis? Condé-
Jones bebeu uma golada.
– Sou todo ouvidos… Diga-me tudo.
Ele parecia estar contente por estar em companhia de alguém.
Certamente, o posto de cônsul em Nice deixava-lhe muito tempo livre e ele
tinha de o ocupar.
– Em tempos vim aqui muitas vezes… Era recebido por um casal que
afirmava ser proprietário desta casa…
Eu não podia, evidentemente, dizer-lhe tudo. Decidira ocultar-lhe a
existência de Sylvia.
– E como se chamava o casal?
– Eram os Neal. Ele era americano e ela era inglesa… Eles utilizavam o
seu automóvel, o que está estacionado lá fora.
– O automóvel não é meu – disse-me Condé-Jones, depois de ter
esvaziado o copo de pastis de um só gole. – Já cá estava quando cheguei…

Mas, passado pouco tempo, o automóvel deixou de estar estacionado


diante da vivenda. Sempre que me dirigia ao Boulevard de Cimiez, eu
esperava que ele lá estivesse, estacionado ao lado do passeio. Não. Certa
tarde, toquei, para tirar a coisa a limpo. Ninguém respondeu. Concluí daí
que Condé-Jones partira com o automóvel cinzento do Corpo Diplomático e
que nenhum outro cônsul viera substituí-lo no Château Azur. Mais tarde, a
placa da sociedade imobiliária S.E.F.I.C., que estava no muro com
balaustrada, indicava que a vivenda já não pertencia à Embaixada
Americana e que, sem dúvida, dentro em pouco, já nem sequer haveria
vivenda.
A última vez que me encontrei com Condé-Jones foi num fim de tarde de
abril. Eu tinha-lhe deixado a minha direção e ele tivera a amabilidade de me
escrever algumas palavras a convidar-me e a anunciar-me que tinha à minha
disposição todas as informações sobre a vivenda Château Azur, suscetíveis,
escrevia ele, de me interessarem.
Ele permanecia no mesmo sítio em que se encontrava no dia da nossa
primeira entrevista: à beira dessa piscina vazia, cujo fundo estava coberto
de folhas mortas e pinhas. Aliás, eu suspeitava que ele estava aí, imóvel,
desde a sua «entrada em funções», como ele dizia, troçando um pouco de si
mesmo. Apesar de poder invocar o título de «cônsul», as suas «funções»,
em Nice, eram muito vagas. Ele sabia que este posto era uma prateleira para
onde o tinham relegado até atingir o dia da reforma definitiva.
Pois bem, esse dia chegara. Ele ia regressar à América depois de mais de
vinte anos de leais serviços na Embaixada dos Estados Unidos em França.
Ele quisera que eu viesse hoje para me transmitir as informações que me
interessavam, mas também – ele usava muitas vezes expressões de calão
que deformava ligeiramente – para beber «um copo de despedida».
– Parto amanhã – disse-me Condé-Jones. – Vou dar-lhe a minha direção
na Florida e, se se lhe proporcionar viajar até lá, teria o maior prazer em o
receber.
Tinha simpatia por mim apesar de só nos termos visto três ou quatro
vezes desde o dia em que toquei ao portão da vivenda. Mas eu fui talvez a
única pessoa a quebrar a sua solidão diplomática.
– Tenho pena de deixar a Côte d’Azur…
Ele lançava um olhar pensativo à piscina vazia e ao jardim ao abandono
que cheirava a eucalipto.
O motorista tinha-nos servido o aperitivo. Estávamos sentados, lado a
lado.
– Tenho todas as informações para si…
Estendeu-me um grande envelope azul.
– Tive de me dirigir à Embaixada em Paris…
– Agradeço-lhe infinitamente todo o seu trabalho.
– Não tem de quê… Achei isso muito instrutivo… Leia esse documento
com muita atenção… Vale a pena…
Eu tinha colocado o envelope sobre os joelhos. Ele olhava para mim com
um ar irónico.
– Tinha-me dito que o seu amigo se chamava Neal?
– Sim.
– Qual é a idade dele?
– Uns quarenta anos.
– Então é aquilo que eu penso… Trata-se de uma história de…
Ele procurava a palavra. Falava impecavelmente francês, mas, de vez em
quando – sem dúvida um hábito de diplomata –, hesitava quanto ao termo
mais preciso.
– Uma história de almas do outro mundo…
– De almas do outro mundo?
– Sim, sim. Você mesmo verá.
Por uma questão de delicadeza, eu não queria abrir o envelope na
presença dele. Ele bebia, aos golinhos, o seu pastis, contemplando o jardim
à nossa frente, banhado pelos últimos raios de Sol.
– Vou aborrecer-me na América… Estava afeiçoado a esta casa… Uma
casa absolutamente estranha, a acreditarmos neste documento… No
entanto, durante a minha permanência nunca ouvi qualquer barulho
suspeito… Não vi fantasmas, de noite… Tenho de lhe dizer que tenho um
sono pesadíssimo…
Ele deu-me amigavelmente pancadinhas no antebraço.
– Meu caro amigo, faz bem em explorar os mistérios destas velhas casas
da Côte d’Azur…

Dentro do envelope azul, duas folhas da mesma cor tinham o timbre da


Embaixada Americana. As informações recolhidas e escritas à máquina em
caracteres cor de laranja eram as seguintes: o Château Azur, no Boulevard
de Cimiez, pertencera nos anos trinta a um tal E. Virgil Neal, cidadão
americano, proprietário dos produtos de beleza e perfumes Tokalon cujos
escritórios estavam sediados em Paris, na Rua Auber, n.º 7, e na Rua de la
Pompe n.º 183, e, em Nova Iorque, no n.º 27 da West 20th Street. Em 1940,
no início da Ocupação, Neal regressara à América, mas a esposa continuara
em França. «A Sr.ª Virgil Neal, de solteira Bodier, conseguira justificar a
sua nacionalidade francesa para assumir a direção do negócio do marido e
evitar que a sociedade dos produtos de beleza e perfumes Tokalon passasse
a ser administrada provisoriamente pelas autoridades alemãs, depois de os
Estados Unidos entrarem na Guerra.»
A situação complicara-se em setembro de 1944 porque «a Sr.ª Virgil Neal
tinha tido durante a Ocupação alemã, em Paris e na Côte d’Azur, relações
muito íntimas com um tal Ladd, André, nascido a 30 de junho de 1916, com
o último domicílio conhecido na Avenida Jorge V, n.º 53, Paris VIII,
condenado à revelia a 21 de março de 1948, por conluio com o inimigo, a
uma pena de vinte anos de trabalhos forçados e de vinte anos de proibição
de residência, à confiscação total de todos os seus bens e à perda de
nacionalidade».
No relatório da Embaixada, dizia-se que a vivenda Château Azur tinha
sido interditada em setembro de 1944, «depois do inquérito feito pelas
autoridades judiciais francesas sobre o dito Ladd, André, íntimo da Sr.ª
Virgil Neal…». A vivenda tinha sido requisitada pelo exército americano.
Depois, em julho de 1948, fez-se um acordo, segundo o qual «o Sr. Virgil
Neal, diretor da Tokalon, Manufacturing Chemists and Perfumers, cedia à
Embaixada dos Estados Unidos em França a propriedade da sua vivenda
Château Azur».
Dizia-se ainda que «o Sr. e a Sr.ª Virgil Neal não tinham tido filhos».
Condé-Jones sublinhara esta frase a tinta verde e escrevera à margem: «De
duas, uma: ou os seus amigos são almas do outro mundo, ou o Sr. e a Sr.ª
Virgil Neal possuem um elixir da eterna juventude fabricado nos seus
laboratórios da Tokalon, Manufacturing Chemists and Perfumers. Conto
consigo para me desfazer o enigma. Com toda a amizade.»
No entanto, não sonhei. Ele chamava-se realmente Virgil Neal. Guardei o
cartão de visita que ele me tinha dado, aquando do nosso primeiro encontro,
e no qual tinha escrito o número do telefone da vivenda. Na cabina da
Avenida Gambetta, tirei o cartão de visita do bolso antes de marcar o
número. Estava lá bem gravado – ainda esta tarde o verifiquei – mas não
estava escrita qualquer direção: Sr. e Sr.ª Virgil Neal.
As únicas provas do nosso encontro com os Neal – chamar-se-iam eles
Neal e poder-se-á acreditar, como sugere Condé-Jones, nas almas do outro
mundo ou num elixir da eterna juventude? –, os únicos vestígios que me
persuadem de que não sonhei são o cartão de visita e uma fotografia de nós
os quatro – Sylvia, eu e os Neal – tirada na Promenade des Anglais por um
desses fotógrafos ambulantes que andam à caça dos turistas.
Ainda me cruzo com esse fotógrafo, sempre que passo diante do antigo
Palais de la Méditerranée, lá onde ele está de sentinela. Ele saúda-me mas
não levanta para mim a sua máquina. Deve pensar que eu já não sou um
turista mas que, doravante, faço parte da paisagem a ponto de me confundir
com esta cidade.
No dia em que nos fotografou, nem Sylvia nem os Neal se aperceberam
disso e ele passou-me para a mão o seu prospeto. Fui levantar a fotografia
três dias depois a um pequeno armazém da Rua de França sem sequer falar
disso a Sylvia. Eu vou sempre levantar este tipo de fotografias, os traços
que permanecem, mais tarde, de um momento efémero em que se foi feliz,
de um passeio numa tarde cheia de sol… Não, nunca se devem negligenciar
essas sentinelas, de máquina a tiracolo, dispostas a fixar-vos num
instantâneo, todos esses guardas da memória que patrulham as ruas. Sei do
que estou a falar. Também eu fui fotógrafo.
Gostaria de anotar os pormenores das nossas relações com os Neal, como
se redigisse um relatório policial ou se respondesse ao interrogatório de um
inspetor que tivesse sido bem-intencionado em relação a mim e no qual
tivesse encontrado uma solicitude paternal para me ajudar a ver um pouco
mais claramente.
Consegui apanhar Virgil Neal pelo telefone na semana que se seguiu ao
reaparecimento de Villecourt. Ele estava «encantado» – disse-me – por ter
notícias nossas. Ele e a mulher tinham-se ausentado dez dias «em viagem
imprevista de negócios». Mas teriam «o maior prazer» em almoçar
connosco, já no dia seguinte, se isso fosse possível. Ele deu-me a direção do
restaurante onde iríamos encontrar-nos por volta do meio-dia e meia.
Um restaurante italiano, com a fachada de reboco carmesim, na Rua das
Ponchettes, no sopé da colina do Château. Sylvia e eu fomos os primeiros a
chegar. Indicaram-nos que nos sentássemos na mesa de quatro pessoas que
o Sr. Neal reservara. Não havia outros clientes para além de nós. Cristais.
Toalhas brancas e frias. Quadros estilo Guardi nas paredes. Janelas com
grades em ferro forjado. Lareira monumental, em cujo fundo estava
esculpido um escudo com flores-de-lis. Altifalantes invisíveis difundiam os
refrãos de canções célebres, executadas por uma orquestra sinfónica.
Creio que Sylvia sentia a mesma apreensão que eu. Não sabíamos nada
dessa gente que nos convidava para almoçar. Porque é que Neal
demonstrara uma tão grande pressa em voltar a ver-nos? Dever-se-ia
considerar como mais um gesto de familiaridade calorosa com que certos
americanos, desde o primeiro encontro, nos tratam pelo nome próprio e nos
mostram as fotografias dos filhos?
Eles chegaram e pediram desculpa pelo atraso. Neal era um homem
diferente do da outra noite. Já não dava a impressão de pairar. Estava
recém-barbeado e trazia um fato de tweed de corte bastante largo. Falava
sem a menor hesitação nem o menor sotaque anglo-saxónico e a sua
volubilidade – se bem me lembro – foi a primeira coisa que despertou as
minhas suspeitas. Para um americano, parecia-me estranha essa
volubilidade. Em algumas palavras de calão, na maneira de construir certas
frases, eu reconhecia uma mistura de entoações parisienses e de sotaque
meridional – mas um sotaque controlado, refreado, como se Neal
procurasse dissimulá-lo há muito. A mulher falava muito menos do que ele
e com um ar sonhador e um pouco ausente, que da última vez me
surpreendera. As entoações dela também já não eram as de uma inglesa.
Não consegui deixar de lhes dizer:
– Falam fluentemente francês. Dir-se-ia mesmo que são franceses…
– Fui educado em escolas de língua francesa – disse-me ele. – Passei toda
a minha infância no Mónaco… A minha mulher também… Foi lá que nos
conhecemos…
Ela confirmou com um aceno de cabeça.
– E o senhor – perguntou-me ele bruscamente – que profissão exercia em
Paris?
– Era fotógrafo de arte.
– De arte?
– Sim. E conto instalar-me em Nice para prosseguir a minha profissão.
Ele parecia pensar em que consistia a profissão de fotógrafo de arte.
Depois acabou por me perguntar:
– São casados?
– Sim… Somos casados – disse eu, olhando fixamente Sylvia. Mas esta
mentira não a fez vacilar.
Não gosto muito que me façam perguntas. E, além disso, queria saber
mais coisas a respeito deles. E para desfazer a desconfiança de Neal, virei-
me para a mulher dele:
– Então, fizeram boa viagem?
Ela estava embaraçada e hesitava em me responder. Mas Neal, muito à
vontade, disse:
– Sim… Uma viagem de negócios…
– Que tipo de negócios?
Ele não ligou à maneira abrupta como eu fiz esta pergunta.
– Oh… um negócio de perfumes que tento montar entre a França e os
Estados Unidos… Fiz um acordo com um pequeno industrial de Grasse…
– E dedica-se a ele há muito tempo?
– Não… Não… Só nos meus tempos de lazer.
Ele proferira esta frase num tom um pouco altivo, como que para me dar
a entender que não tinha necessidade de ganhar a vida.
– Vamos mesmo criar alguns produtos de beleza… Barbara diverte-se
muito com isso…
A mulher de Neal recuperara o seu sorriso.
– Sim… Interesso-me por tudo o que diz respeito aos produtos de beleza
– disse ela com o seu ar sonhador. – Deixarei que Virgil se ocupe dos
perfumes… Eu gostaria de montar um instituto de beleza, aqui na Côte
d’Azur…
– Estamos hesitantes quanto ao local – disse Neal. – Eu preferia de longe
o Mónaco… Creio que este tipo de instituto não funcionaria em Nice…
Quando me lembro destas conversas, fico perturbado e lamento não ter
tido à minha disposição a ficha de informações que Condé-Jones me
forneceria mais tarde. Que cara teria feito Neal se eu lhe tivesse dito em voz
muito suave:
– Em suma, pretendem relançar a firma Tokalon?
E aproximando o meu rosto do seu:
– O senhor é o mesmo Virgil Neal de antes da Guerra?

Sylvia tinha a mania de reter o diamante na boca e o conservar entre os


lábios, como se chupasse um caramelo. Neal estava sentado na frente dela,
e este gesto não lhe escapara.
– Preste atenção… Vai derreter-se…
Mas ele não estava apenas a brincar. No momento em que Sylvia
abrandou a pressão dos lábios e o diamante voltou a cair sobre a sua
camisola preta, vi o olhar atento com que Neal fixou a pedra.
– Tem uma joia maravilhosa – disse ele a sorrir. – Não é verdade,
Barbara?
Ela tinha virado a cabeça e também observava o diamante.
– É verdadeiro? – perguntou ela com voz infantil.
O olhar de Sylvia cruzou-se com o meu.
– Sim, infelizmente é verdadeiro – disse eu.
Neal pareceu ficar surpreendido com esta resposta.
– Tem a certeza? Tem um tamanho impressionante.
– É uma joia de família que a minha sogra deu à minha mulher – disse eu.
– E isso, mais do que tudo, embaraça-nos.
– Já a mandaram avaliar? – perguntou Neal num tom de curiosidade
educada.
– Oh sim… Temos um dossiê completo sobre este diamante. Chama-se a
Cruz do Sul…
– Não devia trazê-lo posto – disse Neal. – Se é verdadeiro…
Aparentemente, ele não acreditava em mim. Quem, aliás, teria acreditado
em mim? Não se usa um diamante daquele tamanho e daquela categoria de
um modo assim tão desenvolto. Não se segura entre os lábios, antes de o
deixar cair sobre a camisola preta. Não se chupa.
– A minha mulher usa este diamante porque não há outra solução.
Neal franzia as sobrancelhas.
– O que é que se deveria fazer? Alugar um cofre num banco? – perguntei
eu.
– Quando as pessoas me veem com este diamante – disse Sylvia – todas
pensam que é pechisbeque…
– Pechisbeque?
Neal não compreendia esta palavra de calão.
– Gostaríamos muito de o vender – disse eu. – Só que é muito difícil
encontrar um comprador para uma pedra como esta…
Ele estava pensativo e não tirava os olhos do diamante.
– Posso arranjar-lhe um comprador. Mas, antes de mais, havia que
mandá-lo avaliar.
Eu encolhi os ombros.
– Ficaria feliz se me encontrasse um comprador, mas receio que isso seja
difícil para si…
– Posso arranjar-lhe um comprador… Mas terá de me mostrar o dossiê –
disse Neal.
– Tenho a impressão de que o senhor continua a pensar que é pechisbeque
– disse Sylvia.

Saímos do restaurante. O automóvel estava estacionado no cais dos


Estados Unidos, ao longo do qual uns velhos, abrigados nos bancos,
apanhavam friorentamente sol. Reconheci a placa do Corpo Diplomático.
Neal abriu a porta.
– Venham tomar o café a nossa casa – disse ele.
Eu tinha vontade de os deixar. Imediatamente. Pensava na ajuda que eles
poderiam dar-nos. Mas havia que ser consciencioso e não romper com eles
só por uma questão de humor. Eram as duas únicas pessoas que
conhecíamos em Nice.
Tal como da primeira vez, estávamos sentados, Sylvia e eu, no banco de
trás. No Boulevard de Cimiez, Neal conduzia lentamente e os
automobilistas apitavam para que ele lhes desse passagem.
– Estão doidos – disse Neal. – Querem sempre ir mais depressa.
Um dos condutores que o ultrapassara lançou-lhe um rosário de injúrias.
– É a minha placa do Corpo Diplomático que os enerva. E, além disso,
suponho que eles têm de se despachar para chegarem a horas ao
escritório…
Ele voltara-se para mim:
– E você? Já trabalhou num escritório?
O automóvel parou junto do muro com balaustrada. Neal levantou o
braço.
– A casa é lá em cima. Por isso, dominamos a situação… Verão… É uma
casa maravilhosa…
Vi, por cima do portão, a placa de mármore onde estava inscrito:
«Château Azur».
– Foi o meu pai que descobriu este nome – disse Neal. – Mandou
construir a casa antes da Guerra…
O pai dele? Isso sossegava-me mais.
Subimos a escadaria depois de Neal ter fechado o portão, dando uma
volta à chave, e desembocámos no jardim que encimava o Boulevard de
Cimiez. Essa vivenda, com o aspeto de Trianon, pareceu-me luxuosa.
– Barbara, traz um cafezinho, se fazes favor…
Eu estava espantado com a ausência de um mordomo neste cenário, mas
isso talvez não correspondesse à simplicidade dos hábitos americanos. Os
Neal, apesar de muito ricos, eram sem dúvida um pouco boémios e a Sr.ª
Neal preparava ela mesma o café. Sim, boémios, mas ricos. Pelo menos eu
queria persuadir-me disso.
Sentámo-nos nos cadeirões de madeira branca que encontraria no mesmo
local, um ano mais tarde, quando Condé-Jones me recebeu. Mas a piscina, à
nossa frente, não estava vazia.
À superfície da água esverdeada, flutuavam ramos e folhas mortas. Neal
agarrara numa pedra e atirara-a de modo a fazer ricochete na água.
– Tenho de esvaziar a piscina e arranjar o jardim – disse ele.
Estava ao abandono. Silvas obstruíam as áleas de cascalho, invadidas pela
erva daninha. À beira da relva, que não passava de uma savana, havia uma
bacia rachada ao meio.
– Se o meu pai visse isto, não entenderia. Mas não tenho tempo para
tratar do jardim…
Havia um ar de sinceridade e de tristeza na sua voz.
– É completamente diferente do tempo do meu pai. Também Nice era
uma cidade diferente… Sabia que os polícias, nas ruas, usavam chapéus
coloniais?
A mulher dele depositou a bandeja sobre o chão pavimentado. Tinha
trocado o vestido por uns blue-jeans. Deitou o café nas chávenas, que
passou a cada um com um movimento gracioso do braço.
– O seu pai ainda cá vive? – perguntei a Neal.
– O meu pai morreu.
– Lamento…
Para desfazer o meu embaraço, sorria-me.
– Eu deveria vender esta casa… Mas não me decido… Está repleta de
recordações de infância… Sobretudo o jardim…
Sylvia dirigiu-se para a casa com um passo indolente e encostava a testa a
uma das grandes janelas de sacada. Neal observava-a, com os traços do
rosto um pouco crispados, como se receasse que ela descobrisse algo de
suspeito.
– Convidá-los-ei a visitar a casa quando estiver arranjada…
Ele falava com uma voz forte e imperiosa. Talvez quisesse impedi-la de
empurrar a porta de sacada entreaberta e de entrar.
Ele caminhava em direção a ela. Arrastou-a puxando-a pelo ombro, e
vieram juntar-se a nós à beira da piscina. Dir-se-ia que trazia de volta uma
criança que se perdera longe do monte de areia aproveitando a distração dos
pais.
– Esta casa devia ser toda arranjada… Eu não ouso convidá-los a visitá-la
imediatamente…
Parecia aliviado por ver Sylvia a uma certa distância das janelas de
sacada.
– A minha mulher e eu passamos aqui pouco tempo… Quando muito, um
ou dois meses por ano…
Eu tinha vontade de me encaminhar para a casa para ver qual seria a
atitude de Neal. Impedir-me-ia a passagem? Então, debruçar-me-ia sobre
ele e segredar-lhe-ia ao ouvido:
– Está com ar de quem oculta algo nesta casa… Um cadáver?
– O meu pai morreu há vinte anos – disse Neal. – Quando ele cá vivia,
tudo corria às mil maravilhas… A casa e o jardim estavam impecavelmente
conservados… O jardineiro era um homem extraordinário…
Ele encolhia os ombros apontando para as silvas e para as áleas invadidas
pela erva daninha.
– A partir de agora, Barbara e eu vamos ficar durante mais tempo em
Nice… Sobretudo se montarmos o instituto de beleza… E voltarei a pôr
tudo em ordem…
– Mas onde é que vocês vivem a maior parte do tempo? – perguntou
Sylvia.
– Em Londres e Nova Iorque – respondeu Neal. – A minha mulher tem
uma casinha muito bonita em Londres, no Bairro de Kensington.
Ela fumava e parecia não prestar atenção ao que o marido dizia.
Estávamos sentados, os quatro, nos cadeirões de madeira branca que
formavam um semicírculo à beira da piscina, com as chávenas de café no
braço esquerdo de cada um dos cadeirões. Esta simetria causou-me um
vago mal-estar quando notei que não era apenas por causa das nossas
chávenas de café. Os blue-jeans desbotados de Barbara Neal eram idênticos
na forma e na cor aos de Sylvia. E como elas estavam as duas na mesma
atitude indolente, verifiquei que tinham a mesma estatura fina que fazia
ressaltar a curva das ancas, embora eu fosse incapaz, vendo as suas ancas e
as suas estaturas, de as diferenciar uma da outra. Bebi um gole de café. Neal
tinha levado a sua chávena aos lábios, no mesmo instante que eu, e
tínhamos tido um gesto sincronizado para voltar a pôr as chávenas no braço
dos cadeirões.

Nessa tarde voltou a falar-se mais uma vez da Cruz do Sul. Neal
perguntou a Sylvia:
– Então quer realmente vender o seu diamante?
Ele inclinou-se para ela e tomou a pedra entre o polegar e o indicador
para a examinar. Depois voltou a pô-la com delicadeza sobre a camisola
preta de Sylvia. Vi nesse gesto a maneira de ser desenvolta de certos
americanos. Sylvia não se mexera um milímetro e o seu olhar vagueava,
como se pretendesse ignorar o gesto de Neal.
– Sim, gostaríamos de o vender – disse eu.
– Se for uma pedra autêntica, não há problema.
Ele levava visivelmente a coisa a sério.
– Não se preocupe – disse-lhe eu num tom condescendente. – É um
diamante autêntico. É, aliás, o que nos preocupa… Não queremos conservar
uma pedra desta importância…
– A minha mãe deu-ma por ocasião do meu casamento aconselhando-me
a vendê-la – disse Sylvia. – Ela pensava que os diamantes dão azar… Ela
própria tinha tentado vendê-lo mas não encontrou clientes adequados…
– Quanto quer por ele? – perguntou Neal.
Ele pareceu arrepender-se desta pergunta abrupta. Esforçou-se por sorrir.
– Desculpem… Sou indiscreto… Por causa do meu pai… Muito jovem,
foi sócio de um grande diamantista americano. Ele passou-me o seu gosto
pelas pedras preciosas…
– Queremos aí um milhão e quinhentos mil francos – disse eu secamente.
– É um preço realmente módico para este diamante. Vale o dobro.
– Contávamos depositá-lo na casa Van Cleef em Monte Carlo para que
nos arranje um cliente – disse Sylvia.
– Na casa Van Cleef? – repetiu Neal.
Este nome sonante e distinto deixava-o pensativo.
– Não posso trazê-lo sempre ao pescoço como uma trela – disse Sylvia.
Barbara Neal riu mordazmente.
– É verdade… tem razão – disse ela. – Corre o risco de lho arrancarem na
rua.
E eu perguntava-me se ela falava a sério ou se troçava de nós.
– Podia arranjar-lhes clientes – disse Neal. – Barbara e eu conhecemos
americanos que poderiam comprar-lhes este diamante. Não é verdade,
querida?
Citou alguns nomes. Ela aprovou com um aceno de cabeça.
– E acha que eles vão pagar o preço que lhe indiquei – disse eu com uma
voz muito doce.
– Com certeza.
– Querem beber alguma coisa? – perguntou Barbara Neal.
Eu olhei para Sylvia. Tinha vontade de ir embora, mas ela parecia estar
bem nesse jardim cheio de sol, com a nuca apoiada nas costas do cadeirão,
e de olhos fechados.
Barbara Neal encaminhava-se em direção à casa. Neal apontou para
Sylvia e disse-me em voz baixa:
– Acha que ela está a dormir?
– Sim.
Ele inclinou-se para mim. E em voz ainda mais baixa:
– Quanto ao diamante… Acho que eu próprio vo-lo compro, se me
provarem que é de facto autêntico…
– É autêntico.
– Gostaria de o oferecer a Barbara por ocasião dos nossos dez anos de
casados.
Ele via uma certa desconfiança no meu olhar.
– Acalme-se… Não tenho problemas de dinheiro…
Apertou-me o braço com muita força para me fazer compreender que eu
tinha de o escutar com a maior das atenções:
– Não tenho por isso qualquer mérito: só tive o trabalho de nascer e
herdar muito, muito dinheiro do meu pai… É injusto, mas é assim… Agora
já confia? Considera-me um cliente sério?
Desatou a rir. Talvez quisesse que eu esquecesse o tom agressivo com que
me fizera estas propostas.
– Não deve haver entre nós qualquer aborrecimento… Posso fazer-lhe um
adiantamento…

Neal propôs-se acompanhar-nos de automóvel mas eu disse-lhe que


preferíamos regressar a pé. No passeio do Boulevard de Cimiez, levantei a
cabeça: lá em cima, estavam os dois apoiados à balaustrada do jardim a
olhar para nós. Neal fez-me um sinal com o braço. Tínhamos combinado
telefonar no dia seguinte e marcar um encontro. Alguns metros mais à
frente, voltei-me outra vez. Eles continuavam imóveis, apoiados à
balaustrada.
– Ele quer comprar o diamante para o oferecer à mulher – disse eu a
Sylvia.
Ela não parecia surpreendida com isso.
– Por quanto?
– Pelo preço que indiquei. Achas que eles têm realmente dinheiro?
Descíamos lentamente o Boulevard de Cimiez sob um sol radioso. Eu
tinha despido o meu sobretudo. Sabia que estávamos no inverno e que a
noite ia cair dentro em pouco mas, nesse instante, era como se estivesse em
julho. Essa confusão das estações, os poucos veículos que passavam, esse
sol, as sombras tão nítidas no passeio e nas paredes…
Apertei o pulso de Sylvia:
– Não tens a impressão de estarmos a sonhar?
Ela sorria-me mas o seu olhar era inquieto.
– E achas que acabaremos por despertar? – perguntou-me.
Caminhámos em silêncio até à esquina do boulevard encimada pela
fachada arredondada do antigo Hotel Majestic, e, pela Avenida
Dubouchage, chegámos ao centro da cidade. Eu estava aliviado por me
encontrar sob as arcadas da Praça Massena, no meio do alarido da
circulação e da multidão de mirones e daqueles que voltavam do trabalho e
aguardavam o autocarro. Toda essa agitação me dava a sensação ilusória de
sair do sonho de que estávamos prisioneiros.

Um sonho? Talvez fosse a sensação de que os dias fugiam sem darmos


conta, sem a menor aspereza que nos tivesse permitido dominá-los.
Avançávamos, levados por um tapete rolante, e as ruas desfilavam e nós já
não sabíamos se o tapete rolante nos arrastava ou se estávamos imóveis
enquanto a paisagem, à nossa volta, deslizava devido a um artifício
cinematográfico a que se chama transparência.
Por vezes o véu rasgava-se, nunca de dia mas de noite, por causa do ar
mais vivo e das luzes cintilantes. Caminhávamos ao longo da Promenade
des Anglais, reencontrávamos o contacto com a terra firme. O enfado que
se apossara de nós, desde a nossa chegada a esta cidade, dissipava-se.
Continuávamos a sentir-nos senhores da nossa sorte. Podíamos fazer
projetos. Tentaríamos atravessar a fronteira italiana. Os Neal ajudar-nos-
iam. Seria no seu automóvel com a matrícula CD que passaríamos da
França para a Itália, sem nos sujeitarmos a controlos e sem chamarmos a
atenção. E desceríamos para o sul até Roma, nosso objetivo, a única cidade
em que eu imaginava que poderíamos fixar-nos para o resto da nossa vida,
essa Roma que se adequava maravilhosamente a naturezas tão indolentes
como as nossas.
De dia, tudo se ocultava. Nice, o seu céu azul, os seus edifícios claros
com aspeto de pastelarias gigantescas ou de paquetes, as suas ruas desertas
e batidas pelo sol, as nossas sombras no passeio, as palmeiras e a
Promenade des Anglais, todo este cenário deslizava, em transparência. Nas
tardes intermináveis em que a chuva tamborilava no teto de zinco,
permanecíamos no odor de humidade e de mofo do quarto, com a impressão
de estarmos abandonados. Mais tarde, acostumei-me a essa ideia e hoje
sinto-me à vontade nesta cidade de fantasmas onde o tempo parou. Admito
que, tal como os que desfilam em procissão pela Promenade, uma mola se
tenha quebrado em mim. Não estou sujeito às leis da gravidade. Sim, flutuo
com os outros habitantes de Nice. Mas no tempo da Pensão Sainte-Anne,
esse estado era novo para nós e ainda nos revoltávamos, em sobressaltos,
contra o torpor que nos invadia. A única coisa dura e consistente da nossa
vida, o único ponto de referência inalterável, era o diamante. Ter-nos-á ele
dado azar?
Voltámos a ver os Neal. Lembro-me de um encontro com eles no bar do
Hotel Negresco, por volta das três da tarde. Esperávamo-los, sentados
diante da vidraça que recortava um pedaço de céu cujo azul era ainda mais
límpido e mais inacessível nessa semipenumbra que nos envolvia.
– E se Villecourt aparecer?
Eu sempre o tinha tratado pelo nome de família.
– Fingimos que não o conhecemos – disse Sylvia. – Ou então, deixamo-lo
com os Neal e desaparecemos definitivamente.
A palavra desaparecer, na boca de Sylvia, gela-me hoje o coração. Mas eu
tinha rido, nessa tarde, ao imaginar os Neal e Villecourt, sentados à mesma
mesa, sem saberem muito bem o que dizer uns aos outros e inquietando-se,
pouco a pouco, com a nossa ausência prolongada.
Mas não, Villecourt não tinha aparecido.
E tínhamos caminhado um pouco com os Neal ao longo da Promenade
des Anglais. Foi nesse dia que o fotógrafo, de sentinela diante do Palais de
la Méditerranée, levantou para nós a sua máquina e me passou para a mão o
cartão do armazém onde eu podia ir levantar as fotografias dentro de três
dias.
O automóvel do Corpo Diplomático estava estacionado diante do
carrossel do Jardim Alberto I. Neal disse-nos que ia dar um salto ao
Mónaco com a mulher, para «resolver uns negócios». Ele trazia uma
camisola de gola alta e o seu velho casaco de camurça da primeira noite;
Barbara Neal trazia blue-jeans e um casaco de zibelina.
Neal chamou-me à parte. Estávamos diante do carrossel que girava
lentamente. Havia aí apenas uma criança sentada num dos trenós vermelhos
puxados eternamente por cavalos de madeira brancos.
– Isto faz-me lembrar uma recordação de infância – disse-me Neal. – Eu
devia ter dez anos… sim… em 1950… 1951… Passeava com o meu pai e
com um amigo do meu pai… E quis montar nesse carrossel. O amigo do
meu pai montou comigo… Sabe quem era esse amigo do meu pai? Errol
Flynn… Flynn diz-lhe alguma coisa?
Pousou-me a mão no ombro, num gesto protetor.
– Queria falar-lhe do diamante… Dentro em breve é o aniversário de
Barbara… Vou fazer-lhe um adiantamento o mais rápido possível… Um
cheque do meu Banco no Mónaco… Um banco inglês… Está de acordo?
– Como queira.
– Mandarei pôr esse diamante num anel… Barbara ficará encantada.
Voltámos novamente para junto de Sylvia e Barbara. Os Neal abraçaram-
nos antes de entrarem no automóvel. Faziam um casal encantador –
pareceu-me, nesse dia. E, além disso, o ar é por vezes tão aprazível na Côte
d’Azur no inverno, o céu e o mar tão azuis, tão agradável a vida numa tarde
cheia de sol ao longo da estrada costeira de Villefranche, que tudo parece
possível: os cheques dos bancos ingleses do Mónaco que lhes metem no
bolso e Errol Flynn a girar no carrossel do Jardim Alberto I.
– Convidamo-los para jantar, esta noite, em Coco-Beach!
A voz de Neal, ao telefone, era estridente. Já não tinha qualquer sotaque
americano, mesmo quando pronunciou Coco-Beach.
– Iremos buscá-los ao vosso hotel a partir das oito horas.
– E se nos encontrássemos algures no exterior? – propus eu.
– Não, não… É muito mais simples passar pelo vosso hotel… Podemos
atrasar-nos um pouco… A partir das oito, no vosso hotel… Apitaremos…
Era inútil contrariá-lo. Tanto pior. Respondi-lhe que estava de acordo.
Desliguei e saí da cabina telefónica do Boulevard Gambetta.
Tínhamos deixado a janela do nosso quarto aberta para ouvirmos a
buzina. Estávamos os dois estendidos porque o único móvel onde se podia
estar nesse quarto era a cama.
Tinha começado a chover alguns instantes antes de anoitecer, uma chuva
miudinha que nem tamborilava no telhado de zinco, uma espécie de
morrinha que nos dava a ilusão de estarmos num quarto do Touquet ou de
Cabourg.
– Onde fica Coco-Beach? – perguntou Sylvia.
Para os lados de Antibes? Para os lados do cabo Ferrat? Ou ainda mais
longe? Coco-Beach… Aquilo tinha ressonâncias e odores da Polinésia que
no meu espírito mais se associavam às praias de Saint-Tropez: Taiti,
Morea…
– Achas que é longe de Nice?
Eu tinha medo de um longo trajeto de automóvel. Sempre desconfiara
desses passeios tardios pelos restaurantes e discotecas no fim dos quais
temos de ficar à espera da boa vontade de um dos convivas para que nos
leve de automóvel a casa. E se está embriagado ficamos à sua mercê
durante todo o trajeto.
– E se os deixássemos pendurados? – disse eu a Sylvia.
Apagaríamos a luz do quarto. Eles empurrariam o portão da Pensão
Sainte-Anne e atravessariam o jardim. O proprietário abriria a porta de
sacada do salão. As vozes deles na marquise. Alguém bateria à nossa porta
insistentemente. Chamar-nos-iam. «Estão aí?» Silêncio. E depois seria o
alívio de ouvir os passos decrescerem e o portão do jardim fechar-se.
Finalmente sós. Nada é igual a esta volúpia.
Três buzinadelas tão surdas como um toque de nevoeiro. Debrucei-me
pela janela e vi a silhueta de Neal que aguardava por detrás do portão.
Nas escadas, disse a Sylvia:
– Se Coco-Beach for muito longe, pedimos-lhes para ficarmos no bairro.
Dizemos-lhes que temos de voltar cedo porque esperamos um telefonema.
– Ou, então, desaparecemos – disse Sylvia.
Já não chovia. Neal fez-nos um grande aceno com o braço.
– Receava que não ouvissem a buzina.
Trazia uma camisola de gola alta e o seu velho casaco de camurça.
O carro estava estacionado na esquina da Avenida Shakespeare. Um
automóvel preto, espaçoso, cuja marca não saberia dizer. Talvez alemã.
Nada de placa do Corpo Diplomático mas um número de matrícula de Paris.
– Tive de mudar de automóvel – disse Neal. – O outro está avariado.
Abriu-nos uma das portas. Barbara Neal esperava no banco da frente
enfiada no seu casaco de zibelina. Neal sentou-se ao volante.
– A caminho de Coco-Beach! – disse ele, dando uma violenta meia volta.
Quanto a mim, ele descia a Rua Caffarelli a demasiada velocidade.
– Coco-Beach fica longe? – perguntei eu.
– Nada disso – disse Neal. – Logo a seguir ao porto. É o restaurante
preferido de Barbara.
Ela tinha-se voltado para nós. Sorria-nos. Tinha um odor a pinho.
– Tenho a certeza de que o local lhes vai agradar – disse ela.

Contornámos o porto. A seguir passámos diante do parque Vigier e do


Clube Náutico. Neal meteu o carro por uma avenida sinuosa que ladeava o
mar. Parou junto de um pontão iluminado por um letreiro luminoso.
– Coco-Beach! Fim de linha!
Havia uma alegria forçada na sua voz. Porque é que, nessa noite, ele
queria animar a festa?
Atravessámos o pontão. Neal segurava familiarmente a mulher e Sylvia
pelos ombros. Soprava um vento bastante forte e ele disse:
– Atenção, não caiam borda fora!
Descemos uma escada estreita cujo corrimão era uma grossa corda branca
entrançada e, por uma coxia de navio, desembocámos na sala do
restaurante. Um chefe de mesa de fato branco e boné de marinheiro de
recreio apresentou-se:
– Em que nome fez o senhor a reserva?
– Capitão Neal!
Uma grande vidraça rodeava a sala que dominava o mar uns dez metros
abaixo. O marinheiro de recreio conduziu-nos até a uma das mesas
próximas da vidraça. Neal quis que Sylvia e eu nos sentássemos do lado da
mesa donde pudéssemos ter uma vista panorâmica de Nice. Alguns clientes,
poucos, falavam em voz baixa.
– O restaurante funciona sobretudo no verão – disse Neal. – Retiram o
teto e fica uma esplanada ao ar livre. Imaginem que foi o antigo jardineiro
de meu pai que abriu este restaurante, há uns vinte anos…
– E ele continua a ser o dono? – perguntei-lhe.
– Infelizmente, não. Morreu.
Esta resposta dececionou-me. Nessa noite, o meu moral estava em baixo,
e gostaria de ter encontrado o antigo jardineiro do pai de Neal. Assim teria
tido a certeza de que Neal pertencia realmente a uma família americana
muito rica e distinta.
Os empregados do restaurante estavam vestidos, tal como o chefe de
mesa, com um blazer branco com botões dourados e com umas calças
brancas, mas tinham a cabeça descoberta. Sobre a porta de entrada, uma
boia branca tinha a seguinte inscrição em caracteres azuis: Coco-Beach.
– Uma vista magnífica, não é verdade? – disse Neal, voltando-se com um
movimento impulsivo do torso.
Toda a baía dos Anjos se estendia diante de Sylvia e de mim com as suas
manchas de sombra e as suas luzes mais vivas em determinados sítios.
Projetores iluminavam os rochedos e o monumento aos mortos no sopé da
colina do Château, uma peça montada. Ao fundo, o Jardim Alberto I, a
fachada branca e a cúpula cor-de-rosa do Negresco estavam iluminados.
– Parece que estamos num barco – disse Barbara.
Sim. Os homens da tripulação, vestidos de branco, caminhavam
silenciosamente entre as mesas e dei-me conta de que usavam alpercatas.
– Pelo menos, não enjoam? – perguntou Neal.
Esta pergunta provocou-me uma leve angústia. Ou seriam as gotas de
chuva nas vidraças e o vento que fazia bater a bandeira branca com a
insígnia de Coco-Beach, fixada num pontão, na parte da frente do
restaurante, como na proa de um iate?
Um dos empregados de uniforme branco passou a ementa a cada um de
nós.
– Aconselho-lhes a caldeirada com molho de alho – disse Neal. – Ou
então, se gostarem, eles preparam o aïoli como nunca comi em nenhum
outro sítio.
Os americanos são por vezes gastrónomos e, com toda a sua seriedade e
boa vontade, tornam-se conhecedores atentos da cozinha e dos vinhos
franceses. Mas o tom de Neal, a mímica do seu rosto, o gesto brutal do
polegar, e a maneira que ele tivera de elogiar a caldeirada com molho de
alho e o aïoli, evocavam-me lugares precisos. Bruscamente, eu sentira
flutuar em Neal os maus odores da Canebière e do Pigalle.

Durante toda a refeição, Sylvia e eu trocámos olhares. Creio que


estávamos a pensar na mesma coisa: teria sido tão fácil dar o fora… No
entanto, a perspetiva de alcançar o porto reteve-me. A partir do porto,
podíamos perder-nos nas ruas de Nice, mas, até lá, era preciso caminhar ao
longo de uma avenida deserta e eles apanhar-nos-iam facilmente com o
automóvel. Parariam e pedir-nos-iam explicações. Responder-lhes, pedir
desculpa, ou então mandá-los à fava… Tudo isso de nada servia, dado que
sabiam a nossa direção. No meu espírito, eles eram tão peganhosos como
Villecourt. Não, mais valia levar as coisas calmamente…
O meu mal-estar agravou-se à sobremesa, quando Neal se inclinou para
Sylvia, tocou ao de leve no diamante com o indicador e disse-lhe:
– E traz sempre consigo o seu calhau?
– Aprendeu a falar calão nos colégios do Mónaco? – perguntei-lhe.
Os seus olhos franziram-se. Havia dureza no seu olhar.
– Eu perguntei apenas à sua mulher se trazia sempre o calhau…
Ele, tão amável, era repentinamente agressivo. Talvez tivesse bebido
demasiado, durante o jantar. Barbara parecia enfadada e acendeu um
cigarro.
– A minha mulher traz um calhau – disse-lhe eu – mas esse calhau está
acima das vossas possibilidades.
– Acha?
– Tenho a certeza.
– E o que é que o leva a pensar isso?
– Uma intuição.
Ele desatou a rir. O seu olhar tinha-se suavizado. Observava-me agora
com um ar divertido.
– Está aborrecido comigo? Mas eu estava só a brincar… Uma brincadeira
de mau gosto… Desculpem…
– Também eu estava a brincar – disse-lhe eu.
Houve uns momentos de silêncio.
– Nesse caso, se foi a brincar – disse Barbara – tanto melhor.

Ele insistiu para que bebêssemos já não sei que aguardente de ameixa ou
pera. Eu levava o copo aos lábios e fingia beber um gole. Sylvia bebeu de
uma assentada. Ela já não dizia nada. Esfregava o seu «calhau» entre os
dedos…
– Também está aborrecida comigo? – perguntou-lhe Neal em tom
humilde. – Por causa da história do calhau?…
Ele recobrava o seu ligeiro sotaque americano e já não era o mesmo
homem. Havia nele algo de encantador e de tímido.
– Peço-lhes desculpa. Gostaria que esquecessem a minha brincadeira
idiota.
Ele juntava as mãos num gesto de imploração infantil.
– Desculpam-me?
– Eu desculpo-o – disse Sylvia.
– Lamento imenso a história do calhau…
– Calhau ou não – disse Sylvia – estou-me nas tintas.
Agora, era ela que tinha o sotaque arrastado do leste de Paris.
– Ele fica assim muitas vezes? – perguntou ela a Barbara, apontando para
Neal com o dedo.
A outra estava embaraçada. Acabou por balbuciar.
– Às vezes.
– E o que é que faz para o acalmar?
A pergunta tinha caído, cortante como um cutelo. Neal desatou a rir.
– Que mulher adorável! – disse-me ele.
Eu estava maldisposto. Bebi um grande gole de aguardente.
– E como vamos acabar a noite? – disse Neal.
Era isso o que eu estava a prever. Ainda não tínhamos chegado ao fim dos
nossos infortúnios.
– Eu conheço um sítio muito agradável em Cannes – disse Neal. –
Poderíamos ir lá beber um copo.
– A Cannes?
Neal bateu-me gentilmente no ombro.
– Amigo, não faça essa cara… Cannes não é um lugar de perdição…
– Temos de voltar para o hotel – disse eu. – Espero um telefonema por
volta da meia-noite…
– Vá lá… Vá lá… Vocês mesmos telefonarão de Cannes… Não vão
abandonar-nos…
Em desespero de causa, voltei-me para Sylvia. Ela estava impassível, mas
acabou por vir em meu auxílio:
– Estou cansada… Não tenho vontade de fazer grandes trajetos de
automóvel, de noite…
– Grandes trajetos de automóvel? Até Cannes? Está a brincar comigo…
Ouviste, Barbara? Um grande trajeto de automóvel até Cannes… até
Cannes, eles acham que é um grande trajeto…
Mais uma palavra e estaríamos em presença de um martelo-pilão que não
deixaria de repetir «Até Cannes, até Cannes…» E, se o contrariássemos,
colar-se-ia a nós ainda mais do que agora. Porque é que certas pessoas são
como as pastilhas elásticas que em vão tentamos desprender dos saltos dos
sapatos, esfregando-os na borda de um passeio?
– Prometo-lhes que estaremos em Cannes dentro de dez minutos… A esta
hora, anda-se muito bem…
Não, ele nem sequer tinha um ar embriagado. Falava muito suavemente.
Sylvia encolheu os ombros.
– Se fazem questão, vamos a Cannes…
Ela mantinha o seu sangue-frio. Piscou-me impercetivelmente o olho.
– Falaremos do diamante – disse Neal. – Creio que lhes vou arranjar um
cliente. Não é verdade, Barbara?
Ela sorria-nos sem responder.
Os empregados de casaco branco evoluíam entre as mesas e eu
perguntava-me como podiam eles caminhar com um passo tão firme. Por
detrás das vidraças, as luzes de Nice pareciam-me cada vez mais longínquas
e misturavam-se. Saímos. Tudo baloiçava à minha volta.

No momento de subir para o automóvel, eu disse a Neal:


– Gostava realmente que nos deixassem no hotel… Tenho de atender esse
tal telefonema.
Ele olhou para o relógio. O seu rosto iluminou-se com um enorme
sorriso.
– Esperava esse telefonema à meia-noite? É meia-noite e meia… Já não
tem qualquer desculpa para não nos fazer companhia, amigo…
Sylvia e eu instalámo-nos no banco de trás. Barbara fez estalar a sua
cigarreira em ouro. Voltou-se para nós.
– Não têm um cigarro? – perguntou ela. – Eu cá já não tenho nenhum.
– Não – respondeu Sylvia asperamente. – Não temos cigarros.
Ela tinha-me agarrado na mão e apertava-a contra o seu joelho. Neal
arrancou.
– Fazem realmente questão em nos levar a Cannes? – perguntou Sylvia. –
Cannes é enfadonho…
– Fala daquilo que não conhece – disse Neal em tom protetor.
– Não gostamos de discotecas – insistiu Sylvia.
– Mas não vou levá-los a uma discoteca…
– Então onde é que nos vai levar?
– É uma surpresa.
Ele conduzia a menos velocidade do que eu receara. Ligou o rádio em
surdina. Passámos novamente diante do edifício branco do Clube Náutico e
do parque Vigier. Chegámos ao porto.
Sylvia apertava-me a mão. Voltei-me para ela. Através de um movimento
do braço na direção da porta, pretendi dar-lhe a entender que, junto do
semáforo vermelho, podíamos sair do carro. Creio que ela entendeu porque,
fez um aceno com a cabeça.
– Adoro este ar – disse Neal.
Ele aumentou o volume do rádio. Voltou-se para nós.
– Também gostam?
Nem um nem outro respondeu. Eu pensava no itinerário que íamos seguir
em direção a Cannes. Haveria certamente um semáforo vermelho junto do
Jardim Alberto I. Ou mais acima, na Promenade des Anglais. Para nós, o
melhor seria descer do carro na Promenade des Anglais. Desaparecer numa
das ruas que lhe são perpendiculares, onde Neal não poderia meter-se, por
causa dos sentidos únicos.
– Já não tenho cigarros – disse Barbara.
Tínhamos chegado ao cais Cassini. Parou o carro.
– Queres que vamos comprar cigarros? – perguntou Neal.
Ele voltou-se para mim.
– Não o incomoda ir comprar cigarros para Barbara?
Ele deu meia-volta, depois parou de novo, no começo do cais Deux-
Emmanuel.
– Está a ver o primeiro restaurante no cais? O restaurante Garac… Ainda
está aberto… Peça dois maços de Craven… Se lhe puserem dificuldades,
diga-lhes que são para mim… A Sr.ª Garac conheceu-me quando eu ainda
andava em calções…
Olhei para Sylvia. Ela parecia esperar uma decisão da minha parte. Fiz-
lhe um sinal negativo com a cabeça. Ainda não era o momento de lhes
escapar. Para isso, havia que estar no centro de Nice.
Eu quis abrir a porta, mas estava bloqueada.
– Desculpe – disse Neal.
Ele carregou num botão, junto da caixa de velocidades. Desta vez, a porta
abriu-se.
Entrei no Garac. Subi as escadas que davam para o restaurante. Uma
mulher loira estava por detrás do guiché do vestiário. Da sala do restaurante
chegava-me um murmúrio de conversas.
– Tem cigarros? – perguntei.
– Que marca?
– Craven.
– Ah, não… Não tenho cigarros ingleses.
Apresentou-me a bandeja dos cigarros.
– Tanto pior… Vou levar cigarros americanos.
Escolhi ao acaso dois maços. Dei-lhe uma nota de cem francos. Ela abriu
uma gaveta, e depois outra. Não encontrava troco.
– Tanto pior – disse-lhe eu. – Fique com o troco. Desci as escadas.
Quando saí do Garac, o carro tinha desaparecido.

Esperei no passeio do cais Cassini. Neal tinha ido sem dúvida meter
gasolina naquela zona e não tinha encontrado uma estação de serviço. O
carro desembocaria de um instante para o outro diante de mim. À medida
que o tempo passava, sentia o pânico invadir-me. Eu não podia ficar imóvel
à espera, e andava de um lado para o outro ao longo do passeio. Acabei por
consultar o relógio. Eram quase duas da manhã.
Um grupo ruidoso saiu do restaurante Garac. Portas dos carros bateram,
motores arrancaram. Algumas pessoas prosseguiam as suas conversas no
cais. Eu ouvia o barulho das suas vozes e as suas risadas. Lá longe, à beira
da doca, sombras descarregavam caixas e empilhavam-nas pouco a pouco
junto de um camião coberto com um toldo, de luzes apagadas.
Caminhei em direção a eles. Estavam a fazer uma pausa. Estavam
encostados às caixas e fumavam.
– Há bocado não viram um automóvel? – perguntei.
Um deles levantou a cabeça para mim.
– Que automóvel?
– Um automóvel grande, preto.
Eu tinha necessidade de falar com alguém, de não guardar isso só para
mim.
– Uns amigos que me esperavam num automóvel preto, além, diante do
edifício… Foram-se embora sem me prevenirem.
Não, de nada servia explicar-lhes. Eu não acertava com as palavras. Aliás,
eles não me ouviam. No entanto, um deles deve ter visto o meu rosto
alterado.
– Um automóvel preto de que marca? – perguntou.
– Não sei.
– Não sabe a marca do automóvel?
Ele fez-me sem dúvida esta pergunta para verificar se eu estava bêbado
ou se estava no meu perfeito juízo. Observava-me desconfiado.
– Não, não sei. Não sei a marca do automóvel.
Era terrível nem sequer a saber.

Subia o Boulevard de Cimiez. Tive um rebate de coração. De longe,


distinguia a massa sombria de um automóvel estacionado diante do muro
com balaustrada da vivenda dos Neal. Quando me aproximei, vi que não era
o automóvel de há bocado, mas o que tinha a placa do Corpo Diplomático.
Toquei várias vezes. Ninguém respondeu. Tentei empurrar o portão, mas
estava fechado. Atravessei a avenida. Na parte da casa que eu podia divisar,
detrás da balaustrada, não havia nem sequer uma luz. Voltei a descer o
Boulevard de Cimiez e entrei na cabina telefónica que fica lá em baixo na
esquina, junto do Majestic. Marquei o número dos Neal e deixei tocar
durante muito tempo. Mas, tal como no portão, ninguém respondia. Então,
segui de novo ao longo do boulevard até à vivenda dos Neal. O automóvel
continuava lá. Não sei porquê, tentei abrir, uma a uma, as portas, mas
estavam fechadas à chave. O porta-bagagens também. Depois abanei o
portão na esperança de que cedesse. Em vão. Dei pontapés no automóvel e
no portão, mas nada conseguia. Tudo se fechava diante de mim, eu não
encontrava a menor fissura por onde penetrar, o menor contacto, tudo
estava, irremediavelmente, fechado a sete chaves.

Como esta cidade onde eu caminhava em direção à Pensão Sainte-Anne.


Ruas mortas. Poucos automóveis passavam e eu revistava-os com o olhar
uns após outros, mas não era nunca o automóvel dos Neal. Pensar-se-ia que
estavam vazios. Eu caminhava ao lado do Jardim da Alsácia-Lorena, e vi
um, preto e igual aos do Neal, parado na esquina do Boulevard Gambetta. O
seu motor estava ligado. Depois parou. Aproximei-me mas não via nada
através dos vidros opacos. Baixei-me e quase colei a testa ao para-brisas.
No banco da frente, uma mulher loira que estava de lado, com o busto
encostado ao volante, virava as costas a um homem que tentava colar-se a
ela. Ela tinha ar de estar a discutir. Já me afastava, quando uma cabeça
apareceu através do vidro descido, um homem de cabelos escuros puxados
para trás;
– Isto interessa-te, mirone?
Seguiu-se um riso estridente de mulher, cujo eco me parecia ouvir ao
longo da Rua Caffarelli.

O portão da Pensão Sainte-Anne estava aferrolhado e pensei que também


nunca o conseguiria abrir, mas empurrei-o com todas as minhas forças,
especando-me, e ele acabou por ceder. Na álea e no jardim escuros, tive de
me guiar às apalpadelas até à escada de serviço.
Quando entrei no quarto e acendi a luz, comecei por ter uma sensação de
reconforto, de tal modo ainda ali estava viva a presença de Sylvia. Um dos
seus vestidos estava nas costas do cadeirão de couro, e o resto da sua roupa
estava arrumada no armário, e, no fundo deste, vi o seu saco de viagem. Os
seus objetos de toilette continuavam sobre a pequena mesa de madeira
clara, junto do lavatório. Não consegui evitar cheirar o seu frasco de
perfume.
Estirei-me na cama completamente vestido, e apaguei a luz com a ideia
de que poderia pensar melhor no escuro. Mas a escuridão e o silêncio
envolviam-me como uma mortalha, e tinha a impressão de sufocar. Pouco a
pouco, isso deu lugar a uma sensação de vazio e de desolação. Era
insuportável encontrar-me só sobre a cama. Acendi o candeeiro da mesinha
de cabeceira e disse para comigo, em voz baixa, que Sylvia não tardaria em
vir juntar-se a mim naquele quarto. Ela sabia que eu a esperava ali. Então,
apaguei de novo o candeeiro para melhor vigiar o rangido do portão que se
abriria, e o ruído dos seus passos ao longo da álea e nos degraus da escada.

Eu não passava de um sonâmbulo que ia da Pensão Sainte-Anne para a


vivenda dos Neal. Eu tocava durante muito tempo sem que ninguém
respondesse. O automóvel do Corpo Diplomático continuava estacionado
no mesmo sítio, diante do portão.
O número de telefone dos Neal vinha na lista telefónica dos Alpes-
Marítimos com a seguinte menção: Serviço Embaixada Americana 50 b,
Boulevard de Cimiez. Telefonei para a Embaixada Americana, em Paris, e
perguntei se conheciam um tal Virgil Neal que ocupava um dos seus
edifícios, em Nice, no Boulevard de Cimiez, 50 b. Disse-lhes que ele tinha
desaparecido repentinamente e que eu estava inquieto por causa dele. Não,
eles nunca tinham ouvido falar de Virgil Neal. A vivenda Château Azur, no
Boulevard de Cimiez, servia de residência a funcionários da Embaixada,
mas estava há meses desocupada. Um cônsul americano instalar-se-ia nela
proximamente. Eu deveria dirigir-me a ele.
Eu lia todos os jornais, em particular os da região e mesmo os jornais
italianos. Esquadrinhava as pequenas notícias do dia. Uma delas chamara a
minha atenção. Na noite em que Sylvia desaparecera, um automóvel
alemão, de marca Opel, preto, com matrícula de Paris, despistara-se no
lugar que tem o nome de caminho do Mont-Gros, entre Menton e Castellar,
e esmagara-se no fundo de uma ravina. Tinha-se incendiado e tinham sido
descobertos dentro dele dois corpos completamente carbonizados que não
fora possível identificar.
Fiz um desvio pela Promenade des Anglais e penetrei na grande garagem,
precisamente antes da Rua de Cronstadt.
Perguntei a um dos mecânicos se, por acaso, havia um Opel naquela
garagem.
– Porquê?
– Por nada…
Ele encolheu os ombros:
– Além… no canto… ao fundo…
Sim, era um automóvel parecido com o dos Neal.

Eu quis revisitar todos os locais onde tínhamos ido em companhia dos


Neal, na esperança de aí encontrar uma pista, um fio condutor ou, talvez, de
os ver entrar com Sylvia: tal como aqueles filmes que se fazem voltar atrás
na mesa de montagem para aí examinar incansavelmente os pormenores da
mesma sequência. Mas no instante em que eu saía do Garac, com os dois
maços de cigarros americanos na mão, o filme partia-se ou então eu tinha
chegado ao fim da bobina.
Excetuando uma noite, no restaurante italiano da Rua des Ponchettes
onde os Neal nos tinham marcado encontro, da primeira vez.
Eu tinha escolhido a mesa que nesse dia tínhamos ocupado, junto da
lareira monumental, e tinha-me sentado na mesma cadeira. Sim, tinha
esperança de que, voltando aos mesmos lugares e repetindo os mesmos
gestos, acabaria por reatar fios invisíveis.
Perguntei ao gerente do restaurante e a cada um dos criados se conheciam
os Neal. Esse nome não lhes dizia nada, e, no entanto, Neal afirmara-nos
que era um cliente habitual do local. Os clientes do jantar falavam alto e
esse ruído atormentava-me a ponto de já não saber por que me encontrava
ali, e onde estava.
Os acontecimentos da minha vida enevoavam-se pouco a pouco até se
dissiparem. Restava apenas este instante, os clientes que jantavam, a lareira
monumental, as imitações de Guardi penduradas nas paredes e o murmúrio
das vozes… Só este instante. Eu não ousava levantar-me nem sair da sala.
Mal transpusesse a porta, resvalaria no vazio…
Entrou um homem barbudo, com uma máquina fotográfica a tiracolo e,
com ele, uma lufada do ar fresco do exterior. Fui bruscamente arrancado ao
meu torpor e reconheci o fotógrafo com casaco de veludo e cara de
excêntrico que rondava diante do Palais de la Méditerranée e que tinha
tirado uma fotografia aos Neal, a Sylvia e a mim. Essa fotografia,
continuava eu a guardá-la na minha carteira.
Ele deu uma volta pelas mesas perguntando aos clientes se queriam uma
«fotografia-recordação», mas nenhum deles quis. Depois o seu olhar caiu
sobre mim. Pareceu hesitar, sem dúvida porque eu estava sozinho.
– Uma fotografia?
– Sim, se faz favor.
Levantou a máquina para mim e o flash ofuscou-me.
Ele esperava que a fotografia secasse entre os seus dedos e observava-me
com curiosidade.
– Sozinho em Nice?
– Sim.
– Faz turismo?
– Não propriamente.
Ele metia a fotografia numa pequena moldura de cartão e estendia-ma.
– São cinquenta francos.
– Quer tomar um copo? – perguntei-lhe.
– Com muito gosto.
– Em tempos, também fui fotógrafo – disse-lhe eu.
– Ah sim?…
Ele sentou-se na minha frente e colocou a sua máquina fotográfica em
cima da mesa.
– Já me tirou uma fotografia na Promenade des Anglais – disse-lhe eu.
– Não me lembro de toda a gente. Há tanta gente que passa, como sabe…
– Sim, há tanta gente que passa…
– Então também era fotógrafo?
– Sim.
– De quê?
– Oh… um pouco de tudo.
Era a primeira vez que eu podia falar com alguém. Tirei a fotografia da
minha carteira. Ele começou por lhe deitar um olhar distraído. Depois
franziu as sobrancelhas.
– É seu amigo? – perguntou-me ele, apontando para Neal.
– Não propriamente.
– Imagine que conheci esse tipo em tempos… Mas há anos que o não
vejo… Nem sequer me dei conta que nesse dia o fotografava… As pessoas
passam de tal modo depressa…
O criado trouxe-nos duas taças de champanhe. Fingi beber um trago. Ele
emborcou o conteúdo da sua taça de uma só vez.
– Então conhece-o? – perguntei eu sem grande esperança de que
respondesse, de tal modo estava habituado a que as coisas se me
escapassem.
– Sim… Vivíamos no mesmo bairro quando éramos garotos… Riquier…
– Tem a certeza?
– Absoluta.
– E como é que ele se chamava?
Ele pensou que eu estava a dizer-lhe uma adivinha.
– Alessandri… Paul Alessandri… Respondi corretamente?
Ele não tirava os olhos da fotografia.
– E o que é que Alessandri agora faz?
– Não sei exatamente – disse eu. – Mal o conheço.
– A última vez que o vi, era guardador de cavalos na Camargue…
Ele ergueu a cabeça e, num tom ao mesmo tempo irónico e solene, disse-
me:
– O senhor anda com más companhias.
– Porquê?
– Paul começou por ser paquete no Ruhl… Foi cambista no casino
municipal… E, depois, barman… Em seguida, foi para Paris e perdi-o de
vista… Esteve preso… Se eu fosse a si, desconfiava…
Ele fixava-me com os seus pequenos olhos penetrantes.
– Eu gosto de advertir os turistas…
– Eu não sou turista – disse eu.
– Ah sim? Vive em Nice?
– Não.
– Nice é uma cidade perigosa – disse ele. – Por vezes têm-se aqui maus
encontros…
– Eu não sabia que ele se chamava Alessandri – disse-lhe eu. – Ele
apresentava-se como Neal.
– Ah… O senhor disse que ele se apresentava como?
– Neal.
Soletrei-lhe o nome.
– Essa agora… Paul apresentava-se como Neal?… Neal… Era um
americano que vivia no Boulevard de Cimiez quando nós éramos putos…
Uma enorme vivenda… O Château Azur… Paul levava-me a brincar com
ele para o parque dessa vivenda… precisamente depois da Guerra… Ele era
filho do jardineiro…

Atravessei a praça Massena. A esquadra da Polícia era um pouco mais à


frente, depois dos tapumes que marcavam o local do antigo casino
municipal onde Paul Alessandri fora «cambista». O que é que queria dizer:
cambista? Andei de um lado para o outro vendo os autocarros entrar e sair
do terminal rodoviário. Impulsivamente, como se receasse voltar atrás,
transpus o átrio.
Perguntei ao homem que estava por detrás de uma secretária no hall de
entrada onde devia dirigir-me para saber de «desaparecimentos».
– Que desaparecimentos?
Arrependi-me imediatamente da minha iniciativa. Agora iam fazer-me
perguntas e tinha de responder pormenorizadamente. Não se contentariam
com respostas evasivas. Eu ouvia já o ruído monótono da máquina de
escrever.
– O desaparecimento de uma pessoa – disse eu.
– Primeiro andar, gabinete 23.
Preferi subir pela escada a tomar o elevador. Segui por um corredor
verde-pálido ao longo do qual as portas se sucediam com os seus números
ímpares: 3, 5, 9, 11, 13… Depois o corredor bifurcou à esquerda, em ângulo
reto: 15, 17, 23. O globo de luz, no teto, iluminava violentamente a porta e
fazia-me piscar os olhos. Bati várias vezes. Uma voz aguda disse-me para
entrar.
Um loiro de óculos, bastante jovem, apoiava-se, de braços cruzados,
numa secretária metálica. A seu lado, numa pequena mesa de madeira clara,
estava uma máquina de escrever coberta com o seu estojo de plástico preto.
Ele indicou-me a cadeira, à sua frente. Sentei-me.
– É sobre uma amiga que desapareceu há alguns dias – disse eu – e a
minha voz parecia a de outra pessoa.
– Uma amiga?
– Sim. Conhecemos duas pessoas que nos convidaram a ir a um
restaurante e, depois do jantar, a minha amiga desapareceu com eles num
automóvel Opel e…
– A sua amiga?
Eu tinha falado muito depressa como se previsse que ele ia interromper-
me e que eu só dispunha de alguns segundos para lhe explicar tudo.
– Desde então, deixei de ter notícias dela. Essas pessoas que encontrámos
apresentaram-se como o Sr. e a Sr.ª Neal e habitavam numa vivenda no
Boulevard de Cimiez que pertence à Embaixada Americana. Aliás, eles
serviam-se de um automóvel que tinha uma placa do Corpo Diplomático e
que continua estacionado em frente da vivenda…
Ele escutava-me, com o queixo na palma da mão, e eu não conseguia
deixar de falar. Desde há bastante tempo, eu guardava todas estas coisas só
para mim, sem ter ocasião de fazer confidências a alguém…
– O homem não se chamava Neal e não era americano, como pretendia…
Chama-se Paul Alessandri e é natural de Nice… Soube-o por um dos seus
amigos de infância que é fotógrafo na Promenade des Anglais e que nos
tinha tirado uma fotografia.
Tirei a fotografia da minha carteira e passei-lha. Ele pegou nela
delicadamente entre o polegar e o indicador, qual asa de uma borboleta
morta, e colocou-a sobre a secretária, sem a olhar.
– Este Paul Alessandri é o terceiro a contar da esquerda. Foi paquete no
hotel Ruhl… Esteve preso…
Com a ponta dos dedos, empurrou a fotografia para mim. Ele desdenhava
esse documento. E Paul Alessandri, apesar de ter estado na prisão, não lhe
interessava para nada.
– A minha amiga usava uma joia muito valiosa…
Tudo ia vacilar para mim. Bastava dar mais alguns pormenores e um
período da minha vida acabaria, aí, nessa secretária da esquadra da Polícia.
Chegara o momento – eu tinha a certeza disso – em que ele retiraria a
cobertura preta da máquina de escrever e colocaria essa máquina, na sua
frente, sobre a secretária. Meteria uma folha e fá-la-ia girar com um
rangido. Depois, levantaria a cabeça para mim e dir-me-ia, em voz doce:
– Sou todo ouvidos.
Mas ele permanecia imóvel e silencioso, com o queixo na palma da mão.
– A minha amiga trazia consigo um diamante muito valioso – repeti-lhe
eu com uma voz mais firme.
Ele mantinha-se silencioso.
– Paul Alessandri, que se fazia passar por americano, tinha visto essa joia
que a minha amiga trazia e propusera-me mesmo comprá-la…
Ele tinha endireitado o busto, com as duas mãos bem apoiadas na mesa,
na atitude de alguém que quer pôr fim a uma conversa.
– Tratava-se de uma amiga sua? – perguntou-me.
– Sim.
– Não tem, pois, qualquer laço de parentesco com ela?
– Não.
– O nosso serviço chama-se Pesquisa de Familiares Desaparecidos, e essa
pessoa não é da sua família, se bem entendo…
– Não.
– Por conseguinte…
Ele abria os braços, com um gesto de impotência, com doçura
eclesiástica.
– E além disso, como sabe, estou acostumado a este tipo de
desaparecimentos… Em geral, fugas… Quem lhe diz, por exemplo, que a
sua amiga não quis partir de viagem com esse casal e que não lhe irá dar
notícias durante algum tempo?
Tive, apesar disso, forças para balbuciar:
– Li no jornal que um automóvel de marca Opel se tinha esmagado numa
ravina entre Menton e Castellar…
Ele esfregava as mãos, com essa mesma doçura eclesiástica.
– Há muitos automóveis Opel na Côte d’Azur que se esmagam em
ravinas… Não vai, pois, tentar enumerar todos os Opel de Nice e dos
arredores que se esmagam em ravinas?
Levantou-se, tomou-me pelo braço e, com uma pressão firme mas cortês,
levou-me até à porta do seu gabinete, que abriu:
– Tenho muita pena… Não podemos fazer realmente nada por si…
E apontou-me o cartaz da porta. Depois de ele a fechar, fiquei um instante
imóvel e aparvalhado, sob o globo de luz do corredor, a fixar as letras azuis:
«Pesquisa de Familiares Desaparecidos».
Dei comigo no Jardim Alberto I com a sensação de que, doravante, já não
tinha qualquer recurso. Tinha aversão a esse funcionário da Polícia pela sua
falta de solicitude. Não me ajudara nem um instante, não dera provas da
mais elementar curiosidade profissional. Desencorajara-me quando eu
estava prestes a dizer-lhe tudo. Tanto pior para ele. Não era um assunto de
rotina, como ele pensava. Não. Por culpa sua perdera uma bela ocasião de
ser promovido.
Talvez eu tivesse exposto mal as coisas: eu não deveria ter-lhe falado de
Sylvia, mas da Cruz do Sul. Em comparação com a longa e sangrenta
história dessa pedra, que importância tinham as nossas vidas, o nosso
insignificante caso pessoal? Um episódio que veio juntar-se aos outros, e
que não seria o último.
Eu descobrira, no início da nossa estadia em Nice, na livraria da Rua de
França onde comprávamos romances policiais em segunda mão, uma obra
em três volumes escrita por um tal B. Balmaine: Dictionnaire biographique
des pierres précieuses. Esse tal Balmaine, perito em diamantes junto do
Supremo Tribunal de Paris, recenseara alguns milhares de pedras preciosas.
Sylvia e eu tínhamos procurado em Cruz do Sul.
Balmaine consagrava cerca de dez linhas ao nosso diamante. Ele fizera
parte das joias roubadas à condessa du Barry, na noite de 10 para 11 de
janeiro de 1791, e depois vendidas em leilão em Londres por Christies, a 19
de fevereiro de 1795. Não se ouvira falar mais dessa pedra até outubro de
1917, data em que fora novamente roubada em casa de uma tal Fanny
Robert de Tessancourt, na Rua de Saigon, n.º 8, em Paris XVI. O
incriminado, um tal Serge de Lenz, fora preso mas Fanny Robert de
Tessancourt retirara imediatamente a queixa afirmando que Lenz era seu
amigo.
A pedra só viera «à baila» – segundo a expressão de Balmaine – em
fevereiro de 1943, data em que um tal Jean Terrail a vendera a um tal Louis
Pagnon. Segundo uma ficha da Polícia, posterior, a venda efetuara-se em
marcos alemães. Depois, em maio de 1944, Louis Pagnon vendera o
diamante a um tal Philippe de Bellune, dito Pacheco, nascido em Paris a 22
de janeiro de 1918, filho de Mario e Eliane Werry de Hulsts, sem domicílio
conhecido.
A condessa du Barry fora guilhotinada em dezembro de 1793; Serge de
Lenz fora assassinado em setembro de 1945; Louis Pagnon fora fuzilado em
dezembro de 1944. Philippe de Bellune desaparecera, tal como a Cruz do
Sul, antes de esse diamante voltar a aparecer sobre a camisola preta de
Sylvia, e depois novamente desaparecer. Com ela…
Mas à medida que a noite caiu sobre Nice, acabei por dar razão a esse
funcionário que pretendia fazer investigações, na condição de serem no
interesse das famílias. Se ele tivesse tirado o estojo da sua máquina de
escrever e o interrogatório tivesse começado, que lhe teria eu confiado de
muito preciso a respeito de Sylvia e de todos esses acontecimentos recentes
da minha vida que me pareciam a mim mesmo demasiado fragmentários,
demasiado descontínuos para serem compreensíveis? E, além disso, não
posso dizer tudo. Guardo certas coisas para mim. Muitas vezes, penso nesse
velho cartaz de cinema, de que alguns pedaços continuavam num tapume.
Nele estava escrito: AS RECORDAÇÕES NÃO ESTÃO À VENDA.
Regressei à Pensão Sainte-Anne. Aí, no silêncio do meu quarto, eu ouvia
um barulho que se repete muitas vezes durante as minhas insónias: o de
uma máquina de escrever. O tiquetaque das teclas era muito rápido e, pouco
a pouco, tornava-se sincopado, como quando se escreve à máquina com os
dois indicadores hesitantes no teclado. E eu tinha novamente na minha
frente esse funcionário da Polícia, loiro, que, com voz camuflada, me
interrogava. Era tão difícil responder-lhe…
Seria preciso explicar-lhe tudo, desde o princípio. Mas eis a maior das
dificuldades: não há nada a explicar. Desde o princípio, era apenas uma
questão de ambiente e cenário.
Mostrar-lhe-ia as fotografias que tinha tirado, nesse tempo, nas margens
do Marne. Grandes fotografias a preto e branco. Conservei-as, e com elas
tudo o que continha o saco de viagem de Sylvia. Nessa noite, no quarto da
Pensão Sainte-Anne, fui procurar, no fundo do armário, a pasta de cartão
onde está escrito: «Praias fluviais».
Desde há muito que não olhava para essas fotografias. Eu contemplava-as
nos seus mínimos pormenores e deixava-me penetrar novamente pelo
cenário onde tudo começara. Uma delas, de que já me não lembrava,
provocou em mim um misto de terror e fascínio que tornavam ainda mais
vivos o silêncio desse quarto e a minha solidão.
A fotografia fora tirada poucos dias antes de eu ter conhecido Sylvia. A
esplanada de um desses restaurantes das margens do Marne. Mesas com
guarda-sol. Pontões. Chorões. Tentei lembrar-me: o Vieux Clodoche em
Chennevières? O Pavillon Bleu ou o Château des Îles Jochem em La
Varenne? Eu dissimulara-me com a minha Leica para que esse cenário e
essa gente mantivessem a sua naturalidade.
Uma das mesas do fundo, junto do pontão, não tinha guarda-sol e estava
ocupada por dois homens sentados lado a lado. Um deles era Villecourt.
Reconheci imediatamente o outro: aquele que se nos apresentara pelo nome
de Neal e que, na realidade, se chamava Paul Alessandri. Que estranho vê-
lo ali, sentado junto do Marne, como se, desde o princípio, o bicho estivesse
no fruto.
Sim, conheci Sylvia Heuraeux, esposa de Villecourt, numa manhã de
verão, no Beach de La Varenne. Eu tinha chegado há alguns dias às
margens do Marne para tirar fotografias. Um pequeno editor aceitara o meu
projeto de um livro que se intitularia Praias Fluviais.
Eu mostrara-lhe o meu modelo: um álbum muito bonito sobre Monte
Carlo feito em finais dos anos trinta por um fotógrafo chamado W.
Vennemann. O meu livro teria o mesmo formato. A mesma paginação. As
mesmas fotografias a preto e branco, a maior parte delas em contraluz. Em
vez da sombra das palmeiras recortando-se sobre a baía de Monte Carlo ou
das carroçarias escuras e luzidias de automóveis contrastando, de noite,
com o esplendor do Sporting d’Hiver, ver-se-iam as pranchas de saltos e os
pontões dessas praias da periferia. Mas a luz seria a mesma. O editor não
entendera muito bem a minha proposta.
– Acha que La Varenne e Monte Carlo são a mesma coisa? – dissera-me
ele.
Mas acabara por assinar um contrato. Confia-se sempre na juventude.

Nessa manhã, não havia muita gente no Beach de La Varenne. Creio


mesmo que ela era a única pessoa que tomava banhos de sol. Crianças
deslizavam pelo escorrega à beira da piscina, e, sempre que caíam na água
azulada, ouviam-se os seus gritos e os seus risos.
Fiquei impressionado com a sua beleza e os seus gestos negligentes ao
acender um cigarro ou ao pôr a seu lado o copo de laranjada cujo conteúdo
aspirava servindo-se de uma palhinha. E estirava-se de uma maneira tão
graciosa no colchão de praia às riscas azuis e brancas, com os olhos
ocultados por óculos de sol, que me lembrei do comentário do meu editor.
Na verdade, Monte Carlo e La Varenne não têm muitos pontos em comum,
mas eu via um nessa manhã: essa rapariga, que poderíamos imaginar na
mesma posição no Monte Carlo Beach, cujo ambiente W. Vennemann tão
bem soubera sugerir através das suas fotografias a preto e branco. Não, ela
não teria desfeado o cenário mas, pelo contrário, ter-lhe-ia acrescentado um
certo encanto.
Eu andava de um lado para o outro, procurando o melhor ângulo de visão,
com a minha máquina fotográfica ao pescoço.
Ela deu conta da minha artimanha.
– É fotógrafo?
– Sou.
Tirara os óculos e observava-me com os seus olhos claros. Os miúdos
tinham saído da piscina. Só restávamos nós os dois.
– Não está cheio de calor?
– Não. Porquê?
Eu não tinha tirado os sapatos – o que era proibido nessa estância balnear
– e trazia uma camisola de gola alta.
– Tenho o sol suficiente – disse ela.
Segui-a do outro lado da piscina, lá onde um grande muro de hera
projetava a sua sombra e a sua frescura. Sentámo-nos em cadeirões de
madeira branca, lado a lado. Ela tinha enfiado um roupão turco branco.
Voltou-se para mim.
– Mas o que é que quer fotografar aqui?
– O cenário.
E, com um amplo movimento do braço, apontei-lhe a piscina, a prancha
de mergulhos, o escorrega, os vestiários, e, ao fundo, o restaurante ao ar
livre, a sua pérgula branca com pilares cor de laranja, o céu azul, o muro de
hera verde-escuro atrás de nós…
– Pergunto-me se não deveria tirar fotografias a cores… Sentir-se-ia
melhor o ambiente do Beach de La Varenne…
Ela desatou a rir.
– Acha que aqui há ambiente?
– Acho.
Ela olhava para mim com um sorriso irónico.
– Habitualmente, tira que tipo de fotografias?
– Estou a trabalhar para um álbum que irá chamar-se Praias Fluviais.
– Praias fluviais?
Ela franzia as sobrancelhas. Eu já me aprestava para lhe dar as
explicações que tinham deixado perplexo o meu editor: o paralelismo com
Monte Carlo… Mas não valia a pena complicar as coisas.
– Tento encontrar as estâncias balneares que restam na região parisiense.
– Encontrou muitas?
Ela estendia-me uma cigarreira de ouro que contrastava com a
naturalidade e a simplicidade do seu comportamento. E, para grande
surpresa minha, ela própria me acendeu o cigarro.
– Fotografei todas as praias do Oise… A Isle-Adam, Beaumont, Butry-
Plage… E, depois, as praias e as estâncias balneares das margens do Sena:
Villenes, Elisabethville…
Aparentemente, ela estava intrigada com essas estâncias balneares tão
próximas, de cuja existência nem suspeitava. Trespassava-me com o seu
olhar claro.
– Mas, no fim de contas, o lugar que prefiro é este… – disse-lhe eu. – É
exatamente o ambiente que procurava… Creio que vou tirar muitas
fotografias em La Varenne e nos arredores…
Ela não me largava com os olhos, como se quisesse verificar se eu não
estava a brincar.
– Acha de facto que La Varenne é uma estância balnear?
– Um pouco… E você?
Ela desatou de novo a rir. Um riso mais suave.
– E o que é que vai conseguir fotografar em La Varenne?
– O Beach… As margens do Marne… Os pontões…
– Vive em Paris?
– Sim, mas aluguei aqui um quarto de hotel. Tenho que ficar pelo menos
quinze dias para tirar boas fotografias…
Ela viu as horas no relógio de pulso, um relógio de homem com uma
grossa bracelete de metal que lhe fazia ressaltar a delicadeza do pulso.
– Tenho de regressar para o almoço – disse-me. – Estou atrasada.
Ela esquecera, no chão, a cigarreira de ouro. Inclinei-me para a apanhar e
estendi-lha.
– Ah sim… Não a posso esquecer… É um presente do meu marido…
Ela dissera-o sem qualquer convicção. Foi mudar-se a um dos vestiários,
do outro lado da piscina, e, quando saiu, trazia atado um paréo às flores, e
um grande saco de praia a tiracolo.
– O seu paréo é bonito – disse-lhe eu. – Gostaria de lhe tirar uma
fotografia vestida com o paréo, aqui, no Beach, ou num dos pontões do
Marne. Fica bem com o cenário…
– Acha? Mais parece taitiano, um paréo…
Sim, taitiano. Vennemann, no seu álbum sobre Monte Carlo, incluíra
várias fotografias de praias desertas de Saint-Tropez dos anos trinta.
Algumas mulheres, vestidas com paréo, estavam estendidas na areia, entre
os bambus.
– Mais parece taitiano – disse-lhe eu – mas dá um certo charme, aqui, à
beira do Marne…
– Então, gostava que eu fosse seu modelo?
– Adorava.
Ela sorriu-me. Saímos do Beach de La Varenne e, na estrada que ladeia o
Marne, caminhávamos pelo meio da rua. Nem um automóvel. Ninguém.
Tudo estava silencioso e tranquilo sob o sol, e eram ternas todas as cores: o
azul do céu, o verde-pálido dos choupos e dos chorões; e a água do Marne,
habitualmente pesada e estagnada, estava tão leve nesse dia que refletia as
nuvens, o céu e as árvores.
Deixámos para trás a ponte de Chennevières e continuávamos a caminhar
pelo meio da estrada ladeada de plátanos chamada Promenade des Anglais.
Ao longe, uma canoa deslizava no Marne, uma canoa de um cor de
laranja quase rosa. Ela tomou-me pelo braço e levou-me para o passeio, do
lado da água, para a vermos passar.
Indicou-me o portão de uma vivenda.
– Vivo aqui… – com o meu marido…
Tive, apesar disso, a coragem de lhe perguntar se podíamos voltar a ver-
nos.
– Estou todos os dias na piscina entre as onze e a uma da tarde – disse-me
ela.
O Beach de La Varenne estava tão deserto como na véspera. Ela tomava
um banho de sol diante dos vestiários brancos e eu continuava a procurar de
que ângulo fotografar aquele estabelecimento. Gostaria de reunir na
fotografia a prancha de mergulhos, os vestiários, a esplanada com pérgola
do restaurante e as margens do Marne. Mas estas estavam separadas do
Beach pela estrada.
– É realmente pena que não se tenha construído o Beach mesmo à beira
do Marne – disse eu.
Mas ela não me tinha ouvido. Talvez tivesse adormecido debaixo do seu
chapéu de palha e dos óculos de sol. Sentei-me a seu lado e pus a mão no
seu ombro:
– Está a dormir?
– Não.
Tirou os óculos de sol. Fixava-me com os seus olhos claros e sorria-me.
– Então, tirou fotografias ao Beach?
– Ainda não.
– Trabalha com lentidão…
Ela segurava o copo de laranjada com as duas mãos, com uma palhinha
entre os lábios. Depois estendeu-me o copo. Foi a minha vez de beber.
– Convido-o para almoçar em minha casa – disse-me ela. – Se o não
incomoda conhecer o meu marido e a minha sogra…
– É muito simpático da sua parte.
– Talvez isso o inspire para as suas fotografias…
– Mas vive todo o ano em La Varenne?
– Sim. Todo o ano. Com o meu marido e a minha sogra.
Parecia bruscamente pensativa e resignada.
– O seu marido trabalha na região?
– Não. O meu marido não faz nada.
– E a sua sogra?
– A minha sogra? Faz competir cavalos de corrida em Vincennes e em
Enghien… Interessa-se por cavalos?
– Não percebo grande coisa do assunto.
– Eu também não. Mas se isso lhe interessar para as suas fotografias, a
minha sogra terá certamente muito prazer em o levar aos hipódromos.
Cavalos de corrida. Pensei em W. Vennemann que fotografara, para o seu
álbum, a partida do Grande Prémio do Mónaco, e os bólides em plongée,
correndo ao longo do porto. Pois bem, eu tinha encontrado o equivalente
dessa manifestação desportiva, aqui, à beira do Marne. A atmosfera que eu
procurava nestas praias fluviais, quem pois podia sugeri-la melhor do que
os ágeis cavalos de corrida e os seus sulkies?

Ela tinha-me tomado pelo braço na estrada deserta à beira da água, mas,
quando chegámos às proximidades do portão de casa, afastou-se de mim.
– Não o aborrece realmente vir almoçar? – perguntou-me.
– Pelo contrário.
– Se achar que se vai aborrecer, pode sempre dizer que tem trabalho.
Envolvia-me com um olhar doce e estranho que me comoveu. Eu tinha a
impressão de que, doravante, não mais nos abandonaríamos.
– Expliquei-lhes que você era fotógrafo e que queria fazer um álbum
sobre La Varenne.
Ela empurrou o portão. Atravessámos um relvado à beira do qual se
erguia uma enorme vivenda, em estilo anglo-normando, com pombais. E
chegámos à sala de estar, cujas paredes eram cobertas de madeira escura e
os cadeirões e o sofá de um tecido escocês.
Por uma das janelas de sacada, entrou uma mulher de calças de praia, que
se nos dirigiu com passo elástico. A sessentona era alta e tinha os cabelos
cinzentos penteados à leoa.
– A minha sogra – disse Sylvia… – A Sr.ª Villecourt.
– Não me chames tua sogra. Isso mete-me medo…
Ela tinha uma voz rouca e um leve sotaque suburbano.
– Então é fotógrafo?
– Sou.
Ela sentou-se no sofá, e eu e Sylvia nos cadeirões. Uma bandeja com
aperitivos aguardava, no centro da mesa baixa, diante de nós.
Um homem com passo arrastado e de pequena estatura de jockey chegou
junto de nós. Com o seu casaco branco e as suas calças azul-marinho,
poderia ser membro da tripulação de um iate ou empregado de um clube
náutico.
– Pode servir o aperitivo – disse a Sr.ª Villecourt.
Eu escolhi uma lágrima de Porto. Sylvia e a Sr.ª Villecourt, whisky. O
homem retirou-se, arrastando os pés.
– Parece que quer fazer um álbum de fotografias sobre La Varenne? –
perguntou-me a Sr.ª Villecourt.
– É verdade. Sobre La Varenne e sobre todas as outras praias fluviais dos
arredores de Paris.
– La Varenne mudou muito… Morreu completamente… Sylvia disse-me
que precisava de informações sobre La Varenne para o seu álbum…
Voltei-me para Sylvia. Ela olhava-me pelo canto do olho. Era, pois, o
pretexto que ela escolhera para me introduzir ali.
– Conheci La Varenne pouco tempo depois de casar… Já vivíamos nesta
casa com o meu marido…
Ela serviu-se de um segundo copo de whisky. Trazia um anel de
esmeraldas no dedo médio.
– Nessa altura, havia muitos artistas de cinema que frequentavam La
Varenne… René Dary, Jimmy Gaillard, Préjean… Os Fratellini viviam no
Perreux… O meu marido conhecia-os a todos. Ia apostar nas corridas, no
Tremblay, com Jules Berry…
Ela parecia contente por citar esses nomes e evocar essas recordações
diante de mim. O que é que Sylvia lhe teria dito? Que eu queria escrever a
história de La Varenne?
– Para eles, era prático instalarem-se aqui… Por causa da proximidade
dos estúdios de Joinville…
Senti que ela seria inesgotável sobre o assunto. Ela corava e os seus olhos
brilhavam. O efeito do segundo copo de whisky, que bebera muito
rapidamente? Ou o afluxo das recordações?
– Conheço uma história muito bizarra que talvez lhe interesse…
Ela sorria-me e o seu rosto alisava-se. Um rasgo de juventude perpassava-
lhe nos olhos e no sorriso. Devia ter sido, noutros tempos, uma mulher
muito bela.
– É a propósito de um outro artista de cinema que o meu marido conhecia
bem… Aimos… Raymond Aimos… Ele vivia muito perto daqui, em
Chennevières… Foi provavelmente morto, na libertação de Paris, numa
barricada, por uma bala perdida…
Sylvia ouvia, com ar surpreendido. Aparentemente, nunca tinha ouvido a
sogra falar assim, nem talvez mostrar-se tão descontraída e tão à vontade
com um estranho.
– Na verdade, isso não se passou exatamente assim… É uma história
triste… Já lhe explico…
Encolheu os ombros.
– O senhor acredita em balas perdidas?

Um morenaço de uns trinta e cinco anos, de calças azul-celeste e camisa


branca, viera sentar-se no sofá ao lado da Sr.ª Villecourt, no momento em
que ela se dispunha, sem dúvida, a revelar-me o segredo da morte de
Aimos.
– Vejo que estão numa grande conversa… Incomodo…
Inclinou-se para mim e estendeu-me a mão.
– Frédéric Villecourt… Muito prazer… Sou o marido de Sylvia.
Sylvia abriu a boca para me apresentar. Não lhe dei tempo de dizer o meu
nome e disse simplesmente:
– Muito prazer…
Ele olhava para mim. Tudo no seu aspeto – um certo à-vontade, um
sorriso um pouco enfatuado, uma voz metálica e autoritária – indicava que
ele estava consciente do seu encanto de morenaço de traços perfeitos. Mas
esse encanto dissipava-se muito rapidamente por causa de gestos sem graça,
perfeitamente a condizer com a pulseira no pulso.
– A mãe está a contar-lhe todas as suas velhas histórias… Quando está
embalada, não para…
– Isso interessa a este jovem – disse a Sr.ª Villecourt. – Ele está a escrever
um livro sobre La Varenne…
– Então pode confiar na minha mãe… É um poço de ciência em tudo o
que se refere a La Varenne.
Sylvia baixou a cabeça, com um ar incomodado. Pusera uma mão sobre o
joelho e esfregava-o pensativamente com o dedo indicador.
– Espero que não tardemos a ir para a mesa – disse Frédéric. – Tenho uma
fome de cão…
Ela deitou-me um olhar inquieto, como se lamentasse ter-me arrastado
para esta casa e ter-me infligido a companhia desta mulher e do respetivo
filho.

– Almoçamos lá fora – disse a Sr.ª Villecourt.


– Que excelente ideia a sua, mãezinha…
O tratamento por você e o tom afetados surpreenderam-me. Também eles
condiziam com a grossa pulseira que usava.
O homem de casaco branco aguardava no vão da porta do salão.
– Minha senhora, está servido.
– Vamos já, Julien – disse Villecourt com uma voz estridente.
– Pôs o toldo? – perguntou a Sr.ª Villecourt.
– Sim, minha senhora.
Atravessámos o grande relvado. Sylvia e eu caminhávamos ligeiramente
atrás. Ela lançava-me um olhar interrogativo, com o ar de quem receava que
eu a abandonasse.
– Estou muito contente por me ter convidado – disse-lhe eu. – Muito
contente.
Mas ela não parecia completamente calma. Talvez tivesse medo das
reações do marido, a quem observava com um ar vagamente desdenhoso.
– Sylvia explicou-me que é fotógrafo – disse Villecourt, abrindo a grade
do portão e dando passagem à mãe. – Se quiser, dou-lhe trabalho…
Ele mimoseava-me com um enorme sorriso:
– Estou a montar um negócio importante com um amigo… E temos
necessidade de prospetos e de fotografias publicitárias…
Por mais que ele falasse com o tom de alguém que quer fazer um favor a
um subalterno, eu não tirava os olhos da pulseira que lhe pendia do pulso.
Se «o negócio importante» a que aludia era à imagem daquela pulseira de
largos e grossos elos, de que podia tratar-se senão de tráfico de automóveis
americanos?
– Ele não precisa que lhe arranjes trabalho – disse secamente Sylvia.

Precisamente em frente da casa, do outro lado da estrada, à beira da água,


Villecourt empurrou uma cancela branca na qual estava escrito: «Vivenda
Frédéric, Pontão privado 14, Promenade des Anglais.»
A mãe dele voltou-se para mim:
– Terá uma bela vista do Marne… Tenho a certeza de que irá tirar
fotografias…
Descemos alguns degraus escavados numa rocha que me parecia artificial
por causa da sua cor vermelha. Depois desembocámos num pontão muito
largo recoberto por um toldo de lona às riscas verdes e brancas. Aí se erguia
uma mesa para quatro pessoas.
– Sente-se aqui – disse-me a Sr.ª Villecourt.
E indicou-me o lugar de onde podia ver o Marne e a outra margem. Ela
sentou-se à minha esquerda, Sylvia e o marido em cada uma das
extremidades da mesa, Sylvia do meu lado e Frédéric Villecourt do lado da
mãe.
O homem de casaco branco fez duas viagens, da vivenda ao pontão, para
nos trazer saladas e um grande peixe frio. Ele transpirava, devido ao calor.
Villecourt recomendara-lhe entre cada uma das viagens:
– Julien, não se deixe esmagar quando atravessar a Promenade des
Anglais.
Mas o outro não prestava a menor atenção a este conselho e afastava-se
arrastando os pés.
Eu olhava à minha volta. O toldo protegia-nos do sol cuja luz se refletia
na água verde e estagnada do Marne e lhe dava transparências, como no
outro dia, à saída do Beach. Em frente, a encosta de Chennevières, no sopé
da qual grandes casas em pedra calcária rompiam a verdura. Mesmo à beira
da água, vivendas modernas e elegantes. Eu imaginava-as habitadas por
procuradores dos Halles reformados.
O pontão da vivenda Frédéric, no qual almoçávamos, protegidos do sol,
era, incontestavelmente, o maior e o mais luxuoso das redondezas. Mesmo
o do restaurante Le Pavillon Bleu, a uns vinte metros para a direita, parecia
muito modesto ao lado dele. Sim, o pontão da vivenda Frédéric oferecia um
curioso contraste com esta paisagem do Marne, os salgueiros, a água
estagnada, as ribas para pescadores à linha.
– Gosta da vista? – perguntou-me a Sr.ª Villecourt.
– Muito.
Contraste curioso: parecia que almoçávamos num enclave da Côte d’Azur
transportado para os arredores, como esses castelos medievais que
milionários da Califórnia mandaram levar, pedra por pedra, para o seu país.
A rocha que precedia o pontão evocava-me uma enseada próxima de
Cassis. O toldo, que nos tapava, tinha uma majestade monegasca e poderia
ter figurado numa das fotografias de W. Vennemann. Fazia também lembrar
o Lido de Veneza. A minha impressão acentuou-se mais quando vi,
amarrado ao pontão, um Chris-Craft.
– É seu? – perguntei à Sr.ª Villecourt.
– Não… não… é do meu filho. Esse imbecil diverte-se a andar com ele
no Marne apesar de ser proibido.
– Não seja má, mãezinha…
– De qualquer maneira – disse Sylvia – o Chris-Craft não consegue andar
por causa da água cheia de lodo…
– Estás enganada, Sylvia – disse Villecourt.
– É um autêntico pântano… Se quiseres fazer esqui aquático, os esquis
pegam-se no lodo como em mercúrio e ficas bloqueado no meio do
Marne…
Ela pronunciara esta frase com uma voz cortante, olhando fixamente
Villecourt.
– Estás a dizer asneiras, Sylvia… Pode muito bem andar-se de Chris-
Craft e fazer esqui aquático no Marne…
Ele estava mesmo muito picado. Aparentemente, dava muita importância
ao Chris-Craft. Voltou-se para mim.
– Ela prefere frequentar o seu Beach miserável que está a cair de podre…
– De modo, nenhum – disse-lhe eu. – O Beach de La Varenne não está a
cair de podre e acho que tem muito encanto.
– É verdade?
Ele olhava para nós alternadamente, para Sylvia e para mim, como se
quisesse surpreender entre nós uma conivência.
– Sim, esse Chris-Craft é uma idiotice pegada – disse a Sr.ª Villecourt. –
Deverias desfazer-te dele…
Villecourt não respondia. Tinha acendido um cigarro. Amuava.
– Então, o que é que encontrou de praias fluviais nesta zona? –
perguntou-me a Sr.ª Villecourt.
Os reflexos do sol na água faziam-lhe piscar os olhos e ela pusera uns
grandes óculos escuros.
– É isso que procura para as suas fotografias? Praias fluviais?
O seu rosto de leoa, os seus óculos escuros, e o whisky que bebia durante
o almoço poderiam dar-lhe o aspeto de uma americana veraneando em Eden
Roc. Mas havia uma diferença entre ela e todos esses acessórios da Côte
d’Azur que nos rodeavam: a rocha, o Chris-Craft e o pontão recoberto por
um toldo. A Sr.ª Villecourt estava de acordo com a paisagem das margens
do Marne, e parecia-se com ela. Talvez por causa da sua voz rouca?
– Sim, procuro as praias fluviais – disse eu.
– Quando eu era pequena, ia para uma praia, lá em baixo, para os lados de
Chelles… A praia de Gournay-sur-Marne… Chamavam-lhe o «Petit
Deauville»… Havia areia e toldos de lona…
Seria então uma filha da região?
– Mas isso já não existe, mãezinha – disse Villecourt encolhendo os
ombros.
– Foi ver? – perguntou-me a Sr.ª Villecourt sem prestar atenção ao filho.
– Ainda não.
– Tenho a certeza de que continua a existir – disse a Sr.ª Villecourt.
– Eu também – disse arrogantemente Sylvia, sustendo o olhar do marido.
– Havia também a praia Berretrot, em Joinville… – disse a Sr.ª Villecourt.
Ela refletia e aprestava-se a contar pelos dedos.
– E Duchet, o restaurante de Saint-Maurice-Plage… Continuando em
Saint-Maurice, a faixa de areia da Île Rouge… E a Île aux Corbeaux…
Com o indicador da mão esquerda, ela premia sucessivamente cada um
dos dedos da mão direita.
– O hotel-restaurante da praia em Maisons-Alfort… A praia de
Champigny, cais Gallieni… O Palm-Beach e o Lido de Chennevières… Sei
tudo isso de cor… Nasci na região…
Ela tirou um instante os óculos escuros e olhou-me amavelmente.
– Como vê, vai ter muito que fazer… Isto é uma autêntica Riviera…
– Mas todos esses lugares já não existem, mãezinha – repetiu Villecourt,
com a rabugice de quem já não é ouvido.
– E então? Temos o direito de sonhar, não é verdade?
Surpreendeu-me aquela maneira brutal de responder ao filho.
– Sim, temos o direito de sonhar – repetiu Sylvia com uma voz clara, mas
cuja inflexão um pouco arrastada estava de acordo com as margens do
Marne e com todas as praias que a Sr.ª Villecourt evocara.

– Pode ver esse diamante a partir de amanhã, mãezinha… – disse


Villecourt. – É realmente excecional… Seria uma tontice deixar escapar o
negócio… Chama-se Cruz do Sul.
De cotovelos apoiados na mesa, pretendia-se cada vez mais persuasivo.
Mas a mãe, com o olhar escondido sob os óculos escuros, permanecia
impassível e dava a impressão de fixar um ponto, ao longe, na encosta
verde escura de Chennevières.
Sylvia vigiava-me pelo canto do olho.
– Mostrar-lha-ei – disse Villecourt. – Tem todo um pedigree… É uma
peça única…
Esse rapaz, com a sua pulseira e o seu Chris-Craft sujo no Marne, seria
diamantista ou corretor de pedras preciosas? Apesar de o observar, não
conseguia acreditar nas suas qualidades profissionais.
– O vendedor veio aqui visitar-me, há mais ou menos uma semana – disse
Villecourt. – Se não nos decidirmos muito rapidamente, o negócio vai
escapar-nos das mãos…
– O que é que tu queres que eu faça com um diamante? – disse a Sr.ª
Villecourt. – Já não tenho idade para usar diamantes…
Villecourt desatou a rir. Ele olhava para Sylvia e para mim, com o ar de
nos tomar como testemunhas.
– Mas em suma, mãezinha, não se trata de usar um diamante… Basta
simplesmente comprá-lo a bom preço e revendê-lo pelo dobro…
Desta vez, a Sr.ª Villecourt voltou-se para o filho e tirou vagarosamente
os óculos escuros.
– Estás a dizer asneiras… Revendem-se sempre os móveis e as joias com
prejuízo… Pobre rapaz, receio que não tenhas o estofo de homem de
negócios…
Ela assumira um tom simultaneamente desdenhoso e afetuoso.
– Não é verdade, Sylvia, que Frédéric faria melhor se não se ocupasse
com pedras preciosas? É um ofício difícil, como sabes, meu querido…
Villecourt retesou-se. Era-lhe difícil manter-se calmo. Até virou a cabeça.
E eu já não olhava para a pulseira que ele tinha, mas para o Chris-Craft
cintilante, que viera extraviar-se nas águas mortas e pesadas do Marne por
culpa do seu condutor.
Disse para comigo que todas as atividades em que ele se queria meter,
cada um dos seus gestos, a mínima iniciativa da sua parte, deviam ir dar,
fatalmente, a um lamaçal como este. E era o marido de Sylvia.
Ouvi um barulho de passos atrás de mim, e um homem da idade de
Villecourt apareceu no pontão. De estatura média, trazia um fato de tecido
bege, sapatos de camurça, olhinhos muito encovados e uma testa teimosa,
de carneiro.
– Mãezinha, é René Jourdan…
Villecourt anunciara à mãe o recém-chegado com um respeito misturado
de ênfase, como se o dito René Jourdan, com sapatos de camurça, com
cabeça de carneiro e olhos vazios, fosse uma personalidade.
– Quem? – perguntou a Sr.ª Villecourt, sem mexer a cabeça um
milímetro.
– René Jourdan, mãezinha…
Este estendia a mão à Sr.ª Villecourt.
– Bom-dia, minha senhora…
Mas ela não lhe estendeu a mão. Com os seus óculos escuros, tratava-o
com uma indiferença de cego.
Ele estendeu então o braço para Sylvia que lhe apertou a mão sem muita
convicção, com cara de poucos amigos. Depois saudou-me com um
movimento de cabeça.
– René Jourdan… – disse-me Villecourt. – Um amigo…
Ele indicava-lhe a cadeira vazia que estava diante de mim. O outro
sentou-se.
– Imagina, René, que estava a falar do diamante. Não é verdade que é
uma peça espantosa?
– Espantosa – disse o outro, esboçando um sorriso tão vazio como o seu
olhar.
Villecourt inclinou-se para a mãe.
– O homem que quer vender o diamante é um amigo de René Jourdan.
E dissera isso como se fosse uma referência, uma menção no Gotha.
– Eu expliquei ao meu filho que já não tenho idade para usar diamantes.
– É pena, minha senhora. Tenho a certeza de que este diamante a
seduziria… É uma peça histórica… Temos todo um pedigree sobre ele…
Chama-se Cruz do Sul…
– Confie em mim, mãezinha. Se me der dinheiro, prometo-lhe que, na
revenda, poderia dobrar a parada.
– Meu pobre Frédéric… E donde vem esse diamante? De um roubo?
O homem com cabeça de carneiro deixou escapar um riso estridente.
– Nada disso, minha senhora… De uma herança… O meu amigo tenta
desfazer-se dele porque tem necessidade de dinheiro… Dirige uma
sociedade imobiliária em Nice… Dar-lhe-ei todas as referências…
– Podemos mostrar-lhe a pedra, mãezinha… Tem de a ver com os seus
próprios olhos antes de tomar uma decisão…
– De acordo – disse a Sr.ª Villecourt com uma voz cansada. – Mostrem-
me essa Cruz do Sul…
– Amanhã, mãezinha?
– Amanhã.
Ela abanava pensativamente a cabeça.
– Vens, René? – disse Villecourt. – Temos de ir ver como estão a avançar
os trabalhos…
Ele levantou-se e especou-se na minha frente.
– Talvez isso lhe interesse… Estou a arranjar completamente uma
pequena ilha do Marne, a seguir a Chennevières… O terreno pertencia à
minha mãe… Queremos lá fazer uma piscina e uma discoteca… Mas Sylvia
falar-lhe-á disso, porque não tem nada a esconder-lhe…
Bruscamente, ele ficara agressivo. Eu não repliquei. O pensar nos seus
dedos apertados sobre o corpo de Sylvia desgostava-me o suficiente para
me não expor ao seu contacto, em caso de chegarmos a vias de facto.
Ele desceu a escada do pontão, seguido do homem com sapatos de
camurça e cabeça de carneiro. Depois instalaram-se, um ao lado do outro,
no Chris-Craft, e Villecourt, com gestos nervosos, pô-lo em andamento. O
Chris-Craft desapareceu muito depressa, depois da curva de Chennevières,
mas a água estava demasiado pesada para que deixasse jatos de espuma
atrás dele.

A Sr.ª Villecourt continuou durante um longo momento silenciosa e,


depois, voltou-se para Sylvia:
– Querida, vai dizer-lhe que nos sirva café…
– Vou já…
Sylvia levantou-se e, quando passou por detrás de mim, apoiou
furtivamente as suas duas mãos nos meus ombros. Eu perguntei-me se ela ia
voltar ou deixar-me sozinho com a sogra durante o resto do dia.
– Podíamos talvez sentar-nos ao sol – disse-me a Sr.ª Villecourt.
Tínhamo-nos instalado, na borda do pontão, em dois grandes cadeirões de
lona azul. Ela não dizia nada. Olhava fixamente, por detrás dos óculos
escuros, para a água do Marne. Em que estaria ela a pensar? Nos filhos que
nem sempre dão as satisfações que deles se esperaram?
– E as suas fotografias sobre La Varenne? – perguntou-me ela como se,
por delicadeza, quisesse romper o silêncio.
– Serão fotografias a preto e branco – disse-lhe eu.
– Tem razão em as fazer a preto e branco.
Fiquei surpreendido com o seu tom categórico.
– E se pudesse fazê-las completamente a preto, ainda seria melhor. Vou
explicar-lhe uma coisa…
Ela hesitou um momento.
– Todas estas margens do Marne são lugares tristes… É evidente que,
com o sol, iludem… Exceto quando se conhecem bem… Dão azar… O meu
marido morreu num acidente de automóvel incompreensível nas margens
do Marne… O meu filho nasceu e foi educado aqui e tornou-se um vadio…
E eu vou envelhecer sozinha nesta paisagem triste…
Ela mantinha-se calma ao confiar-me tudo isto.
Tinha mesmo um tom decidido.
– Não está a ver as coisas demasiado negras? – disse-lhe eu.
– De modo nenhum… Tenho a certeza de que você é um jovem sensível
às atmosferas e me compreende… Tire as suas fotografias o mais pretas
possível…
– Vou tentar – disse-lhe eu.
– Sempre houve algo de negro e crapuloso nestas margens do Marne…
Sabe com que dinheiro foram construídas todas estas vivendas de La
Varenne? Com o dinheiro que as meninas ganharam a trabalhar nas casas…
Era o sítio onde os chulos e os donos das casas vinham passar a reforma…
Sei do que estou a falar…
Calou-se bruscamente. Parecia pensar em qualquer coisa.
– Estas margens do Marne sempre foram mal frequentadas… Sobretudo
durante a guerra… Falei-lhe do pobre do Aimos… O meu marido gostava
muito dele… Aimos vivia em Chennevières… e morreu nas barricadas,
durante a libertação de Paris…
Ela continuava a olhar em frente, talvez para a encosta de Chennevières
onde esse tal Aimos vivera.
– Disse-se que ele tinha levado com uma bala perdida… Não é verdade…
Foi um ajuste de contas… Por causa de certas pessoas que frequentavam
Champigny e La Varenne durante a guerra… Ele tinha-as conhecido… Ele
sabia coisas sobre elas… Ele ouvia as suas conversas nas hospedarias da
região…

Sylvia serviu-nos o café. Depois a Sr.ª Villecourt, como que contra


vontade, levantou-se e estendeu-me a mão.
– Tive muito prazer em o conhecer…
Beijou Sylvia na testa.
– Vou dormir a sesta, querida…
Acompanhei-a até à rocha vermelha, onde começavam os degraus da
escada.
– Agradeço-lhe todas as informações que me deu sobre as margens do
Marne – disse-lhe eu.
– Se quiser saber mais pormenores, venha visitar-me novamente. Mas eu
tenho a certeza de que, agora, está metido no meio… Tire fotografias bem
pretas… Tenebrosas…
E ela insistira nas sílabas de «tenebrosas», com o sotaque de Paris e
arredores.

– Que mulher estranha – disse eu a Sylvia.


Tínhamo-nos sentado nas tábuas, na borda do pontão, e ela encostara a
cabeça no meu ombro.
– E também achas que eu sou uma mulher estranha?
Pela primeira vez, tratava-me por tu.
Continuávamos ali, os dois nesse pontão, a seguir com o olhar uma canoa
que deslizava no meio do Marne, a mesma do outro dia. A água já não
estava estagnada mas era percorrida por pequenas ondulações.
Era a corrente que levava a canoa e a tornava tão ligeira e dava o seu
impulso ao movimento longo e cadenciado dos remos, a corrente cujo
sussurro ouvíamos sob o sol.

Pouco a pouco, a penumbra invadiu o meu quarto sem nos darmos conta.
Ela olhou para o relógio de pulso:
– Estou atrasada para o jantar. A minha sogra e o meu marido já devem
estar à minha espera. Levantou-se. Virou a almofada e afastou o lençol.
– Perdi um brinco.
Depois vestiu-se diante do espelho do armário. Enfiou o body verde, e a
saia de tecido vermelho que a apertava na cintura. Sentou-se na borda da
cama e calçou as alpercatas.
– Talvez volte daqui a bocado, se eles jogarem uma partida de cartas… ou
amanhã de manhã…
Fechou a porta suavemente atrás de si. Eu fui para a varanda e segui com
os olhos a sua silhueta esbelta, a sua saia vermelha no crepúsculo, ao longo
do cais de La Varenne.
Durante todo o dia esperei-a estendido na cama do meu quarto. Através
das persianas, o sol desenhava manchas loiras nas paredes e na sua pele. Em
baixo, em frente do hotel, debaixo dos três plátanos, os mesmos jogadores
de petanca prosseguiam as suas partidas pela noite dentro. Ouvíamos a sua
gritaria. Eles tinham pendurado nas árvores lâmpadas elétricas cuja luz se
infiltrava também pelas persianas e projetava nas paredes, no escuro, raios
ainda mais claros do que os raios do Sol. Os seus olhos azuis. O seu vestido
encarnado. Os seus cabelos castanho-escuros. Mais tarde, muito mais tarde,
as cores vivas desapareceram, e já não vi tudo isso senão a preto e branco –
como dizia a Sr.ª Villecourt.
Algumas vezes, ela podia ficar até à manhã do dia seguinte. O marido
partira em viagem de negócios com o homem de sapatos de camurça, com
cara de carneiro e olhos vazios, e com o outro, aquele que queria vender o
diamante. Ela não o conhecia, a esse, mas, nas conversas de Jourdan com o
marido, o seu nome vinha muitas vezes à baila: um tal Paul.
Certa noite, levantei-me sobressaltado. Alguém rodava o manípulo da
porta do meu quarto. Eu nunca a fechava à chave para o caso de Sylvia ter
um momento para vir ter comigo. Ela entrou. Eu tateei à procura do
interruptor.
– Não… Não acendas…
Primeiro, pensei que ela estendia a mão para se proteger da luz do
candeeiro da mesinha de cabeceira. Mas ela queria ocultar-me o rosto. Os
seus cabelos estavam desalinhados e a sua face tinha um lanho que
sangrava.
– Foi o meu marido…
Deixou-se cair na borda da cama. Eu não tinha um lenço para limpar as
gotas de sangue que tinha na face.
– Discuti com o meu marido…
Ela tinha-se estendido a meu lado. Os dedos sapudos de Villecourt, a mão
curta e grossa a bater no seu rosto… Só de pensar nisso, tinha vontade de
vomitar.
– É a última vez que discuto com ele… Agora, vamos partir.
– Partir?
– Sim. Eu e tu. Tenho lá em baixo um automóvel.
– Mas partir para onde?
– Olha… Trouxe o diamante…
Ela meteu a mão por debaixo do seu corpete e mostrou-me o diamante
preso por um fio muito fino, à volta do pescoço.
– Com ele, não teremos problemas de dinheiro…
Tirou o fio do pescoço e passou-mo para a mão.
– Guarda-o.
Eu coloquei-o sobre a mesinha de cabeceira. Esse diamante metia-me
medo, tal como o lanho que sangrava na sua face.
– Agora pertence-nos – disse Sylvia.
– Achas mesmo que temos de o levar?
Ela parecia não me ouvir.
– Jourdan e o outro vão pedir contas ao meu marido… Não vão largá-lo
enquanto ele não devolver o diamante…
Ela falava em voz baixa como se alguém nos ouvisse por detrás da porta.
– E ele não poderá nunca devolvê-lo… Eles fá-lo-ão pagar caro… Isso há
de ensinar-lhe o que é ter más companhias…
Ela aproximara o seu rosto do meu e dissera-me esta última frase ao
ouvido. Olhou-me de frente nos olhos.
– E ficarei viúva…
Nesse instante fomos sacudidos por um riso tonto nervoso. Depois
aproximou-se ainda mais de mim e apagou o candeeiro da mesinha de
cabeceira.

O automóvel estava estacionado em frente do hotel debaixo dos plátanos,


no local onde os jogadores prosseguiam as suas intermináveis partidas de
petanca. Mas eles já lá não estavam e tinham apagado as lâmpadas elétricas
das árvores. Ela queria conduzir. Sentou-se ao volante e eu sentei-me ao seu
lado. Uma mala estava colocada, atravessada, no banco de trás.
Uma última vez, seguimos o cais de La Varenne e, na minha memória, o
automóvel roda lentamente. Entrevi os choupos da pequena ilha, no meio
do Marne, com as suas ervas altas, o seu pórtico e o seu baloiço, que
alcançávamos a nado, há muito, antes de a água estar infetada. Ao longe, na
outra margem, a massa escura da encosta de Chennevières. Desfilaram, uma
última vez, os pavilhões em pedra calcária, as vivendas normandas, os
chalés, os bungalows construídos no princípio do século com o dinheiro das
meninas… E os seus jardins onde se plantou uma tília. O grande pavilhão
do Círculo dos Desportos do Marne. A grade e o parque do Château des Îles
Jochem…
Antes de virar à direita, uma última vez o Beach de La Varenne, lá onde
tudo começou, a sua prancha de mergulhos, os seus vestiários, a sua pérgula
sob a lua, esse cenário que, no verão, parecia tão feérico na nossa infância e
que, esta noite, está silencioso e abandonado para sempre.
Foi a partir desse momento da nossa vida que sentimos a angústia, um
sentimento de culpa difuso e a certeza de que tínhamos de fugir de alguma
coisa, sem sabermos muito bem de quê. Essa fuga ter-nos-á levado para
lugares muito diferentes antes de acabar aqui, em Nice.
Quando Sylvia estava estendida a meu lado, eu não conseguia evitar
tomar o diamante entre os dedos ou contemplá-lo brilhando sobre a sua pele
e dizer para comigo mesmo que nos dava azar. Mas não. Outros, antes de
nós, se tinham batido por ele, outros, depois de nós, o guardariam um
momento no pescoço e no dedo e ele atravessaria os séculos, duro e
indiferente ao tempo que passa e aos mortos que deixava atrás de si. Não. A
nossa angústia não vinha do contacto com essa pedra fria com reflexos
azuis mas, sem dúvida, da própria vida.
No entanto, no princípio, precisamente depois de termos abandonado La
Varenne, conhecemos um breve período de repouso e bem-estar. Em La
Baule, no mês de agosto. Tínhamos alugado, através de uma agência da Rua
des Lilas, um quarto próximo do minigolfe. Até cerca da meia-noite, a
gritaria e as risadas dos jogadores embalavam-nos. Sem chamar a atenção
de ninguém, íamos beber um copo numa das mesas, debaixo dos pinheiros,
diante do balcão com telhado de ardósias verdes onde se distribuíam os
tacos e as bolas brancas de golfe.
Nesse verão estava muito calor e nós tínhamos a certeza de que nunca nos
encontrariam aqui. De tarde, seguíamos o aterro e avistávamos o ponto da
praia onde a multidão era mais densa. Então, descíamos até essa praia, à
procura de um pequenino espaço livre para nos estendermos nas nossas
toalhas de banho. Nunca fomos tão felizes como nesses momentos,
perdidos no meio da multidão com cheiro a protetor solar. À nossa volta, as
crianças construíam os seus castelos de areia e os vendedores ambulantes
passavam por cima dos corpos e apregoavam os seus gelados. Éramos como
toda a gente, nada nos distinguia dos outros, nesses domingos de agosto.

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