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Carlos de Oliveira

FINISTERRA
PAISAGEM E POVOAMENTO

romance

ASSÍRIO & ALVIM


Finisterra 7

O jardim familiar (primeira fase do abandono): montões


informes de silvedo, buxo descabelado, urtigas, flores selva-
gens. As palmeiras de pouco porte incharam tanto que fazem
pensar em anões velhos, doentes, com as suas cabeleiras, as
suas folhoas emaranhadas, caindo em arco até ao chão.
Sentado num osso de baleia; para ser mais exacto, na sec-
ção média da espinha dorsal duma baleia: cinquenta e um
centímetros de diâmetro, trinta e três de altura; duas vértebras
abrem-se como as pás (as asas) duma hélice; bastante afas-
tadas, permitem que os cotovelos se apoiem nelas: pondo o
caderno em cima dos joelhos, consegue desenhar (não tarda
muito, a chuva de verão vai obrigá-lo a entrar em casa). Osso
de baleia, textura de madeira pobre, exposta à água, à erosão,
sem apodrecer: a luz, quando bate de frente nos veios foscos,
desprende uma poalha cor de cinza, quase a reacender-se.
A densidade calcária decresce tanto que podem ambos flutuar
(a criança e o osso de baleia) sobre murgos biliosos, caules de
gisandra, líquenes, doenças vagarosas.
O revérbero entre as nuvens colhe-o de surpresa e extingue-se,
mas chega para abrir uma fenda (irreparável) na memória.
Então reproduz de cór a paisagem que se vê da janela, cria os
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seres primordiais, mistura verão e inverno, atenua a cegueira


(o excesso) do sol incidindo sobre sílica, mica esmigalhada,
vidro moído num almofariz (sabe-se lá), aumenta os grãos
de areia até ao tamanho que parecem ter, de noite, quando o
vento atira contra as vidraças as suas enormes pedradas. Nisto,
a chuva expulsa-o do jardim. Pouco flutuou.
No exterior, a partir das paredes, há dois palmos de atmos­­
fera lúcida, quase luminosa (intensifica-se pouco a pouco):
halo a envolver a casa, a protegê-la (?) misteriosamente. Para lá
do halo, o ar é escuro, peso que se move e revolve com lenti-
dão. A ameaça a aproximar-se.
Na sala, o homem sentado à mesa de vinhático levanta-se
e verifica a janela: caixilhos de castanho, misagras de ferro
antigo, sustentam as vidraças cheias de imperfeições (nódulos,
bolhas, distorcem a visão), mas duma espessura sólida capaz
de resistir.
Preciso de medir a casa. Os quartos, um a um: compri-
mento, largura, pé-direito. Avaliar a superfície entregue à
névoa e os seus pontos frágeis (janelas, portas e postigos).
Conhecer melhor o brilho da cera delida ou a sombra que se
oculta nas galerias de caruncho; e o pó, as manchas de humi-
dade nos tectos, a serradura interior da madeira. Numa tarde
assim, tão cheia de água, registar ainda o fino diapasão das
goteiras, a pouca transparência lá de fora, cada vez mais turva:
como absorve ela o murmúrio dos móveis?
A fita métrica deve estar na gaveta superior direita da có-
moda holandesa, onde sempre esteve; a chave, vejo-a daqui:
chama de níquel vacilando na fechadura do último gavetão.
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Calcular com rigor o espaço em que posso mexer-me, a dis-


tância entre as coisas, o sítio certo das cadeiras. Andar altas
horas através da casa: às escuras e sem trope­ções.
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ii

A  criança, sentada na cadeira de balouço (mogno velho,


junto da janela, o alto espaldar contra a portada que se dobra
em duas partes, justapostas e articuladas pelas misagras de
ferro), examina a paisagem. Olhos piscos, mas minuciosos, na
violência da luz exterior.
A primeira zona de areia (mancha a ferver num hálito pra-
teado, como o sal dos velhos itinerários: ruivo por dentro, alvo
por fora) ocupa o terço inferior da aridez que a janela enquadra.
Segue-se uma faixa estreita de gramíneas: a evaporação da
lagoa (juncos densamente roxos) submerge-as num tom mais
carregado que o da própria água. Esta área, no entanto, é bas-
tante instável: sob a declinação do sol, as cores mudam com
frequência de intensidade; basta um sopro de vento, a ondula-
ção pouco perceptível que provoca, para clarear ou escurecer
as gramíneas.
Na outra margem, a linha das dunas reflecte o movimento
dessa ondulação (sinusóide ténue demarcando a altura da se-
gunda grande zona de areia) e serve de limite ao terço inter-
médio da paisagem.
O  último terço acaba na linha superior do caixilho: for-
mam-no as dunas distantes (recorte acentuado, revérberos de
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cal, como a auréola, a inquietação, que as estrelas irradiam


fixamente). Ao fundo, uma nesga de azul pode parecer ao
mesmo tempo céu e mar; placa de zinco a incendiar-se; ou
apenas um reflexo turvo da luz.
Levanta-se e examina também a ampliação fotográfica,
suspensa na parede (perto da janela), que reproduz esta mesma
paisagem: a moldura dá-lhe um enquadramento semelhante;
falta-lhe porém a cor real, e o tempo destingiu a imagem: os
contrastes são pouco visíveis, desaparecem as três zonas distin-
tas, dissolvem-se numa única mancha castanha (quase sépia)
à medida que os anos (e a réstia de sol batendo na parede pelo
fim da tarde) devoram linha a linha a nitidez dos contornos.
Reconhece-se ainda a paisagem, mas há sobre as coisas o re-
síduo dum luar lento que se esconde (como nas sanguíneas
oitocentistas) para lá das últimas dunas.
Por fim, aproxima-se do almofadão de carneira pirogra-
vada (cobre o fundo da cadeira que está por trás da mesa de
vinhático) e alisa-lhe as rugas uma a uma. Lavrado a fogo, o
sulco do estilete nunca se interrompe, tece a teia castanho-
-escura no castanho mais aberto do material, sugere uma gravura
abstracta, repete com rigor o traço das dunas, as margens da
lagoa, a rede confusa das gramíneas, equilibrando geometri-
camente superfícies, volumes, relações de espaço: a arquitectura
real (?) da paisagem.
O  homem folheia o caderno escolar poisado na mesa de
vinhático (ilumina-a o halo que rodeia a casa, revela-lhe a tes-
situra de cetim: sulcos, veios, ondeando quase imperceptíveis).
A  obsessão da família continua: a criança, sentada no osso
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de baleia, tentou também reproduzir a paisagem, sem se em-


penhar numa cópia excessiva. Desenhava de cór, entre flores
selvagens, movido pelo revérbero que fendeu as nuvens.
Lápis alteraram as proporções e os tons (demasiado azul,
muito vermelho, algum roxo, nenhum amarelo), mas povoa­
ram esta desolação (areia, água, sol ou luar fotográfico): surgem
recortados a negro (excepto as cabeças que são laivos de fogo) os
primeiros homens, cavalos, bois, carneiros, caminhando a custo
entre grãos de areia grandes como penedias. Procuram matar
a sede na lagoa pouco maior que uma gota de chuva. Ao alto,
sobre as dunas distantes, com as asas rente às margens do papel,
pairam aves brancas, esperando com certeza a sua vez de beber.
A luz do halo (que retarda a ameaça em torno da casa), o
próprio tinir das goteiras, dão agora ao desenho um fulgor de
fósforo.
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iii

Posso começar?
Começa.
Atenção: é o jogo da verdade.
Quod est veritas?
Terrivelmente precoce.
Está bem, pilatos. Mas procura ser franco.
Olho o desenho; aponto os vultos negros, as cabeças de
lume.
Para quê?
E ele hesita.
Difícil de explicar. Talvez a febre que sentia todas as tardes.
Foste com febre para o jardim?
Ninguém sabia. Parti o termómetro de propósito e antes
que comprassem outro… Mas não garanto que fosse a febre.
Nessa altura, houve um relâmpago cor de carbureto. Teria
caído nalguma aldeia? Imagino que sim e pode estar aí a razão
do desenho. Homens e bichos assombrados. Ou eu próprio,
guiado pela faísca.
Hesita novamente.
Também tinha sede. A chuva ainda não viera.
Na paisagem, na fotografia, na almofada, não havia ninguém.
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Pois não. E eu povoei-as. Quer dizer, povoei o desenho a


pensar nelas.
Porquê a lagoa tão pequena?
Ia chover. Lembrei-me com certeza duma gota de chuva.
E tinha sede, já te disse. Quando temos sede, a água parece
sempre pouca.
Em compensação, os grãos de areia são enormes.
No inverno, os que batem contra a janela são ainda maiores.
Maiores?
Expliquem-lhe, grãos de areia.
O quê?
O que acontece com o vento.
Estamos a dormir na duna, muito sossegados, a sonhar a
nossa fonte prometida, e nisto erguemo-nos cheios de medo.
É o vento a gritar: acordem, grãos de areia, acordem, vão ba-
ter-lhe à janela. E vamos, arrastados pelo turbilhão.
Ouviste? Recebem a ordem e enlouquecem. Voam, in-
cham, atiram-se à janela. Grandes como fragas.
E as vidraças resistem?
Os grãos são ocos. Incham mas ficam vazios.
Vazios, como?
Sem pedra por dentro. Batem para assustar. Mais nada.
E as gramíneas, as patas de aranha?
Não foi propositado. Só reparei no fim.
Mas deixaste-as ficar.
Deixei.
Porquê?
Concentra-se: a testa enrugada, os olhos piscos.
Finisterra 15

Certa noite, a mãe entrou no quarto, olhou para o meu


berço e viu-me sem cabeça.
Sem cabeça?
O  quarto mal iluminado, as cortinas do berço corridas,
deram-lhe essa impressão. Desatou a gritar. A aranha era re-
donda, media mais dum palmo e cobria-me a cara toda. Os
gritos assustaram-na. Começou a descer do berço, mas pesava
tanto que levou minutos a chegar ao chão. A  criada apare-
ceu, esborrachou-a com a vassoura. Não deitou uma gota de
sangue.
Então?
Quando a carcaça rebentou, saltaram os aranhiços. Uma
dúzia, a fugir para os cantos do quarto.
Uma dúzia?
Ou mais. Não quero exagerar.
Eu sei.
A mãe continuou aos gritos, mas pôde afastar as cortinas
do berço e ver-me de novo com cabeça. Desmaiou de alegria.
A aranha não me comera os olhos.
Comer-te os olhos?
É o que as aranhas fazem às crianças.
Tiveste sorte.
Foi a única vez.
Quem te contou a história?
Eu estava lá, não estava?
Eras muito pequeno e a aranha muito grande. Deves tê-la
aumentado como aumentaste os grãos de areia.
Abana a cabeça, lentamente.
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Repara bem no verão. Que pode uma aranha contra o calor,


a humidade, senão inchar?
E as aves brancas?
É segredo. Se elas te quiserem dizer… Mas duvido.
E tu? Dizes ou não?
Talvez um dia.

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