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contos breves

por jorge vicente


1.

é muito difícil abandonar ljubljana, com as suas paredes de tecido alpino que entram e
saem com a mesma intensidade. é difícil abandonar e ainda é mais difícil partir. porque,
no fundo, a partida mais não é do que deixar o poema no mais recôndito da memória. é
difícil não entrar num único poema, nem escrever das paredes, das pessoas, dos marcos
de correio, das cadeiras junto ao rio onde homens e mulheres escrevem [e partem].
escrever é sempre triste, como acordar noutra dimensão do tempo.

abandonei ljubljana e ainda não consegui regressar. nem, provavelmente, espero


regressar. ou talvez espere. ou talvez deseje ser um escritor e abandonar-me em todas as
cidades, sem género ou, então, em todos os géneros, em todos os barrancos, em todas as
promessas de carne que se descobrem ou que se evadem lentamente no acto da escrita.

poderia ser ljubljana ou zagreb ou a costa inteira da dalmácia. ou mesmo viena. ou


talvez as colinas de lisboa, as ruelas do fado onde jovens e pedintes se abrem [e fecham]
sempre que um transgressor estrangeiro invade os seus segredos milenares. nunca me
apaixonei em ljubljana nem em nenhuma ruela. ljubljana tem ruelas mas não tem o fado
nem a lua gasta dos cigarros estendidos no chão. provavelmente, a velha cidade
eslovena é a cidade onde todos os poetas jurarão um dia morrer, junto à estátua de
preseren, o poeta da cidade e das jovens princesas europeias dos livros das histórias.

todas as cidades são territórios dos escritores. ou dos poetas. até porque um poeta nunca
poderá ser um escritor senão num tempo parcial, olhando o seu belo umbigo palmilhado
a carnes. escrevo isto quando leio que os géneros são características que definem um
texto. acaso será o poema um texto. ou um discurso. ou um género. provavelmente, será
apenas um momento de fortuna, inocente e pueril ou com as promessas da vontade
ainda muito limitadas, infantis, originais [da génese], únicas. acaso será o corpo um
género. acaso será a voz um outro género. mas nada isso interessa a ljubljana, nada
disso porque o que importa é que, numa noite de verão, a escrita ainda era um momento
de prazer e a vida a mais bela profissão do mundo.
2.

sintra era um lugar no meio da escuridão. pedro procurava os óculos aonde parecia
haver pedras. pedras. pedras e mais pedras. pedras grandes e pedras pequenas, pequenos
rochedos como tochas que invadiam o espaço lunar, o lugar onde milhares, centenas,
dezenas, pequenos pontos de pessoas escreveram as suas histórias, as suas memórias, as
suas lentas ascensões, as suas pequenas quedas. pedro era uma dessas pessoas, como
todas as pessoas que procuravam, não os óculos, mas o caminho de regresso para os
carros, que estavam na base do monte.

não te preocupes, amanhã vens cá.

preocupo-me, pois tenho de escrever uma parte do romance. sabes, aquela história que
contei no dia dos teus anos. pensei transformá-la num capítulo, num pequeno
acrescento. gostaste da ideia?

eu gosto de todas as tuas ideias.

sim. [mas não interessa nada o que perdi, talvez amanhã compre outros. ou talvez
amanhã volte cá e não existam mais as pedras. nem os milénios, nem os decénios, nem
os centénios. no fundo, o tempo não acrescenta nenhuma vida às plantas. elas não se
apercebem do que o tempo é, mas nós focamos sempre a história e as manifestações de
pesar e de dor].

amanhã volto cá. [mas talvez diga que não voltei, que me tornei muito limitado, que
limei as unhas, que apanhei uma pneumonia, que demorei mais tempo a escrever as
minhas memórias, que me senti mais aberto do que os outros dias, que ressurgi e voltei
a nadar no mesmo local. talvez diga tudo e dê respostas para tudo. mas nada tem
resposta.]

acho bem. vamos voltar.

vamos.

mas pedro não se apercebeu. havia uma tristeza nas pedras. uma pequena resposta aos
limites da memória que impõe que percamos algo e que não procuremos esse algo, esses
cavalos que fazem sombra aos livros, às pessoas e às pedras 1. tudo o que nasce fica nos
lugares onde amanheceu, onde fez sombra e luz, onde contou histórias, pessoas, onde
acrescentou o que antes não havia sido acrescentado. os óculos não interessavam, mas
havia um companheiro estranho na estrada da lua, algo que não pertencia ao tempo das
pedras, nem das pessoas que as habitavam. algo que era um grito aberto do nosso
tempo, uma construção artificial que impunha a visão quando ela estava sempre lá,
embora escondida, silenciosa, remetida ao silêncio sagrado das árvores.

1
referência ao romance de antónio lobo antunes, que cavalos são aqueles que fazem sombra no mar?

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