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Ficha Técnica
Volto sempre para casa atravessando o que foi a sala de jantar do antigo
Hotel Majestic, precisamente na esquina do Boulevard de Cimiez. Agora, já
não passa de um hall, que serve de sala de reuniões ou exposições. Ao
fundo, na semipenumbra, um grupo coral cantava canções em inglês. Junto
da escadaria, havia um cartaz com esta inscrição: «Today: The Holy Nest.»
As suas vozes agudas ainda me chegavam ao segundo andar, quando fechei
a porta do meu quarto. Deviam ser canções de Natal. Aliás, o Natal estava
próximo. Estava frio neste quarto mobilado, um antigo quarto de hotel com
casa de banho, de que ainda subsistia o número, numa placa de cobre,
dentro do armário: 252.
Liguei o pequeno radiador elétrico mas o calor que deitava era tão pouco
que acabei por desligá-lo. Estendi-me na cama, sem tirar os sapatos.
Há, no edifício Majestic, apartamentos de três ou quatro divisões, as
antigas suites do hotel, ou quartos simples que se ligaram entre si no
decurso de obras de reparação. Eu prefiro viver numa só divisão. É menos
triste. Tem-se ainda a ilusão de viver no hotel. A cama continua a ser a do
quarto 252. Também a mesa de cabeceira. E pergunto-me se a secretária de
madeira escura, pretensamente Luís XVI, pertenceria ao mobiliário do
Majestic. A alcatifa, essa, não existia no quarto 252: uma alcatifa cinzento-
beje, gasta em alguns sítios. A banheira e o lavatório também mudaram.
Eu não tinha vontade de jantar. Apaguei a luz. Fechei os olhos e deixei-
me embalar pelas vozes longínquas do grupo coral inglês. Ainda estava
estendido na cama, no escuro, quando o telefone tocou.
– Alô… É Villecourt…
A sua voz era muito baixa, quase um cochicho.
– Incomodo-o? Descobri o seu número na lista telefónica…
Fiquei em silêncio. Ele voltou a perguntar-me:
– Incomodo-o?…
– De modo nenhum.
– Gostaria simplesmente que as coisas ficassem claras entre nós. Quando
nos despedimos, tive a impressão de que você me odiava…
– Não o odeio…
– No entanto, o gesto que me fez…
– Foi uma brincadeira.
– Uma brincadeira? Você tem um sentido de humor realmente singular.
– É assim – disse-lhe eu. – Têm de me aceitar como sou.
– Achei esse gesto de tal modo agressivo… Tem algo a censurar-me?…
– Não.
– Nunca lhe perguntei nada… Foi você, Henri, que me procurou. Você
estava à espera diante da banca, no Boulevard Gambetta.
– Não me chamo Henri…
– Desculpe… Estava a confundir com outro… Esse tipo moreno que
estava sempre a dar palpites sobre as corridas… Não sei que piada é que
Sylvia lhe encontrava…
– Não tenho vontade de falar de Sylvia consigo.
Era realmente penoso prosseguir aquela conversa telefónica no escuro.
Do hall, as vozes do grupo coral inglês continuavam a chegar-me e
acalmavam-me; nessa noite, não estava completamente só.
– Porque é que não quer falar de Sylvia comigo?
– Porque não estamos a falar da mesma pessoa.
Desliguei. Passados breves instantes, o telefone voltou a tocar.
– Foi uma falta de delicadeza ter desligado… Mas não vou largá-lo…
Ele pretendia pôr um pouco de ironia na sua voz.
– Estou fatigado – disse-lhe.
– Também eu. Mas não é razão para não voltarmos a falar. Doravante, só
nós dois sabemos certas coisas…
– Pensava que você tinha esquecido tudo…
Fez-se silêncio.
– Realmente não… Isso incomoda-o, não é verdade?
– Não.
– Convença-se de que era eu quem melhor conhecia Sylvia… Era eu
quem ela mais amava… Como está a ver, não me furto às minhas
responsabilidades.
Desliguei. Passaram alguns minutos e o telefone voltou a tocar.
– Havia entre mim e Sylvia uma ligação muito forte… Tudo o mais não
tinha qualquer importância para ela…
Ele falava como se tivesse achado natural que eu tivesse desligado pela
segunda vez.
– Gostava de falar de tudo isso consigo, quer queira quer não…
Telefonar-lhe-ei até que aceite…
– E eu corto o telefone.
– Nesse caso, esperá-lo-ei diante da sua casa. Não poderá livrar-se de
mim lá muito facilmente… Em suma, foi você que veio procurar-me…
Desliguei mais uma vez. Novamente, a campainha do telefone.
– Eu não esqueci certas coisas… Ainda lhe posso causar muitas
chatices… Quero ter consigo uma conversa séria sobre Sylvia…
– Você esquece que também eu lhe posso causar muitas chatices –
respondi-lhe.
Desta vez, depois de ter desligado, marquei o meu próprio número de
telefone e meti o auscultador debaixo da almofada para não ouvir o ruído do
telefone.
Levantei-me e, sem acender a luz, fui para a janela. Em baixo, o
Boulevard de Cimiez estava deserto. De tempos a tempos, um automóvel
passava e, sempre que isso acontecia, eu perguntava-me se iria parar. Um
bater de porta. Ele sairia e levantaria a cabeça em direção à fachada do
Majestic para ver em que andar ainda havia luz. Ele entraria na cabina
telefónica, no começo da curva do boulevard. Deveria deixar o auscultador
desligado ou responder-lhe? O melhor seria aguardar o toque e pôr o
auscultador ao ouvido, sem dizer nada. Ele repetiria: «Alô… Está a ouvir-
me?… Alô, está a ouvir-me?… Estou muito perto da sua casa… Responda-
me… Responda-me…» A essa voz, cada vez mais inquieta e mais
plangente, eu responderia apenas com o silêncio. Sim, gostaria de lhe
transmitir a sensação de vazio que eu próprio sinto.
O grupo coral calou-se há muito, e eu continuo postado diante da janela.
Espero que a silhueta se recorte, lá em baixo, na iluminação branca do
boulevard, tal como se recortava, no outro domingo, na Promenade des
Anglais.
1 Bebida muito popular em França nos anos 1960, composta por uma parte de conhaque e três
partes de água. (N. do E.)
Nessa noite, no antigo hall do Majestic, realizava-se a reunião semanal da
Associação Terras Longínquas. Em vez de subir para o meu quarto, poderia
ter-me sentado num dos bancos de madeira – iguais aos das pracetas – e
ouvir o conferencista entre as pessoas que se reuniram e que trazem todas
elas, na lapela, um círculo branco onde está inscrito T. L. em caracteres
azuis. Mas não há nenhum lugar livre e eu esgueiro-me, roçando a parede,
até à escada.
O meu quarto atual parece-se com o da Pensão Sainte-Anne, na Rua
Caffarelli. No inverno, devido à humidade e aos móveis de madeira velha e
de couro velho, paira o mesmo cheiro. Com o correr do tempo, os lugares
impregnam as pessoas, mas, na Rua Caffarelli, com Sylvia, o meu estado de
espírito era diferente. Hoje, tenho muitas vezes a impressão de ali
apodrecer. Reflito. Ao cabo de um instante, esta impressão dissipa-se e só
resta um desapego, uma sensação de calma e leveza. Nada mais tem
importância. No tempo da Rua Caffarelli, por vezes sentia-me desanimado,
mas o futuro apresentava-se-me com cores favoráveis. Acabaríamos por
sair dessa situação delicada em que nos encontrávamos. Para nós, Nice não
passava de uma etapa. Muito rapidamente, partiríamos para longe daqui,
para o estrangeiro. Estava a iludir-me. Eu não sabia que esta cidade era um
lodaçal e que eu me afundaria nele pouco a pouco. E que o único itinerário
que seguiria, durante todos estes anos, seria o que vai da Rua Caffarelli ao
Boulevard de Cimiez, onde agora vivo.
O dia seguinte à chegada de Sylvia era domingo. Fomos sentar-nos na
esplanada de um café da Promenade des Anglais, ao fim da tarde, na mesma
esplanada de onde, na outra noite, vira Villecourt passar, de saco a tiracolo.
Ele tinha acabado por se juntar às sombras que desfilavam diante de nós a
contraluz, a esses homens e mulheres que, a mim e a Sylvia, nos pareciam
muito velhos… Ao voltar a fechar a porta do meu quarto, tenho medo.
Pergunto-me se, doravante, não sou um deles. Nessa noite, eles bebiam
lentamente o seu chá nas mesas ao lado da nossa. Eu e Sylvia observávamo-
los, a eles e aos outros que continuavam a desfilar pela Promenade des
Anglais. Fim de um domingo de inverno. E eu sei que pensávamos os dois
na mesma coisa: tínhamos de encontrar, entre toda aquela gente que
deambulava à mesma hora pela Côte d’Azur, alguém a quem vender a Cruz
do Sul.
Nessa tarde voltou a falar-se mais uma vez da Cruz do Sul. Neal
perguntou a Sylvia:
– Então quer realmente vender o seu diamante?
Ele inclinou-se para ela e tomou a pedra entre o polegar e o indicador
para a examinar. Depois voltou a pô-la com delicadeza sobre a camisola
preta de Sylvia. Vi nesse gesto a maneira de ser desenvolta de certos
americanos. Sylvia não se mexera um milímetro e o seu olhar vagueava,
como se pretendesse ignorar o gesto de Neal.
– Sim, gostaríamos de o vender – disse eu.
– Se for uma pedra autêntica, não há problema.
Ele levava visivelmente a coisa a sério.
– Não se preocupe – disse-lhe eu num tom condescendente. – É um
diamante autêntico. É, aliás, o que nos preocupa… Não queremos conservar
uma pedra desta importância…
– A minha mãe deu-ma por ocasião do meu casamento aconselhando-me
a vendê-la – disse Sylvia. – Ela pensava que os diamantes dão azar… Ela
própria tinha tentado vendê-lo mas não encontrou clientes adequados…
– Quanto quer por ele? – perguntou Neal.
Ele pareceu arrepender-se desta pergunta abrupta. Esforçou-se por sorrir.
– Desculpem… Sou indiscreto… Por causa do meu pai… Muito jovem,
foi sócio de um grande diamantista americano. Ele passou-me o seu gosto
pelas pedras preciosas…
– Queremos aí um milhão e quinhentos mil francos – disse eu secamente.
– É um preço realmente módico para este diamante. Vale o dobro.
– Contávamos depositá-lo na casa Van Cleef em Monte Carlo para que
nos arranje um cliente – disse Sylvia.
– Na casa Van Cleef? – repetiu Neal.
Este nome sonante e distinto deixava-o pensativo.
– Não posso trazê-lo sempre ao pescoço como uma trela – disse Sylvia.
Barbara Neal riu mordazmente.
– É verdade… tem razão – disse ela. – Corre o risco de lho arrancarem na
rua.
E eu perguntava-me se ela falava a sério ou se troçava de nós.
– Podia arranjar-lhes clientes – disse Neal. – Barbara e eu conhecemos
americanos que poderiam comprar-lhes este diamante. Não é verdade,
querida?
Citou alguns nomes. Ela aprovou com um aceno de cabeça.
– E acha que eles vão pagar o preço que lhe indiquei – disse eu com uma
voz muito doce.
– Com certeza.
– Querem beber alguma coisa? – perguntou Barbara Neal.
Eu olhei para Sylvia. Tinha vontade de ir embora, mas ela parecia estar
bem nesse jardim cheio de sol, com a nuca apoiada nas costas do cadeirão,
e de olhos fechados.
Barbara Neal encaminhava-se em direção à casa. Neal apontou para
Sylvia e disse-me em voz baixa:
– Acha que ela está a dormir?
– Sim.
Ele inclinou-se para mim. E em voz ainda mais baixa:
– Quanto ao diamante… Acho que eu próprio vo-lo compro, se me
provarem que é de facto autêntico…
– É autêntico.
– Gostaria de o oferecer a Barbara por ocasião dos nossos dez anos de
casados.
Ele via uma certa desconfiança no meu olhar.
– Acalme-se… Não tenho problemas de dinheiro…
Apertou-me o braço com muita força para me fazer compreender que eu
tinha de o escutar com a maior das atenções:
– Não tenho por isso qualquer mérito: só tive o trabalho de nascer e
herdar muito, muito dinheiro do meu pai… É injusto, mas é assim… Agora
já confia? Considera-me um cliente sério?
Desatou a rir. Talvez quisesse que eu esquecesse o tom agressivo com que
me fizera estas propostas.
– Não deve haver entre nós qualquer aborrecimento… Posso fazer-lhe um
adiantamento…
Ele insistiu para que bebêssemos já não sei que aguardente de ameixa ou
pera. Eu levava o copo aos lábios e fingia beber um gole. Sylvia bebeu de
uma assentada. Ela já não dizia nada. Esfregava o seu «calhau» entre os
dedos…
– Também está aborrecida comigo? – perguntou-lhe Neal em tom
humilde. – Por causa da história do calhau?…
Ele recobrava o seu ligeiro sotaque americano e já não era o mesmo
homem. Havia nele algo de encantador e de tímido.
– Peço-lhes desculpa. Gostaria que esquecessem a minha brincadeira
idiota.
Ele juntava as mãos num gesto de imploração infantil.
– Desculpam-me?
– Eu desculpo-o – disse Sylvia.
– Lamento imenso a história do calhau…
– Calhau ou não – disse Sylvia – estou-me nas tintas.
Agora, era ela que tinha o sotaque arrastado do leste de Paris.
– Ele fica assim muitas vezes? – perguntou ela a Barbara, apontando para
Neal com o dedo.
A outra estava embaraçada. Acabou por balbuciar.
– Às vezes.
– E o que é que faz para o acalmar?
A pergunta tinha caído, cortante como um cutelo. Neal desatou a rir.
– Que mulher adorável! – disse-me ele.
Eu estava maldisposto. Bebi um grande gole de aguardente.
– E como vamos acabar a noite? – disse Neal.
Era isso o que eu estava a prever. Ainda não tínhamos chegado ao fim dos
nossos infortúnios.
– Eu conheço um sítio muito agradável em Cannes – disse Neal. –
Poderíamos ir lá beber um copo.
– A Cannes?
Neal bateu-me gentilmente no ombro.
– Amigo, não faça essa cara… Cannes não é um lugar de perdição…
– Temos de voltar para o hotel – disse eu. – Espero um telefonema por
volta da meia-noite…
– Vá lá… Vá lá… Vocês mesmos telefonarão de Cannes… Não vão
abandonar-nos…
Em desespero de causa, voltei-me para Sylvia. Ela estava impassível, mas
acabou por vir em meu auxílio:
– Estou cansada… Não tenho vontade de fazer grandes trajetos de
automóvel, de noite…
– Grandes trajetos de automóvel? Até Cannes? Está a brincar comigo…
Ouviste, Barbara? Um grande trajeto de automóvel até Cannes… até
Cannes, eles acham que é um grande trajeto…
Mais uma palavra e estaríamos em presença de um martelo-pilão que não
deixaria de repetir «Até Cannes, até Cannes…» E, se o contrariássemos,
colar-se-ia a nós ainda mais do que agora. Porque é que certas pessoas são
como as pastilhas elásticas que em vão tentamos desprender dos saltos dos
sapatos, esfregando-os na borda de um passeio?
– Prometo-lhes que estaremos em Cannes dentro de dez minutos… A esta
hora, anda-se muito bem…
Não, ele nem sequer tinha um ar embriagado. Falava muito suavemente.
Sylvia encolheu os ombros.
– Se fazem questão, vamos a Cannes…
Ela mantinha o seu sangue-frio. Piscou-me impercetivelmente o olho.
– Falaremos do diamante – disse Neal. – Creio que lhes vou arranjar um
cliente. Não é verdade, Barbara?
Ela sorria-nos sem responder.
Os empregados de casaco branco evoluíam entre as mesas e eu
perguntava-me como podiam eles caminhar com um passo tão firme. Por
detrás das vidraças, as luzes de Nice pareciam-me cada vez mais longínquas
e misturavam-se. Saímos. Tudo baloiçava à minha volta.
Esperei no passeio do cais Cassini. Neal tinha ido sem dúvida meter
gasolina naquela zona e não tinha encontrado uma estação de serviço. O
carro desembocaria de um instante para o outro diante de mim. À medida
que o tempo passava, sentia o pânico invadir-me. Eu não podia ficar imóvel
à espera, e andava de um lado para o outro ao longo do passeio. Acabei por
consultar o relógio. Eram quase duas da manhã.
Um grupo ruidoso saiu do restaurante Garac. Portas dos carros bateram,
motores arrancaram. Algumas pessoas prosseguiam as suas conversas no
cais. Eu ouvia o barulho das suas vozes e as suas risadas. Lá longe, à beira
da doca, sombras descarregavam caixas e empilhavam-nas pouco a pouco
junto de um camião coberto com um toldo, de luzes apagadas.
Caminhei em direção a eles. Estavam a fazer uma pausa. Estavam
encostados às caixas e fumavam.
– Há bocado não viram um automóvel? – perguntei.
Um deles levantou a cabeça para mim.
– Que automóvel?
– Um automóvel grande, preto.
Eu tinha necessidade de falar com alguém, de não guardar isso só para
mim.
– Uns amigos que me esperavam num automóvel preto, além, diante do
edifício… Foram-se embora sem me prevenirem.
Não, de nada servia explicar-lhes. Eu não acertava com as palavras. Aliás,
eles não me ouviam. No entanto, um deles deve ter visto o meu rosto
alterado.
– Um automóvel preto de que marca? – perguntou.
– Não sei.
– Não sabe a marca do automóvel?
Ele fez-me sem dúvida esta pergunta para verificar se eu estava bêbado
ou se estava no meu perfeito juízo. Observava-me desconfiado.
– Não, não sei. Não sei a marca do automóvel.
Era terrível nem sequer a saber.
Ela tinha-me tomado pelo braço na estrada deserta à beira da água, mas,
quando chegámos às proximidades do portão de casa, afastou-se de mim.
– Não o aborrece realmente vir almoçar? – perguntou-me.
– Pelo contrário.
– Se achar que se vai aborrecer, pode sempre dizer que tem trabalho.
Envolvia-me com um olhar doce e estranho que me comoveu. Eu tinha a
impressão de que, doravante, não mais nos abandonaríamos.
– Expliquei-lhes que você era fotógrafo e que queria fazer um álbum
sobre La Varenne.
Ela empurrou o portão. Atravessámos um relvado à beira do qual se
erguia uma enorme vivenda, em estilo anglo-normando, com pombais. E
chegámos à sala de estar, cujas paredes eram cobertas de madeira escura e
os cadeirões e o sofá de um tecido escocês.
Por uma das janelas de sacada, entrou uma mulher de calças de praia, que
se nos dirigiu com passo elástico. A sessentona era alta e tinha os cabelos
cinzentos penteados à leoa.
– A minha sogra – disse Sylvia… – A Sr.ª Villecourt.
– Não me chames tua sogra. Isso mete-me medo…
Ela tinha uma voz rouca e um leve sotaque suburbano.
– Então é fotógrafo?
– Sou.
Ela sentou-se no sofá, e eu e Sylvia nos cadeirões. Uma bandeja com
aperitivos aguardava, no centro da mesa baixa, diante de nós.
Um homem com passo arrastado e de pequena estatura de jockey chegou
junto de nós. Com o seu casaco branco e as suas calças azul-marinho,
poderia ser membro da tripulação de um iate ou empregado de um clube
náutico.
– Pode servir o aperitivo – disse a Sr.ª Villecourt.
Eu escolhi uma lágrima de Porto. Sylvia e a Sr.ª Villecourt, whisky. O
homem retirou-se, arrastando os pés.
– Parece que quer fazer um álbum de fotografias sobre La Varenne? –
perguntou-me a Sr.ª Villecourt.
– É verdade. Sobre La Varenne e sobre todas as outras praias fluviais dos
arredores de Paris.
– La Varenne mudou muito… Morreu completamente… Sylvia disse-me
que precisava de informações sobre La Varenne para o seu álbum…
Voltei-me para Sylvia. Ela olhava-me pelo canto do olho. Era, pois, o
pretexto que ela escolhera para me introduzir ali.
– Conheci La Varenne pouco tempo depois de casar… Já vivíamos nesta
casa com o meu marido…
Ela serviu-se de um segundo copo de whisky. Trazia um anel de
esmeraldas no dedo médio.
– Nessa altura, havia muitos artistas de cinema que frequentavam La
Varenne… René Dary, Jimmy Gaillard, Préjean… Os Fratellini viviam no
Perreux… O meu marido conhecia-os a todos. Ia apostar nas corridas, no
Tremblay, com Jules Berry…
Ela parecia contente por citar esses nomes e evocar essas recordações
diante de mim. O que é que Sylvia lhe teria dito? Que eu queria escrever a
história de La Varenne?
– Para eles, era prático instalarem-se aqui… Por causa da proximidade
dos estúdios de Joinville…
Senti que ela seria inesgotável sobre o assunto. Ela corava e os seus olhos
brilhavam. O efeito do segundo copo de whisky, que bebera muito
rapidamente? Ou o afluxo das recordações?
– Conheço uma história muito bizarra que talvez lhe interesse…
Ela sorria-me e o seu rosto alisava-se. Um rasgo de juventude perpassava-
lhe nos olhos e no sorriso. Devia ter sido, noutros tempos, uma mulher
muito bela.
– É a propósito de um outro artista de cinema que o meu marido conhecia
bem… Aimos… Raymond Aimos… Ele vivia muito perto daqui, em
Chennevières… Foi provavelmente morto, na libertação de Paris, numa
barricada, por uma bala perdida…
Sylvia ouvia, com ar surpreendido. Aparentemente, nunca tinha ouvido a
sogra falar assim, nem talvez mostrar-se tão descontraída e tão à vontade
com um estranho.
– Na verdade, isso não se passou exatamente assim… É uma história
triste… Já lhe explico…
Encolheu os ombros.
– O senhor acredita em balas perdidas?
Pouco a pouco, a penumbra invadiu o meu quarto sem nos darmos conta.
Ela olhou para o relógio de pulso:
– Estou atrasada para o jantar. A minha sogra e o meu marido já devem
estar à minha espera. Levantou-se. Virou a almofada e afastou o lençol.
– Perdi um brinco.
Depois vestiu-se diante do espelho do armário. Enfiou o body verde, e a
saia de tecido vermelho que a apertava na cintura. Sentou-se na borda da
cama e calçou as alpercatas.
– Talvez volte daqui a bocado, se eles jogarem uma partida de cartas… ou
amanhã de manhã…
Fechou a porta suavemente atrás de si. Eu fui para a varanda e segui com
os olhos a sua silhueta esbelta, a sua saia vermelha no crepúsculo, ao longo
do cais de La Varenne.
Durante todo o dia esperei-a estendido na cama do meu quarto. Através
das persianas, o sol desenhava manchas loiras nas paredes e na sua pele. Em
baixo, em frente do hotel, debaixo dos três plátanos, os mesmos jogadores
de petanca prosseguiam as suas partidas pela noite dentro. Ouvíamos a sua
gritaria. Eles tinham pendurado nas árvores lâmpadas elétricas cuja luz se
infiltrava também pelas persianas e projetava nas paredes, no escuro, raios
ainda mais claros do que os raios do Sol. Os seus olhos azuis. O seu vestido
encarnado. Os seus cabelos castanho-escuros. Mais tarde, muito mais tarde,
as cores vivas desapareceram, e já não vi tudo isso senão a preto e branco –
como dizia a Sr.ª Villecourt.
Algumas vezes, ela podia ficar até à manhã do dia seguinte. O marido
partira em viagem de negócios com o homem de sapatos de camurça, com
cara de carneiro e olhos vazios, e com o outro, aquele que queria vender o
diamante. Ela não o conhecia, a esse, mas, nas conversas de Jourdan com o
marido, o seu nome vinha muitas vezes à baila: um tal Paul.
Certa noite, levantei-me sobressaltado. Alguém rodava o manípulo da
porta do meu quarto. Eu nunca a fechava à chave para o caso de Sylvia ter
um momento para vir ter comigo. Ela entrou. Eu tateei à procura do
interruptor.
– Não… Não acendas…
Primeiro, pensei que ela estendia a mão para se proteger da luz do
candeeiro da mesinha de cabeceira. Mas ela queria ocultar-me o rosto. Os
seus cabelos estavam desalinhados e a sua face tinha um lanho que
sangrava.
– Foi o meu marido…
Deixou-se cair na borda da cama. Eu não tinha um lenço para limpar as
gotas de sangue que tinha na face.
– Discuti com o meu marido…
Ela tinha-se estendido a meu lado. Os dedos sapudos de Villecourt, a mão
curta e grossa a bater no seu rosto… Só de pensar nisso, tinha vontade de
vomitar.
– É a última vez que discuto com ele… Agora, vamos partir.
– Partir?
– Sim. Eu e tu. Tenho lá em baixo um automóvel.
– Mas partir para onde?
– Olha… Trouxe o diamante…
Ela meteu a mão por debaixo do seu corpete e mostrou-me o diamante
preso por um fio muito fino, à volta do pescoço.
– Com ele, não teremos problemas de dinheiro…
Tirou o fio do pescoço e passou-mo para a mão.
– Guarda-o.
Eu coloquei-o sobre a mesinha de cabeceira. Esse diamante metia-me
medo, tal como o lanho que sangrava na sua face.
– Agora pertence-nos – disse Sylvia.
– Achas mesmo que temos de o levar?
Ela parecia não me ouvir.
– Jourdan e o outro vão pedir contas ao meu marido… Não vão largá-lo
enquanto ele não devolver o diamante…
Ela falava em voz baixa como se alguém nos ouvisse por detrás da porta.
– E ele não poderá nunca devolvê-lo… Eles fá-lo-ão pagar caro… Isso há
de ensinar-lhe o que é ter más companhias…
Ela aproximara o seu rosto do meu e dissera-me esta última frase ao
ouvido. Olhou-me de frente nos olhos.
– E ficarei viúva…
Nesse instante fomos sacudidos por um riso tonto nervoso. Depois
aproximou-se ainda mais de mim e apagou o candeeiro da mesinha de
cabeceira.