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O jardim, a pegada.

Consideremos o jardim, mundo de pequenas coisas,


calhaus, pétalas, folhas, dedos, línguas, sementes.
Sequências de convergências e divergências,
ordem e dispersões, transparência de estruturas,
pausas de areia e de água, fábulas minúsculas.

Geometria que respira errante e ritmada,


varandas verdes, direcções de primavera,
ramos em que se regressa ao espaço azul,
curvas vagarosas, pulsações de uma ordem
composta pelo vento em sinuosas palmas.

Um murmúrio de omissões, um cântico do ócio.


Eu vou contigo, voz silenciosa, voz serena.
Sou uma pequena folha na felicidade do ar.
Durmo desperto, sigo estes meandros volúveis.
É aqui, é aqui que se renova a luz.

Senhoras e senhores, meninos e meninas, a vossa atenção para a peça “O


jardim”

Havia um jardim no meio de uma cidade.


Tinha mais de 200 anos. Está lá quase desde o início e assistia a tudo.
Tinha-o mando construir um senhor que zelava pela cidade,
o fundador do concelho, cujo nome vive no fio do esquecimento ou é raramente
lembrado. Muitos dele nunca ouviram falar:
- Adriano José de Carvalho e Melo, diz-lhe alguma coisa?
- Pois, a mim também. Até me chegar às mãos este papel.
Era assim um senhor aprumado, intelectualmente dotado, digamos que, em
muito não fugia à minha figura.
Por gostar do campo e da natureza, sabia que um jardim tornaria a sua cidade
mais bela. Por aqui brincariam crianças, sem o perigo dos carros, passeariam os
casais de namorados aos domingos, os poetas e os criativos. Mas também os
velhos e a sua solidão.

E por aqui ainda perdura o seu jardim. Hoje talvez um pouco esquecido, por
culpa do tempo, que sendo sempre o mesmo é cada vez mais escasso.

Mas já que cá estamos vamos conhecê-lo. Um jardim pode ser tudo. Outono,
Inverno, Primavera e Verão. É também um testemunho do tempo, guardião de
memórias, palco de revoluções, habitat de criaturas fantásticas e outras nem
tanto.
Não acreditam? Venham comigo.

Outono. (Naval Naf- Yann tiersen)


(meninas dançam interpretando o outono)
Entre folhas secas, paus. No fim, uma das bailarinas diz:

Quem foi o arquitecto,


que fez este Café?
tão longe da Natureza
e tantos homens de pé?
Criado: põe esta gente na rua!
E abre um buraco no tecto
que eu quero ver a lua.

Tomou-me por um criado! Que atrevimento.


Mas terá a sua razão, ver a lua e estar perto da natureza são coisas que nunca
nos devem faltar à mesa.
Prossigamos.

Inverno. (II- Yann tiersen)


(bailarinas vestidas de negro e branco dançam com violência e agressividade.
Uma das bailarinas em grito de protesto sufocante)

Todas as noites toca um telefone na Lua.


Sou eu, sou eu a marcar o número automático dos poetas de hoje
para gritar cá de baixo em código de astros:

Está lá? Está lá? Aqui Terra, zero, zero, zero, zero, zero.
S.O.S.! Fome, ódio de mil patas, tiranos com cutelos de cinzas,
bandeiras de pele humana, olhos furados de cardos,
mortos que só vêem o céu através dos caminhos das raízes
Aqui escravos, preguiça, azorragues de chumbo derretido,
exportação de tédio dos palácios dos ricos, carregamentos de bocejos,
suor em latas para discursos de demagogos,
fúria de túmulos, guerra, raptos, saques, automóveis imbecis,
, mandíbulas nos olhos a roerem o azul
Aqui planeta zero, zero, zero, nada.

Não sentem o frio gélido? Não sentem?

Na figura de comendador do concelho, registarei o seu pedido de ajuda. Embora


algo confuso devo-o confessar. Sempre gostei de poesia, mas entender tudo o
que os poetas dizem não é fácil.
- Automóveis imbecis (regista e diz: apanhei essa)

Primavera.
(Bailarinas jovens. Como jovens rebentos da primavera. Em passos suaves e
delicados. Entre elas uma Deusa: a Deusa da Terra e dos animais)

Não é que ser possível ser feliz acabe,


quando se aprende a sê-lo com bem pouco.
Ou que não mais saibamos repetir o gesto
que mais prazer nos dá, ou que daria
a outrem um prazer irresistível. Não:
o tempo nos afina e nos apura:
faríamos o gesto com infinda ciência.
Não é que passem as pessoas, quando
o nosso pouco é feito da passagem delas.
Nem é também que ao jovem seja dado
o que a mais velhos se recusa. Não.

É que os lugares acabam.

E se eles acabam, também acabamos nós.

Raposa: A minha amiga andorinha não regressou esta primavera… Não comerei
as vossas galinhas, se deixarem de caçar a caça que é minha.
Esquilo: Porque é escassa a sombra dos carvalhos e dos castanheiros?
Lince: Porque me repatriaram? Não encontro as florestas ibéricas que eram a
minha casa!
Coelho bravo: Porque fazeis de mim um troféu? Na páscoa tão adorado e depois
estufado!
Lobo: Depois eu é que sou o lobo mau. Vejam o tamanho desta pegada.

(Todos reagem com espanto. Uns recuam com medo.)

Como comendador, tomarei nota do achado. Pode tirar-me aqui uma “selfie”?
(passando o telemóvel ao público) Obrigada. Ah, patorra! Não há dúvidas que
esta pegada não é minha.

Prossigamos até ao ex-libris do jardim. Uma árvore raríssima!


Entretanto, no palco, consumidores produzem um amontoado de lixo.
Os animais estreitam escandalizados. As bailariam dançam “We are a dream
nobody wrote down.”

A minha cidade
É uma floresta de cimento
que não ao vento.
A minha cidade
Brilha de noite com um sol caseiro
Em cada candeeiro.
A minha cidade
Tem motores a pulsar
E corações esquecidos de amar.
A minha cidade
Tem voos de gaivotas brancos
Mas todos sonham
Com o voo das notas
A sair dos multibancos.

Comendador: Bem. Não me lembro de isto aqui. Deve ser talvez uma obra da
artista Joana Vasconcelos. Terá tomado o nosso jardim pelo Jardim de
Serralves?

Seguem para a árvore. E em suspenso na árvore, a Deusa da terra e dos animais


Comendador, vejam o que tem sido feito à vossa cidade, não que a
responsabilidade unicamente pese sobre a sua pessoa, mas a sua posição, aliás a
de um político, terá de ser a de um visionário.

- Visionário? (interroga-se o comendador)

Sim. Conhecer do passado, do presente e antecipar o futuro. Veja o que pode


acontecer em pouco tempo numa cidade. O cimento asfixia a terra. Os animais
perdem a sua casa e quanto à pegada é vossa e é de todos vós. Ficará sempre
maior se não tiverdes cuidado.
Construa jardins, senhor comendador e preserve a natureza. A solução passa
por si. Sois a minha voz na terra e a de todos eles.

Comendador:

Em febre e olhando os motores como a uma Natureza tropical —


Grandes trópicos humanos de ferro e fogo e força —
Canto, e canto o presente, e também o passado e o futuro,
Porque o presente é todo o passado e todo o futuro.

O tanto que se pode aprender só num simples passeio de jardim. E depois disto, reflicto:

Uma cidade pode ser


apenas um rio, uma torre, uma rua
Uma cidade
pode ser o nome
dum país, dum porto, dum cais, dum barco
de andorinhas e gaivotas
ancoradas
na areia. E pode
ser
um arco-íris à janela, um manjerico
de sol, um beijo
de magnólias
ao crepúsculo, um balão
aceso
numa noite
de junho.

Uma cidade pode ser


um coração,
um punho.

Que a minha cidade seja um coração, ou antes, um jardim.

(Música feliz. Fim)

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