isbn: 1234567890
Depósito legal: 320 980/10
Henrique Segurado
lisboa, 2010
Henrique Segurado à porta da casa onde nasceu.
Para a minha Filha Joana
que se antecedeu à publicação deste livro
que lhe pertence inteiramente…
Com um beijo e a saudade do Pai.
A voz de Henrique Segurado,
voluntariamente discreta pelas longos in-
tervalos que têm caracterizado o apareci-
mento das suas obras, é, no entanto, das
mais pessoais dentro da geração de Cin-
quenta, já por um sentido muito agudo do
aproveitamento da tradição em termos de
modernidade, já por uma exuberância ima-
gística que frequentemente alterna com um
pendor lapidar ou epigramático, de origi-
nalidade não menos surpreendente.
Além do amor, que constitui um dos
seus temas constantes, é sobretudo uma
interpretação crítico-lírica da sociedade e
da história portuguesas o que mais amiúde
o empolga, havendo escrito, nos tempos
do salazarismo, variadas composições que
devem considerar-se como das mais nobre-
mente marcadas por um desassombrado es-
pírito de protesto e de resistência. Quanto
à forma, e embora utilizando não raro o
verso livre, manifesta-se, na sua obra, uma
nítida preferência pelos metros tradicio-
nais, muito em especial pela redondilha —
tanto pela do romanceiro como pela das
«profecias» do Bandarra —, tendo sabido
conferir a uma e outra o halo renovador de
uma perspectiva actualizante.
David Mourão-Ferreira
Calendário
Nem me lembro
De Dezembro
E chegamos a Janeiro,
Entra Março
E disfarço os percalços de Fevereiro.
Flores de Abril
Num fuzil
Devolvendo a Primavera…
Chega Maio
Mês lacaio
Do trovão que não se espera.
Junho, Julho
Há entulho
Onde outrora havia areia
Vem Agosto
Cheira a mosto
Já Setembro s’incendeia,
Resta Outubro
E descubro
Um Outono que chegou…
Cai Novembro
Vem Dezembro
Mal o ano começou!
11
Mergulho no Passado
Havia um S no cinto
Uma espécie de serpente
Era dum vulto indistinto
Que mandava em toda a gente!
Se ordenavam: «sentido!»
Morria toda a cidade,
O corpo reconhecido
Se gritavam: «à vontade!»
12
Faca
13
Também de noite
Os Rios Correm Inteiros
14
Calatrava
15
Vão-se As Águas sem Canção
É um rio subterrâneo
(À vista só se pressente)
Num reino subcutâneo
Da nossa estátua jacente…
Em perpétua confusão
Mistura a foz na nascente.
Vão-se as águas sem canção
E nós vamos na corrente…
16
Noite
És tão pontual,
Manto transbordável
Mas tão natural
Como indecifrável.
És o trigo e joio,
Graças e ofensas,
És ponto de apoio
De pontes suspensas.
17
À Poesia
18
Na Morte da Avó Adelaide
19
Zero
20
Ressaca
21
À Maneira de Dom Dinis
22
Pã no Seu Tempo
Tem os centauros,
As beladonas,
Dos tempos áureos
Das Amazonas.
23
Pastoral do Ano 2000
24
Na Guerra do Roussilhão
25
Cana Verde, de Verdade
26
Teatro Amador
27
Mão Fechada
A promessa apalavrada
Quem diria, quem diria…
A montanha escalavrada
Na medonha ventania.
(Parece terra lavrada
Esta espécie de poesia…)
28
Melaço
No combate combatemos
Contra a nossa liberdade,
Sem saber por quem morremos
Não sabemos a verdade.
29
Van Gogh
Prata amarelada:
A praia deserta.
E nadava em nada
Com a boca aberta.
Desconheço Ovídio,
Os Gregos os Godos,
Mas no suicídio
Encontrei-os todos!
30
Amor em Dia de Chuva
Só eu entendo o murmúrio
Dos teus lábios que me falam
De segredos do Dilúvio
Onde as cidades se calam.
31
Escavação
1
A caminho de Pompeia
35
2
Ponte dos Suspiros
36
3
Os Vidreiros de Murano
37
4
Rosa, Rosæ…
Os Tribunos da Plebe,
Imperadores convertidos.
Os cedros fazendo sebe
Junto aos arcos abatidos…
38
5
Siderurgia
39
Judas
Quis um império?
Nem pensou nele:
Como actor sério
Cumpre um papel!
Pedro sentiu
Que não fez tanto
Também traiu
Mas ficou santo…
41
Portugal 1976
Os maços de «Provisórios»
Foram-se as marcas estrangeiras…
42
Solstício de Verão
43
Ramsés o Grande
Na tua clepsidra
Desagua o rio do tempo,
Mas tão feroz como a Hidra
Que devora o próprio vento.
(Quando há sede em vez de cidra
O Homem constrói um templo…)
44
Amor-Perfeito
Na explosão da semente
O desejo é o rastilho,
Fica o coração dormente
Nos rituais do Tomilho.
Só as Passas de Corinto
Não servem na refeição
De requintes de absinto
E de sangue de dragão…
45
Trás-os-Montes
46
Ronda da Noite
47
Canção Estival
Chove em Agosto
Sol em Dezembro!
Esse teu rosto
Donde é que lembro?
A Primavera
É exigente,
Amor de fera
Condescendente.
O roçar terno
De chama amiga
Traz o Inverno
Mais não obriga.
Sonho no sonho
É casa em ermo,
Só o Outono
É o meio-termo.
Chove em Agosto
Em água acordo.
Esse teu rosto
Donde o recordo?
48
Emilio Salgari
49
Tornamos a passar rifas Que vendem caro o seu mel,
(Talvez a sorte aconteça) Sermos os peles-vermelhas
— E o «Filtro dos Califas» Sem olhar à cor da pele…
A martelar-me a cabeça! — Ver azul de mitilene
Esconder nas medas de feno Ou oceano num charco
Os que são do nosso bando E a Lua acitilene
— Embalar desde pequeno No tecto do nosso quarto.
Os sonhos do contrabando. — Tanta coisa ignorada
Pormos penas no cabelo Como não tendo importância…
E com pinturas de guerra Ai! pasteleira encarnada
Montar as mulas em pêlo No portão da nossa infância!
Que se espojam pela terra.
Sem temermos as abelhas Sagres, 23 de Julho de 1977
50
Véspera de Natal
O lume estala
E espalha incensos.
Um mundo fala
Nos olhos densos.
O arroz doce
Como emboscada,
Enevoou-se
Na madrugada.
51
Espanha 1978
52
No cessar-fogo de agora,
Num meio-tempo que consente
Pensar em paz, muito embora.
Sol e sombra sem mais nada
Prometendo alternativa
E Castela descarnada
É teu corpo em carne viva!
Teu corpo rasgado em rios
Procurando mares sangrentos…
El Greco de corpos esguios
Goya dos «Fuzilamentos»…
Ferra novilhos e fincas
Sob um sol que brilha a pino.
O ouro roubado aos Incas
Não dourou o teu destino…
Guadaletes, Calatravas,
As receitas do passado.
Ai! paella de palavras
E momentos misturados!
53
Cassiopeia
1
Inferno
Câmaras ardentes
Promiscuidade:
Mortos e viventes
Em cumplicidade.
Os sobreviventes
— Em comunidade —
São eles utentes
Da fraternidade.
Tão surpreendentes
Pela novidade:
Os mortos recentes
Não vendem saudade.
57
2
Purgatório
Vinagre e azeite
Os extremos se tocam.
As plumas de enfeite
Que aves evocam?
O riscar do raio:
Farol do trovão,
Das chuvas de Maio
Ao aluvião…
Na força do vinho
Vem a solução
Abrindo um caminho
Alheio à Razão.
Passa a bebedeira
E regressa a vida
Tão mais verdadeira
Tão mais repetida…
58
3
Céu
Pelo firmamento
Ninguém se passeia?
Sem gradeamento
Vê-se a Cassiopeia…
Andar à deriva
E ao deus-dará
Onde a carne viva
Jamais sangrará.
É fundindo o aço
Que o fogo se dobra.
No fundo do Espaço
Que espaço é que sobra?
No céu as pegadas
São quási ilusões,
Semi-apagadas
Nas constelações…
No leque do vento
Que rosto se esconde?
Tudo é movimento
Ninguém nos responde!
59
Poder Secular
1
Camões
63
2
Fernando Pessoa
E a ponta da loucura…
O granito do talento…
A folha que se procura
Entre as mil que tem o vento…
A semente rejeitada
Mas que vale uma seara.
A onda desenrolada
E que na praia não pára!
64
3
Cesário
65
Certidão de Nascimento
Entrei na vida?
Mas não vi nada…
Saí de mim
Desencontrei-me!
Havia Praças?
E mais cidade?
Havia estrelas
Constelações?
Havia tudo
Ou quási nada?
67
«Post Scriptum»
68
Contra-Relógio
69
Mina de Sal
70
Nível de Água
As cepas de enforcado
Querem levar vinho ao céu,
Num gesto desesperado
Duma raiz que cresceu.
E de colheita em colheita
Envelhece o tempo em cascos
Como a cabeça direita
Que não se verga aos carrascos.
71
Cozido à Portuguesa
72
Kremlin
Praça Vermelha
Lua encarnada
Como groselha
Engarrafada.
Longas muralhas
Também sangrentas
Como as navalhas
E águas barrentas…
Foram-se os reis
Nos turbilhões
E agora as leis
São dos peões…
73
Roleta Russa
Casino de ocasião
Sem porteiro ou empregado,
Poente de saguão
De suor todo alagado.
A espingarda de pressão,
Que guardamos do passado,
A furar o coração
Dum presente recusado…
74
Gelo
75
Auto-Retrato
Poeta de circunstância.
Poeta de ocasião.
Subsolo e substância
Da luz do seu saguão.
A provar a indigência
— Atestado de pobreza —,
Não poeta por ciência
Mas poeta por certeza.
76
Visitas Proibidas
Um caroço de cereja
Na garganta estrangulada…
É quando o soro goteja
Numa colheita estragada.
77
Integração do Átomo
1
Monte de Tabor
81
2
Cassiopeia
82
3
A Meia-Nau
À bandeira a meia-haste
— A morte em nós recomendável —,
Pensar nela um quanto baste,
Meio sorvo de água potável.
83
4
Átomo
O Espaço é todo feito de distância, O que era a multidão sem ter anónimos
De abismos, movimentos, incerteza. Embrenhados na própria solidão?
Nas galáxias da nossa ignorância A vida é toda feita de binómios
Quem vem reconhecer nossa tristeza? Tanta vez sem nenhuma solução!
84
Cavalo da Acrópole
87
Tempo de Silêncio
88
Telex a Lech Walesa
89
Acordar em Hotel
90
Saudação a Enrico Berlinguer
91
Passagem de Nível sem Guarda
(Comboio de corda para a minha primeira neta…)
92
Nome Próprio Feminino
1
Camões
95
2
Jau
96
3
Natércia
97
São Paulo
99
Algarve 1982
É o nylon e a fibra,
Em vez da chita, presente.
É o dólar ou a libra
A moeda mais corrente?
100
Cega-Rega Marroquina
101
O Luar é Azulado
Inocente degolado
Talvez um deus não consinta.
Caçador desalentado:
Poucos troféus traz à cinta.
O luar é azulado?
Não se conhece na tinta…
Só o céu o quer pintado
Sabe-se lá quem o pinta.
Estrada Badajoz-Córdova,
28 de Setembro de 1982
102
Este Ano em Jerusalém
Faremos autos-de-fé
Nas estradas de Sesmaria,
Iremos a Nazareth
Ver a Casa de Maria.
E também a Jericó
E a qualquer outro lugar.
Preciso: é sonhar sem dó
Até a noite sangrar.
103
Latifúndio
Há labirintos, abismos,
Tudo nós temos cá dentro:
Há cicatrizes de sismos
De que somos epicentro…
Há oceanos e lagos,
Planícies e colinas.
Há horizontes tão vagos,
Montanhas com neblinas.
104
Última Caçada
Solta-se o furão
P’ra dentro do mato:
Esta a punição
Este o desacato!
Tudo é ilusão.
A ave não pousa?
É galgo ou falcão?
É lebre ou raposa?
105
Velhas Casas Cor-de-Rosa
106
Poema em Construção
107
Os Insectos e os Outros
108
Lápides Apagadas
109
Ex-Libris
Eu ando camuflado
Pela pele das Estações:
Pele de tambor já estalado
No passar dos batalhões.
Sou o sargento-ajudante,
Por vezes o despenseiro…
Todo eu mudo num instante
Como vento passageiro.
110
Auto-Retrato
111
Última Tentação
No desfecho só se aponta:
Um Deus prostrado ou altivo.
Mas bem no fundo só conta
O homem que ficar vivo!
112
Tocata e Fuga
Cravo temperado
Em cena laica,
O tablado
Harpa Judaica.
Mais o Fandango,
O Minuete,
Cantor de tango,
Voz de falsete.
O dó bemol,
A semifusa,
Clave de sol:
Olhos da musa…
O ré menor,
Uma colcheia,
O fá maior:
São grãos d’areia.
As notas pretas
Como rosário,
Que planetas
No Planetário!
113
Outro Natal
P’ro ano quem virá? E quem partiu
Quando o pano de ferro for içado?
O sino, se tocou, ninguém ouviu,
O bronze foi apenas beliscado…
114
Via Appia
Desenhas a Geografia
Com tribunos e Tibérios?
Teu leite da tirania
Fez a nata dos impérios…
115
Marvão, Tantos de Tal
116
Audição Única
É visível e concreto.
É o sim e negação.
É o presságio secreto
D’aviso à navegação…
É a flor do deserto,
Vertigem de saguão,
É como cântico aberto
A retalhar a canção…
117
Circus Maximus
1
Dança do Escalpe
121
2
Terra de Siena
122
3
Pedra de Carrara
123
Obsessão
125
Uma Gota de Sangue
Coração és lago,
Gota afluente,
Pesado, tão vago,
Bem dentro da gente.
És mundo lacustre
No Espaço sumido.
Desenho que ilustre
História sem sentido.
Canto de sereia
Sem direito a praia.
Dois palmos de areia
Onde o Sol desmaia.
126
Queda do Império dos Romanos
127
Do alto do Palatino,
Num olhar tudo se alcança,
Ser-se dono do destino
Dava alguma segurança…
128
Domingo de Ramos
Goteja o sangue na lã
Que ninguém já agasalha,
Fica mais quente a manhã
Se um cordeiro se tresmalha.
129
Nicarágua
130
João Sem Terra
E no ar que respirava,
Eu renegado e converso
Filho Pródigo aspirava:
Só ter direito ao regresso!
131
Branco e Negro
132
Sândalo
133
Noite e Nevoeiro
Inclemente, transitório,
Vem depois o esquecimento,
Promessas de Purgatório
São as celas de cimento…
134
Santo Sepulcro
135
Tântalo
136
Outrora o Natal
O burro do Ritual
Junto à vaca dormitava,
Um anjo descomunal
Uma trombeta empunhava.
137
Fermentação
Talhada de melancia
Ou gomo de tangerina:
Sobrava a lua do dia
Como fosse lamparina…
138
Nebulosa em Espiral
1 — O Túmulo e a Rosa
i
A Neve e o Mar
141
ii
O Túmulo e a Rosa
As estrelas incandescentes
Nunca gelam sobre o Pólo.
Quem degolou inocentes
Embalou filhos ao colo!
142
iii
O Sal e o Açúcar
143
2 — Os Mundos Exaustos
iv
As Estrelas Assassinas
144
v
Prece
145
vi
O Pão e a Pedra
Só o silêncio responde
A cada prece of’recida,
Cada homem em si esconde
Uma chegada e partida.
146
3 — Juízo Final
vii
147
Poço fundo? Poço amargo?
Ai quem pudesse dizer!
Todo o Espaço era tão largo
E não puderam caber!
148
Fechado para Obras (Poéticas)
Renovado,
Independente:
Estou fechado
Actualmente.
Fui plantado
Novamente.
Estou fechado
Na semente…
151
A Noite dos Degolados
152
Ponto Negro
153
Deus no Confessionário
Não é fácil o que venho aqui propor: Poderoso, porém, ninguém me chame,
A cada qual darei o Paraíso… Tão sozinho me quer a majestade!
A ferro e fogo darei o meu amor, Eterno? Para mim isso é vexame,
O Mundo arrasarei, se for preciso… Invejo a cada homem sua idade!
154
Livro das Horas
155
Folha a folha, dedilhadas na memória,
Livro das horas aberto ao luar.
Vendo melhor: leitura transitória
Com palavras a tomarem-me o lugar…
156
Conta Errada
O Eterno e o Momento
Não nos dizem quase nada:
Um milhão ou três por cento
Tanto faz, em conta errada.
157
Gaivota
158
Colóquio dos Simples
159
Multidão
160
Abstenção
A Lua de diamante
Rasgou a noite de vidro,
O sonho ficou distante,
Transparente, empedernido.
161
28 de Maio de 1926 – Verão Quente de 1975
162
Miradouro
163
Sessões Contínuas
Ir ao cinema?
Que má ideia!
Haja uma cama
Que sublime
Este desejo
De Lua Cheia.
Rasga os bilhetes,
Conto-te o filme!
No intervalo
De cada entrega
Há rebuçados
— Subentendidos —
É uma guerra
Uma refrega:
Esta batalha
Só de sentidos!
Este desejo
De Lua Cheia
Haja manhã
Que o sublime.
Somos ecrã
E plateia.
Rasgo os bilhetes,
Conto-te o filme!
164
Cal Viva
Acontece. E acontece
Somente o que tem de ser.
Tanta água que apodrece
E que devia correr!
165
«O Tempo Está Próximo»
166
Chegada
Se viesses volteando
Movimentos dum sem-fim,
Em folha solta, voando,
Outonos dentro de mim…
167
Fado Amália
168
18 de Julho de 1936, Dia de São Camilo
169
Passe a Palavra
170
Os Robinsons do Espaço
171
Fuga de gases
Asfixiantes.
Da nuvem oca
Nasce um Danúbio
E, gota a gota,
É bancarrota
Qualquer dilúvio.
Grandezas parcas,
Moleculares…
As novas Arcas
Não deixam marcas:
Vão pelos ares…
A descendência
Assegurada
Sem penitência
Só transparência
Toda estrelada!
Razão de fé?
Sobrevivência?
Quem foi Noé
Hoje não é,
Diz a Ciência!
Fosse o que fosse
Que aconteceu,
Alguém queimou-se
Na água doce
Vinda do Céu!
Assim queimados,
Vamos na leva,
Tão segregados
Os degredados
Filhos de Eva!
172
Véspera Veneziana
1
Constante
O campo de feno,
Uva prateada.
O pó do veneno
Já não custa nada.
Flores não removem
O que já passou…
A Lua é o pólen
Que o vento levou.
Ficou o perfume
Da tua presença,
Adaga sem gume
Desta noite imensa.
Tolda-se o olhar,
Tolda-se o anis,
As estrelas no ar
São pontos de giz…
Muda de lugar
Tudo o que convém.
No fundo do mar
Há terra também…
Estrada Bergamo-Brescia,
21 de Setembro de 1986
175
2
Aquário
Há sempre sinal
De quem dá um passo.
Bola de cristal:
O Mundo no Espaço…
Quem faz a leitura
Do que nos virá?
Ai, quem nos segura
Também largará…
Tão imaginário
O Mundo suspenso:
Tão grande aquário
Tem o mar imenso…
Violino a solo
O som que desaba;
Tudo em cada Pólo
Começa e acaba.
Quem foi que pudera
Dizer, se é mentira:
Esta atmosfera
Que a gente respira!
176
3
Fresco
A Pomba anuncia
A Nova Verdade
À pobre Maria
Tão na puberdade!
São dramas, são actos,
É o vinho, o mosto.
É o sal dos factos,
Vinagre no gosto…
São choros e risos,
Transfigurações.
Também Paraísos
Para os Bons Ladrões…
Vai caindo areia
No vidro do Tempo.
A Última Ceia
Já é testamento.
Os Trinta Dinheiros
Já estão bem contados
E os companheiros
Estão apavorados…
Há pão amassado
Para os que não comem.
Tudo condensado
Na vida dum Homem!
A História Sagrada
(Caminho ignoto):
Banda desenhada
Por mãos de Giotto.
177
4
Lucros e Perdas
178
5
Homo Faber
179
Insónia
Afago a fogo
Teu corpo inerte
E penso logo
Que vou perder-te…
A pedra quebra,
Estilhaçada,
Mas eu na treva
Não dou por nada…
A noite mura
Nosso abandono
Enquanto dura
O nosso sono.
És a escultura?
Pedra talhada
Nessa cintura
Por mim esmagada!
181
Cesário a Corpo Inteiro
182
As igrejas, frente a frente,
São peças do mesmo quadro
Que te lembra de repente
A falta que faz um adro.
183
Os Ralos do Relento
1
Preciso de ti:
Como o segredo precisa do ouvido
E a sede precisa da garganta,
Como a frase precisa dum sentido
Se à noite, sem se ver, uma voz canta…
Preciso de ti:
Como a onda precisa do sal,
Como a altura precisa da montanha,
Como o barco precisa do sinal
Do farol, acendido em terra estranha.
2
Preciso de ti:
Como a treva precisa da escuridão,
Como do equilíbrio o acrobata.
Como da veia cava o coração,
Como os fios do luar precisam
prata.
3
Preciso de ti:
Como dos pratos a balança
Que equilibra a verdade por momentos,
Quando o fiel é a voz da confiança,
Parando, só por si, os movimentos.
184
4
Preciso de ti:
Como o verde precisa das plantas
E o vento da folhagem que estremece…
Se acaso a morte vem, a páginas tantas,
Serás apenas tu quem não me esquece.
5
Preciso de ti:
Ao sol estendido
Ou fazendo frente à multidão
— Segredo que transborda do ouvido
Sempre que se abre a porta ao
coração! —
6
Preciso de ti:
Como o peixe que na rede
Não queira encontrar uma saída…
De ti preciso a água,
Preciso a sede
E mais a morte,
Avesso desta vida!
7
Preciso de ti:
Como o galope precisa dos cavalos
Quando tudo em frente é Dimensão.
Como o silêncio
Que responde à voz dos ralos
Que deixam sem resposta
uma questão!
185
Passagem do Ano
186
Profanação
187
Quarta-Feira de Cinzas
188
Fechadura Yale
189
2
Dois corpos na cama: brutal confusão!
O orgasmo tem mar nunca revelado.
Quem sonhar areia, vai vê-la no chão,
Quem sonhar o céu tem tecto negado.
190
3
Serás a escavação e o aterro,
O dilúvio e a seca misturados,
Como Adão e Eva no desterro
Ainda sem os corpos bem moldados…
191
Incógnita
192
Cofre de Segredo
193
Cotação do Dia
194
O Beijo de Judas
Como a noite é diferente aos outros Onze… Praia da Marinha, 14 de Julho de 1987
Só Pedro terá hoje algo a dizer:
Negar, o que depois virá no bronze
Dos sinos por que tem de responder…
195
Ofícios Esquecidos
196
Papel-Moeda
O próprio Pessoa,
Por seu lado, talvez confessasse
Que por vezes ainda receia
Que seja isto tudo mais uma trama do Alves Reis,
O tal que já se serviu um dia do Vasco da Gama
Para trocar as voltas ao Banco Emissor
E ao fleumático Sir William Alfred Waterlow
Da firma impressora Waterlow and Sons
E que hoje dele se sirva
— Pois que já é figura nacional —
Para uma moscambilha qualquer…
Ricardo Reis
O do «Ouvi contar outrora quando a Pérsia»,
197
Com a sua indiferença de xadrezista
Reproduzirá mentalmente
O acontecimento
Como a multiplicação dos grãos de trigo
Pelas casas do tabuleiro
E acabará por achar também habitual
O constante desdobramento da tua universalidade
Tão natural
Que nem Lídia
Lhe notará nada no rosto…
Já Caeiro,
Por seu lado,
Dirá apenas, sem sentenciar seja o que for,
Que o Fernando,
Tornado outra vez gente,
Voltou à Terra
Não «rebolando
Pelas encostas do monte»,
Mas rolando, sim,
Pelos movimentos circulares duma rotativa
Que o reproduziu aos milhares
Em notas do Banco de Portugal,
Como por artes de caleidoscópio
Ou por jogo de espelhos paralelos,
Como se o Fernando
— Tão imprevisível que era —
Tivesse assumido num repente
Uma espécie de Milagre da Multiplicação dos pães
(Vá-se lá saber se até por artes ocultistas
Da Tia Anica…)
198
Tão originalmente tornado público?
Ou não será, porém, tudo isto
Simplesmente, na realidade,
Mais um passo de práticas ocultistas
Donde resultarão
Outros milhares de páginas
— Desta vez, porém, de livros de cheques — ?
E mais: não era apenas isto
Que Aleister Crowley («A Besta 666»)
Antevia já na linha de água
Que o papel-moeda exibia
Quando olhado a contraluz?
199
Que são os maços simétricos e cintados
Das notas de banco
Quando ainda cheiram a tinta
E não foram gastas por ninguém
— Como naipes virgens que o croupier desembrulha
Publicamente
Em reforço da credibilidade
Que os casinos têm sempre de exibir… —
200
Tua Mãe, por seu lado, pensará apenas
Que foste longe
E que aquilo do prémio da Rainha Vitória
Ganho no Cabo da Boa Esperança
Era já um aviso do Eterno,
Edital, meio solto, ao vento
No muro do Destino…
201
E ao livro de mortalhas Zig-Zag
(Sempre de venda simultânea)
Verá num relance
A cara conhecida no desenho da nota recente,
Mas nunca lhe passará pela cabeça
Seres tu, o poeta da janela ali a dois passos
Que estejas nela impresso,
De chapéu e óculos de aros finos
Com que «andas sempre ao sol e à chuva»…
Ao menos o Almada
Desenhou-te à mesa do café,
Como esperando que a Eternidade
Entrasse em qualquer momento
Nos Irmãos Unidos
E te levasse a passear
Pelas distâncias consteladas,
Que hoje são o teu Jardim da Estrela
(Aquele gradeamento,
Ali a dois passos da rua Coelho da Rocha,
Onde milagrosamente ainda se mantém de pé
Uma das casas que viveste por dentro…)
Pintou-te à mesa dum café
E não no Banco de Portugal,
Pois, conhecendo-te os fracos como poucos,
Sabia que tu não trocarias
Por uma barra de ouro-lei
Um poema que pudesses fazer
Sentado no Martinho
Ou no Café Montanha
202
Ou até, de pé, frente à cómoda alta
Como aquela que havia em tua casa
E onde um dia
Num galope do teu pensamento
Te surgiu o Mestre Caeiro
Inesperadamente mas com tanta naturalidade.
Marinetti
Que acabou mesmo por morrer académico,
Contra a tua opinião (via Campos),
Vingou-se agora bem de ti:
No seu juízo, esta nota bancária
É o aviso-recompensa da tua cabeça a prémio
Que só vale cem escudos
Que tal como a lira italiana,
São uma insignificância…
O Barão de Teive,
Consciente da pouca dimensão da sua obra,
Deve quedar-se silencioso,
Esperando que outros
Falem por si,
Como elemento dum coral
Que cante só de vez em quando
E sempre juntando a sua voz à do grupo.
203
Ah! «Se te querias matar»
Devias saber que estavas destinado
Ao risco de criares sem querer
Outro heterónimo
Sujeito a correcções do dia
E aos caprichos do dólar,
Do esterlino ou do rand (como te deve
Dizer alguma coisa, então, esta moeda!)
Tu:
O tímido que te confundias na multidão,
Exibes agora o teu rosto indiscretamente,
Como se em vez de te barbeares
Em frente do pedaço de espelho,
Pendurado na velha portada de madeira
Da janela ainda mais velha,
Te escanhoasses impudicamente
Em plena Rua do Arsenal,
À hora de maior movimento,
Servindo-te da vidraça duma montra
Para reflectir a tua imagem!
204
Os tímidos depois da morte,
Ao reproduzi-los
— Como cogumelos venenosos —
Em cédulas bancárias!
Que investimento diabólico
Faz o Capital dos vivos de ontem!
Seria antes tão simples, em suas vidas,
Ter feito de suas algibeiras um ninho de ouro
Donde, de quando em vez,
Em lugar do lenço caído
Saltassem também moedas,
Como um poema mais
Atirado à Eternidade,
Como folha de Outono
De cair tão natural,
Que ao sobrar do Verão
Faltará no Inverno
Para justificar a Primavera!
205
Mas tão desconfortável por dentro
Por pouco familiar que deve ser.
Editaram-te agora finalmente
Mas em dinheiro!…
Assim, queiras ou não,
Andarás nas mãos dos justos,
Dos ladrões,
Das prostitutas,
Dos viciados de jogo
E serás, por capricho do acaso,
O prémio do aluno aplicado
Que durante o ano escolar
Tenha sabido de cor
Os teus poemas nos dias de aula…
Nos enfadonhos dias de aula!
Só na Alta Finança
Serás familiar
Mas nunca ao «Banqueiro Anarquista»
Pois que a qualquer «Esteves sem metafísica»
Nada dirás,
206
Uma vez que te meterá na carteira
Para logo te tirar de seguida,
Sem fazer de ti, ao menos por momentos,
Um retrato familiar
Que deva andar aconchegado ao nosso peito…
207
Na sua voz sem timbre,
Sempre tão fora do Tempo:
« — Eu
O homem que nunca existiu,
Cujas palavras trazem assim o peso do
Intemporal
— Eu
Que tenho como sexo o dia e a
noite,
Com os seus amores incestuosos
Nas suas entregas
Do fim da tarde e da madrugada…
— Eu
Que tão britanicamente me assumo
Tanto na Rua dos Bacalhoeiros
Como à entrada do Canal do Suez,
Sempre com o meu vestuário talhado pelo
Irreal…
— Eu
Que tenho como idade o zero absoluto,
Que fui parido por um pensamento,
Que rebentou a bolsa de águas das Ideias…
— Eu
Que tenho como cédula pessoal
O primeiro poema feito em meu nome
E como certidão de óbito o fim
Do último verso que escreveram por
mim…
208
— Eu
Que não hesitei em passar procuração
Para isto tudo!
— Eu
O abstracto
O invisível
O sobrenatural…
— Eu
Que tenho deixado que outro
Fale por mim
E me tenha abrigado
Nalgum desvão da sua personalidade,
Já de si tão partilhada por mais outros
(Como fatia de bolo-rei
Em noite de Natal!),
Mas que tenho ideias próprias
E sobretudo um acentuado
Sentido de amor-próprio…
— Eu
Que sou o Nada e o Absoluto
simultaneamente
Não posso calar nem sequer por mais
um minuto
O que penso disto tudo!
E
Assim
Direi
Mas tão-somente
209
— Pobre Fernando
Que «Livro do Desassocego»
Que «Floresta do Alheamento»
Que continuam a fazer da tua vida!
Como te lamento!
De mais a mais
Porque quando o carrasco fala a
nossa língua
Pode a morte ser intimidade
E é isso apenas o que mais
Desejo neste momento!»
210
Ração de Combate
211
Bicho-de-Conta
212
As Torres do Silêncio
As Torres do Silêncio
215
Índia
216
Taj Mahal
A dor traduzida em
mármore.
O luto tornado em branco.
O amor transformado em
Tempo!
217
Khajuraho
218
Fumos da Índia
De dia sonolento
Ao Sol tórrido
De noite
Esvoaçando em liberdade,
Na nossa imaginação
E nos sonhos
Que dali trouxemos
E que nunca nos lembram
noite!
Índia: morcego pendurado
Na árvore do Mundo…
219
Nas Margens do Ganges
É carta torna-viagem
Tudo aquilo a que já fomos.
Se mudamos de paisagem
Deixamos de ser quem somos?
220
Entardecer no Ganges
221
O Medo
222
Numa Aldeia do Nepal
Ambiente rotineiro,
P’ro guia cor de melaço.
Os porcos fazem chiqueiro
Das ruas por onde passo.
Um templo desmantelado,
Semifiguras macabras…
E Shiva é venerado
Por entre patos e cabras.
223
Pôr de Sol nos Himalaias
No tecto do Mundo
Como fosse um véu:
A neve confundo
Com nuvens do céu…
Diante o Poente,
Atrás: Evereste,
Que roupa diferente
Com que a terra veste.
Neve em cartolina
De corte bem raso:
Como em guilhotina
O Sol no ocaso.
Porém, amanhã,
Destino lendário:
Os montes de lã
Verão o contrário.
224
O Palácio das Monções
225
A Poesia
Como gota de água que transborda o rio, no momento certo, quando a seca já
fazia desesperar, vieste, companheira de todos os dias, de novo procurar-me, com
naturalidade, sem termos marcado encontro, como sempre acontece.
Tal nuvem que, por momentos, esconde o Sol, para alívio dos nómadas perdi-
dos em deserto escaldante.
Como lenço molhado que refresca a fronte febril.
Como aberta em tarde de chuva, que permite o atravessar duma rua.
És o milagre da paisagem, com mutações, para os olhos dos sedentários.
És o relógio com numeração romana no mostrador, como se o Tempo tivesse
parado em Roma e tudo até aqui fosse apenas previsão do futuro em antecipação
científica, de banda desenhada.
És: O vinagre e o mel.
O rochedo e a espuma.
A casca e o fruto.
Abel e Caim.
A paz e a guerra.
O choro e o riso.
O sol e a sombra.
A cara e o cunho da moeda.
A água e a evaporação.
O nada.
O átomo.
O absoluto
D. Quixote e Cid.
Job e Salomão.
A casa e o relento.
O gelo e o fogo.
«A árvore seca e a vela panda».
Cristo e Barrabás.
A chibata de cana e a cana do açúcar.
226
Tu que és, ainda, o primeiro dia da Criação e a certeza de que o último dia de
todos será a véspera de qualquer coisa.
Vieste de novo procurar-me, sem encontro ou local marcado, minha compa-
nheira de todos os dias. Com a naturalidade da criança vinda da escola e que abra
a porta de casa, sabendo que no dia seguinte será o primeiro dia de férias grandes.
É assim que tens o sabor do lápis Johann Faber n.º 2, roído na ponta e és o
perfume que as laranjas da infância deixavam nos dedos, entre as marcas de tinta
escolar que se tirava dum tinteiro e as manchas brancas do áspero giz que às vezes
emitia sons agudos, ao riscar a ardósia da parede da aula.
És, talvez, sobretudo, o adiar do medo da morte.
Tu que és, também, o sonho lunar e extra-sideral. Que és o ano-luz, bissexto,
para que tenhas mais demora entre nós.
Tu que és o muro de pedra solta, de palavras e frases. Que és sempre a próxima
onda; o levantar do remo para a remada seguinte. Que és a caravela de Quinhentos,
ainda antes de haver mapas.
Tu que és a carta celeste, em folha de cartolina que se desdobra infinitamente
mas que eu agora dobro e levo debaixo do braço para a caminhada que faço con-
tigo.
Tudo o que és, afinal, tudo o que nunca me teria ocorrido, se não tivesses
vindo, pontual e com naturalidade, procurar-me, no lugar certo e no momento
exacto.
Tu que és o chegar da carta que traz, sempre, um selo desconhecido que obriga
a olhá-lo primeiro, antes de lermos o remetente.
Tu que vieste, como gota de água de súbito caída duma estalactite e que de
repente tenha revelado que pode chover também debaixo da terra!
227
Fortaleza dos Reis Magos
Goa:
Tuas praias,
Com rochosas arribas,
Em socalcos,
Com palmeiras em escadaria,
Lembram um presépio,
Onde não faltam, sequer,
os rebanhos
228
As Formigas na Neve
1
Os santos de pedra. Tu és de carne. Que diferença que há entre as divindades.
2
Do Oriente: o dia. O Poente arrasta a noite consigo. E neste vale de luz e es-
curidão, os ponteiros do relógio são a ponte suspensa.
3
Sempre que o sino tocava, as pombas fugiam em revoada, como se o campa-
nário, por obra dos anjos rebeldes, subitamente se tornasse numa carreira de tiro.
4
Com o cuidado que se leva a ave ferida, assim devia a vida levar-nos…
5
O Arco-íris é o guache dos deuses.
6
Uma flor, neste dia invernoso, ia à tona do rio. Promessa de Primavera ou ab-
dicação dos dias verdes, face à prepotência das correntes invernosas? Fosse como
fosse, eu vi uma flor à flor das águas e isso basta.
7
Com que silêncio caiu a neve durante a noite, envolvendo agora tudo em volta.
Que a chuva aprenda com ela a não tamborilar nas vidraças, lembrando o
avançar dum exército em guerra.
Que a trovoada a imite, não estilhaçando a calma do céu, como ribombar de
canhões em paisagem outrora calma.
Que o vento lhe siga as pisadas e não chicoteie o arvoredo, como cavalo-ma-
rinho do soldado que ocupa o metro quadrado que nos cabe para a sombra que o
nosso corpo projecta.
229
Que a gente aprenda com ela a não pesar nos nossos sonhos, onde egoistica-
mente queremos estar presentes.
8
A neve vem como a poeira no vento: espalhando-se em leque, como o abrir
de penas duma ave rara. Porém, ao contrário do pó, não magoa os olhos mas pára
todos os pensamentos de momento e o olhar fica quase magoado pela pouca utili-
dade que tem nessa altura.
9
A neve, depois de acabada, reincarna em água. Pode, levada ao extremo de
degelo, ser avalanche ou cascata. Pode, no outro extremo da escala, tornar-se em
vapor e ser nuvem. Com que degraus imensos de gelo decorre a ascensão e queda
da neve que parecia ser tão simples, ao cair sem ruído.
10
Os corações, gravados nos troncos das árvores, no Inverno escorrem água
como se de sangue se tratasse.
Os nomes próprios, esculpidos a canivete no arvoredo, albergam gotas
de água onde a identidade que querem representar fica afogada em lágrimas de
saudade…
A chaga aberta de resina dos pinheiros, sangrados em vida, escorre para taças
de traço rude, onde uma gota de neve somente já parece transbordar o vasilhame.
Porém, tudo agora, coberto de neve, é como se de súbito um manto de esque-
cimento tenha caído sobre o Mundo e sobre as marcas que o Homem teima em
deixar sobre todas as coisas, para inutilmente tentar perpetuar uma presença que é
tão passageira, afinal.
11
Que pintura rupestre faz o musgo no muro em ruínas… que medo da vida o
pintou?
12
Só o trevo, antes do nevão, gritava que era o arvoredo das formigas.
230
13
Tão pouca coisa cabe nos nossos olhos. Olhemos, assim, cada coisa de sua vez.
Cada momento na sua altura.
Cada lágrima a seu tempo.
Talvez assim as imagens sejam verdadeiras.
14
Sempre que o sino tocava, a neve que o revestia tombava do bronze, reme-
tendo-o para a sua nudez. Depois havia toda uma hora para de novo se tornar
branco. Pontualmente ia o sino mudando de cor, como se fosse um relógio de neve
em imitação a um relógio de sol. E a paisagem ficava feliz por dar por isso…
15
É o Infinito, o arco do triunfo dos que sonham.
16
Perante o Universo sem tamanho, a neve e as formigas só diferem na cor!
231
Embalagem Perdida
232
O que somos, afinal?
Ah! Quem pudesse sabê-lo!
Somos apenas sinal,
Reproduzido em espiral
Neste Espaço Sideral
Suspenso por um cabelo!
O que somos, afinal?
Ah! Quem pudesse dizê-lo!
233
Trinta Dinheiros
234
Na Cesareia Rei num momento:
Há outros amos, Entrou montado
Pois grava a areia Sobre um jumento
Os pés romanos. Desengonçado…
Lagos judeus
E fica aquém E uma canoa…
Do Santo Lenho: César ou Deus?
Jerusalém Ou rei sem coroa?
Que é um desenho. Quem nos dirige
Sua planta Na nossa queda
Crescer ao luar Tem a efígie
Cidade Santa Numa moeda;
Este lugar! Tudo resume
Calor na tarde A pagamentos…
Que o vento quebre? Mas Deus tem lume
O Judas arde Nos Mandamentos!
Tremendo em febre. Só um senhor
As oliveiras Podes servir:
Tão seculares Era melhor
São carpideiras Poder partir…
Se tu chorares. Morres ao ar
Nas trevas cobrem Vulto sagrado Como nasceste.
«Filho do Homem» Quem vai contar
Crucificado! Como cresceste?
Não há regresso Nasceste Deus
Já nesta altura… Entre animais
O suor espesso Estás nos museus
Cai na verdura. E nos vitrais!
Fica em relevo Que claridade
Gota perfeita Em vidro fosco
Já sonha o trevo Quando a verdade
Uma colheita! Nasce connosco!
Como convém:
Vai morrer só! Madrid, 15 de Março de 1988
Jerusalém e Jericó… Londres, 12 de Agosto de 1988
235
Duplo
236
De mim se serve?
Serve-me a mim?
Quem por mim escreve
É escravo assim!
237
Almocreve das Palavras
238
Divisão das Espécies
239
As fases da lua Mas tudo o que amo
Comandam-me os actos. Há quem o deteste.
Que versos que tanjo Só serei engano,
— Mas que notas vasas — Um erro de teste?
Eu seria um anjo Um bicho silvestre,
Se tivesse asas? Canto sem batuta,
Eu canto o que canto, Sou grilo campestre,
Basta um metro de ar. Paro se alguém escuta…
Assim, por enquanto Mas não espero louros
Posso respirar… Pois tudo me esquece,
Para que a Poesia Só suor nos poros
A mim não me deixe Se este tempo aquece…
Eu guelras teria Talvez a razão
E seria um peixe! De tudo o que há,
De modo nenhum A transposição
Em mim não esmorece Que a morte dará!
É sangue comum Seja como for,
Duma certa espécie! É este o meu fim…
De fraco músculo Seria pior
Onde nada encaixa, Se eu não fosse assim…
Serei um molusco
Feito de borracha. Paris, 17 de Março de 1988;
Ser incompleto, Londres, 11 de Agosto de 1988
Fracção ou quebrado,
Quem sabe, um insecto,
Um invertebrado…
Minha lei decreta
O ter coração.
Que espécie secreta
Quase em extinção!
Eu ou dou a cara
Ou sou refractário.
Serei ave rara
No nosso aviário?
240
Navegação Nocturna
241
London Sight-Seeing
Vi aves embalsamadas
De olhos embaciados
E estátuas decapitadas
De príncipes já exilados.
Vi o rio da despedida
Onde os lenços são bandeiras,
Ouvi a voz sem medida
Do choro das carpideiras.
242
Perdido por Cem
243
Ursa Maior
244
Estrada de Damasco
245
Veneno
246
Dizer por Dizer
Dizes: desdizes
Só por dizer…
Se contradizes
Crescem raízes
Sem florescer…
Cores e matizes
Por preencher:
Os aprendizes
Gastam vernizes
Para aprender…
Tu não avises
Quem vai morrer,
Tudo o que pises
N’almofarizes
Não vai crescer…
Não hostilizes
Mesmo sem querer:
Só há juízes
No que tu dizes
Tu irás ver!
Contabilizes
O teu viver
E não há crises
Pois que tu vives
Teu «Deve-Haver»!
247
A Última Caçada
248
Cheiro a alcatrão Relevo das vulvas Esta cega-rega
Inda fumegante, Mordente em elipse… No fundo dum poço
A nossa ração Estrangulam as luvas É a cabra-cega:
A alimentação Das ácidas chuvas: A lama já chega
Mais repugnante! É o Apocalipse! Até ao pescoço!
249
Mas que planeta
Da grande ameaça
E há quem já meta
O bebé-proveta
Dentro da vidraça!
O seu enxoval
É feito de vidro.
Bebé de cristal:
Se tu caíres mal
Ficarás partido!
Dobrar o joelho…
O gatilho lento…
Estilhaçar o espelho
Onde um escaravelho
Rebola um excremento!
250
Lente de Aumentar
251
Tecelões
Arribas e precipícios
E marés em remoínhos.
Pescadores de sete ofícios
De espadartes e golfinhos…
252
Soldadinhos de Chumbo
253
Buracos negros há que comem luz
Tão negra como o fundo dos tinteiros!
254
Relógio de Água
255
Caracteres Ilegíveis
256
Jantar de Família
257
Família: paredes-meias,
Meias palavras na sala…
O mesmo sangue nas veias
As mesmas histórias na fala.
258
Peregrino Acidental
259
A Vaca e Touro Sagrado… Hei-de ir à Terra Sagrada
Não verei do Norte a rena Onde areia é ouro fino.
Mas o corpo apedrejado Sentir a cruz carregada
De Maria Madalena… Sem maldizer meu destino!
Silêncio, intolerância:
Receitas de obcecado.
Quem semeia ignorância
Colhe flores de pecado!
260
Marasmo
Falcão subalimentado,
Andando ao sabor do vento,
Num céu sempre recusado
Ao que seja movimento.
261
Os Carrascos também Choram
262
Ciclo Infernal
Outono-Inverno de 1989
Fundo da Garrafa
ou
Robinson e Sexta-Feira
Robinson é o que é:
Solidão por companheira,
Mas por vezes a maré
Traz o nosso Sexta-Feira.
265
O Choro e o Riso
266
Guarda da Vinha
267
Cela da Morte
268
Escorpião
O gigante e o gnomo
Mesma altura medirão
Se em quatro tábuas d’Outono
Lhes talharem o caixão…
As raízes no Outono
Têm calor do Verão.
Mandamentos? Um ao nono
— O décimo é conclusão —.
269
Oásis
270
Passos Perdidos
271
Além de querer o céu, Ursa Maior,
As luas que há em Marte e em Urano:
Também a gota de água e de suor
Que no deserto é sempre um oceano…
272
Missa do Galo
273
Fontes Salgadas
274
Miliciano
275
Banho Turco
276
É clepsidra É névoa dos portos
Gotas de suor Que só dão degredos,
Os olhos da Hidra Seis milhões de mortos
Olhando em redor: Contados pelos dedos.
Remexe-se o tempo Nave angelicana
Como em caldeirão Com ninhos de pombas
De bruxo, que ao vento E raça ariana
Amassasse o pão… Debaixo das bombas!
Escada sem degraus Frases calcinadas
Plano inclinado, Quem as desenhou?
São mais de cem graus Palavras queimadas
Não há ar queimado. D’alguém que falou!
É calor silvestre, É luz que já foi
Silêncio dos lagos, — De estrela, decerto —:
Pintura rupestre O olho-de-boi
De traços tão vagos. Aceso no tecto!
Papel vegetal
E romanas togas,
Noite de Cristal:
Ardem sinagogas!
277
Século Dezanove
278
Missa Cantada
279
Estrela de Belém
280
Erosão
281
Nascemos com o mar na nossa frente,
A cama é a jangada dos desejos…
O sonho para nós foi: continente,
Parede toda feita de azulejos!
282
Raio Verde
283
Pão e Circo
284
Estreito de Corinto
285
Animal de sacrifício No mapa do esquecimento
Preso à ara por correntes, Há muralhas de cidades…
À beira dum precipício Outrora já foi momento
Os homens não são diferentes… Que se perdeu nas idades!
286
Índice
Calendário 11
Mergulho no Passado 12
Faca 13
Também de noite 14
Os Rios Correm Inteiros 14
Calatrava 15
Vão-se As Águas sem Canção 16
Noite 17
À Poesia 18
Na Morte da Avó Adelaide 19
Zero 20
Ressaca 21
À Maneira de Dom Dinis 22
Pã no Seu Tempo 23
Pastoral do Ano 2000 24
Na Guerra do Roussilhão 25
Cana Verde, de Verdade 26
Teatro Amador 27
Mão Fechada 28
Melaço 29
Van Gogh 30
Amor em Dia de Chuva 31
Escavação
1 — A caminho de Pompeia 35
2 — Ponte dos Suspiros 36
3 — Os Vidreiros de Murano 37
4 — Rosa, Rosæ… 38
5 —Siderurgia 39
Judas 41
Portugal 1976 42
Solstício de Verão 43
Ramsés o Grande 44
Amor-Perfeito 45
Trás-os-Montes 46
Ronda da Noite 47
Canção Estival 48
Emilio Salgari 49
Véspera de Natal 51
Espanha 1978 52
Cassiopeia
1 — Inferno 57
2 — Purgatório 58
3 — Céu 59
Poder Secular
1 — Camões 63
2 —Fernando Pessoa 64
3 — Cesário 65
Certidão de Nascimento 67
«Post Scriptum» 68
Contra-Relógio 69
Mina de Sal 70
Nível de Água 71
Cozido à Portuguesa 72
Kremlin 73
Roleta Russa 74
Gelo 75
Auto-Retrato 76
Visitas Proibidas 77
Integração do Átomo
1 — Monte de Tabor 81
2 — Cassiopeia 82
3 — A Meia-Nau 83
4 — Átomo 84
Cavalo da Acrópole 87
Tempo de Silêncio 88
Telex a Lech Walesa 89
Acordar em Hotel 90
Saudação a Enrico Berlinguer 91
Passagem de Nível sem Guarda 92
São Paulo 99
Algarve 1982 100
Cega-Rega Marroquina 101
O Luar é Azulado 102
Este Ano em Jerusalém 103
Latifúndio 104
Última Caçada 105
Velhas Casas Cor-de-Rosa 106
Poema em Construção 107
Os Insectos e os Outros 108
Lápides Apagadas 109
Ex-Libris 110
Auto-Retrato 111
Última Tentação 112
Tocata e Fuga 113
Outro Natal 114
Via Appia 115
Marvão, Tantos de Tal 116
Audição Única 117
Circus Maximus
1 — Dança do Escalpe 121
2 — Terra de Siena 122
3 — Pedra de Carrara 123
Obsessão 125
Uma Gota de Sangue 126
Queda do Império dos Romanos 127
Domingo de Ramos 129
Nicarágua 130
João Sem Terra 131
Branco e Negro 132
Sândalo 133
Noite e Nevoeiro 134
Santo Sepulcro 135
Tântalo 136
Outrora o Natal 137
Fermentação 138
Nebulosa em Espiral
1 — O Túmulo e a Rosa
i — A Neve e o Mar 141
ii — O Túmulo e a Rosa 142
iii — O Sal e o Açúcar 143
2 — Os Mundos Exaustos
iv — As Estrelas Assassinas 144
v — Prece 145
vi — O Pão e a Pedra 146
3 — Juízo final 147
Véspera Veneziana
1 — Constante 175
2 — Aquário 176
3 — Fresco 177
4 — Lucros e Perdas 178
5 — Homo Faber 179
Insónia 181
Cesário a Corpo Inteiro 182
Os Ralos do Relento 184
Passagem do Ano 186
Profanação 187
Quarta-Feira de Cinzas 188
Fechadura Yale 189
Incógnita 192
Cofre de Segredo 193
Cotação do Dia 194
O Beijo de Judas 195
Ofícios Esquecidos 196
Papel-Moeda 197
Ração de Combate 211
Bicho-de-Conta 212
As Torres do Silêncio
As Torres do Silêncio 215
Índia 216
Taj Mahal 217
Khajuraho 218
Fumos da Índia 219
Nas Margens do Ganges 220
Entardecer no Ganges 221
O Medo 222
Numa Aldeia do Nepal 223
Pôr de Sol nos Himalaias 224
O Palácio das Monções 225
A Poesia 226
Fortaleza dos Reis Magos 228
As Formigas na Neve 229
Embalagem Perdida 232
Trinta Dinheiros 234
Duplo 236
Almocreve das Palavras 238
Divisão das Espécies 239
Navegação Nocturna 241
London Sight-Seeing 242
Perdido por Cem 243
Ursa Maior 244
Estrada de Damasco 245
Veneno 246
Dizer por Dizer 247
A Última Caçada 248
Lente de Aumentar 251
Tecelões 252
Soldadinhos de Chumbo 253
Relógio de Água 255
Caracteres Ilegíveis 256
Jantar de Família 257
Peregrino Acidental 259
Marasmo 261
Os Carrascos também Choram 262
Ciclo Infernal
Fundo da Garrafa ou Robinson e Sexta-Feira 265
O Choro e o Riso 266
Guarda da Vinha 267
Cela da Morte 268
Escorpião 269
Oásis 270
Passos Perdidos 271
Missa do Galo 273
Fontes Salgadas 274
Miliciano 275
Banho Turco 276
Século Dezanove 278
Missa Cantada 279
Estrela de Belém 280
Erosão 281
Raio Verde 283
Pão e Circo 284
Estreito de Corinto 285
Nascido em Lisboa a 6 de Abril de 1930, Henrique
Jorge Segurado Pavão frequentou a Faculdade de Letras de Lisboa,
tendo depois iniciado, em 1956, no jornal O Século, a sua actividade
de jornalista e de gestor de órgãos da imprensa; foi, de 1976 a 1992,
um dos jornalistas societários de O Jornal, onde desempenhou fun-
ções de administrador.
Em 1976 abriu a livraria Castil-Castilho, seguindo-se-lhe a Castil-
Alvalade, a Castil-Benfica, a Castil-América, a AZ-Olivais e a AZ-
Bom Sucesso, no Porto (as duas últimas em colaboração com o grupo
Valentim de Carvalho).
Estreou-se como poeta em Março de 1951 no jornal Rivages
— edição dos alunos do liceu Francês de Lisboa —, tendo poste-
riormente colaborado, com o nome de Henrique Jorge, em Távola
Redonda (no fascículo 15, de Dezembro de 1952, com quatro poe-
mas, e nos fascículos 19/20, de Julho de 1954, com dois poemas) e no
primeiro número de Graal (Abril-Maio de 1956), revista dirigida por
António Manuel Couto Viana.
Publicou, ainda como Henrique Jorge, Emigrantes do Céu (Lis-
boa, Edições Távola Redonda, 1953). Como Henrique Segurado, deu
à estampa Asa de Mosca (Lisboa, Ática, 1960) e Ressentimento Dum
Ocidental (Alfragide, Galeria Panorama, [1970]).
Em 1959, Asa de Mosca conquistou, ex-aequo com António
Ramos Rosa, o segundo prémio do concurso Fernando Pessoa orga-
nizado pela Editorial Ática. No mesmo ano, Henrique Segurado,
com um livro que nunca chegou a ser publicado, Dança do Escalpe,
recebeu ainda uma referência especial do júri que a Livraria Galaica
do Porto constituiu para um concurso de poesia.
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Tem colaboração dispersa em jornais e revistas como O Século,
Diário de Lisboa, República, Gazeta Musical e de Todas as Artes,
Jornal de Letras e Artes, J.L., Jornal de Letras, Artes e Ideias e Coló-
quio/Letras.
Está representado nas seguintes antologias: Poesia Portuguesa do
Pós-Guerra: 1945-1965, organização de Afonso Cautela e Serafim
Ferreira, Lisboa, Ulisseia, 1965; Poesia/70, organização de Egito
Gonçalves e Manuel Alberto Valente, Porto, Editorial Inova, 1971;
800 Anos de Poesia Portuguesa, Lisboa, Círculo de Leitores, 1973;
Portugal: A Terra e o Homem: Antologia de Textos de Escritores do
Século XX, organização de David Mourão-Ferreira, Lisboa, Funda-
ção Calouste Gulbenkian, [1978]; Natal na Poesia Portuguesa, orga-
nização de Luiz Forjaz Trigueiros, Lisboa, Dinalivro,1987; O Tejo
e a Margem Sul na Poesia Portuguesa, Seixal, Câmara Municipal do
Seixal, 1993; 100 Anos Federico García Lorca: Homenagem dos Poe-
tas Portugueses, coordenação de Ulisses Duarte, Lisboa, Universitá-
ria, 1998; De Palavra em punho — Antologia Poética da Resistência,
organização e apresentação de José Fanha, Porto, Editorial Campo
das Letras, 2004.
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