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A ESTILÍSTICA DA

REPETIÇÃO
A REPETIÇÃO
“Mais do que uma simples característica da língua falada, a repetição é uma das
estratégias de formulação textual mais presentes na oralidade. Por sua
maleabilidade funcional, a repetição assume um variado conjunto de funções.
Contribui para a organização discursiva e a monitoração da coerência textual;
favorece a coesão e a geração de sequências mais compreensíveis; dá
continuidade à organização tópica e auxilia nas atividades interativas. Disso tudo
resulta uma textualidade menos densa e maior envolvimento interpessoal, o que
torna a repetição essencial nos processos de textualização na língua falada.”
(KOCH, p. 111, 112)
CARLOS DRUMMOND DE
ANDRADE (1902-1987)
POEMA DA NECESSIDADE (1974)

é preciso estar sempre bêbedo,


É preciso casar João, é preciso ler Baudelaire,
é preciso suportar Antônio, é preciso colher as flores
é preciso odiar Melquíades, de que rezam velhos autores.
é preciso substituir nós todos.
É preciso viver com os homens,
É preciso salvar o país, é preciso não assassiná-los,
é preciso crer em Deus, é preciso ter mãos pálidas
é preciso pagar as dívidas, e anunciar o FIM DO MUNDO.
é preciso comprar um rádio,
[Carlos Drummond de Andrade]
é preciso esquecer fulana.

É preciso estudar volapuque,


O HOMEM; AS VIAGENS (1978)
O homem, bicho da terra tão pequeno Proclamar justiça junto com injustiça
Chateia-se na terra Repetir a fossa
Lugar de muita miséria e pouca diversão, Repetir o inquieto
Faz um foguete, uma cápsula, um módulo Repetitório.
Toca para a lua Outros planetas restam para outras colônias.
Desce cauteloso na lua O espaço todo vira terra-a-terra.
Pisa na lua O homem chega ao sol ou dá uma volta
Planta bandeirola na lua Só para tever?
Experimenta a lua Não-vê que ele inventa
Coloniza a lua Roupa insiderável de viver no sol.
Civiliza a lua Põe o pé e:
Humaniza a lua. Mas que chato é o sol, falso touro
Lua humanizada: tão igual à terra. Espanhol domado.
O homem chateia-se na lua. Restam outros sistemas fora
Vamos para marte - ordena a suas máquinas. Do solar a col-
Elas obedecem, o homem desce em marte Onizar.
Pisa em marte Ao acabarem todos
Experimenta Só resta ao homem
Coloniza (estará equipado?)
Civiliza A dificílima dangerosíssima viagem
Humaniza marte com engenho e arte. De si a si mesmo:
Marte humanizado, que lugar quadrado. Pôr o pé no chão
Vamos a outra parte? Do seu coração
Claro - diz o engenho Experimentar
Sofisticado e dócil. Colonizar
Vamos a vênus. Civilizar
O homem põe o pé em vênus, Humanizar
Vê o visto - é isto? O homem
Idem Descobrindo em suas próprias inexploradas entranhas
Idem A perene, insuspeitada alegria
Idem. De con-viver.
NO MEIO DO CAMINHO (1931)
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.

Nunca me esquecerei desse acontecimento


na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra.

(Carlos Drummond de Andrade)


A FLOR E A NÁUSEA ( 1945)
Preso à minha classe e a algumas roupas, vou de branco pela rua cizenta. Ração diária de erro, distribuída em casa.
Melancolias, mercadorias, espreitam-me. Os ferozes padeiros do mal.
Devo seguir até o enjôo? Os ferozes leiteiros do mal.
Posso, sem armas, revoltar-me?
Pôr fogo em tudo, inclusive em mim.
Olhos sujos no relógio da torre: Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Não, o tempo não chegou de completa justiça. Porém meu ódio é o melhor de mim.
O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera. Com ele me salvo
O tempo pobre, o poeta pobre e dou a poucos uma esperança mínima.
fundem-se no mesmo impasse.
Uma flor nasceu na rua!
Em vão me tento explicar, os muros são surdos. Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos. Uma flor ainda desbotada
O sol consola os doentes e não os renova. ilude a polícia, rompe o asfalto.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase. Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.
Vomitar este tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema Sua cor não se percebe.
resolvido, sequer colocado. Suas pétalas não se abrem.
Nenhuma carta escrita nem recebida. Seu nome não está nos livros.
Todos os homens voltam para casa. É feia. Mas é realmente uma flor.
Estão menos livres mas levam jornais
e soletram o mundo, sabendo que o perdem. Sento-me no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Crimes da terra, como perdoá-los? Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Tomei parte em muitos, outros escondi. Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
Alguns achei belos, foram publicados. É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
O ENTERRADO VIVO (1954)
É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.
É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.
É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.
É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência.
(Carlos Drummond de Andrade)
RESÍDUO (1945)
De tudo ficou um pouco Ficou um pouco de tudo de mim; de ti; de Abelardo.
Do meu medo. Do teu asco. no pires de porcelana, Cabelo na minha manga,
Dos gritos gagos. Da rosa dragão partido, flor branca, de tudo ficou um pouco;
ficou um pouco. ficou um pouco vento nas orelhas minhas,
de ruga na vossa testa, simplório arroto, gemido
Ficou um pouco de luz retrato. de víscera inconformada,
captada no chapéu. e minúsculos artefatos:
Nos olhos do rufião Se de tudo fica um pouco, campânula, alvéolo, cápsula
de ternura ficou um pouco mas por que não ficaria de revólver... de aspirina.
(muito pouco). um pouco de mim? no trem De tudo ficou um pouco.
que leva ao norte, no barco,
Pouco ficou deste pó nos anúncios de jornal, E de tudo fica um pouco.
de que teu branco sapato um pouco de mim em Londres, Oh abre os vidros de loção
se cobriu. Ficaram poucas um pouco de mim algures? e abafa
roupas, poucos véus rotos na consoante? o insuportável mau cheiro da memória.
pouco, pouco, muito pouco. no poço?
Mas de tudo, terrível, fica um pouco,
Mas de tudo fica um pouco. Um pouco fica oscilando e sob as ondas ritmadas
Da ponte bombardeada, na embocadura dos rios e sob as nuvens e os ventos
de duas folhas de grama, e os peixes não o evitam, e sob as pontes e sob os túneis
do maço um pouco: não está nos livros. e sob as labaredas e sob o sarcasmo
― vazio ― de cigarros, ficou um pouco. De tudo fica um pouco. e sob a gosma e sob o vômito
Não muito: de uma torneira e sob o soluço, o cárcere, o esquecido
Pois de tudo fica um pouco. pinga esta gota absurda, e sob os espetáculos e sob a morte escarlate
Fica um pouco de teu queixo meio sal e meio álcool, e sob as bibliotecas, os asilos, as igrejas
no queixo de tua filha. salta esta perna de rã, triunfantes
De teu áspero silêncio este vidro de relógio e sob tu mesmo e sob teus pés já duros
um pouco ficou, um pouco partido em mil esperanças, e sob os gonzos da família e da classe,
nos muros zangados, este pescoço de cisne, fica sempre um pouco de tudo.
nas folhas, mudas, que sobem. este segredo infantil... Às vezes um botão. Às vezes um rato.

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