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é um pouco difícil dizer da poesia de júlio fernandes, assim como é difícil dizer de qualquer

poesia, qualquer parto que nasça dos nossos dedos, dos nossos olhos, dos nossos sentidos, dos
nossos [ainda não sentidos ] meandros. e mais difícil é neste caso porque a poesia de júlio
fernandes é absolutamente devastadora. devastadora no que provoca, mas mais ainda no que
é. o poema [vida] começa logo por descer e cair, assumindo o longo, mas necessário poço, a
água lúgubre, aquela água que provém da sombra e que renasce da sombra. a sombra que é
necessária para que a Luz se revele,

“Quantos degraus descem os olhos

atingindo a água lúgubre

lençol no fundo no poço

- a boca e a raiz – agora que os

pés tocam a escada,

quantos degraus sobem os olhos

no regresso à Luz que ainda não é”. (pg. 13).

confesso que, quando li estes versos, veio-me à memória o caminho que percorri na regaleira,
quinta centenária de sintra e que tem um poço. tudo na regaleira tem um significado
escondido, o dono era um apaixonado pelas coisas esotéricas e encheu as pedras daqueles
símbolos, daqueles mistérios que não são mistérios nenhuns [senão a vida]. o poço era,
essencialmente, o caminho que cada um percorre para se reencontrar a si mesmo. muitos se
reencontram em deus, na poesia, no amor. ou em todos. a poesia de júlio fernandes teria
forçosamente de se iniciar num poço, num poço que tivesse muito do lençol rasgado, da boca
rasgada, do desamor, da luxúria que não é luxúria senão a ausência do Amor. e teria
necessariamente de se iniciar na Terra, no fundo mais fundo da raiz. de facto, se nos
lembrarmos da velha serpente [a kundalini], notamos que o fluxo de energia se inicia sempre
na terra, na terra-mãe, nas coisas cá de baixo, onde a luz é apenas uma luminosidade parca,
ténue [a vidinha, segundo dizem alguns poetas]. o caminho tem de ser feito para o Pai, as
coisas cá de cima, as coisas do Amor, da Vida. daquele Amor integral que não pode ser o lençol
rasgado, o sangue, a angústia, o estar aqui mas não estar aqui, a ausência. daquele Amor que
só pode ser partilha, daquele amor que só pode ser prazer, orgasmo, orgasmo de tudo,
orgasmo da natureza, orgasmo da partilha, das plantas, dos pássaros e dos corpos, claro.

o “enganado” clama assim pela Vida integral, pela Vida que sabe estar lá, que pode vir a
chegar, mas que ainda não a sente. A “histérica risada da terra”, a “vida que bate 1” está lá, mas
o caos ainda é o caos, a luz ainda é a luz e não aquela Luz com o clarão da Vida que não bate

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Pg. 15.
mais, mas que transcende o próprio batimento de tudo. a humanidade finge sempre a Luz, não
a conhece, o próprio poeta ainda não a conhece, embora gritando sempre por ela, por aquilo
que ela é, por aquilo que ela lhe trará. rolando toro fala em dois conceitos basilares: o íntase
(irmos ao encontro do mais profundo de nós mesmos) e o êxtase (irmos ao encontro do outro,
numa iluminação de vida e num transe de tudo). a humanidade ainda nem ao íntase chegou,
ainda não descobriu que existe uma sombra, que existe um poço e que nós precisamos de
descer esse poço para reencontrarmos a carne do Outro. Sempre o Outro, aquele que amamos
e devemos amar não como manifestação ideal [ou platónica], mas como manifestação de Vida
e de carne. A poesia de Júlio Fernandes é uma poesia de Amor e de descobrimento.

essa luz que, como disse, ainda não é a Vida integral leva o poeta a confundir a verdadeira Luz
com o abandono do corpo. aqueronte está pronto e poderá levar a barca. no poço, existem
muitos vermes que poderão estremecer este meu corpo 2. no entanto, o caminho do poeta não
é um caminho de vermes, mas um caminho de água, de seiva, do poço que é poço-terra,
floresta-raíz, terra-carne. os corpos – unidos e mundos – reencontrar-se-ão e aspirarão na
floresta o seu reencontro, mas será que ainda é a hora? 3 o poeta ainda não se esqueceu da
dor, da dor que ainda é presente, que ainda é aqui e não ali, que ainda não é no desejo do
corpo quase fogo, ainda mais terra e desejo 4,

a vida tem a sua parte mórbida e

não permite o livrar-me do que aconteceu:”

no entanto, a Luz anuncia-se, como se fosse uma obrigatoriedade da própria existência: teria
necessariamente de ser assim, quem ousa escrever e ousa descer do poço, quem ousa
pressentir que possa haver uma serpente [energia] que queira entrar, queira ajudar a subir,
quem ousa descer ao mais fundo de si mesmo, só pode descobrir essa Luz. E, no poema da
página 21, isso é evidente:

“e porque as ilusões já me não pertencem” 5.

ou seja, começa a haver o desapego, a recusa das ilusões, a vida não é a vida e só posso aceitar
tudo. aqui eu existi e aqui estão as minhas memórias, aquela casa defronte onde nasci, onde
brinquei, onde descobri as primeiras letras. no fundo, a nostalgia que júlio fernandes evoca e
que preenche todos os recantos da paisagem duriense onde cresceu. mas essa nostalgia ainda

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é, na primeira parte do livro, uma sensação de profunda tristeza, a sensação de que algo se
perdeu e que tarda a reencontrar. será que a Luz volta? 6 Mas, para o poeta, a Luz ainda é,
necessariamente, significativa do abandono do corpo, o nevoeiro, a bruma, a morte. mas a
morte não é a vida [só o é, por vezes]7:“e é já cinza este corpo que o tempo ceva” 8.

Mas continua a haver uma pele, continua a haver corpo [ou o desejo do corpo, a ânsia da
pele]. o poema só pode ser pele ou só pode ser corpo, não pode ser outra coisa porque senão
se estaria a intentar contra a dimensão sagrada da Vida: “a ausência das chamas e das
fecundas seivas – corpo – e saber-te presente na comunhão do espaço das aves 9”. O corpo
ainda está ausente e é a ausência desse corpo que faz da bruma e da luz a angustiosa realidade
do poeta. Mas o riso, o porquê daqueles que riem só pode anunciar, só pode dizer que o
espaço da Vida está por nascer [quase nascer – agora]. É no fundo o desembrulhar do antigo
calendário, daquele calendário que é muito mais do que a passagem das estações. É o
abandono do deus cronos para abraçar o deus cairos, que significa o tempo da vivência, o
momento presente, o Agora [o Amor].

E é o adeus, o adeus das manhãs claras, mas que não dizem nada, das profundas terras que
sempre marcaram o triste desenrolar dos dias dos calendários humanos, esse adeus a uma luz
que é a luz de quem não conhece, de quem não sabe que tem um profundo poço dentro de si,
poço esse que tem um lençol e uma ânsia de terra-descoberta que é a Vida toda:

“Oh Mundo!

Agora que sei:

nada me deste.

Deixa-me amar-te

nesse abraço

que aconchega,

Luz radiosa

com que me abandonas! 10

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este poema é quase a passagem para o outro mundo, o mundo-que-está-por-vir ou que já é
agora. parece um grito vindo de fora, como se alguém-outro o tivesse pronunciado ao poeta e
lhe dissesse que chegou o momento certo. O momento do afastamento do passado e a alvura
de um novo presente. aqueronte, afinal, sempre esteve aqui, mas a morte é sempre um
renascimento e o que está do outro lado vai demonstrar que o desamor é sempre o caminho
para o amor. não dizem que o sofrimento cura as feridas mas, ainda mais, que o conhecimento
da sombra nos torna mais fortes? e mais conscientes do que somos verdadeiramente? O poeta
agora está sozinho e É11. e tudo me leva a Ti, mesmo que o verão já não seja e que o Outono
não seja apenas a lenta queda das folhas no chão, esse chão que canta um estribilho antigo e
que o poeta já sabe que não tem sentido. tudo me leva a Ti. mas eu quase-Sei. Aquilo que vivia
antes e que abandono agora já perdeu quase todo o sentido, há uma nostalgia das plantas e
das árvores, a paisagem duriense é uma paisagem do passado, do meu passado e o novo
presente continua a anunciar-se. já não quero as borboletas.

quando o peregrino se torna verdadeiramente caminheiro, quando sabe que o poço já não é
um poço, mas a mais profunda descoberta do amor através do desamor, tudo grita. neale
donald walsch afirma, em conversas com deus, que quando um homem afirma a sua
identidade como homem de deus [ou homem do amor, do orgasmo da vida], tudo grita, dolly
grita12, toda a natureza grita. será tristeza? ou será o grito do parto quando nascemos outra
vez? no fundo, “talvez seja só Ela a lembrar-se do seu sono no colo da mãe”. a partida é
sempre um parto, o supremo renascimento através da morte-vida. ou o caminho místico do
amor.

e a primavera acontece. já nasci outra vez. comecei a subir o poço e já defrontei o temível
minotauro que sempre esteve cá. a minha sombra – a minha ânsia de descobrir através dela o
caminho do regresso à Luz. que sempre Foi. que sempre É. e sempre é em murmúrio, o
pronunciar das vogais do regresso: “es cu ta”, quase como se o vento trouxesse e as pedras,
numa voz pequenina, dissessem que o amor feito carne estivesse quase para chegar [e está]. E
poesia de Júlio Fernandes é uma poesia do lento iniciar do amor, que é Vivo e é carne de tudo.

e este caminho/caminheiro É através da água, do descobrir do orgasmo de todas as coisas da


terra, do desabrochar da vida animada dos elementos, que seguem, seguem e despoluem.
vivem outra vez. e riem.

“Acompanha a mensagem da terra

Um despoluir, como se todos os rios

Animados fossem, ainda e agora,

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Caminhos.”13

E a despedida da caverna consuma-se. não a caverna de platão, redutora na sua concepção da


vida como conhecimento, mas sim a nossa própria caverna que representa a ausência do amor
e do corpo. a despedida dessa caverna indicia sempre a redescoberta daquilo que é mais
sagrado a toda a humanidade, embora ela não se aperceba disso: os afectos, o prazer, a vida, a
criatividade, a transcendência do belo e do amor. a poesia de júlio fernandes é um claro
exemplo daquilo que mais transcende na humanidade e, por essa razão, é tão rica, bela e das
melhores coisas que se têm produzido na literatura portuguesa contemporânea, que tão
afastada está da Verdadeira Vida. o abandono daquilo que a paisagem duriense representava
[nostalgia do passado, tristeza, o lençol rasgado] e a descoberta da foz do douro nas corridas
dos aviões14, que mais do que o poço, é a liberdade das asas em mil piruetas de calor humano
é maravilhoso. o amor redescoberto, a carne redescoberta, o caminho sempre aberto através
de nós mesmos: a tempestade, a voragem, o prazer. Mas, também, a descoberta da sé, de
tudo o que é fora, de um novo mundo, de uma nova voz, de um novo corpo-mulher:

“Ouvi a tua voz apenas por um momento

e não eras lá, não eras nem podias ser,

mesmo que fosse parte da pele de meus dedos

a dar-te esse sinal só para te ouvir dizer,

em vernáculo,

a tempestade que o vento aproxima”15

e a nostalgia que é torna-se outra, transforma-se em memória, em história de vida, naquilo


que foi o meu passado e que agora não faz mais sentido para mim 16. a sombra que foi em Luz
se tornou, em orgasmo de natureza se tornou, em poema de pele, de dedos se tornou. Em
loucura se transformou, em gemido, em prazer.

“esta mão remexendo a meia altura,

a corrente subjacente da loucura

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“esta casa que me estranha quase todo, sujeita ao mimo do vento (o vento ainda vive neste quadro
que é tempo solto ao riso)” – página 45.
o riso em direcção à luz.)17”

e o que foi nostalgia em compreensão da memória se tornou / e o que foi menino tímido em
menino-poeta se tornou / e o que foi luz em Amor-Carne-Vida se transformou. E a paisagem
duriense é a paisagem da ruína, a paisagem do velho tempo em que o São João ainda não
tinha fogo nem aqueles olhos que brincam com os meus e que me ensinam de novo o amor.
eu poderei ser um fantasma para esta paisagem que ainda não É (ou talvez Seja, num outro
sentido), mas todos nós somos loucos e somos elementos estranhos quando nos aproximamos
do portão da morte/renascimento. quando amamos e regressamos à terra que nos viu
crescer, somos outros. e aquilo que era familiar para nós, deixou de ser. transformou-se em
memória/nostalgia, deixa-nos tristes, mas tristes no sentido de que o passado é o passado,
que o “sabor do assado da casa” 18, que não volta mais, passa a ser instante partilhado.
passamos a partilhar as pequenas coisas, as pequenas memórias que nos fazem ser tão
humanos e tão belos. as últimas páginas do livro de poesia de Júlio Fernandes são uma das
mais belas páginas referentes ao poder da memória e ao poder que ela exerce sobre nós:
molda-nos, faz-nos Ser, deixa-nos com essa nostalgia que, a espaços e num fluxo/ciclo, sempre
vem aparecendo.

“nasci para um sol cinzento

que antevi pelas asas por onde

assomou a minha cabeça.

(…)

E desejei voltar ao escuro;

gruta mais quente que o mundo19”

esse escuro, essa gruta que nos faz lembrar do triste abandono do ventre materno é, ao
mesmo tempo, o voltar a ele. se há um regresso ao amor, também há a consciência de que
esse amor pode acabar [morte] e que é imperioso viver cada vez mais, mais plenamente
[êxtase], embora sentindo o peso daquilo que nos ferve e chora por dentro [íntase]. Tudo é
um ciclo e tudo na nossa mão existe. O amor é uma permanente descoberta. mas devemos
aceitar que o poço existe sempre. e que a sombra sempre nos atravessa, embora isso não seja
necessariamente mau senão o facto de sermos humanos e inteiros.

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Espero que vocês amem tanto esta poesia como eu amei. porque a poesia de Júlio Fernandes é
fantástica e é das melhores coisas que se têm produzido por cá, ultimamente. uma poesia da
Vida e do Amor, daquilo que nos faz sentir vivos e humanos [por dentro e por fora].

um grande abraço a todos

jorge vicente

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