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Edição 01, Setembro de 2021

Edição no 01
Setembro, 2021

Colibri - Revista Literária 1


Edição 01, Setembro de 2021

O PRÉMIO

Que dia feliz.


A névoa dissipou-se cedo. Pus-me a trabalhar no
jardim.
Colibris estacaram sobre a madressilva.
Nada sobre a terra que quisesse possuir,
Ninguém sobre a terra que eu pudesse invejar.
Todo o tanto que sofri, esquecido,
Não tinha já vergonha do homem que fui.
Não me doía o corpo.
Ao endireitar-me, vi o mar azul e as velas.

Czeslaw Milosz

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Edição 01, Setembro de 2021

ÍNDICE

Carta de Maputo 5
As prosas do Vesúvio: 6 O Mal, de Christian Bobi
Planeta Inédito 9 Seis poemas da Gaelle Istanbul
12 Três poemas de PLANETA, de José Ricardo
Nunes
As prosas do Vesúvio 14 A solidão de Shakespeare, um ensaio de
Rafael Argullol
Caderno de Imitações 20 Mark Strand
Avançar pelas Costas 23 Havia duas moscas, de José Angel Valente
Ler o olhar 25 Ídasse e a Nudez da Pedra
Diálogos: Maputo/ Mar 28 António Cabrita, Fausta Cardoso Pereira
Flamingos 32 Os Arremessos contra a Erosão: David Bene,
Mélio Tinga e Venâncio Calisto
Poética/Entrelaces 35 Mélio Tinga/ David Bene + Nimrod
Neves do Kilimanjaro 39

Ficha Técnica

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Edição 01, Setembro de 2021

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Edição 01, Setembro de 2021 CARTA DE MAPUTO

Carta De Maputo 1

Porquê colibri, em terra onde não os visão, no entanto, é muito apurada. Além
há, perguntar-se-ão os desprovidos de de poderem identificar cores, os beija-flores
imaginação. E sobrevém a fadiga por ter são dos poucos vertebrados capazes de
de explicar o evidente: só o invisível (o que detectar cores no espectro ultravioleta.
ainda não foi designado) traz qualidades ao A alimentação dos beija-flores é baseada
visível, é a sua anti-matéria, só a consciência em néctar (cerca de noventa por cento) e
do que está longe dá valor ao que nos é artrópodes, em particular moscas e formi-
próximo e ainda não atingira o seu realce . gas.
Estes cadernos são o orgão de um Os beija-flores são poligâmicos.
escritor. Vamos supor: os seus pulmões, o As magníficas cores dos colibris não são
pâncreas, os rins. Coloquemo-los sobre a devidas a pigmentos mas à interferência
banca. Eis a prova de que não está descar- dos raios luminosos na estrutura prismáti-
nado. Pulsam, centrífugos. No movimento ca das formações pilosas das penas que
contrário ao de uma autópsia: esta retira os decompõe o espetro solar.
orgãos do corpo, estes cadernos mostrarão A postura é de dois ovos que originam
o que compõe morfologicamente o “corpo borrachos nus e cegos, mas com cresci-
subtil” (outros lhe chamarão espírito) de mento rápido. Deixam o ninho ao fim de
um escritor e o alimenta, as suas leituras e vinte e dois ou vinte e quatro dias de vida. A
descobertas, as gratificações que lhe nutrem primeira plumagem, visto não chegarem a
o afecto ou as consternações. ter penugem, é idêntica à dos adultos.
Não é um clube interdito a lombrigas & Como não perceber que é tudo o que
supositórios, mas só se entra por convite. convém a um poeta de natureza atreita à
Ensaiaram-se vários nomes, “cadernos localização dos lagares? Que gosta de andar
do agrafo”, “suite flamingo”, “construções ao relento e de sondar com a sua língua
portuárias”, e de repente leio sobre o colibri: bifurcada ventos e poros alheios.
os colibris são os únicos pássaros que A língua bifurcada de quem sonda outros
podem voar para trás e para a frente. níveis de realidade, o inaparente sob as
Entre as características distintivas do aparências, o que possa desvelar o cerne.
grupo contam-se o bico alongado, a Sabendo que quem anda à chuva se molha,
alimentação à base de néctar, oito pares de mas solidário com as sementes na terra.
costelas, catorze a quinze vértebras cervi- Quase tudo um preço: nós traficamos
cais, plumagem iridescente e uma língua colibris.
extensível e bifurcada.
Tal como a maioria das aves,o olfato não António Cabrita, Maputo
está muito desenvolvido nos beija-flores; a

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AS PROSAS DO VESÚVIO Edição 01, Setembro de 2021

O MAL
uma tradução inédita
de Christian Bobin

Isto anda mesmo tudo ligado, eu tinha acabado de prisões como um calmante. Ela está em permanên-
escrever, durante o longo tédio de vigiar um exame: cia em certos pavilhões dos hospitais psiquiátricos.
«A astúcia com que Perseu fez uso do espelho e do É nestes espaços que ela se sente em casa: não se
seu reflexo para ver a Medusa sem precisar de cruzar olha para ela, não a escutam, deixam-na em babo-
o seu com olhar petrificador da Gorgone, é ainda seiras no seu canto, colocando à sua frente aqueles
hoje o artifício através do qual olhamos o mundo. A que não se sabe muito bem o que fazer com eles.
televisão é o espelho de que fazemos uso. Mas esta Os dias, quer nos hospitais quer nas prisões, são
esperteza encortiçou-nos o coração. Afastados do mais longos que os dias. É necessário que passem.
risco, habituámo-nos a prescindir da reciprocidade e Fazem-na guardar os inválidos mentais, os prisio-
da compaixão com que acolhíamos a dor alheia, e se neiros, os velhos nos asilos. Ela tem infinitamente
isso nos permite sobreviver, por outro desmobiliza- menos dignidade que estas pessoas, avassaladas
nos, anestesia-nos a sensibilidade. Resta saber a pela idade, feridas pela lei ou pela natureza. Ela
que ponto nos aviltou a televisão, pois a cabeça da está-se perfeitamente nas tintas para essa dignidade
medusa, mesmo decapitada, transformava em pedra que lhe falta. Ela contenta-se em fazer o seu traba-
quem os olhava e isto prometia ser pela eternidade. lho. O seu trabalho é o de sujar a dor que lhe é
Adivinharam, a cabeça da medusa continua viva confiada e aglomerar tudo – a infância e a desgraça,
no ecrã. a beleza e o riso, a inteligência e o dinheiro – num
Temos de voltar a abordar de frente o monstruoso único bloco vidrado e viscoso. Chamamos a isto
para, correndo o risco de nele nos perdermos, recu- uma janela para o mundo. Mas é mais que uma
perarmos a vulnerabilidade que nos impele à cora- janela, é o mundo em bloco, o mundo como
gem de agir face aos problemas, em vez de nos man- piolheira desatada, os detritos do mundo entorna-
termos contristadamente informados sobre eles.» dos a cada segundo na carpete do salão. Claro que
Chego a casa e a Teresa (Noronha) passa-me esta podemos escavar. Encontramos por vezes, sobretu-
tradução. Tinha lido o texto e sentiu-se incapaz de do nas primeiras horas da noite, as palavras novas,
não o traduzir. os rostos frescos. Mas se nas descargas é possível
Aqui fica pois o capítulo de L’Inespérée. pôr a mão em verdadeiros tesouros, não serve de
E como ninguém escreve como ele, calo-me. AC nada tentar repescar alguma coisa lá dentro, os
caixotes do lixo chegam muito rapidamente, os que
os manipulam são muito rápidos. Metem pena,
estas pessoas. Os jornalistas de televisão fazem
O MAL pena com a sua falta completa de inteligência e de
coração – esta doença dos tempos que eles contraí-
Ela é suja. Mesmo limpa, está suja. E cobre-se de ram, herdada do mundo dos negócios, falem-me
ouro e de excrementos, de crianças e de panelas. E de Deus e da vossa mãe, têm um minuto e vinte
reina por toda a parte. Ela é como uma rainha segundos para responder à minha questão. Um
gorda e suja que já não tem mais nada para gover- amigo vosso, um filósofo, passa um dia lá dentro,
nar, tendo já invadido tudo e a tudo contaminado na vitrina engordurada de imagens. Pedem-lhe que
com a sua sujidade natural. Ninguém lhe resiste. venha para falar do amor, e porque têm medo de
Ela reina em virtude de uma atracção eterna pelo alguma palavra que possa levar mais tempo, medo
que é baixo, pelo negro dos tempos. Ela está nas que ele chegue a algum lado (porque é necessário a
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todo o custo que não se passe nada de confuso e de assunto, depressão na Bretanha, bom tempo na
desesperado) – quer dizer menos que nada – por Córsega. E então’ então o que fazer com a velha
causa deste medo convida-se igualmente vinte golada de imagens, ávida de moedinhas? Nada.
pessoas, especialistas disto e daquilo, vinte pessoas Não é preciso fazer nada. Ela ali está e não se mexe-
o que significa três minutos por pessoa. A rá nunca mais. Um mundo sem imagens é a partir
vulgaridade, diz-se às crianças que está nas de agora impensável. Haverá sempre jovens dinâ-
palavras. A verdadeira vulgaridade deste mundo micos para as servir, para fazer os negócios sujos
está no tempo, na incapacidade de o despender de no teu lugar, no lugar de todos os outros, em nome
doutra forma senão como moedas, depressa, de todos os outros. É preciso lograr que o baixo vá
depressa, ir de uma catástrofe aos algarismos da até ao fundo, deixar a decomposição orgânica do
inflacção, depressa depressa passar para as mundo prosseguir. Está quase a terminar, está
toneladas de prata e da ininteligência profunda da quase no fim, não devemos sobretudo reparar no
vida, do que é a vida na sua magia sofredora, que se tolda – é melhor colocar uma base de tinta
depressa depressa corramos para a hora seguinte e nas maçãs do rosto da morta. Deixar proliferar as
que sobretudo nada aconteça, nenhuma palavra imagens cegas: qualquer coisa vem à superfície,
certa, nenhum espanto puro. E o vosso amigo, após qualquer coisa vem ao nosso encontro. Existe na
a emissão, inquieta-se um pouco, porquê tanto dor uma pureza infatigável, a mesma que na
ódio do pensamento, esta mania de triturar tudo alegria, e esta pureza está em marcha por baixo das
tão fino, e a realizadora dá-lhe esta resposta, toneladas de imaginário congeladas. Enquanto
magnífica: estou de acordo consigo, mas é melhor esperamos, as imagens verdadeiras, as imagens
que seja eu a estar neste lugar, porque se fosse puras de verdade encontram abrigo na escrita, na
outro seria bem pior. Esta frase recorda-me os compaixão da solidão daquele que as escreve.
dignatários do Estado Francês durante a segunda Velibor Colie, por exemplo. Um escritor jugoslavo,
guerra mundial e na legitimidade que se atribuía que sem usar imagens belas, diz apenas o que vê,
aos virtuosos funcionários do mal: era necessário tão simples como isto. Ele relata um acontecimento
tomar conta das deportações dos judeus de França, passado em Modrica, na Bosnia Herzgovina, no dia
isso permitia-lhes salvar alguns deles. A mesma 17 de Maio de 1992. E na sua forma simples trans-
abjecção, a mesma colaboração com as forças do forma-o em algo que é eterno. Ele vê na singulari-
mundo que arruínam o mundo, a mesma falta dade de um lugar e de um acto o que há eterno no
absoluta de bom senso: há lugares que é melhor mundo desde o início dos tempos, o que te permite
deixar desertos. Há actos que não se podem come- ler sem que a coragem desapareça, sem que tu te
ter sem se ser imediatamente desfeito por eles. A interrogues a dado momento: para que serve isto, e
televisão, contrariamente ao que ela diz de si concede-te o tempo necessário para que a frase
mesma, não dá nenhuma notícia ao mundo. A acabada de escrever entre no teu espírito, forman-
televisão é o mundo que se afunda no mundo, um do um sentido. Lemos: “O cigano Ibro ganhava a
golfo de choraminguice avinhada, incapaz de dar sua vida vendendo cartão, papel velho e garrafas
uma única notícia clara e compreensível. A televi- vazias. Ele possuía uma carroça desengonçada e
são é o mundo em horário completo, transbordan- várias gerações de habitantes de Modrica ouviam
do de sofrimento, impossível de ver nestas condi- nas primeiras horas do dia o célebre pregão “Trans-
ções, impossível de entender. Tu estás ali, no teu portes de todo o género. Carrega-se mortos e vivos”.
sofá ou diante do teu prato, e atiram-te com um Ele vivia numa estranha chaminé, numa rua próxi-
cadáver seguido de um golo de um futebolista e ma à Casa de Saúde. Tinha uma mulher surda-mu-
abandonam-vos aos três, à nudez da morte, ao da e um filho de quinze anos, débil mental. No dia
rosto do jogador e à tua própria vida, já de si tão 17 de Maio, quando a armada serva entrou definiti-
obscura, cada um largado no seu cantinho do vamente em Modrica, o cigano Ibro recusou-se a
mundo, separados após terem sido assim tão fugir, embora fosse muçulmano. Não tiveram pieda-
brutalmente ligados – um morto que nunca acaba de dele. Os soldados servos cortaram-lhe a garganta,
de morrer, um jogador que não pára de levantar os assim como à sua mulher e ao seu filho e, como no
braços, e tu que não deixas de procurar o sentido “tempo dos Turcos”, plantaram as suas cabeças na
de tudo isso, mas já passou, já estamos noutro paliçada da cerca à volta da casa. Segundo o que nos
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contaram testemunhas, ele tinha, sobre a mesa, no elemento primordial. A inteligência é a força,
pátio, uma garrafa de raki e café acabado de fazer... solitária, de extrair do caos da sua própria vida
Para acolher os militares, no caso de eles virem.” Ao uma mão cheia de luz suficiente para iluminar um
lermos isto podemos ver tudo, ele, a mulher, o pouco mais longe do que nós próprios – na direc-
filho, a hílare jovialidade dos assassinos, as cabeças ção do outro além, como nós perdido no escuro.
espetadas e o café ainda quente. A televisão talvez Eu transmito o sentimento, diz a televisão, e não
tivesse mostrado o café, mas insistiria sobretudo temos a coragem de lhe mostrar o abismo que
nas cabeças, com um prelúdio do género: existe, entre o sentimento e a pieguice. Não sou eu,
“hesitamos em mostrar-vos”, e passariam logo diz a televisão, ao fim e ao cabo é o povo, eu faço o
adiante porque há mais coisas para mostrar: que o povo quer – e não podemos senão calarmo-
depressão na Córsega, bom tempo na Bretanha. E -nos diante do analfabetismo grave da televisão e
tu ficarias ali, sentado na tua casa de jantar, dos que a fazem. Na palavra do povo correm as
estúpido com as três cabeças em cima da mesa. Ao mais belas expressões da língua francesa. Ela diz a
contrário, na escrita, está tudo – e a pureza trágica falta e o entontecimento, a nobreza dos indigentes
do tudo: a hospitalidade concedida aos assassinos. sob a incúria dos nobres. Fala exactamente o
O mal da televisão não está no que a televisão é, contrário do que diz a televisão. E por ora ficamos
está no mundo, e se os confundimos, é porque eles por aqui: a dor chega esfomeada nos braços da
não fazem mais que uma massa perdida, sofredora. televisão que a enroupa imediatamente nos seus
O mal do mundo está lá, desde sempre, no recusar braços sem previamente a alimentar – escutar ou
da hospitalidade, primeiro fogo sagrado da história vê-la. Então ela volta a partir, a dor, e procura um
humana, antes mesmo do surgimento de Deus. É o direito de asilo na tinta antes de o encontrar um dia
mal do mundo e é o de que sofre a louca investida na igreja das imagens – porque tenho a certeza: um
das imagens: não conseguir captar um mínimo da dia haverá um homem suficientemente inteligente
vulnerabilidade da dor, desconhecer as leis elemen- para saber filmar uma garrafa de raki e um café
tares da hospitalidade que mandam que se dê de acabado de fazer, e este homem aceitará tranquila-
beber a quem vem de longe. Eu distraio, diz a mente perder o seu tempo, dizendo apenas o que
televisão, e há muito que deixou de nos fazer rir. tem a dizer e depois calar-se-á, porque por vezes é
Não se pode fazer cultura para toda a gente, diz a necessário calar-se para proferir a palavra justa
televisão, e não ousamos responder-lhe que não é – mostrando, demoradamente, simplesmente
um problema de cultura mas de inteligência, o que mostrar, calmamente, uma garrafa de raki e o café
não é seguramente a mesma coisa. A inteligência acabado de fazer.
não tem nada a ver com os diplomas. Ela pode
andar conjuntamente com eles mas não é o seu

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Edição 01, Setembro de 2021 PLANETA INÉDITO

GAËLLE ISTANBUL

Amar um poeta é dar um passo em falso

Se amares um poeta, nada esperes.


O poeta não ama.

O poeta vê, observa e pressente:


a evanescência.
É com isso que se diverte.

das oferendas e das suas sombras


prosa e verso

Repara: o seu coração é uma espécie de dispositivo.


A cada demonstração, um poema.
Várias, um livro.

E tu? A página branca dos passos em falso ou


a transfiguração.

E se, depois deste aviso, não conseguires evitar o amor que lhe tens,
permite-me que te dê apenas um conselho: começa também tu a escrever.
Reúne as tuas forças, sucumbe às evanescências.
Talvez sejas capaz de te salvar - mas, disso, só o poeta é que tem a certeza.

Gaëlle Istanbul
Ponta da Fajã Grande, Açores, 2021

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PLANETA INÉDITO Edição 01, Setembro de 2021

SUBVERSÃO SILÊNCIO MUDO

Na lua a peste Nunca mais


negra negra obscura a tua voz se agrilhoou ao fio
O mar sentou-se lá perto O timbre do teu suor tocou no meu
a fazer de conta que não sabia O ruído do teu peito suavizou sussurros

Correram mil peixes Ficámos lado a lado neste vácuo


para a lua negra revolvendo os finos poros ao tempo
elegantes aves pretas Que marcam as distâncias exactas
e a peste fez da lua dos desencontros
função utilitária
para a fina nata E nesta grande travessia
negra negra outrora rio aberto
Obscura.
estiveste sempre mudo
Gaëlle Istanbul E eu pálida no meu silêncio
Ponta da Fajã Grande, Açores, 2021
Nunca mais o rio
se fez ouvir galhardo
PASSADOS TANTOS ANOS no auge da rebentação.

continuo a não perceber Gaëlle Istanbul


como é que o mar ainda não inventou Ilha das Flores, Açores, 2020
a fuga
o caminho
o troço
o trilho
para chegar a ti
-tantos anos volvidos
desde a separação-
como todos os mortos
regressam a mortos
depois de vivos
em tempo útil
e se reúnem.

Gaëlle Istanbul
Ponta da Fajã Grande, Açores, 2021

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Edição 01, Setembro de 2021 PLANETA INÉDITO

O LEGADO

Eu bem que queria mas não consigo traçar uma curva perfeita para ilustrar o nosso amor
e com isso criar a ponte que me pudesse levar a ti. O primeiro cordão umbilical foi cortado,
é certo, mas o outro desgastou-se.

Temo que não consiga olhar para ti olhos nos olhos sem ver quebrada a vida que tu tão bem enxovalhaste.
E fizeste-o com tal zelo, fizeste-o como tal devoção. Foi ver-te progredir na dobra,
ano após ano como uma eternidade. E por fim, saber-me presente atado
por um fio atirado ao mar. Na extremidade desse fio retesado havia uma pedra.
Foi esse o teu derradeiro cuidado: a pedra.

Desde então, arrasto a pedra para o mar e traduzo a cada onda e quebra de onda, a cada movimento,
a língua os gestos de que foi feito o nosso amor.

Esse cuidado que passa em apneia de geração em geração.

Gaëlle Istanbul
Ponta da Fajã Grande, Açores, 2021

CONTRACICLO

A ilha é um plágio de todo o mal que existe no mundo. É bom escrever


livremente. Nunca soube ser monacal.

O barco resiste e afasta-se do


traçado das marés.

Gaëlle Istanbul
Ilha das Flores, Açores, 2021

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PLANETA INÉDITO Edição 01, Setembro de 2021

Três poemas de PLANETA,


de José Ricardo Nunes

07. 08.

A memória deve ser parecida Aquele Verão em Wiesbaden


com a massa ondulante de plástico teve mais realidade
que esconde, nas notícias, do que todos os Agostos na Foz,
a superfície do mar. E a cada dia cresce, com regresso já depois de extinta a luz.
não há comportamento ecológico Exigirei sempre este último mergulho,
que a possa travar, inevitavelmente de dentro para fora da água.
atiramos tudo para a água. E o meu pai, sem fato e sem gravata,
não se opõe e espera na areia.
Dantes havia mais clareiras
mas então o teu corpo Sei mais verdades sobre Brahms
era apenas o teu corpo, do que aquelas que imagino a meu respeito.
não também a lembrança dele. E eu De Visconti também sei algumas coisas.
desapareço agora quase por inteiro, No documentário, o sobrinho não mente:
já nem sei onde meter ali o rosto, com um mover de mão habituado,
coberto pelos acontecimentos. pediu à irmã para pôr a tocar a Sinfonia n.º 3
Se der com ele é porque chegou ao fim assim que sentiu a morte aproximar-se
o tempo que nunca há-de chegar? com o seu rosto derradeiro.
Comigo não sei como foi.
Apago a televisão e venho até à beira-mar.
Seixos rolam por debaixo dos meus pés. Escrevo isto à pressa numa folha
Arremesso para longe uma garrafa, que a empregada arranca do caderno.
afasto um saco meio derretido. A imagem Logo depois serve-me a comida.
adquire nitidez à medida que enumero Pego no garfo, pego na faca,
e me desfaço do estritamente necessário as minhas mãos tremem.
para obter um metro quadrado Tanta morte extenuou-me.
E oiço dizer a quem se sentou a meu lado
e mergulhar. e se levanta de repente:
almoça com quem estiveste a foder.

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Edição 01, Setembro de 2021 PLANETA INÉDITO

09.

A tartaruga e outro animal qualquer.


Ou nem sequer bichos,
tudo mais simplificado,
imune à quebra das linhas.

Corremos desenfreadamente
para tomar a dianteira
mas é o tempo muito mais
rápido, qualquer um de nós
se atrasa, eu, tu,
o meu pai, o teu antes dele,
as nossas mães.

Desconhecemos a quantas pulsações por minuto


se desencadeia.
Tentamos desfazer o ritmo.
Sabemos que isto se vive em silêncio,
ninguém à escuta
a não ser talvez o meu pai,
antes dele o teu pai.

Todas as coisas mudam de cor


e mudam de forma à tua passagem,
quando passo todos os lugares mudam.

O meu pai, antes dele o teu,


a minha mãe, a tua mãe,
esperam que cruzemos a meta.
A caveira do meu pai,
a mais sorridente,
pendeu para a esquerda.
A tua mãe mastiga ainda
as asas de um anjo.

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AS PROSAS DO VESÚVIO Edição 01, Setembro de 2021

A SOLIDÃO DEPOIS DE SHAKESPEARE


Rafael Argullol/ tradução de António Cabrita

Em 26 de julho de 1990, Anatoly Soloviov e homéricas para descrever a façanha. Mas quem
Alexandre Ba-ladin viveram uma aventura épica, hoje se importa, se a espaçonave Voyager passou
digna dos heróis antigos. Uma semana antes, ou não por Plutão? O precipício revelou-se
tudo parecia perdido quando, durante sete horas, profundo demais para despertar expectativas nas
tentaram, sem sucesso, consertar a escotilha sensibilidades contemporâneas. Neste sentido,
do módulo acoplado à espaçonave Soyuz. A o diagnóstico é retumbante: a Grande Fronteira
sua sobrevivência dependia disso, e, por isso, parece intransponível para as possibilidades
naquele dia, na sua segunda e última tentativa, humanas. Não há sinais que violem o silêncio e,
não poderiam falhar. Para superar a prova, os o que é mais sintomático, desvaneceram-se as
dois cosmonautas tiveram que enfrentar dois esperanças de que possam havê-los, pelo menos em
momentos extremamente críticos. O primeiro termos razoavelmente imediatos. E essa dissolução
ocorreu quando eles, quase a acabar de consertar de ilusões põe, de certa forma, fim a um ciclo
a blindagem térmica do módulo, repararam que iniciado, em primeira instância, pela revolução
estava quase esgotado o combinado respiratório científica do Renascimento e, numa perspectiva
dos seus escafandros autónomos. Consumindo mais próxima, pela projeção técnica do século XIX.
as últimas reservas conseguiram percorrer, com Uma boa parte dos esforços mais substanciais
grande dificuldade, os vinte metros de regresso da ciência moderna foram canalizados para a
até à porta da estação Mir. O segundo foi pior, investigação da Grande Fronteira. A exploração
pois os astronautas, ao chegarem à câmara do território nunca esteve separado da busca
de descompressão, não conseguiram fechar a de respostas e, talvez mais secretamente, da
escotilha. Naquele momento, a comunicação localização de interlocutores. Um único sinal
entre a plataforma espacial e a Terra foi cortada. provindo do além da fronteira teria sido
Por horas, na base de monitoramento, reinou a interpretado como o evento mais insigne de todas
incerteza total. Quando a comunicação foi reposta, as épocas. Assim o reflectiu a imaginação moderna
Soloviov e Baladin puderam anunciar que estavam com a sua ávida necessidade de sugestionar-se
bem. com presenças que viessem justificar a nossa
É, sem dúvida, uma história épica, e o desafio do presença no mundo. Noutras palavras, naturezas
máximo perigo foi superado com decisão. Mas, assimiláveis à nossa natureza, nas quais a nossa
hoje, quem se lembra de Soloviov e Baladin? imagem se pudesse espelhar, para quebrar, assim,
Eles são unicamente um breve artigo de jornal a cansativa sequência de um monólogo perpétuo.
perdido na memória escrita de milhares de outros O drama reside na suspeita, não comprovada mas
artigos, no jornal. É uma história épica que não se não desmentida, de que a Grande Fronteira não
converteu, e possivelmente não se converterá, em esconde um espelho, mas antes um poço sem
consciência de um enredo épico. Ninguém parece fundo. Desacompanhados de qualquer indício de
já interessado em que assim seja. diálogo, a consciência do solipsismo nunca pareceu
Não deixa de ser eloquente o progressivo tão evidente como agora. O homem é um relato
desinteresse nos últimos tempos pela «corrida sem ouvintes, que conta o seu patético e solitário
espacial». Até recentemente, não era esse o protagonismo no mundo.
caso, as primeiras viagens espaciais geraram Mas essa conclusão é o penúltimo capítulo de uma
um entusiasmo público e modernas tentativas história complicada que, como todas as histórias,
14 Colibri - Revista Literária
Edição 01, Setembro de 2021 AS PROSAS DO VESÚVIO

foi inventada pelo próprio homem. Provavelmente Lucrécio, cujo atomismo, herdado de Demócrito,
ninguém duvidaria, hoje, da existência da não expulsa o homem para uma independência
Grande Fronteira e, no entanto, esta é uma ideia face à natureza.
relativamente recente que tem a ver, obviamente, Não obstante, se o tempo de Shakespeare ainda é
com o espaço e tempo mas que, sobretudo, o da «grande cadeia do Ser», ele também insinua
derivará da profunda mudança nas representações o momento da sua ruptura. O legado da cultura
forjadas pela nossa consciência, cuja determinação renascentista começa a mostrar-se em toda a sua
linguística permeou a linguagem coloquial. tensão contraditória, como é testemunhado, pela
Quando nos referimos, normalmente sem primeira vez, nos Ensaios de Montaigne e, em
prestar atenção às implicações dessas palavras, seguida, nos Pensamentos de Pascal. A cosmologia
ao nosso ambiente como natureza inanimada, renascentista, com a sua drástica modificação das
estamos descrevendo a raiz daquela viragem que fronteiras do mundo, cria tendências contrapostas.
nos forneceu as coordenadas actuais da nossa Por um lado, revoluciona a Imago Mundi: graças
existência. às descobertas geográficas ultima a conformação
Esta expressão tão habitual, natureza inanimada, do planeta humano e, graças às novas teorias
acarreta consequências radicais: ao privar qualquer astronómicas, coloca este planeta na periferia de
outra natureza que não a nossa de alma, isto um universo ilimitado. Por outro lado, revoluciona
é, do movimento autónomo, sentenciámos o a auto-imagem do homem, quem, ao mesmo
nosso carácter a ser a única natureza animada tempo, é descrito como «centro do mundo» e
e, associado a isso, impõe-se a realidade de um obrigado a ser habitante daquela periferia.
desfiladeiro insondável entre o nosso interior e os O progressivo abandono da concepção orgânica
círculos inertes do lado de fora. da natureza supõe uma mudança fundamental.
A história da poesia ajuda-nos a localizar o Na atmosfera do humanismo renascentista,
surgimento desse hiato de efeitos decisivos. especialmente nos círculos neoplatónicos, a
Nenhum poeta posterior ao século XVII poderia natureza fora considerada um organismo vivo.
ter escrito como Shakespeare sem ser acusado de De acordo com essa visão, um princípio vital agia
falta de verossimilhança. Se um escritor actual, de forma organizada no seio da sua matéria, de
por exemplo, relacionasse as paixões humanas às acordo com um propósito imanente. Diante disso,
supostas paixões das estrelas, ventos ou moléculas, a nova ciência da natureza, apontada de maneiras
seria justamente acusado de um maneirismo diferentes por Galileu e por Bacon, envolve uma
sem remédio, que lhe minaria todo o crédito visão completamente distinta. A natureza deixa
literário. Ninguém imagina tal cenário como um de ser entendida como um organismo vivo para
campo metafórico para um poeta contemporâneo. se identificar cada vez mais com um mecanismo
Tudo sucedeu pelo contrário com Shakespeare, cujo funcionamento depende de leis universais.
cujo enorme potencial para metáforas deve ser Abre-se, assim, a porta para a concepção moderna
entendido, em grande medida, como resultado da natureza como legalidade dos fenômenos cuja
de uma sensibilidade que está em convergência compreensão científica consegue prever e, de certa
com a consciência de sua época, a qual ligava os forma, dominar o seu desenvolvimento.
fenômenos da natureza humana aos fenômenos Abrindo esta porta, simultaneamente, fechou-se
da todo o cosmos. Na obra de Shakespeare, ainda outra, que deixa para trás a ideia do homem como
se reflete, e em todo o seu esplendor, a «Grande parceiro de uma natureza animada, tal como
Cadeia do Ser», com os seus elos dependentes havia sido esboçado pelas primeiras reflexões
entre si a afectarem-se mutuamente. O estado filosóficas gregas e havia sido reassumido no
do homem, feliz ou funesto, é um estado início do Renascimento. De maneira mais geral:
compartilhado. Não há lugar para uma natureza a concepção mecanicista-legal do mundo coloca
inanimada. Nem parece haver, pelo menos com radicalmente em questão os dois principais fluxos
o radicalismo psicológico moderno, em qualquer cosmogónicos que alimentaram a mente ocidental.
precedente de Shakespeare. Nem em Dante, cujo Aquela que precede das indagações pré-socráticas
mundo concebido com meticulosidade geométrica sobre a physis e aquela outra, de origem plural, que
é infundido pela alma divina, e nem sequer em pressupõe a existência de um princípio criativo.

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AS PROSAS DO VESÚVIO Edição 01, Setembro de 2021

Com respeito a este último, a figura de um Deus essa separação. A progressiva mecanização e
Criador, ou de um Demiurgo, ou de um Arquiteto formalização do conceito de natureza acarreta
Cósmico, deixa de ser uma figura necessária para necessariamente o exílio do homem na sua
ser relegada à função de uma figura possível, mas individualidade racional. O mundo moderno
indemonstrável. A partir desta constatação, um parece instalar-se no seio de uma distância
golpe mortal é desferido tanto à tradição platônica insalvável entre uma natureza desumanizada, que
quanto à tradição cristã e, é claro, àquela outra, tanto pode ser compreendida na sua legalidade
híbrida, que é o resultado da confluência entre físico-matemática quanto dominada tecnicamente,
as duas. Deus converte-se, no máximo, numa e um homem desnaturalizado, que hesita em
fantasmagoria desejável que, talvez, zele pelo considerar-se peça essencial ou um mero acidente
perfeito funcionamento do mecanismo, mas da existência. A ruptura do diálogo torna espectral
cuja presença não é notada em nenhuma de suas a noção de divino. A agonia de Deus na cultura
engrenagens. Mesmo supondo que o criador exista, moderna faz parte dessa paisagem.
a única coisa que realmente conta, do ponto de Daí a sucessão de certos atentados, em contra-
vista do conhecimento, é o desenvolvimento da corrente. O «Deus sive natura» de Spinoza – que
criação. O divino, se pertence a algo, pertence acentua a identificação entre Deus e a natureza - é
à esfera da experiência moral, mas o mundo, um deles, mas está condenado a ser integrado nas
entendido como mecanismo, é indiferente a correntes subterrâneas da civilização moderna. E,
esta experiência. A poesia já pode incorporar o ainda assim, a proposta de Spinoza visa amenizar
simbolismo do homem como figura que vagueia diretamente a ruptura do diálogo entre o homem
por uma imensa praia desabitada. desnaturalizado e a natureza desumanizada,
Ao mesmo tempo, a velha perspectiva imanentista bem como evitar o vertiginoso deslizamento
também é interrompida, desaparecendo o cenário do divino para um ostracismo total. Não sendo
de uma natureza compartilhada, na qual o homem Deus mais que o mundo visto do lado das ideias
talvez tenha se tenha outorgado um lugar de e não sendo o mundo mais do que Deus visto do
destaque, mas, em nenhum caso, separado do lado da realidade, Spinoza concede ao homem a
conjunto do cosmos. Ou, se se preferir, levando possibilidade de viver a multiplicidade da natureza
em consideração a etimologia original da natureza como participante de uma substância única e
como geração, do cosmos sendo gerado do caos. universal.
Seria necessário insistir, a partir dessa apreciação, A influência da posição de Spinoza na última
no facto de que a filosofia antiga que investiga a tentativa generalizada de restituir à natureza a sua
physis, se expulsa os nomes dos deuses, não expulsa dimensão de organismo vivo não é surpreendente.
o divino da natureza. Cornford, entre outros, Quando os românticos «filósofos da natureza»
mostrou com argumentos suficientes até que ponto atacam, ao mesmo tempo, o racionalismo
a busca do arché pelos pré-socráticos se deve às cartesiano e a física newtoniana, a verdade é que
teogonias poético-míticas precedentes de Homero perseguem, para além do ritmo contrário aos seus
e Hesíodo. A cosmogonia filosófica é herdeira propósitos de experimentação científica, uma
da teogonia poética por meio de um processo de esfera de reabertura do diálogo extinto. Tão pouco
racionalização e emancipação secular. Os deuses é casual que, além de Spinoza, eles se dirijam aos
deixam de ser a explicação da natureza das coisas legados aparentemente discordantes da tradição
porque é, inversamente, a natureza das coisas que neoplatónica e da filosofia pré-socrática. A esta
explica os deuses. Noutras palavras: a natureza do são atraídos pela conexão dinâmica de todos os
mundo implica o sentido do mundo. Quando os fenômenos da natureza, incluindo aqueles da
deuses do Olimpo são abandonados, recorre-se natureza humana; da primeira, a «animização»
aos «deuses naturais» para a concepção de uma do cosmos que se sintetiza na centralidade da
natureza que também leva implícito o sentido noção «Alma do Mundo». Em todos os casos
do homem. Nenhum modelo de pensamento da os naturphilosophen querem evitar que a razão
Antiguidade supõe uma separação do homem, humana, isolada da natureza, sucumba ao que eles
como sujeito da razão, de uma natureza inanimada. descrevem como “miséria da Razão”.
O racionalismo moderno, receptor da revolução Um exemplo notável dessas tentativas e contra-
científica da Renascença, deve interiorizar corrente são os denodados esforços de Goethe para

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Edição 01, Setembro de 2021 AS PROSAS DO VESÚVIO

adequar as suas investigações científicas sobre a moderno, quando se coloca como discípulo de
natureza às suas concepções filosóficas da natureza. Bacon e, principalmente, quando confia na técnica
Spinozista declarado, Goethe quer demonstrar, por como remédio principal do homem para afastar o
via de seus estudos botânicos e anatómicos, bem pesadelo do isolamento cósmico. Na verdade, essa
como por sua refutação da óptica de Newton, que “medicina” só adquire uma eficácia plena no mo-
a diversidade de todos os fenômenos se canaliza mento em que o Deus espectral que ronda ao redor
na unidade da natureza, a partir da convicção de e através da grande engrenagem de Newton é não
que esta nada mais é que o que o divino realizou. apenas considerado improvável como declarado in-
Podemos ver reflectido esse desejo de síntese, que é desejável. A técnica é o sonho de autodeterminação
do mesmo modo uma vontade de harmonia, numa do homem que coincide com a maior consciência
das suas quadras: da sua solidão.
Sob os impulsos desse sonho, a natureza, dita
Se o olho não fosse solar inanimada, constitui um mero campo de experi-
Como poderíamos ver o sol? mentação. O máximo esplendor da utopia técni-
Se em nós não vivesse a força de um deus, co-científica coincide com essa ideia, embora a
Como aceitaríamos o divino? moderna concepção matemático-experimental da
natureza implique um duplo impacto sobre a ima-
Se Goethe se empenhou em construir um poema gem do homem. Por um lado, sendo o cosmos uma
total, um novo De rerum natura lucreciano para engrenagem perfeita, o conhecimento consiste em
o mundo moderno, como ele ambiciosamente descobrir progressivamente as leis universais dessa
confessava nas suas anotações, é porque também engrenagem. Por outro lado, posto que a possibili-
estava determinado a defender a continuidade dade dessa descoberta é esperançosamente viável, o
de uma visão compartilhada do homem e da conhecimento deve facilitar, por meio da técnica, o
natureza que já existia mas que foi questionada domínio do cosmos. Conhecer é avançar em direc-
pela civilização de seu tempo. A arte deveria ção às leis ainda não reveladas, enquanto dominar
proporcionar o ajuste para a confluência da é usar as leis já conhecidas. A “era do progresso”
poesia e da filosofia e também, de acordo com transforma o cientista em profeta e o engenheiro
sua reinterpretação dos pré-socráticos, da ética em messias.
e da física. Para escrever o poema total, Goethe Sabemos que uma das novas religiões lançadas no
deveria ter-se sentido imerso na «Grande Cadeia século XIX, para amenizar as dificuldades intrans-
do Ser». E deveria ter sido ainda capaz de escrever poníveis das antigas religiões, proclama a fé no
como Shakespeare. O que de todo não conseguiu. progresso e a eventualidade de um paraíso acessível
Em Fausto, apesar do extraordinária maestria pelo caminho seguro da ciência. Também neste
armazenado, essa impossibilidade pode ser caso a trajetória do imaginário literário nos in-
percebida. forma da formação, ascensão e crise dessa crença.
Em Fausto, o espaço metafórico é necessariamen- Em Frankenstein Mary Shelley, ao descrever-nos
te mais restrito do que nas obras de Shakespeare. as vicissitudes do Prometeu moderno, ainda expõe
Quando não é, e o herói goethiano, à imitação dos fortes reservas ao domínio absoluto sobre a na-
seus heróis, arrasta estrelas e átomos consigo, surge tureza. De facto, o Dr. Frankenstein é condenado
a alegoria e, imediatamente, um certo sentimento ao tormento moral por sua usurpação do papel
de distanciamento em relação à verossimilhança atribuído ao Deus criador. Comparado a este livro
do texto. Não resulta em nada próximo de nós que cheio de dúvidas, as obras de Júlio Verne transbor-
Fausto convoque as fúrias macrocósmicas ou a dam de resplandescente optimismo. Estas refletem
temperança, dado que sentimos que as fúrias ma- o auge da nova fé: o engenheiro é o herói de um
crocósmicas ou as temperanças são indiferentes à futuro ao serviço da felicidade humana. Mas se,
sorte de Fausto. Em contrapartida, é abruptamente algumas décadas depois, Wells pôde escrever um
próxima de nós a ideia de que Fausto, esquecendo livro tão perturbador como A ilha do Dr. Moreau,
a natureza divina e as suas exaltações pela “Alma é porque os sinais já apareceram, e em profundi-
do Mundo”, se converta num técnico condenado a dade, os sinais que avivam uma crise crescente na
grandes transformações. religião do progresso. Em A ilha do Doutor Moreau
Fausto é mais convincente, desde o ponto de vista as distantes previsões de Francis Bacon começam a

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AS PROSAS DO VESÚVIO Edição 01, Setembro de 2021

voltar-se contra o homem. nuclear” tem sido a ponta de lança de um medo,


Na paisagem do século XX, a fé no progresso, talvez ainda maior, que nos alerta para as perigosas
sem deixar de ser um sonho hegemónico, acusou consequências mefistofélicas de uma certa forma
violentas debilidades. O facto de a física contem- de compreender o conhecimento e de uma certa
porânea ter posto em questão a uniformidade do forma de reduzir a nossa concepção da natureza.
modelo mecanicista-legal do cosmos, retomando É paradoxal, a nossa situação. Consideramos que
as ideias de incerteza e de caos, não só periclitou o atingimos o mais alto grau de civilização e, tecnica-
optimismo anterior, mas igualmente modificou o mente, é verdade. Consideramos que atingimos um
próprio significado do conhecimento: saber é pôr a alto nível de conhecimento, e ao nível empírico isso
descoberto amplos territórios de ignorância. Atrás é verdade. Mas também conquistámos o máximo
de cada ilha laboriosamente conquistada aparece possível de solidão. O nosso cosmos, sendo o mais
sempre um arquipélago inexplorado, numa espiral conhecido em termos científicos, é o mais desco-
irreversível que destrói a fantasiosa crença deci- nhecido. A nossa natureza, nunca tão dissecada, é
mónica em que a solução dos enigmas poderia es- a mais inerte. Nos mundos de Hesíodo, Heráclito,
tar ao alcance de um futuro concebível. Com uma Dante ou Shakespeare, o homem tinha interlocuto-
ênfase sem precedentes, este parece ser o estigma res. No de Newton, a perfeição do universo justi-
do conhecimento moderno: cada mistério revelado ficava-se a si mesmo, além de justificar o eventual
expõe simetricamente a existência de mil outros patrocínio de um criador.
mistérios. Com todo o seu enorme potencial, a Temo-nos forçado a confiar apenas nas nossas
ciência moderna tem algo de um muito peculiar forças. O que tem sido e é um desafio emocionan-
Sísifo, cuja rocha, à medida que é movida com mais te. Mas tem os seus riscos. Secretamente, talvez
habilidade, se torna irremediavelmente maior. estejamos aguardando o surgimento de novos
Mas há um fator decididamente mais dramático interlocutores. Talvez um sinal de além da Grande
no enfraquecimento da fé optimista no progresso. Fronteira seja o bálsamo mais fulgurante contra
Aquele que determinou que a lógica de conhecer a nossa solidão. Uma situação semelhante à que
como domínio foi prolongada na lógica de domi- aguarda Godot na obra de Samuel Beckett. Mas o
nar como destruição. Ou, mais precisamente, como problema não é que Godot não apareça, o proble-
auto-destruição. O acontecimento mais espetacu- ma é começar a suspeitar que Godot não aparecerá
lar dessa lógica de auto-destruição situa-se, como e que, portanto, a espera é inútil.
é sabido, em Hiroshima. A onda de choque é, no
entanto, consideravelmente mais ampla. O “medo

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Edição 01, Setembro de 2021

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CADERNO DE IMITAÇÕES Edição 01, Setembro de 2021

MARK STRAND
Mark Strand (1934 - 2014), um dos mais interessantes poetas americanos do último terço do século
XX. Strand foi membro da Academia Americana de Artes e Letras e atribuiram-lhe o Prémio Pulitzer
de Poesia, em 1999.
Numa entrevista de 1971, disse Strand: “Sinto que pertenço a novo estilo internacional, que cultiva
uma certa clareza na dicção, uma certa dependência de técnicas surrealistas, e um elemento de
narrativa forte.”

CHEGAR A ISTO Ainda que não seja certo nada disso.

Fizemos o que nos deu na real gana. Você sabem do que falo: é dos minutos que
Livrámo-nos dos sonhos, preferindo a indústria agonizam,
pesada de cada um, e abrindo as portas para a dor das horas, dos anos; é a velha história que conto
ao hábito impossível de quebrar baptizámos sobre mim,
“ruína”. sobre ti, sobre todos os demais.

Agora, estamos aqui.


O jantar está pronto e não podemos comer.
A carne está pousada naquele lago branco que é o FOGO
prato.
O vinho espera. Às vezes, quando havia um incêndio,
ia espreitar; esgueirava-me
Chegar a isto são e salvo e prosseguia o meu caminho:
tem as suas recompensas: nada é prometido e nada para mim, era apenas outra coisa que eu tinha feito.
nos é tirado. Extinguir o incêndio deixava para os outros,
E não temos coração nem nada que nos salve, que vinham correndo na direção da fumaça
nenhum lugar para ir, nem tão pouco razão para com vassouras e cobertores
ficarmos. para abafar as chamas.
Depois de o conseguirem,
formavam um grupito
para conversar do que tinham visto,
A HISTÓRIA de como eram sortudos
por contemplar o brilho do calor,
É a mesma velha história: reclamamos da lua o efeito que têm as cinzas
que afunda no oceano, das estrelas que se apagam de mover o silêncio; mas ainda mais
com a alba, da relva humedecida por terem conhecido o perfume
pelo orvalho, da relva tingida de prata, do frio da do papel queimando, o rumor de palavras
relva. que exalam o seu último suspiro.

Continua e não pára: um homem fixa


a sua sombra e capacita-se, é ele mesmo feito de
cinzas
que se desprende e cai, e diz que na verdade THE MIDNIGHT CLUB
os seus dias são os buracos negros que polvilham o
espaço. Faz anos que os talentosos nos dizem que querem
ser amados
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Edição 01, Setembro de 2021 CADERNO DE IMITAÇÕES

pelo que são, e que na sua plenitude - seja isto os sonhos derramados no teu travesseiro
o que for - eles também ficam vulneráveis ao libertam os seus cálidos aromas.
crepúsculo, assim como nós. Melhor tarde do que nunca,
De modo que trabalham toda a noite em quartos cada osso do corpo brilha
gelados, e a poeira de amanhã lampeja na respiração.
onde a lua tece uma teia com a sua luz;
durante o dia, tem vezes que se apoiam nos seus
carros
e olham para baixo, para o vale escaldante, O QUE RESTA
dourado,
como se caramelizado, mas com mais frequência Esvazio-me dos nomes dos outros. Esvazio os meus
agacham-se bolsos.
nas sombras, os pés calcados no chão; as mãos Esvazio os sapatos e deixo-os na beira da estrada.
sobre a mesa, a camisa manchada Quando se faz noite atraso os relógios.
de sangue sobre o coração. Abro o álbum de fotos da família e vejo-me em
menino.

De que serve? As horas fizeram o seu trabalho.


QUE AS COISAS MANTENHAM A SUA Digo o meu próprio nome. Despeço-me.
INTEGRIDADE Às palavras leva-as pelo vento, voam uma após a
outra.
No campo, Amo a minha esposa, mas gostaria que ela se fosse.
eu sou a ausência
desse campo. Os meus pais levantam-se de seus tronos e sobem
É matemático: às altas estâncias das nuvens. Como poderei eu
onde quer que eu esteja cantar?
sou o que está faltando. O tempo revela o que sou, como mudo e sou o
mesmo.
Ao meu passo, Esvazio-me de mim e ainda me resta a minha vida.
o ar separa-se
e sempre volta a unir-se
preenchendo os espaços
onde esteve o meu corpo DA LONGA E TRISTE FESTA

Todos têm razões Alguém divagava


para mover-se, sobre como as sombras cobrem o campo, sobre
eu movo-me para como passam as coisas, como se dorme na direção
que as coisas mantenham da manhã, e vai a manhã e passa.
a sua integridade.
Alguém disse olha
o vento amainou, mas não tarda volta,
como os caracóis são caixões do vento
A CHEGADA DA LUZ embora o tempo persista.

Antes tarde do que nunca: Foi uma noite muito longa


a chegada do amor, a chegada da luz. e alguém notou como a lua banha a sua luz
Acordas já há velas acesas, esbranquiçada na algidez do campo,
convergência das estrelas, e que em vez de se procurar alguma coisa no futuro

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CADERNO DE IMITAÇÕES Edição 01, Setembro de 2021

há mais do mesmo.
DE ACORDO COM O QUE DIZES
Alguem mencionou
uma cidade onde estive antes da guerra, Está tudo na mente e não tem
um quarto com duas velas contra uma parede, nada a ver com a felicidade. A chegada do frio
alguém que dançava freneticamente, a chegada do calor: a mente goza de todo o tempo
e alguém que assistia. do mundo.
Começámos a acreditar Pegas no meu braço e dizes, Algo vai acontecer
que a noite não ia acabar. algo raro para o qual estivémos sempre preparados,
como o sol chegando um dia depois na Ásia,
Alguém lembrou que a música parou e ninguém como a lua escapulindo-se
percebeu. depois de passar uma noite connosco.
Então alguém disse algo sobre os planetas e as
estrelas,
sobre a sua eterna juventude, ai que distantes.
MÃE E FILHO

O filho entra no quarto da mãe


e põe-se ao lado da cama onde ela está.
A INCLINAÇÃO O filho acha que ela lhe quer contar
o que mais deseja ouvir - que é seu filho,
Trouxeram-ma aqui as minhas próprias pernas que sempre será seu filho. O filho
depois de ter perdido o autocarro, os táxis, inclina-se para beijar os lábios da mãe,
subindo sempre. Um pé diante do outro. mas eles estão frios. O funeral
É assim que eu faço. dos sentimentos já começou. O filho
Não me incomoda o modo como a colina continua. toca as mãos da mãe pela última vez,
Erva ao lado da estrada, o som e então mira a gorda face da lua.
das folhas pretas de uma árvore sendo sacudidas. Uma luz acinzentada cai no chão.
Que mais dá? Se a lua pudesse falar, o que diria?
Quanto mais caminho, mais me afasto de tudo. Se a lua pudesse falar, nada diria.
Um pé adiante do outro. As horas passam.
Um pé adiante do outro. Os anos vão passando.
As cores da chegada empalidecem.
É assim que eu faço.

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Edição 01, Setembro de 2021 AVANÇAR PELAS COSTAS

HAVIA DUAS MOSCAS

Havia duas moscas. Havia duas moscas persistentes. Havia duas


moscas persistentes copulando na calva do chofer. Era uma obscenidade
inenarrável. Obscenidade, pensaste. Provocação, disse
sem vacilar o teu amigo. O chofer, impreterível ao volante. O
suor parecia nascer-lhe dos miolos, como se dentro tivesse moscas
copulando que ressumassem sebo e satisfação. Assim nasceu
Atenas, comentaste.
— Você perdoe-me — cochichou o meu amigo, arqueando
o indicador contra o polegar para lhe dar impulso. Catapultado,
o dedo acertou em cheio na calva branca e os insectos
estatelaram-se no vidro dianteiro do carro. Sobressaltou-se o
chofer e esteve a um fio de estampar-nos no castelo português
que agora contornávamos. O careca desatou aos impropérios,
onde comparecia alguma das três sagradas figuras e o governador
militar da praça (praça forte, castelo português e regime
alternado de poente e levante).
— Você desculpe.
Mas o dito vociferava ao volante, muito direito. E, no fim
de contas, sempre ventilaria a alma se nos espetássemos contra
a muralha ilustre, com o calor que fazia no táxi alugado para
cinco.
— Melhor não discutir — disse o meu amigo, porque, apesar
de tudo, o calvo era a chave do assunto e havia que liquidar
com ele as prestações ou o pronto pagamento, o que segundo
o meu amigo era o mesmo, pois só o calvo conhecia o lugar e
a coisa não era para ser desfeita, à última hora. A mim parecia-
-me que o calvo tinha razão, mas assenti com os outros três,
porque o meu amigo dirigia as operações desde o começo. Ele
tinha feito o acordo com o careca e, dada a situação, o melhor
era calarmo-nos.
O táxi já enfiava gaguejante num declive, do outro lado
do castelo, por onde a cidade se faz mais alta e o mar ressalta
em fundo e se entra em tortuosas ruelas de casas muito, muito
encardidas. Estava tudo previsto para entre as três e as seis, na
quinta, que era quando nos recebiam as senhoras. A coisa era
excepcional e nem todo o recém-chegado tinha acesso a ela.
Mas o meu amigo era um especialista em negócios matreiros e
havia ajustado tudo com tantas contra-senhas e nomes falsos e
com tal afã que seria inútil resistir à sua autoridade indiscutível.
O calvo parou e, enquanto descíamos do táxi, disse que
esperaria três ruas abaixo por ali estar mais folgado e poder beber

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AVANÇAR PELAS COSTAS Edição 01, Setembro de 2021

algo, e além disso ali mesmo não podia ficar a servir de isco
para os zunzuns e a denúncia, se tudo se podia organizar sem
necessidade de um escândalo.
Bebemos, não sem certo nervosismo, e, ao entrarmos na
casa, silente na penumbra, era tão vivo o contraste com a crua
luz do exterior que mal víamos um palmo. Assim nos encontrámos,
de supetão, na sala, que tinha as cadeiras encostadas à
parede e uma mesita baixa no centro com copos de limonada
muito pálida, onde se via o açúcar por mexer no fundo. Nas cadeiras
estavam as senhoras que reservavam em cada semana três
horas, às quintas, àquele pequeno comércio, trabalho extraordinário,
atreito a gorjeta. Eram quase todas de sólida aparência
e de tetas roliças, mães decentíssimas, às quais o parco soldo
de sub-oficiais e a escassez daqueles anos obrigava à sesta com
jovens liberais, que o careca e a proprietária da casa, viúva de
maestro, organizavam.
Os vultos memoráveis e os rostos começavam a perfilar-
-se melhor na pupila, habituada já à penumbra. As senhoras
abanicavam-se com manifesta dignidade. O trato foi, de entrada,
rigoroso e solene.
A viúva fez uma hábil distribuição dos casais, compensada
com tercetos dado o caso, indicação de quarto e preços, reduções
possíveis contra a garantia de repetir as quintas, e outras
normas de contabilidade e higiene. A limonada produzia, parecia-
me, um vago mal-estar e um enervante marulhar nas tripas.
O calor, que sufocava a olhos vistos, evoluía, na insólita ocasião,
em arrepios.
Preliminares não havia, ou eram escassos. Quando a senhora
se sentou na borda da cama, eu comentei algo a propósito
da colcha de flores. A senhora encolheu os ombros e retorquiu
com uma olhadela maliciosa, como se lhe tivesse assomado uma
segurança natural e já pudesse chegar-se a mim, mais dona de si
mesma, com um sorriso entre o descarado, o materno e o patriótico.
Maldisse a limonada e, sem poder prevê-lo, fui tomado
por uma tontura. Depois, enquanto esperava pelos outros no
táxi, três ruas abaixo, exânime e estendido no banco de trás,
senti que o calvo me olhava intrigado ou numa expressão de
zomba, mas não imisericordioso, pensei então.

Trad. António Cabrita

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Edição 01, Setembro de 2021 LER O OLHAR

ÍDASSE E A NUDEZ DA PEDRA


António Cabrita

«fui aprendendo, à força de querer/ ser digno para o visível as figuras do caos.
da invulgar metamorfose/ que às vezes me É o que torna vivas estas figuras, não há nelas a
permite ser humano.», escreveu o poeta António distância da cópia. Mesmo os materiais que usa,
Franco Alexandre, e creio reconhecer aqui uma carvão ou tinta da china aproximam-se mais da sua
ressonância em relação ao movimento que atraiu pele, não há uma distancia manifesta entre a cor da
Ídasse ao mármore e à sua lenta, frágil, adomada sua mão e a dos entes a quem empresta a pele?
sensibilidade. Quem naquela relação olhava e quem era
olhado? Naqueles desenhos perde-se a certeza
Ídasse revelou-se como um pintor, desenhador, ou emaranha-se. Cada desenho era mais do que
xamânico. Os seus desenhos a carvão dos sáurios uma ficção, é uma evocação, que aparecem na sua
e demais figuras de uma esquizo-morfologia máxima energia, singulares e mágicas.
nocturna e de uma palpitação demoníaca nunca
careceram da corajosa colaboração daquele que em A sua pintura, em grande parte dos seus quadros, já
desenhando-os é o seu relator, como se salvasse não isola as figuras, antes as dispõe clânicamente: é

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LER O OLHAR Edição 01, Setembro de 2021

um primeiro passo para antepor a distância do


pintor às figuras, reforçado por uma singular
paleta de cor que as amortece como se vistas
através de um vidro.
É esse o contraste que, em meu entender,
se afirma entre os desenhos do Ídasse que
transpiram uma presença que exacerba - nelas
o espírito parece ter acabado de encarnar no
carvão - e as suas pinturas, que se assemelham
a visões evocadas, diferidas e refractadas por
uma arte silenciosa que cristalizou tudo o que
se move.
E compreende-se porquê: cabe ao pintor dar
vida às suas figuras incandescentes, como
se saídas das trevas do imanifestado ou da
memória, mas ter igualmente a saúde de não
ser devorado por elas. E isso já lho permitem
as tintas, os acrílicos… distanciar-se, por isso
as suas pinturas são menos inquietantes que
os desenhos. Contribuem para o equilíbrio da
sua saúde psíquica.

Quando olho estes mármores detectamos


neles uma forma de energia (o labor que fixou
as figuras nos seus sulcos) e a vontade de ser
vistos, mas é possível divisar aqui sinais de
apaziguamento.
Julgo ser esta a marca que, para além da
evidencia do suporte, permite divisar nestas depois das infindas metamorfoses que explorou na
máscaras, figuras e desenhos em baixo-relevo uma pintura e no desenho (e que em alguns momentos
nova fase na obra de Ídasse. ainda afloram nestes trabalhos), o conduziram a
São figuras de um reino perdido, que nos chegam uma composição mais humana, isto é, mais nua.
como achados arqueológicos, mas que a patine do Creio, como se diz no poema acima que a pedra
tempo serenou. permitiu a Ídasse a reaprendizagem do humano.
A pedra, a sua execução mais lenta, o esforço de a Terá Ídasse chegado ao seu classicismo?
converter em expressão, o diálogo com as formas A uma idade serena, não temos dúvidas.
que o mármore impõe, levaram Ídasse a decisões
paradoxalmente mais rápidas e mais gráficas, que

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Edição 01, Setembro de 2021 LER O OLHAR

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DIÁLOGOS: MAPUTO/ MAR EGEU Edição 01, Setembro de 2021

MAPUTO/ MAR EGEU: UMA CONVERSA


António Cabrita, Fausta Cardoso Pereira

Conheci a Fausta Cardoso Pereira há não mais de ano e meio. Aterrou em Maputo, para trabalhar com uma
ONG e, recomendada por uma amiga, tivémos uma dúzia de boas conversas sobre a literatura, a vida, as
suas vicissitudes e complexidades.
Em Março deste ano rumou à Grécia, noutro projecto, o de recolher histórias de vida de crianças nos campos
de refugiados.
Foi de lá que me escreveu por MSM, estava eu no hospital, e que mantivémos esta conversa que em baixo se
transcreve.

A Fausta, entretanto, publicou o romance,


Dormir com Lisboa, um belíssimo livro que foi
obrigado a um percurso sinuoso por causa da sua
peculiaridade narrativa: o protagonista é a própria
cidade. Como “supostamente” lhe faltava um
personagem com quem o leitor se identificaria (o
que é falso, aqui como em Manhatthan Transfer,
de John dos Passos, retrata-se a cidade com
um ritmo, uma riqueza de perspectivas e uma
pulsação orgânica que nos leva a não abandonar a
leitura) o livro foi sendo rejeitado até que ganhou
na Galiza o Prémio Antón Risco de Literatura
Fantástica e vários encómios após a sua edição,
pelas virtudes que em Lisboa lhe negaram. Agora
foi finalmente editado em Portugal, por uma
editora portuguesa mais sensível à eficaz estrutura
coral do livro e menos arreigada à uniformidade
do mainstream.
A edição galega é de 2017 mas o covid e as
ausências da mole humana na cidade devido à
pandemia deram a esta narrativa um carácter
quase profético. A trama é simples: quebrando
a sua rotina, numa aleatoriedade que desafiará
a criatividade de cientistas chegados de todo o

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Edição 01, Setembro de 2021 DIÁLOGOS: MAPUTO/ MAR EGEU

mundo para estudar o fenómeno, a calçada de Lisboa ganha hábitos de bivalve e engole alguns cidadãos
comuns. O desconforto, a desorientação e o pânico tomam conta da urbe, que ameaça desertificar. É a
“alma” da cidade que se revolta contra a indiferença e as equívocas politicas urbanas dos seus edis? Será
algum tipo novo de “doença” urbana? Que espécie de cataclismo e de assombramento ameaçam Lisboa?
Um romance imperdível com um enredo imaginativo e uma escrita ágil, que ameaça ser um dos livros do
ano. Pelo menos, a singularidade ninguém lho tira.

- Olá António, no Mar Egeu sinto-me dentro de uma sopa de pedra. Mas eu habituo-me a isto.
- Ena pai, incrível. Olha, está como os meus pulmões, que felizmente já começaram a ter uns fios de água...
Mas aí, são quilómetros assim?
- Não, também há areia ou rochas maiores. É preciso ser-se muito grego para se andar descalço. Os turistas
têm uns sapatinhos próprios. Eu já adaptei umas estratégias. A verdade é que se acaba sempre por ficar
muito tempo de molho...
- De molho ao sol, serão todos tisnados, calculo.
- Com isto percebemos porque lhes deu para o teatro, a filosofia e o pensamento.
- Sim, seria a forma de se refrescarem para dentro...
- Há um poema da Sophia sobre isto, a ver se o encontro...
- Tiveram de construir-se... Tiveram a sorte da natureza não lhes ter dado facilidades, o contrário do que
se passou por aqui e que bem lixou os africanos...
- A Sophia diz que ao olhar para o mar da Grécia percebemos a história da Antiguidade. É uma coisa que
nos penetra...

Colibri - Revista Literária 29


DIÁLOGOS: MAPUTO/ MAR EGEU Edição 01, Setembro de 2021

- Que bonita essa fotografia, é exactamente onde?


- Lesbos, onde estou.
- Portanto, a sensualidade em Safo nasceu do flanco arredondado dessas pedras...
- E das montanhas, sempre as montanhas. Mas há uns anos que os gregos deixaram de vir para cá com
medo de encontrarem corpos nas praias...
- Corpos de refugiados?
- Sim.
- Espantoso, um mar que regurgita cadáveres sobre as suas margens pedregosas... É como perder o ponto
de fuga...
- No mar Egeu, um mar cheio de história...
- Eles têm razão, é infernal. Estou contente que tenhas visto isso, é daqueles vislumbres que justificam uma
viagem...
- Há muita coisa sobre o qual tenho pensado. Fui visitar o castelo local numa tarde de 40 graus. Sozinha.
Um espaço imenso só para mim. Talvez tenha sido do calor mas intuí que os gregos estão fechados ainda
naquele passado de lutas contra a Turquia e a Síria... Acho que é assim que avalio a atitude deles sobre a
questão dos refugiados . O império otomano ainda está aqui bem vivo...
- Se bem me lembro é Os Argonautas cuja acção se passa essencialmente no Mar Egeu, vou mandar-te... a
história da busca do Velo de ouro... Mas é natural que eles estejam fechados, é um povo traumatizado por
várias clausuras, ditaduras, e traumatismos... até físicos, ou mesmo da ordem da violação, que os turcos
deviam entreter-se a estuprar gregos como despojos de guerra...
- Penso que essa história serve inconscientemente (ou não) de argumento para a figura da autoridade –
daqui não passarás!
- Sim, terás razão.
- O António aqui escreveria muito...
- Olha, o que esta conversa já me deu!
- Este cenário é ideal para quem gosta da antiguidade, de reflexão, da praia, de boa comida, e da
contemplação...

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Edição 01, Setembro de 2021 DIÁLOGOS: MAPUTO/ MAR EGEU

- E então, quando voltas? Eu só irei a Lisboa em Agosto, por causa da convalescença.


- Eu regresso no dia 30 de Julho. Se vem em Agosto vemo-nos em Lisboa.
- Desta vez ficaste contente com a experiência, vejo que foi um ganho. Ainda bem, isso vai alimentar-te
como escritora...
- Sim, é uma luta diária mas positiva. A minha cabeça é um novelo mas tenho algumas pontas pelas quais
tenho andado a pensar pegar...
- Nós só devemos ter trabalhos que nos dilatem a compreensão do humano, é o único trabalho a que um
escritor se pode entregar...
- Sim é verdade, verdade mesmo.
- Vais ver quando chegares a Lisboa, passas uns dias de repouso com o Ricardo e a seguir a coisa vem por
si mesma...
- Sim, era bom, construir ordem a partir do caos que ainda tenho.
- Nunca deves abandonar algum caos, nunca o sufoques. Temos apenas de o acomodar em margens
benignas... pois como diz o Michaux, “Quem esconde o seu louco morre sem voz”. O próprio caos terá
necessidade de reorganimar-se... Um dia, a partir do quotidiano ele arruma-se por si só e oferece-te uma
história de bandeja. O inconsciente é um aliado ... quando estou bloqueado, vou dormir. Sento-me no dia
seguinte no computador e ele sopra-me a solução...
- É sem pressão, não é? Aproveitar o processos e os seus caminhos labirínticos...
- Sim, quanto mais pressão lhe colocares mais ele demora, aí resiste.
- Esperar e ler muito...
- É o único modo de ficares em estado de recepção... em prontidão.
- Ainda me sinto muito presa às histórias concretas da pessoas...
- Aí precisas de baixar o caudal emocional, que só te turvará... o que interessa é que tens o material. Se
não te precipitares, se não fores ansiosa, ele vai dar-te uma coisa muito boa... são os mesmos mesinhos da
gestação humana...
- Vamos ver o que o tempo me reserva.
- Coisas boas...
- Obrigada.

Colibri - Revista Literária 31


FLAMINGO Edição 01, Setembro de 2021

ARREMESSOS, CONTRA A EROSÃO

Uma das mais terríveis imagens dos recentes Terem-lhe endereçado este convite diz tudo sobre
conflitos armados entre o Hamas e o Estado de as qualidades que se lhe reconhecem, e este texto
Israel foi a da derrocada da livraria de Gaza Al poético-dramático é o que deu suporte à peça que
Mansur, uma ruína sem remédio depois de um ele próprio encenou, com êxito, no princípio deste
bombardeamento. Ficaram soterrados cem mil ano no Teatro da Rainha, nas Caldas, estrutura de
livros e o estrago para a cultura da Palestina, como teatro dirigida pelo Fernando Mora Ramos.
afirmaram vários testemunhos, é inimaginável. Sobre Toda a Escuridão, de Mélio Tinga, é uma
Por estes lados da costa oriental de África não novela existencial, de laivos poéticos, ainda que de
se verificam bombardeamentos mas o estado tonalidades negras. O Mélio é designer e gestor
de uma cultura que dimana dos livros está em de comunicação, escritor e copywriter, natural de
franca recessão. O único distribuidor de livros Maputo. É co-fundador da DESIGN Talk, director
técnicos no país está em crise, por causa do que executivo da DEZAINE Conference, editor da
o Estado lhe deve, as poucas livrarias de Maputo Revista DEZAINE, colunista permanente no
livrarias fecham, às que se mantém abertas só Design Culture (Brasil) e fundador & director
chegam alguns bestsellers, não havendo qualquer criativo da BROKEN – Agência Criativa. Publicou
regularidade ou actualização na importação dos “a engenharia da morte”(Edição de autor, 2020),
livros que vão sendo editados nos restantes países “O Voo dos Fantasmas” (Ethale Publishing, 2018).
de língua portuguesa; a Cavalo do Mar, que trouxe Foi dele a concepção gráfica destes livros da
novidades à literatura Moçambicana fechou portas, Arremesso, de grande parte dos livros da Cavalo do
a Alcance parece em hibernação, a nova editora Mar e é um dos responsáveis deste revista, sendo
Gala Gala gatinha ainda, também a Fundação igualmente o seu designer.
Fernando Leite Couto, com o Covid, parece ter Neste momento, em simultâneo, saem as edições
desacelerado o seu ritmo... E neste ambiente de portuguesas de “a engenharia da morte” (pela
uma depressão profunda, contra a erosão, aparece Húmus) e brasileira (pela caos & letras). Refira-
de repente uma nova aventura: os três livros da se ainda que ganhou a última edição do Prémio
Arremessos. Eugénio Lisboa, promovido pela INCM, com o
Tem origem a ousadia em três amigos que romance Marizza, estando a sua edição agendada
resolveram entreajudar-se, quer na discussão dos para este ano.
processos e da própria escrita dos livros de cada Câncer, de David Bene, é o primeiro livro de um
um, quer na tentativa de se apoiarem na produção jovem que neste momento se encontra no Japão a
dos três livros respectivos: tirar o doutoramento em Engenharia de Recursos
Minerais na Kyushu University. É uma poesia
O Alguidar que Chora ou a História das Pedras que muito distinta da que se pratica em Moçambique,
Falam, de Venâncio Calisto. discursiva, de longo fôlego e matizes políticos, mas
Câncer, de David Bene que usa mais o argumento que o grito, e que revela
Sobre Toda a Escuridão, de Mélio Tinga. uma voz nova que se destacará.
Venâncio Calisto é a maior promessa da encenação Os três autores resultam de uma tendência mais
teatral em Moçambique, encontrando-se neste cosmopolita, que tende a alastrar entre as novas
momento a estagiar como assistente de encenação gerações moçambicanas – é o efeito da net – e
em Paris, numa peça estrelada por Isabelle Hupert. trazem uma promessa de renovo nesta época
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Edição 01, Setembro de 2021 FLAMINGO

sombria e de todos os impasses. para ser valorizada pelo chefe deve ser um desafio.
Tudo boas razões para apresentarmos a colecção, Deve ter um marido vivo. Víctor, tu não dás medo
com um excerto de cada livro. a ninguém. Por favor, não me acompanhes se ainda
queres que não morramos de fome aqui em casa.
Excerto dos livros Outra coisa, a partir de hoje não fazemos mais sexo
na madrugada. Chego sempre cansada ao trabalho
No silêncio do orvalho. Carmelita não cabe no e quando chega a vez do chefe estou esgotada.
abraço. É cacimba. Com quantas caras se faz um Acho que devíamos respeitar a pessoa que paga as
inferno? Há um cadáver linguarudo na palma da despesas de casa.
criança. Os deuses morrem, meu fulano. Tornam-se
sabonetes. Água vem e são espumas. O tempo é a câncer, David Bene
indiferença da palma. Durma em paz, Ndambi.

(...)
Olho o mar revolto. A força invisível dos túmulos
Estás morto. Tenho vergonha de apresentar-te à entre as águas molda as ondas. O ruído é brusco
minha gente. Há duas semanas que vestes essas como um vómito. Bate, em ritmos descompassados.
cuecas azuis. O pénis merece respeito, Víctor. A parede, inquieta, veste-se de pequenas algas e
Vivemos como vivemos, mas o que dirá o meu trepadeiras marítimas. Esverdeiam-na. É uma
chefe? Queres que não tenhamos comida aqui em minúscula floresta. Uma pintura funesta, abstracta,
casa? Onde iremos encontrar dinheiro para pagar feita a todo o custo, como garatujas infantis. É alta, a
as fraldas? Se o chefe descobrir que és o corpo que parede. Mais abaixo, pedras robustas acotovelam-se.
me abre as pernas todas as noites, tenho a máxima Onda vem. Bate. Cobre-mas com o frescor invejável
certeza que não se vai interessar mais por mim. Vai dessa invenção quase divina chamada água. E vai.
preferir a Isolda, a nova secretária. Uma mulher E volta. Uma respiração infinita. Repete-se. É uma

Colibri - Revista Literária 33


FLAMINGO Edição 01, Setembro de 2021

canção afinada, cuja letra esfuma-se em dia chuvoso,


como um pardal enfermo em tarde de sol intenso.

(...)

Olhava para a rua. Via o infinito. Os passos ansiosos


das pessoas descompassavam todo o sentido da
existência. Permanecia horas de cotovelos enterrados
ao peitoril da janela. O ar tranquilo era uma espécie
de fósforo que acendia as feridas frescas. Tinha
a ilusão de que ver as pessoas, escutar os passos
e vozes, haveria de me curar daquela espécie de
doença crónica que a morte da minha mulher havia
causado. Escrevo estas memórias com a mesma dor
e rancor que me tomou quando soube que ela tinha
parado de respirar, para sempre. E aqui páro e choro.
Passeio pela casa e volto a sentar-me quando as
palpitações baixam o ritmo.

sobre toda a escuridão, Mélio Tinga

Ainda não é manhã, mas também já não é noite. A


mulher habita o limiar, um espaço intermédio entre
o que foi e o que será, como o choro dela, um choro
que é choro no poema e na vida ao mesmo tempo.

(...)

Falta muito para que se faça dia e, no entanto, já


não é noite. A madrugada é um lugar intermédio. A
mulher escolheu esse lugar para chorar o seu choro, e
agora o mundo é só orvalho.

(...)

Enterro as minhas mãos no ventre de tudo. Como


quem se atira do alto de uma mon-tanha. Como
quem cede à violência do regresso ao nada. Como
quem busca no si-lêncio a verdade fundamental.
Como quem se afunda na lama, no nojo grotesco
des-te mundo de ausências e carências.
Enterro-me no meu próprio ventre. Afundo-me no
mesmo poço de nenhures donde emergiu o meu
primeiro suspiro.
Enforco-me no cordão maternal.
Recuso-me à penitência, à desumanidade que
engorda o tempo.
Reclamo o lugar que fui.

o alguidar que chora ou a história as pedras que


falam, Venâncio Calisto

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Edição 01, Setembro de 2021 POÉTICA/ENTRELACES

O Prazer
das Pequenas
Coisas
que Chegam
Devagar
(Excerto)
David Bene & Mélio Tinga

O suor na vida faz-se no sonho. Na concepção. O resto é senso comum.


Leva-se anos para preparar o alguidar que chora de Venâncio Calisto.
E poucos meses para fotografá-lo no papel branco.
Há dias conversava com Venâncio, que teria perdido a namorada.
Ao invés de mostrar a solidariedade esperada, pedi-lhe Escreve
um monólogo. Se não o fizer por ti, faça-o por mim, implorei.
Eu não te posso dizer ao certo que estava triste pelo homem.
Tenho a máxima certeza que estava feliz pela sua dor.
Eu via uma tocha de diamante no seu semblante,
capaz de iluminar o teatro moçambicano por longos anos.
Este é o meu maior problema. Não tenho tempo para sentir a dor dos demais.
As gotas salubres são palavras. E um copo de lágrimas
é toda uma estrofe inteira. Lembro-me
de ter pensado o seguinte enquanto ele falava:
quisera eu que isso tivesse acontecido comigo.
Teria material de qualidade para escrever por meses.
Talvez seja esta a razão por qual as minhas relações não duram.
Vezes sem conta, induzo a parceira a um elevado estágio de repulsa
apenas para fotografar a essência do poema.
Vendo de longe, as pessoas parecem cobaias na vida do poeta.
Eu não sei se tu o és. Talvez a minha amizade
contigo seja apenas para encontrar o verso certo.
Gostaria de dizer que não é, mas não te posso garantir nada.
As coisas devem ser naturais, dizem. O natural
acontece quando quer e como quer.
Pode levar anos e eu não tenho todo esse tempo de espera.
O sentimento pode muito bem ser criado na mesa de experiências.
Claro, há um certo oportunismo nisso. Um certo egoísmo.

Colibri - Revista Literária 35


POÉTICA/ENTRELACES Edição 01, Setembro de 2021

Venâncio disse-me ontem que o poema é


um kamikaze a caminho da Pearl Harbor.
Uma viagem que não tem volta, eu acrescentei:
talvez sejamos todos masoquistas. Eu reparo nos poetas
que pregam a paz e fico irritado. (Estou a falar sério).
São todos falsos profetas. O que seria um poeta no paraíso?

Vejo um poeta deprimido na sua primeira estadia à sombra dos anjos.


Vejo-o enforcado nos sovacos da omnipotência.
Eu acho que a função principal da poesia é costurar
o vaso quebrado. O contrário é improvável.
Vezes sem conta eu quebrei o meu vaso para cozê-lo
no canto esquerdo do poema.
É ao que chamo de poesia experimental, stricto sensu.
O resto é brincadeira de mau gosto.
O maior esforço na vida está na subconsciência.
O resto é senso comum. Venâncio ouviu o meu pedido
e implorou. Os sentimentos são a manga do planalto de Manica.
Quando verde, podes comê-la com sal (longe do olhar dos pais)
mas a verdadeira magia encontra-se quando esta está madura.
Deixa-me amadurecer a manga de que tanto queres degustar.
Levará dias, meses ou anos. Sabes mais
do que ninguém que o tempo
sempre foi inimigo do poeta. Embora necessário.

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Edição 01, Setembro de 2021 POÉTICA/ENTRELACES

QUE O PUDOR ESCONDA


PARA SEMPRE AS MINHAS
LÁGRIMAS*
Nimrod

Recebi, há algum tempo atrás, uma carta de revolta não dará à luz mais do que ruído.
que começava nestes termos: “Antigamente, É espantoso que uma certa poesia tenha
os seus poemas eram apenas dor. Agora, podido mascarar a tal ponto a indigência
eles apenas celebram a beleza. Você fez dos textos ditos revolucionários.
um desvio da vida, para se refugiar numa Eu não abandonei o vibrato do tribuno,
estética panteísta.” A este julgamento não sucumbi à sedução do estetismo. Eu
abrupto, precipitado como uma guilhotina, esforço-me apenas para fazer emergir a
acrescentarei o de um amigo. Discutíamos beleza do lugar de onde ela vem. É nos
poesia quando um de nós, ficou subita- entrelaçamentos das sensações que ela
mente lírico (alguma responsabilidade deve me acena: a paisagem torna-se o lugar
ter tido o vinho), e assentiu: “O que me onde eu habito de forma mais voluntária.
interessa nos poemas de Nimrod, é a dor!” De resto, sempre foi assim, é-se escritor
Esta declaração deixou-me mudo. Na mesa porque a experiência do mundo, pela
ninguém deu conta da enormidade. força dos vocábulos, se torna singular: um
Na África – francófona, pelo menos -, indivíduo nasce então ele mesmo, fazendo
entende-se que a poesia deva ser impre- ressoar os afectos de maneira a torná-los
catória. Uma crença entre as mais fanáticas belos e universais. O que pressupõe que o
pretende que ela levante montanhas. Nunca artista opere uma ruptura relativamente
ninguém ousaria carregar os políticos e às expectativas do seu meio, ruptura
outros pesos pesados da finança (uns e destinada a prolongar-se nas escolhas dos
outros são apenas um só no nosso conti- seus instrumentos de trabalho. Um poeta,
nente) com tal tarefa. Para justificar esta fé esquecemo-nos muitas vezes de sublinhar,
(que é a própria impotência tornada verbo), diz sempre não.
alguns citam Senghor, outros Césaire. Ao A via que eu escolhi não é nem a expressão
fazê-lo, omitem o facto de que raramente da dor nem o grito de uma revolta que
um poeta africano escalou os cumes atingi- ninguém levaria ao seu termo. Eu quero que
dos por estes dois modelos. o meu canto se torne a substância de uma
Não se faz literatura unicamente com as harmonia perdida. É a este preço que eu
próprias ideias, da mesma forma que uma poderei minar o comércio dos meus algoz-
escrita virtuosa não faz o sucesso de uma es. Quanto aos meus amigos, é natural que
página. Se o pensamento não se casa com as procurem noutros lugares a matéria-prima
inflexões das sílabas, se um acordo de alto das suas emoções.
voo não cimenta a sua arquitetura, o grito

Colibri - Revista Literária 37


POÉTICA/ENTRELACES Edição 01, Setembro de 2021

NIMROD

(Nasceu em 1959 em Koyom, uma povoação localizada no sul do Chade, que não contava à
época mais do que doze casas.
Nimrod “educou-se” num deserto total, pois nem a escola nem a sociedade lhe ofereciam quer
a formação quer os mestres que o poderiam sensibilizar para as artes e as letras.
Foi Pierre Dubrunquez (o chefe de redacção da revista francesa Poesie 88 (com quem ele se
correspondia) que lhe fez descobrir Du Mouvement et de la immobilité de Douve, de Yves
Bonnefoy e Sol Absolu, de Lorand Gaspar. Foi o choque! Em três semanas ele compôs a recol-
ha que se tornará Pierre, poussière, coroado em 1989 com o Prémio de Vocação. Nimrod tem
então trinta anos.
Hoje Nimrod vive em França, tem mais de trinta livros publicados – de poesia, prosa e ensaio
- e, desde 2015 que anima a colecção «Le Manteau & la Lyre», nas Éditions Obsidiane, dedi-
cada à poesia africana).

*Posfácio à segunda edição de Pierre, poussière, de 2004

38 Colibri - Revista Literária


Edição 01, Setembro de 2021 NEVES DO KILIMANJARO

Neves do Kilimanjaro 1

A neotonia é a propriedade, nos animais, bucha, lhes formatarão o fanatismo religio-


de conservação, na sua idade adulta de so, sem que haja possibilidades de alguma
características típicas da sua forma jovem vez nascer neles um lampejo crítico? Serão
ou larvar. É uma espécie de imaturidade ciborgs da “fé” – imunes a qualquer resídu-
irrecuperável. os de empatia.
Nos homens isso acontece com o cérebro. Mas para além deste aspecto entrópico, na
O homem é o único animal, de entre os situação do país, de uma forma mais geral,
mamíferos, que nasce sem ter o seu cérebro como é que ninguém parece consciente de
“terminado”. que se implode o futuro com a prevalência
É, antes, como um pomo ainda por da neotonia, neste tecido humano e de
amadurecer. O cérebro humano precisa demografia não controlada?
de cerca de sete anos para se desenvolver Eu sei que o nosso olhar sobre a realidade
plenamente. As crianças que têm problemas depende, ao contrário do que se pensa,
de subnutrição não terão só problemas da imaginação que tivermos. A questão é:
motores, também terão um cérebro mirrado como é que se imagina tão pouco?
e ficam incapacitadas para aprender. Como é que nos deixámos regredir assim,
Na Beira em 2010, no Comando Central como humanidade?
da Polícia, nos livros de registos de ocor- Evadimo-nos da responsabilidade.
rências (que consultava por causa de uma Leio sobre Piaget: « Quando analisava a
investigação sobre a Violência Doméstica), evolução das crianças de um estágio inicial
por meados de Março, já estavam registadas de anomia – incapacidade de compreender
cento e cinco crianças que haviam sido e, portanto, de praticar regras – para o
entregues à polícia por abandono. Só na estágio da heteronomia – prática de regras
Beira, naquela esquadra. Multiplique-se por sem sua integral compreensão – e desta
todas as cidades do país. para a autonomia – capacidade de autogov-
Que futuro será o destas crianças, ernar-se pela interiorização das regras –,
imaginei, atordoado. Quantas se salvarão Piaget enfatizava que a lapidação de senti-
sem serem atacadas pela térmita da neoto- mentos éticos e a formação de cidadania
nia? Moçambique tem uma expressão para se solidificavam pela percepção de regras,
esse tipo de debilidade que transparece num com a moralidade se incorporando à
olhar de inteligência em derrocada: está consciência a partir do acordo entre pessoas
marasmado. que, cumprindo normas, se respeitam a si
Assustou-me que aquilo que o país mais mesmas e constroem um procedimento
produzia fossem “moluenes”, meninos de melhor para todos.»
rua. Mas. E quando está tudo lapidado à
E quantos serão depois repescados pelas nascença?
madrassas radicais, onde a troco de uma No país. No mundo. Na Índia, criança
Colibri - Revista Literária 39
NEVES DO KILIMANJARO Edição 01, Setembro de 2021

abandonada, está a ser vítima do seu qualquer escritor moçambicano.


próprio Karma. Entrevê-se aí uma ignóbil Aqueles que têm de inocular o entusias-
desculpa para a demissão dos deveres de mo da leitura nas crianças não conhecem,
solidariedade social, mas pelo menos há na generalidade, a literatura moçambicana.
uma explicação para o crime, numa espécie Desconhem-na, conhecem de ouvir falar
de pervrsa sombra holística. num nome ou noutro, mas não a frequen-
Há um direito à soberania quando não se tam, não a lêem.
vela sequer por esta fatalidade da neotonia? Nem falemos do seu conhecimento do
Nunca emergiu como problema e meta a que se escreve lá fora. Mesmo sobre o que se
superar. Como é que a neotonia se tornou produz em África, o seu desconhecimento é
um problema invisível, um não-dito, de alto total.
a baixo das instituições mundiais? E isso também acontece porque o país
Este problema situa-se antes de qualquer só pensa no seu umbigo e dá pouco, ainda
condição de possibilidade para a educação. refém das armadilhas da identidade. Ou dos
Está sob o gelo das neves do Kilimanjaro. efeitos políticos disso.
Passemos à sala e falemos de literatura. Colibri Noir é desde a saudosa Caliban
Neste aspecto, Moçambique não é bem a primeira revista sediada em Maputo
um país, é um projecto de cacto com inflo- que se abre ao mundo. Seja o da língua
rescências isoladas. portuguesa, seja o do continente, ou o do
A literatura não existe sem revistas que “vasto vasto mundo que rima muito para lá
se dediquem às suas minudências, sem um de Raimundo”, para glosarmos um verso de
corpo de críticos, sem um mercado para Drummond de Andrade.
ela, sem uma devida distribuição dos livros Para não haver melindres, mais do que
por todo o país e sem um corpo constituído uma revista, Colibri Noir é “um caderno de
de leitores e sem tecido de intelectuais que escritor”, uma espécie de diário com aquilo
discuta de forma ncarniçada mas simbólica que vou lendo, com as minhas admirações
as suas representações simbólicas. e o que quero partilhar com os outros.
Nada destas condições de possibilidade Porque nunca compreendi o costume de
está já criado, em pleno. guardar o conhecimento para si.
O que existe em Moçambique é uma Vai divulgar muito da arte e da literatura
dezena de escritores, obstinados, teimosos, africana, do Magrebe ao Cabo, e de dar
que persiste, apesar destas condições não relevo às mulheres que escrevem, por esse
estarem asseguradas, e que, se porfia, é muito fora, para contrariar o mutismo local,
porque tem em vista outros mercados. Não para não aludir a realidades mais rudes.
é verdade em absoluto que um artista exista,
ainda que não seja compreendido. Definha. Repartir-se-á o projecto em dois suportes,
Por isso os bons escritores moçambicanos na “revista” e num site, com rubricas difer-
acabam porlançar as fateixas noutros entes, de modo a que um não seja apenas o
mercados, à falta de um interno. encavalgamento do outro mas algo autóno-
Um ano de trabalho com as escolas, mo, que propicie outras leituras.
na área da formação da leitura junto dos Esperemos que agrade e que possa
professores, deu-me uma perspectiva combater a neotonia simbólica, que
indesmentível sobre o estado da situação: também se agrava.
é calamitoso. E um rombo na vaidade de

40 Colibri - Revista Literária


Edição 01, Setembro de 2021

Colibri - Revista Literária 41


Edição 01, Setembro de 2021

42 Colibri - Revista Literária

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