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CESÁRIO VERDE

ANÁLISE DO POEMA “CRISTALIZAÇÕES


“Cristalizações”
Localização temporal do poema

―Faz frio. Mas, depois duns dias de aguaceiros


Vibra uma imensa claridade crua‖

Primavera

Sinestesia: referências tácteis e visuais


“Cristalizações”

De cócoras, em linha, os calceteiros, /


Com lentidão, terrosos e grosseiros,
/Calçam de lado a lado a longa rua.
“Cristalizações”
De cócoras porque nem sequer tinham o banquinho de mestre calceteiro

Em linha – os calceteiros têm de trabalhar em equipa e muitos dos ajudantes


eram trazidos da prisão agrilhoados e teriam que manter forçosamente a fila
“Cristalizações”
Com lentidão – devido ao esforço dispendido, os aguilhoados teriam
forçosamente os seus movimentos muito mais lentos do que os homens
libertos, se bem que este trabalho fosse sempre moroso e penoso

Terrosos – adquiriam o tom da terra e da pedra ainda por limpar; quase que
fazem parte do próprio solo
“Cristalizações”
Grosseiros – não se trata de uma grosseria em relação a estes homens, mas
antes um libelo sobre a penosa situação em que se encontravam. Para se chegar
a mestre calceteiro era necessário começar a profissão aos sete ou oito anos de
idade dado que mais tarde as articulações das mãos já não lhes permitia
flexibilidade, tornando-se desajeitadas para o ofício
“Cristalizações”

A frialdade exige o movimento; /E


as poças de água, como em chão
vidrento, / Reflectem a molhada
casaria.
“Cristalizações”
A frialdade exige o movimento – roupas pouco adequadas em que o trabalho
era a única forma de aquecerem

E as poças de água, como em chão


vidrento – a água reflecte-se nos olhos,
como se fora um vidro colocado no chão,
assim como nas habitações
“Cristalizações”

A molhada casaria – molhada por ter chovido e,


muitas vezes, os próprios revestimentos das casas,
tantas vezes em mosaico, não serem propícios a
secarem rapidamente
“Cristalizações”
Casaria – é interessante notar que esta palavra é pouco vulgar empregando-
se o seu masculino „casario‟. Casaria são filas de casas tal como os calceteiros
são filas de homens. „Casaria‟ empregue no final da segunda estrofe liga-se
harmoniosamente a longa rua, localizada no final da primeira estrofe
ficando os calceteiros no meio, fechados por este cenário.
“Cristalizações”

Casaria e longa rua definem bem a extensão do


trabalho que está para ser realizado
“Cristalizações”

Em pé e perna, dando aos rins que a marcha


agita, / Disseminadas, gritam as peixeiras;
/Luzem, aquecem na manhã bonita, /Uns
barracões de gente pobrezita /E uns
quintalórios velhos com parreiras.
“Cristalizações”
Cesário burila, à maneira de Baudelaire, a descrição das peixeiras

• Sinédoque (toma o todo pela parte) para destacar elementos mais


importantes para o exercício da dura profissão: pé e perna
“Cristalizações”

• Metonímia - Dando aos rins que a marcha agita – (causa/efeito) para


conseguirmos visualizar o bambolear das ancas que devido ao peso e à
caminhada provoca dores nos rins, começando a estrofe por afirmar: em pé,
ligando novamente o pé à caminhada
“Cristalizações”
Paralelamente ao trabalho dos calceteiros, as peixeiras com o seu ar gingão e
sonoro pregão espalham-se pela cidade dando brilho onde só há barracões de
gente pobre
“Cristalizações”
Luzem, aquecem na manhã bonita – Luzem, hipérbole (exagero poético)
sublinhando assim que são elas que dão luminosidade aos seres opacos do
quotidiano; aquecem porque calcorreiam as ruas vergadas ao peso da canasta
(sentido denotativo) e um outro subentendido (conotativo), aquecem o
coração dos homens. A manhã bonita interliga-se também às peixeiras que
alegram as manhãs dos pobres
“Cristalizações”

E uns quintalórios velhos com parreiras – os


únicos que podem assistir ao duro trabalho
dos calceteiros porque Não se ouvem aves;
nem o choro duma nora! /Tornam por outra
parte os viandantes
“Cristalizações”
Não se ouvem aves; nem o choro duma nora! – é Verão - perífrase

Nem o choro duma nora! – muito provavelmente os poços estavam secos


como tantas vezes aconteceu no estio lisboeta

Tornam por outra parte os viandantes – Quem pode parte para a sua
aldeia ou vai “a ares‖
“Cristalizações”

E o ferro e a pedra — que união


sonora! — /Retinem alto pelo
espaço fora, /Com choques rijos,
ásperos, cantantes.
“Cristalizações”

O ferro dos instrumentos do calceteiro: pá, picareta, forquilha, baldes (para


molhar a calçada), formas para os desenhos artísticos
“Cristalizações”
Pedra – basalto ou calcário empregues para a calçada

A união áspera dos sons do ferro e da pedra criam uma harmónica


dissonante
“Cristalizações”
Bom tempo. E os rapagões, morosos,
duros, braços, /Cuja coluna nunca se
endireita, /Partem penedos. Cruzam-se
estilhaços. /Pesam enormemente os
grossos maços, /Com que outros batem a
calçada feita.
“Cristalizações”

Bom tempo – A marcha do tempo


e dos calceteiros não pára.
Chegámos ao Verão, mas a
lentidão e a postura curvada do
corpo continuam
“Cristalizações”
A expressão hiperbólica partem penedos mostra o trabalho duro e pesado

Cruzam-se estilhaços – os calceteiros cortam as meias-pedras (assim


denominadas) na mão, em postura de concha, de uma forma irregular, com a
face superior aparelhada saltando as lascas e quase se entrechocando no ar
com as dos outros trabalhadores. Mostra também que o trabalho não é
solitário e que é realizado numa área contígua
“Cristalizações”
Pesam enormemente os grossos maços – é o peso do instrumento e a pressão
do trabalhador sobre o maço ou marreta que faz com que as pedras se
enterrem na argamassa

Com que outros batem a calçada – frisando novamente um trabalho


colectivo
“Cristalizações”
A sua barba agreste! A lã dos seus
barretes!/ Que espessos forros! Numa das
regueiras/Acamam-se as japonas, os
coletes;/E eles descalçam com os
picaretes,/Que ferem lume sobre
pederneiras.
“Cristalizações”

A sua barba agreste! – Cesário insurge-se muitas vezes ao longo da sua


vida, com o número de horas de trabalho que faz com que os trabalhadores
não tenham tempo para cuidar deles próprios. Assim a barba é descuidada e
áspera devido ao pó e a deficientes lavagens
“Cristalizações”
A lã dos seus barretes!/ Que espessos forros! – carapuços também forrados a
lã e com um debrum largo para o suor ser ensopado e não escorrer para os
olhos.

A admiração de Cesário em relação aos forros é sublinhada pelo ponto de


exclamação
“Cristalizações”
Acamam-se as japonas, os coletes – os trabalhadores dobram as jaquetas e os
coletes, colocando-os geralmente em cima de uma pedra, quase rente ao chão.
É interessante notar que este verso liga-se ao da primeira quintilha seguinte
porque japonas também significa arbustos que ficam acamados em bacelos
durante o Outono e Inverno. Este verso faz a ligação com a próxima estação
do ano que irá estar presente: o Outono
“Cristalizações”

E nesse rude mês, que não consente as


flores, /Fundeiam, como esquadra em fria
paz, /As árvores despidas. Sóbrias cores!/
Mastros, enxárcias, vergas. Valadores/
Atiram terra com as largas pás.
“Cristalizações”

E nesse rude mês, que não consente as


flores (…) As árvores despidas. Sóbrias
cores! - No Outono as árvores perdem as
folhas e as cores que elas espalham pelo
chão são verdes escuras e castanhos de
vários matizes
“Cristalizações”

Fundeiam, como esquadra em


fria paz – é de salientar a
comparação entre a inércia da
natureza com os navios parados
durante o tempo de sossego
“Cristalizações”
Mastros, enxárcias, vergas – Cesário continua a comparar o trabalho dos
arruamentos com a frota de guerra e mais particularmente com os apetrechos
náuticos e a interdependência entre si

No trabalho de calcetaria os homens usam um pau a prumo ao qual está


ligado um fio que indicará o desnível do passeio
O pau atravessado como o da verga é indispensável porque faz de compasso
para a marcação dos desenhos na calçada
“Cristalizações”
Eu julgo-me no Norte, ao frio — o
grande agente! — /Carros de mão, que
chiam carregados, /Conduzem saibros,
vagarosamente; /Vê-se a cidade,
mercantil, contente: /Madeiras, águas,
multidões, telhados!
“Cristalizações”
Eu julgo-me no Norte, ao frio — o grande agente!
É Inverno e duro como são os do norte do país, esta estação do ano
provoca mudanças na natureza e na vida das pessoas
“Cristalizações”
Negreiam os quintais enxuga a alvenaria; /Em arco, sem as nuvens
flutuantes, /O céu renova a tinta corredia; /E os charcos brilham tanto, que
eu diria /Ter ante mim lagoas de brilhantes!

Sinédoque: as casas abarracadas interligam-se e reagem com o tempo


atmosférico, não chove e as casas têm a oportunidade de secarem
“Cristalizações”
E os charcos brilham tanto, que eu diria /Ter ante mim lagoas de
brilhantes! - metáfora

E engelhem muito embora, os fracos, os tolhidos – a natureza brilha e


renova-se como nos é descrita nos últimos versos, mas o homem vai
envelhecendo, minguando, tema da mudança tão querido a Camões
“Cristalizações”
Eu tudo encontro alegremente exacto. /Lavo, refresco, limpo os meus
sentidos. /E tangem-me, excitados, sacudidos, /O tacto, a vista, o ouvido, o
gosto, o olfacto! – Cesário o poeta das sinestesias, mistura as sensações
ligadas aos cincos sentidos

Na quintilha seguinte continua a mostrar a interligação quase simbiótica


entre a natureza e o seu próprio ser
“Cristalizações”
Com ela sofres, bebes, agonizas:/ Listrões de vinho lançam-lhe divisas,/ E os
suspensórios traçam-lhe uma cruz! – o povo desfeito como as suas roupas
refugia-se no vinho; é a sua única consolação, mas também essa o leva à
agonia (morte) que se torna visível nas manchas da roupa que são as suas
“medalhas”. Os suspensórios que prendem a vestimenta têm o formato de uma
cruz, simbolizando o sofrimento da vida que têm de acarretar
“Cristalizações”
O martírio do povo denuncia poderosamente a injustiça social que está na
base “mercantil” da cidade contente, pondo em questão a própria ideologia
do progresso que nela se baseia

Como os trabalhadores são camponeses, a exploração do campo pela cidade


fica também implícita nesta cristalização
“Cristalizações”
De escuro, bruscamente, ao cimo da barroca,
/Surge um perfil direito que se aguça; /E ar
matinal de quem saiu da toca, /Uma figura
fina, desemboca, /Toda abafada num casaco
à russa.
“Cristalizações”
Uma figura fina, desemboca, /Toda abafada num casaco à russa – no contexto
do poema uma figura fina tem duas leituras: fina por pertencer a uma classe
social mais privilegiada e por ser esguia
“Cristalizações”
Donde ela vem! A actriz que tanto
cumprimento /E a quem, à noite na plateia,
atraio /Os olhos lisos como polimento!
/Com seu rostinho estreito, friorento,
/Caminha agora para o seu ensaio.
“Cristalizações”
Os olhos lisos como polimento! /Com seu rostinho estreito, friorento,
/Caminha agora para o seu ensaio. – descrição da mulher amada: olhos
brilhantes e rosto magro

Esta figura feminina quebra a monotonia da pobreza, mas só por instantes


“Cristalizações”
E aos outros eu admiro os dorsos, os costados /Como lajões. Os bons
trabalhadores! /Os filhos das lezírias, dos montados: /Os das planícies,
altos, aprumados; /Os das montanhas, baixos, trepadores!

– a frágil figura feminina amada, que quebrou a monotonia da pobreza, é o


contraste em relação ao povo das diferentes regiões do país: ribatejanos,
alentejanos, estremanhos ou transmontanos
“Cristalizações”

Nesta composição, o poeta relata a azáfama citadina constatada por ele,


associando-a à injustiça que vitima as classes trabalhadoras

Através de pensamentos expressos em linguagem simbólica, surge a vida


campestre, como denunciadora da exploração dos grandes meios urbanos

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