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Nota
Nota à edição de 1978
Nota à edição de 1956
PRIMEIRA PARTE
O Menino e o Medo
Criação e Preguiça
SEGUNDA PARTE
O retratista retratado
As “distrações” dos místicos
A morte
O poeta Portinari
ANTONIO CALLADO
Nota à edição de 1956
ANTONIO CALLADO
primeira parte
O MENINO E O MEDO
UMA AVÓ TITÂNICA E O DIABO
Portinari tem plena noção do seu valor. Até indiretamente ele revela em
que companhia se coloca. Quando me disse que fazia anos dia 29 de
dezembro, acrescentou:
— Faço anos com Siqueiros e Pablo Casals.
Aliás, o menino Candido foi registrado como nascido a 30 de dezembro
(1903), e não a 29, porque o pai se atrasou no registro e para não pagar
multa adiantou um dia. O pai (Baptista Portinari, que está hoje com 79
anos) nasceu em Chiampo, e a mãe (dona Dominga Torquato, com 70
anos) nasceu em Bassano.
— São os dois da mesma província, o Vêneto – esclarece Portinari, que
acrescenta: — Goldoni era do Vêneto.
O catolicismo da família vem do pai e da avó Portinari.
— Minha avó paterna morria de alegria quando ia um bispo lá em casa
e meu pai não acredita nem que as pessoas digam mal umas das outras.
Quando morre alguém em Brodowski ele vai lavar o defunto, arrumar as
flores, fechar o caixão.
Sua visão otimista do mundo, o velho Portinari também a força aos
outros. Conta Portinari:
— Durante a guerra não houve meio de se fazer o velho tirar seus
papéis de estrangeiro. E mesmo em Ribeirão Preto, que é cidade grande,
quando alguém lhe pedia os papéis, ele que conhece todo o mundo da
zona, bradava: “Papéis? Que papéis? Pois se eu fui amigo do seu avô!”
O fato é que dona Dominga e seu Baptista, camponeses italianos,
vieram crianças para a terra paulista a fim de plantar o café das safras
áureas e fazer germinar o menino Candido: vieram cuidar do nosso
principal produto de exportação e do nosso principal pintor. Para botarem
no mundo o pintor encomendado nem tiveram de ensaiar muito dentro das
regras do trial and error: Candido foi o segundo a nascer.
Me disse Portinari:
— De vez em quando umas pessoas me telefonam e dizem: “Mestre, eu
daria tudo para trabalhar com o senhor. Não importa o que eu tenha de
fazer. Ficarei contente lavando os seus pincéis.” Eu vou logo respondendo:
“E o senhor pensa que lavar pincéis é fácil?”
Portinari tem uma grande consciência das suas possibilidades (e acha
que suas possibilidades de pintor são inesgotáveis) e portanto das
possibilidades dos outros. Aprendeu cedo a se conhecer, diz ele. E vai
contando:
— Quando eu era garoto de escola primária, na hora da turma cantar o
hino, a professora ia logo me dizendo: “Candinho, sai da fila!”. Eu saía
porque já sabia que era o mais desafinado do mundo. Mas não me meto a
dar opinião sobre o canto de ninguém, ao contrário de uma porção de
“críticos” que andam por aí e que de arte não entendem nada.
Essas suas histórias surgiram quando ele rememorava o pouco tempo
que cursou a escola, e só cursou a primária. (“Nunca tive diploma nenhum.
O primeiro foi o meu prêmio Carnegie de 1935”.) Antes de acabar o grupo
escolar meteu-se num grupo de pintores de spolvero que tinham vindo
decorar a igreja de Brodowski. O spolvero é uma das formas mais
humildes da pintura. A figura a pintar está feita em furos numa folha de
papel. Sobre esta bate-se com uma boneca de tinta em pó. O pó filtrado
deixa na parede a imagem configurada. Aí é só pintar.
FRENTISTAS E MAESTROS
PALHAÇOS E ANJOS
Havia o circo.
— Logo que chegava, o circo fazia sua própria propaganda – lembra
Portinari. — O palhaço saía pela rua todo pintado, a cavalo, e eu saía atrás
com os outros moleques, gritando:
“O palhaço o que é?”
“É ladrão de mulher”.
“E a negra na janela?”
“Tem cara de panela”.
PONTE ABSTRATA
Exatamente por haver conquistado sua própria arte baseado no que era
fundamental, Portinari limita também sua aceitação da arte moderna:
— Arte abstrata – diz ele – é como a gente pedir a um engenheiro uma
ponte para atravessar um rio e receber uma página cheia de números e
cálculos. A gente quer é a ponte!
Só há uma coisa curiosa nas ideias de Portinari sobre arte, ideias que
veremos com vagar no final da primeira parte deste retrato. Ele acha que a
arte está se extinguindo, que já não tem a importância que teve para o
homem. É incrível ouvir-se isto de Portinari, que pinta sem cessar, com
fúria, com entusiasmo, que evoluiu (em ideias e em estilo, em forma
artística) da sua cruel e veraz pintura de um Brasil alicerçado nos pés
imensos da sua gente humilde ao Brasil histórico da chegada de d. João VI
e do Tiradentes. Ele é um desmentido vivo da sua teoria. Às vezes me
parecia estar ouvindo um pescador, dentro do seu barco a gemer nas
costuras de tanto peixe, dizendo melancólico: “Isto não dura não. Um dia
destes o mar vai amanhecer sem peixe.”
Como todas as grandes cidades, Paris é aquilo que somos nós. Para
Portinari Paris foi a cidade onde se aprende arte. Da sua primeira saída
para a Europa e de todas as outras que fez mais tarde, Portinari guardou
um deslumbramento que estoura aqui e ali com a energia de costume.
Falando sobre a importância de museus e coleções artísticas no Brasil,
Portinari disse:
— No Brasil museus e exposições de todas as espécies são mais
necessários do que nos países velhos, porque em Chartres, por exemplo,
quem é que precisa dessas coisas? A gente entra na Catedral e diz:
“Caramba!”
E ao recapitular sua visita a Madri:
— Quando vi os Ticianos do Museu do Prado fiquei com vontade de ir
para a porta da rua e gritar: “Vocês já viram?!”
Mas afora o lado artístico, o lado da sua formação, afora a emoção do
Louvre e das exposições, Paris nada significou para Portinari. Ele não se
perdeu em Paris. Casou-se. Foi lá que conheceu “Chico”, sua esposa
uruguaia, que estava em Paris com a família.
Portinari ficou dois anos na pureza de Paris e lá desabrochou como
artista. Exatamente porque lá nada pintou. Trouxe na sua bagagem, ao
regressar, três naturezas-mortas:
— Pequenas – acrescenta ele.
ELOGIO DO ÓCIO
O solo que faz medrar o artista é o ócio, o lazer, a preguiça. Ao contrário
do que se possa imaginar, o artista nunca é uma Marta que a poder de
esforço se transforma em Maria. É Maria que, depois de viver em longa e
misteriosa infusão de ócio e adoração contemplativa, levanta-se um dia
lépida e começa a executar o trabalho de sua vida.
Creio que foi a Universidade de Harvard que, há alguns anos, ofereceu
singulares bolsas a gente da estatura de T.S. Eliot e do próprio Einstein.
Não era a bolsa para que fizessem estudo, nenhuma pesquisa, nenhum
trabalho. Ou fariam qualquer das três coisas se quisessem. A bolsa era
apenas para que pensassem. Se hoje em dia os homens não sentissem um
certo pejo diante das palavras exatas, a Universidade teria dito: uma bolsa
de Contemplação. O que não fica em dúvida é a compreensão demonstrada
pelos ofertantes da bolsa – mesmo em se tratando de consumadas Marias
como o poeta e o sábio em questão. É que poucas coisas custam tão caro
quanto o lazer, e poucas atividades (porque o lazer artístico é uma das
mais intensas formas que existem de atividades) são olhadas com maior
reprovação pela sociedade em geral.
Muita gente se espanta com o fato de, no tempo em que dependiam dos
mecenas, os artistas dedicarem, às vezes com palavras abjetas, a um mero
ricaço, obras de arte destinadas à adoração da posteridade. Como se
explica, pergunta o leigo, que grandes escritores ou músicos ou pintores se
curvassem tanto diante dos nobres ricos do seu tempo? Já que Portinari
tem uma certa nostalgia da época em que a arte tinha uma função maior na
vida diária dos países, e esquece as humilhações por que passavam os
artistas (que hoje não têm nenhum mercado garantido, nenhum lazer
gracioso, mas também não têm senhor nenhum, como melhor do que
ninguém sabe esse rebelde Portinari), vou transcrever aqui a dedicatória
com que o maior músico de todos os tempos e países encaminhou a um
mecenas, os concertos de Brandenburgo. Vamos copiar, no francês em que
Bach a escreveu, essa carta que está publicada no J.S. Bach de Albert
Schweitzer.
PORTINARI NA FRANÇA, DURANTE VIAGEM DE ESTUDOS A PARIS, 1929
Como todas as grandes cidades Paris é aquilo que somos nós. Para Portinari Paris foi a cidade
onde se aprende arte.
Monseigneur
Comme j’eus il y a une couple d’années, le bonheur de me faire entendre à Votre Altesse Royalle,
en vertu de ses ordres, & que je remarquai alors, qu’elle prennoit quelque plaisir aux petits
talents que le Ciel m’a donnés pour la Musique, et qu’en prennant Congé de Votre Altesse
Royalle, Elle voulut bien me faire l’honneur de me commander de Lui envoyer quelques pièces
de ma Composition: j’ai donc selon ses très gracieux ordres, pris la liberté de rendre de mes
très-humbles devoirs à Votre Altesse Royalle, par les presents concerts, que j’ai accomodés à
plusieurs Instruments; La priant trèshumblement de ne vouloir pas juger leur imperfection, à la
rigueur du gout fin et delicat, que tout le monde sçait qu’Elle a pour les pièces musicales; mais
de tirer plutot en benigne Consideration, le profond respect, & la trèshumble obéissance que je
tache a Lui témoigner par là. Pour le reste, Monseigneur, je supplie très humblement Votre
Altesse Royalle, d’avoir la bonté de continuer ses bonnes graces envers moi, et d’être persuadée
que je n’ai rien tant à coeur, que de pouvoir être amployé en des occasions plus dignes d’Elle et
de son service, moi que suis avec une zele sans pareil Monseigneur De Votre Altesse Royalle Le
très humble et très obeissant serviteur
Jean Sebastien Bach a
PERCALÇOS DA CRIATURA
O ESTADO E O ARTISTA
DO CROISSANT AO LEITO
Vejam um dia de Portinari em Paris, numa bolsa que custou ao país umas
vinte e cinco libras por mês, ou três mil e duzentos francos da época
(“Dava muitíssimo bem”, exclama Portinari):
— Eu me levantava cedo, no meu hotel da rue du Dragon, entre o
Louvre e o Luxemburgo. O quarto me custava trezentos francos por mês.
Depois do meu café com leite e croissants eu simplesmente me metia no
Louvre pela manhã e no Luxemburgo à tarde, ou vice-versa. Depois ia às
galerias dos marchands de tableaux. Meus amigos eram todos pintores,
muitos deles portugueses, como o Eduardo Viana. Passávamos a tarde em
algum café discutindo pintura como uns demônios, sem prestar atenção a
mais nada. No Dôme continuava a discussão, que continuava pelo jantar
adentro – um jantar que custava seis ou sete francos, vin compris. Aí pelas
onze horas eu ia dormir.
Durante dois anos foi essa vidinha assim, diariamente. Muita gente a
chamaria de vida de boêmio ou vagabundo, pois resultou em três
naturezas-mortas, “pequenas”. Mas depois dessa hibernação tipicamente
artística Portinari chegou ao Rio de Janeiro agressivo, doido por trabalhar
e atirar quadros à cabeça dos fariseus. Trancou-se em casa e, em seis
meses, pintou uns quarenta quadros. Foram a base dessa sua celebridade
até hoje florescente. Acabara o período infuso, estava na hora do batente,
do boulot.
Quando perguntei a Portinari por que é que pintou tão pouco em Paris,
quando não tinha cuidados materiais, e teve tanto tempo de pintar aqui, ao
voltar à luta, ele respondeu:
— Ora, onde é que eu havia de ir, aqui?
TÉCNICOS E MÁGICOS
Mas a verdade é que aqui ou seja onde for, ele nunca mais deixou de
pintar desde aquele ano do seu regresso, 1931. Pelo seu equilíbrio de
temperamento e pela sua esplêndida single-mindedness de artista,
Portinari, como exemplo de “a quem se deve dar uma bolsa de estudos” é
um tanto bom demais. Mas acredito que seu excepcional caso ilustre bem
o caso geral. A ninguém ocorrerá que sem a bolsa ele tivesse deixado de
ser o grande pintor que é. Mas a verdade é que essa bolsa, que lhe deu a
Europa, que lhe deu a rive gauche, que lhe deu (como a um herdeiro
legítimo) acesso aos tesouros acumulados da arte no Louvre, em Roma,
Florença, Madri, Londres, essa bolsa terá feito amadurecer sua arte mais
depressa, sem dúvida, em primeiro lugar. E, em segundo lugar, como já foi
paga com juros!
Não tenha o governo – o nosso e todos os governos do mundo –
nenhuma dúvida: esse é o jeito de estimular a arte para que ela não definhe
num mundo em transição, num mundo perturbado e que precisa mais dela
do que nunca, pois só ela lhe fala do estável.
O atraso material do Brasil já está tornando opinião comum que é
preciso mandarmos ao estrangeiro nossos jovens técnicos, para
aprenderem seus ofícios com os que sabem mais. Está certíssimo. Devem
ir para lá e fazerem seus cursos, como bons dinâmicos que são.
Mas não olvidemos os jovens artistas, que precisam de ócio de qualquer
maneira, principalmente no período formativo. E que, como os técnicos,
precisam também do ócio muito mais sábio que os séculos deixaram como
um pólen nas pedras romanas ou que assume vida no vozerio
aparentemente sem objetivo dos cafés de Paris. Não deixemos que os
dinâmicos nos levem a esquecer os infusos.
JUSTIÇA SOCIAL E HISTÓRIA DO
BRASIL
O OUTRO LADO DE VAN EYCK
INELOQUÊNCIA
É inútil dizer qual dessas fases produz arte melhor ou mais bela, mas
indubitavelmente a tendência humana, através dos séculos, é agrupar no
grupo “clássico” as obras que têm uma certa durabilidade. Uma
intemporalidade, um apelo ao que há de mais sereno em nós mesmos. As
obras clássicas de qualquer período podem até comover menos os homens
seus coevos mas guardam qualquer coisa que não passa, que afirma sem
gestos e sem palavras. Para Berenson essas são as obras “ineloquentes”, os
quadros e as esculturas que representam uma “existência”, uma pessoa
viva, nem em dor nem em alegria, nem em aflição e nem em satisfação.
Viva. Existente. A pessoa ali representada (Berenson frisa o ineloquente
principalmente em Piero Della Francesca) não nos comove nem pela
beleza, nem pelo mistério, nem por nada de adjetivo. Comove-nos porque
existe. Porque está ali.
Todo grande artista tem suas figuras “ineloquentes”. Alguns
pastorinhos que Portinari pinta agora neste ano de 1955 têm essa graça
ineloquente de pura existência e mesmo em sua obra antiga vamos
encontrar essas figuras “clássicas”, como no quadro Festa de São João. Na
extrema direita, absorta, um negrinho enganchado na sua ilharga direita
mas sem prestar atenção a ele ou a qualquer coisa que seja, há uma garota
de laço de fita que quase respira, desatenta ao quadro e a tudo mais, cheia
da suficiência perfeita dada pelo existir, pelo estar ali.
DETALHE DE FESTA DE SÃO JOÃO, 1936-1939
Tranquila, viva, essa menina é um belo exemplo do Ineloquente, de Berenson, na obra de
Portinari.
Casamento de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami, de Jan van Eyck, pintado em 1434.
National Gallery, Londres.
Detalhe de Casamento de Giovanni Arnolfini e Giovanna Cenami de Jan van Eyck.
O LULU E A CANINIDADE
b As moscas zumbiam sobre esse ventre pútrido / De onde saíam negros batalhões / De larvas,
que escorriam como um espesso líquido / Ao longo desses vivos andrajos, / Tudo descia, subia
como uma onda, / Onde se arremessavam, crepitando; / Podia-se dizer que o corpo, intumescido
de um sopro vago, / Vivia, se multiplicando.
O ARTISTA E A LIBERDADE
O FALSÁRIO
O MAU ARTISTA
Mas mesmo um mau artista, disse Portinari, prefere fazer o seu trabalho.
Ainda que ruim um trabalho artístico encontra ressonância em certo
número de criaturas.
— Não deixa de ser uma pena que assim seja – disse eu. — A
ressonância do mau artista, do artista que faz arte fácil, prejudica o
verdadeiro artista e a verdadeira arte.
— Ah, claro, e eu não estou me referindo a esses sem-vergonhas. Estou
falando no artista sincero, mas .que cria mal. Não estou falando em
penetras.
Muito acadêmico de hoje em dia descobriu que há gente que aprecia
arte “antiga”, no sentido copista, acadêmico, como aprecia bonde de burro,
polainas, ou qualquer coisa irremediavelmente do passado, gente que
procura em verdade a segurança do ventre materno. Querem formas fixas,
que não deem trabalho – e que dão dinheiro. São os penetras e Portinari os
detesta. Um dia lhe disseram que um desses pintores tinha feito mil contos
num ano.
— Isto não é vantagem, disse Portinari. O Matarazzo fez muito mais.
JESUS E GILBERTO FREYRE
O dinheiro do artista deve dar para o artista viver, acha Portinari. É claro
que como todo o mundo o artista gosta de viajar e de adquirir coisas e
facilidades. Mas não é artista se for atrás desse dinheiro extra
sacrificando, seja lá em que for, sua liberdade de artista. E defende
qualquer aspecto dessa liberdade, em sua própria obra, com uns ciúmes de
leoa com a cria entre as garras.
— Outro dia o Gilberto Freyre estranhou que eu, pintando no Brasil,
fizesse um Jesus louro, em Batatais. Acontece que eu estou mais de acordo
com Gilberto Freyre do que ele mesmo, que vive a dizer que no Brasil há
de todas as raças e que ainda estamos em caldeação. Então deve haver
gente loura também. Precisamos não sair à frente do resultado.
MENINO JESUS DE BATATAIS [1952]
“Outro dia o Gilberto Freyre estranhou que eu, pintando o Brasil, fizesse um Jesus louro, em
Batatais. Acontece que eu estou mais de acordo com Gilberto Freyre do que ele mesmo, que vive
a dizer que no Brasil há de todas as raças e que ainda estamos em caldeação. Então deve haver
gente loura também.”
“E AGORA, MARIA?”
MORRO [1933]
Primeiro esboço para o quadro Morro.
DESPEJADOS [1934]
Sua pintura daqueles tempos é um protesto contra essa falta de intimidade que existe entre nós e
aquilo que se chama realidade brasileira. É um clamor contra o fato de ainda estarmos tão
superpostos à paisagem e não vitoriosamente fincados nela como estão os pés dos pretos, dos
caboclos, dos tapuias, dos cafuzos, dos curibocas e dos imigrantes.
O CAOS E O COSMO
MORTE DE DEUS
Foi numa de nossas conversas sobre a sua infância e sua ideia de Deus
que Portinari entrou em cheio sobre esse assunto do declínio da arte. É
como se ele achasse que a arte era um meio de ligar o homem ao
sobrenatural e que quando o homem deixa de crer no sobrenatural não
precisa mais da arte. Esta ficaria assim como uma ponte sobre um rio que
tivesse uma só margem. Me disse ele:
— A primeira vez que eu ouvi falar mal de Deus foi quando eu já
estava aqui no Rio, na Escola de Belas-Artes. Foi o Manuel Faria que eu
ouvi zombar de Deus. Passei meses sem chegar perto dele. Eu não disse
nada, não briguei com ele mas evitava a todo custo a sua companhia. Até
hoje não gosto de ouvir falar mal da religião como não gosto de anedota
pornográfica. Acho que o sujeito que tem uma religião é muito mais feliz.
Quando cheguei a Paris eu ainda acreditava em Deus, ainda não tinha
deixado de pensar em Deus. Eu me lembro de dizer a mim mesmo, lá, que
afinal de contas só tinha um quarto e minha vida artística, portanto Deus
não ia permitir que eu caísse doente.
ARTE E CIÊNCIA
E foi – como vejo em minhas notas – emendada nesta frase que Portinari
me disse:
— Para a gente dar mesmo nome aos bois, devíamos hoje em dia
chamar a arte de ciência e a ciência de arte. A ciência antigamente era
pequenininha, bem-delimitada. A arte era o mistério, o vago, o grande.
Agora, acontece o contrário, a ciência de hoje é que é imensa e misteriosa.
Arte se aprende.
— Você preferia ser um biologista a ser pintor?
— Não, isso não, eu prefiro ser pintor mesmo, mas o período áureo da
pintura ficou para trás.
Portinari tenta projetar esse seu inexplicável desencanto para fatores
externos, como os que atrás mencionamos: o fim dos nobres, dos duques e
príncipes que compravam quadros para régios presentes, que adornavam
seus palácios e que se faziam retratar – a ausência da fotografia etc. Mas
Portinari sabe muito bem que o fim do mecenato dos nobres foi um alívio.
Esses nobres eram frequentemente ignorantes e caloteiros. Ficavam até
devendo galinhas a Camões, como aquele d. Antônio, senhor de Cascais,
que tendo ao poeta “pro-metido seis galinhas recheadas por uma copla que
lhe fizera, lhe mandou por princípio da paga meia galinha recheada” e a
quem Camões admoestava com grandes cuidados, temeroso de perder o
preço da copla:
Cinco galinhas e meia
Deve o senhor de Cascais;
E a meia vida cheia
De apetite pera as mais.
O DEMOISELLE E A CEIA
Mas Portinari sabe de tudo isto. E sabe sem palavras, sabe manejando
sem parar suas tintas. Não pintaria com aquela fúria e não se transformaria
tanto como pintor se não acreditasse na arte.
E, principalmente, não estaria tão em paz consigo mesmo. No seu
apartamento do Leme, relembrando sua vida e discorrendo sobre tantos e
tantos quadros que espalhou por museus, por edifícios públicos e por salas
de visita de tantos países, Candido Portinari me dava a impressão de um
patriarca a inventariar numa conversa de roça os filhos que semeou pelo
mundo – desde aquele primeiro filho de todos, pintado num banheiro da
rua Marquesa de Santos. E como acontece que Portinari, enquanto posava
para este retrato que aqui está, pintava sua série de pastorinhos com seus
lanzudos borregos, completava-se ainda mais a ideia da paz em que vive.
É como se, enquanto descansa dos trabalhos monumentais, ele realmente
apascentasse seu rebanho, como um patriarca, daqueles que benzia
Camões já desiludido das aventuras do mar:
Ditoso seja aquele que alcançou
Poder viver na doce companhia
Das mansas ovelhinhas que criou!
(Leblon, maio de 1955)
MENINO COM CARNEIRO, 1953
“Ditoso seja aquele que alcançou / Poder viver na doce companhia / das mansas ovelhinhas que
criou!”
segunda parte
“Na tela, e gigantescos murais,
Foi o primeiro a colorir
Nossos problemas sociais!” c
cDo samba-enredo “Candido Portinari”, de Ailton Furtado e Mário Pereira, feito para o desfile de
carnaval da Escola de Samba Império da Tijuca, 1968.
O RETRATISTA RETRATADO
O casal Portinari no ateliê da Lapa, na rua Teotônio Regadas, Rio de Janeiro, 1932.
Falando sobre um crítico que disse que a sua pintura religiosa não é
religiosa, Portinari disse:
— Nem eu sei se sou religioso quanto mais ele.
Às vezes era a pura reminiscência, enquanto o pincel corria pela tela:
— Nunca dei para o serviço público, mas aí por volta de 1923 fui
professor de “bê-á-bá” da Prefeitura. Quem me nomeou foi o professor
Antônio Carneiro Leão, que era o secretário de Educação. Minha primeira
escola foi na Praça Onze. Depois fui para Botafogo, onde tive uma classe
só de meninos. Eram uns desordeiros terríveis.
— Que é que você fez?
— Chamei a polícia. Moralizei a classe.
Pela mesma época Candinho foi nomeado pintor de carro fúnebre, em
Niterói, mas não chegou a pintar nenhum coche. Chegou, isto sim, a
desenhar cartões para várias casas comerciais. Lembra-se ainda dos
dizeres de um que fez para a Casa Gomes:
E Candinho:
— Cézanne uma vez levou noventa e seis poses para fazer um retrato e
no fim disse: “O colarinho agora está bem.”
Afinal o retrato ficou pronto – e até mais cedo do que devia. Por mais
que eu continue visitante da casa, como uma espécie de Boswell ou
Eckermann de Candinho, não vou lá com a regularidade dos tempos do
retrato, e portanto não vejo crescer dia a dia a obra de Portinari. Dia a dia
não é força de expressão. A vida de Portinari é pintar. Pintar e falar, mas
quase sempre fala de pintura. É invariavelmente uma experiência
perturbadora entrar no pequeno estúdio do Leme e ver Candinho como um
Ali Babá em sua caverna, a mergulhar as mãos em gavetas e gavetões,
atrás de portas e de cavaletes e espalhar os tesouros por ali. São painéis em
que um horizonte de café verde empurra ao primeiro plano homens que
colhem milho. São maquetes de trabalhos em mosaico onde um Cristo
crucificado moderno e brasileiro traz ainda ao espectador toda a piedade
dos Cristos de Bizâncio e de Ravena. São os desenhos a lápis trabalhados,
numerosos e complexos que lembram afrescos. É o Nordeste de retirantes
dolorosos ou pastorinhos preguiçosos; a Amazônia da caça a forquilha; o
bandeirante na mata, que o pintor com máxima economia e quase nenhum
detalhe fisionômico mostra ao mesmo tempo como rude e assustado; o
Jeca de São Paulo, no casamento e na morte; o vaqueiro, o plantador de
tudo quanto há, as bandinhas de pretos. Duvido que um pintor tão puro,
isto é, tão fiel à arte do pintor e portanto tão pouco literário ou anedótico
(veja-se a pura disciplina pictórica e o triunfal arranjo de cores que é A
chegada de d. João VI à Bahia) tenha ilustrado a vida de um país mais do
que Candido Portinari tem ilustrado o Brasil.
E agora, senhor da sua técnica, Portinari retoma alguns temas muito
seus para verrumá-los, aprofundar-lhes as ranhuras, desintegrá-los. O
melhor exemplo dessa sua busca está no tratamento que dá agora ao seu
Morro, tema que explorou num quadro de 1935, que se encontra no Museu
de Arte Moderna de Nova York. No primeiro dos desenhos posteriores de
“morros” a paisagem do Morro de 1935 ainda marca vivamente a sua
presença. O Rio continua perfeitamente identificado em Copacabana,
Corcovado, Pão de Açúcar. Marias de lata d’água na cabeça estão
graciosamente salpicadas pelos vários planos, numa primeira sugestão dos
desenhos carajá (mulheres feitas de dois triângulos conjugados e cabelos
ao vento) que vão aparecer com mais força e frequência em outras
representações do morro. A seguir, num outro desenho, uma apara de lua
garante ainda um fundo de paisagem. Depois, é o morro espectral,
reduzido à sua simplicidade esquelética, a um corte transversal de galerias
em entranha de mina. As criaturas e bichos que o pintor humaníssimo não
dispensa estão ali como fósseis em dobra de rocha, como os bichos e
criaturas petrificados em Pompeia.
Aliás, eu gostaria aqui de frisar que nos retratos, nas favelas, como não
importa em que, a pintura de Portinari tem uma qualidade de música de
Bach: podia continuar indefinidamente. Portinari simplifica, aprofunda,
complica, volta à tona do seu assunto ou nele se submerge com a pura
alegria da criação. Ele acaba os quadros porque está há muito tempo
convencionado que tais coisas chegam ao fim. Mas é a vida que ele pinta e
essa não acaba.
A vida imita a arte, sem dúvida. Mas é preciso que essa arte que a vida
vai imitar seja, no instante da sua criação, vida estuante e genuína, vida,
mesmo. O que quer dizer que a vida imita a vida. Arte de segunda ordem
ela não imita nunca.
Portinari com seus amigos escritores: Graciliano Ramos, Pablo Neruda (à esquerda) e Jorge
Amado (à direita), Rio de Janeiro, agosto de 1952.
A MORTE
FUMO [1938]
Estudo para pintura mural Fumo, Ciclos Eonômicos, Palácio Gustavo Capanema, Rio de
Janeiro. “Portinari tinha especial simpatia pela arte muralista. Perdia-se no gabinete de estudo
lendo a experiência dos antigos, e, na oficina, tentava o contato das tintas com a parede: o
afresco, a têmpera e outros processos disputavam-lhe o tempo, concorrendo com a pintura de
cavalete.” (Celso Kelly, Portinari: quarenta anos de convívio)
Mas alguns de seus poemas têm um genuíno sopro lírico e outros uma
pura nota trágica. É o caso de:
OS INVENTARIANTES
Os inventariantes pedirão conta dos cílios
Apedrejados. Das madeiras inertes e dos cabelos
Perdidos e dos egoísmos. Das penas das aves
Das chuvas inúteis. Dos furacões e dos ventos
Dos espaços perdidos. Das lágrimas secas
Dos carvões em brasa e das fogueiras de São João.
Das violetas sob a terra nos cemitérios
Das cores claras das moças morenas
Das gotas d’água afundadas nas pedras. Dos laranjais
Sem laranja e das malvadezas. Das águas constantes
Da lepra. Quem responderá? Os inventariantes quererão saber
Dos feios e dos pequenos funcionários que estão sempre
Nas filas, filas de caixões de defunto. Filas das prestações.
Nas filas dos hospitais, filas dos sofrimentos de arrancar
Dentes, de arrancar o olho e transfusões de sangue com água.
Nas filas do leite com água e nas filas de pedir água.
Nas filas intermináveis da morte que não chega…
Pedirão conta do lodo. Das espadas brancas. Dos cães amedrontados
Dos pés estragados, dos dedos perdidos. Da nave morta e
Repelida, cheia de gente viva. Dos fornos queimados vivos,
Queimando crianças com flores e velhos com sonhos
Mulheres antigas e jovens… Pedirão conta das
Solteironas. Dos frutos podres que os meninos não comeram
Dos que engendram a maldição. Dos cheiros misturados.
Dos fogos perdidos. Das meninas feias morando distante
E chegando na luz da aurora. Pedirão conta dos
Moirões queimados e das angústias. Dos ninhos de joão-de-barro
Das areias estéreis. Da malária. Da ameba. Das sezões. Dos
Sarampos. Das tosses compridas. Das seriemas.
Dos meninos caolhos e barrigudos. Dos estropiados.
Dos espinhos. Das borboletas refletidas n’água estagnada.
Das gotas de sangue desconhecidas. Dos urubus tristes e
Malqueridos. Das moças sem dentes e sempre grávidas.
Das manchas amarelas nas pedras. Ouvirão os horizontes fugidios?
Pedirão conta dos gritos sem eco. Das fomes mortas.
Das estradas azuis. Das nascentes nas montanhas.
Dos ruídos à toa. Das almas mortas sem destino.
Dos enfartes no silêncio dos campos. Pedirão conta
Dos silêncios intermináveis. Dos pobres assassinados e dos
Assassinados a machado. Dos desastres e trilhos enferrujados.
Das porteiras cantadeiras e solitárias. Das portas abandonadas
Das tristezas vagando. Dos escorpiões e viúvas-negras só
Conhecidas dos pequeninos… Pedirão conta da
Erva nascida do sopro da inocência…
Ou esse delicado cromo das porteiras que rangem em tantas das suas
recordações do tempo em que
Eu lidava mais com os
Bichos, as árvores, as águas,
O céu estrelado e o vento.
Também com a minha botininha e o meu
Chapéu: existirão ainda?
Não que pudesse ter sido particularmente feliz sua infância simples de
menino pobre, não se tratava disso. Era a infância como estado, quase diria
como substância que fascinava apaixonadamente Portinari. Creio que não
o vi uma única vez em que não houvesse alguma menção de Brodowski,
dos pais ou da avó. O último quadro que completou eram meninos de
Brodowski armando arapucas. E seu mais belo texto de prosa foi uma carta
que, jovem ainda, o bolsista em Paris escreveu para um amigo, evocando
um tipo popular de Brodowski, o Palaninho:
… Só tem um dente. Usa umas calças brancas feitas de saco de farinha de trigo cheias de
remendos escuros de pano listrado; ainda se nota o carimbo da marca da farinha. Embaixo ele
amarra as calças com palha de milho para não apanhar lama – não usa botina dia de semana.
… Palaninho vai calçado de botinas de elástico – ele fura um buraco do lado do joanete. As
calças ficam engastaiadas nas botinas. Só usa colarinho, não se ajeita com gravata. Palaninho
é beira-córrego e dono d'um sítio. … Honesto por necessidade acredita em Deus e em todos
os santos porque tem medo. … Vim conhecer aqui em Paris o Palaninho, depois de ter visto
tantos museus e tantos castelos e tanta gente civilizada. Aí no Brasil eu nunca pensei no
Palaninho. Apesar de eu ter sangue de gente de Florença, cidade que Romain Rolland diz: …
“febril, orgulhosa…, onde cada um era livre e onde cada um era tirano… onde era esplêndido
viver e onde a vida era um inferno…” eu me sinto um caipira. Daqui fiquei vendo melhor a
minha terra – fiquei vendo Brodowski como ela é. Aqui não tenho vontade de fazer nada. Vou
pintar o Palaninho, vou pintar aquela gente com aquela roupa e com aquela cor. Quando
comecei a pintar senti que devia fazer a minha gente e cheguei a fazer o Baile na roça.
Depois, desviaram-me e comecei a tatear e a pintar tudo de cor. … A paisagem onde a gente
brincou a primeira vez e a gente com quem a gente conversou a primeira vez não sai mais da
gente e eu quando voltar vou ver se consigo fazer a minha terra. Eu uso sapatos de verniz,
calça larga e colarinho baixo e discuto Wilde, mas no fundo eu ando vestido como o
Palaninho e não compreendo Wilde. Tenho medo da polícia, ando com os papéis sempre em
dia e tenho medo de gente que tem emprego vitalício. Tenho saudades de Brodowski –
pequenininha, duzentas casas brancas de um andar, no alto de um morro espiando para todos
os lugares… com a igreja sem estilo, com uma torre no centro e duas pequenas dos lados,
com o altar que eu fiz…
ANTONIO CALLADO
(trechos de artigo publicado em IstoÉ, 14 abr. 1982)
Quem quiser saber mais sobre Candido Portinari e sua obra pode consultar a homepage do
Projeto Portinari: http://www.portinari.org.br.
Lista das obras de Portinari
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