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Cesário Verde - Deambulismo - Cristalizações

Cristalizações recria o quadro do trabalho dos calceteiros a que o sujeito poético


assiste. O título do poema está relacionado com o brilho da luz nos charcos, cujos
reflexos parecem cristais.
O título deste poema poderia ser "Num Bairro Proletário", como contraponto a "Num
Bairro Moderno". Enquanto neste último o sujeito poético nos conduz através de um
bairro burguês com as suas casas apalaçadas e os seus mordomos, em "Cristalizações",
deambulamos por entre "Uns barracões de gente pobrezita / E uns quintalórios velhos
com parreiras" que se situam nuns "sítios suburbanos, reles!"
Porém, não é apenas este aspecto que aproxima dois poemas que retratam espaços
citadinos tão diametralmente opostos. Também a oposição real / fuga imaginativa está
presente nos dois textos.
Tendo em conta esta oposição, é possível delimitar em "Cristalizações" dois níveis
narrativos diferentes:

 o do real (estrofes 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13, 14, 15, 16, 17, 18, 19,
20);
 o da imaginação (estrofes 7 - versos 2, 3, 4 - 13).

No domínio do real, pontuam diversas personagens - os calceteiros, as varinas e a


"actrizita" -, assumindo os calceteiros o estatuto de personagem principal
Com efeito, todo o poema é um hino a estes trabalhadores que abandonaram as
lezírias, os montados, as planícies, as montanhas para com "os grossos maços"
partirem a pedra "com que outros" fazem a calçada. Trata-se de um trabalho duro,
moroso, ininterrupto - "(...) E os rapagões morosos, duros, baços, / Cuja coluna nunca
se endireita"; "Homens de carga! Assim as bestas vão curvadas! / Que vida tão
custosa!") - realizado ao frio, "nesse rude mês, que não consente as flores", nesse
"Dezembro enérgico, sucinto".
De repente, cortando o ritmo de trabalho daqueles homens fortes, rudes - "bovinos,
másculos, ossudos" - e brutos - "Como animais comuns", surge uma actrizita com
"pezinhos de cabra" cuja presença desassossega aqueles trabalhadores que a encaram
"sanguínea, brutamente".
No entanto, "O demonico arrisca-se, atravessa /Covas, entulhos, lamaçais depressa",
continuando o seu caminho.
O posicionamento do sujeito poético face aos calceteiros, embora lhes reconheça
aspectos quase que animalescos, é de uma empenhada solidariedade bem patente,
quando na estrofe 13, transforma as nódoas de vinho em medalhas, as camisas em
bandeiras e os suspensórios numa cruz - metáfora do sofrimento de Cristo, na cruz.
Este poema é talvez aquele em que a descrição sensorial do real se torna mais
evidente, através do uso de:

 sinestesias - "Vibra uma imensa claridade crua"

 sensações visuais - "E as poças de água, como em chão vidrento, / reflectem a


molhada casaria"

 sensações auditivas - "Disseminadas, gritam as peixeiras", "E o ferro e a pedra -


que união sonora!"

 sensações tácteis - "Faz frio"

 sensações olfactivas "Cheira-me a fogo, a sílex, a ferrugem"


 sensações gustativas - "Sabe-me a campo, a lenha, a agricultura"

 vocabulário expressivo - "O céu renova a tinta corredia"

 metáforas - "E os charcos brilham tanto, que eu diria / Ter ante mim lagoas de
brilhantes!"

O próprio sujeito poético reitera esse carácter sensorial do texto ao afirmar "Lavo,
refresco, limpo os meus sentidos. / E tangem-me excitados, sacudidos, / O tacto, a
vista, o ouvido, o gosto, o olfacto!"

in Colecção Resumos da Porto Editora

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