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Cesário Verde

1ª Parte

Síntese biográfica:

José Joaquim Cesário Verde nasceu em Lisboa em 1855.

O pai, um abastado comerciante de ferragens da rua dos Fanqueiros,

também se dedicava à as actividades da agricultura, numa propriedade que

possuía nos arredores de Lisboa, em Linda-a-Pastora.

Esta dualidade entre a cidade, o comércio e a vida do campo foi-lhe sempre

familiar e viria a reflectir-se na sua obra.

A escrita surgiu muito cedo, tendo publicado os seus primeiros versos aos

18 anos, ao ingressar no Curso Superior de Letras. É então que estabelece

relações com outros jovens letrados, principalmente um que se tornaria seu

amigo “para a vida e para a morte”, de seu nome Silva Pinto. As suas

publicações não param, contudo nem sempre são bem acolhidas. Escritores

como Ramalho Ortigão, Teófilo Braga e Fialho de Almeida não lhe pouparam

críticas.

Vítima de tuberculose, morre aos 31 anos, em Caneças, onde se tinha

refugiado à procura de ares mais puros.


Fernando Pessoa, isto é, Alberto Caeiro (pseudónimo) escreve sobre ele:

Ao entardecer, debruçado pela janela,


E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O Livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,

E o modo como reparava nas ruas,


E a maneira como dava pelas coisas,
É o de quem olha para as árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos…

Por isso ele tinha aquela grande tristeza


Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros…

Cesário Verde, poeta do quotidiano:

Jacinto Prado Coelho disse acerca de Cesário Verde:

Cesário Verde, enquanto “pintor de atmosferas, evocador do passado

familiar,” revela qualidades de “romancista e de repórter”… a sua

originalidade resulta de uma combinação de “análise e comoção, realismo e

sonho”… “ a poesia de Cesário Verde é uma poesia de transeunte, de quem

erra por caminhos da cidade ou do campo”.

Por outro lado, do ponto de vista da forma, do verso, a poesia de Cesário

Verde revela grande rigor métrico (verso alexandrino) e rigor estrófico ( a

quadra, sua predilecta), revela bem o seu “amor à precisão”.


Não se deixa influenciar pelo Romantismo, mostrando-se muito “sensível à

miséria humana”.

No seu estilo podemos ver, sim, influências do naturalismo, na medida em

que a sua poesia se assemelha frequentemente a uma pintura na tela, a uma

aguarela, identificando-se com uma visão plástica. Na sua poesia utiliza

predominantemente um vocabulário “cheio de termos concretos, técnicos,

familiares”, que lhe confere grande expressividade. J. P. Coelho considera

mesmo que o escritor supera o naturalismo, pela sua escrita conter um

elevado grau de objectividade. “ O estilo de Cesário Verde traduz, por

vezes, uma atitude impressionista”, sendo o impressionismo uma corrente

artística ligada essencialmente à Pintura.

Cesário Verde é o poeta da cidade, quer descrevendo, de modo original,

quadros e tipos citadinos, quer denunciando atitudes provocadas pela vida

exterior, em sociedade.

Uma outra característica dos seus versos, que lhe dão também uma escrita

muito própria, resulta do recurso frequente ao efeito de alternância, de

contrastes.

“Problemática da História Literária”


2ª Parte:

Ave-Marias
Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer.

O céu parece baixo e de neblina,


O gás extravasado enjoa-me, perturba;
E os edifícios, com as chaminés, e a turba
Toldam-se duma cor monótona e londrina.

Batem os carros de aluguer, ao fundo,


Levando à via-férre aos que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, Sampetersburgo, o mundo!

Semelham-se a gaiolas, com viveiros,


As edificações somente emadeiradas:
Como morcegos, ao cair das badaladas,
Saltam de viga em viga os mestres carpinteiros.

Voltam os calafates, aos magotes,


De jaquetão ao ombro, enfarruscados, secos;
Embrenho-me a cismar, por boqueirões, por becos,
Ou erro pelos cais a que se atracam botes.

E evoco, então, as crónicas navais:


Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!

E o fim da tarde inspira-me; e incomoda!


De um couraçado inglês vogam os escaleres;
E em terra num tinido de louças e talheres
Flamejam, ao jantar, alguns hotéis da moda.

Num trem de praça arengam dois dentistas;


Um trôpego arlequim braceja numas andas;
Os querubins do lar flutuam nas varandas;
Às portas, em cabelo, enfadam-se os lojistas!

Vazam-se os arsenais e as oficinas;


Reluz, viscoso, o rio, apressam-se as obreiras;
E num cardume negro, hercúleas, galhofeiras,
Correndo com firmeza, assomam as varinas.

Vêm sacudindo as ancas opulentas!


Seus troncos varonis recordam-me pilastras;
E algumas, à cabeça, embalam nas canastras
Os filhos que depois naufragam nas tormentas.

Descalças! Nas descargas de carvão,


Desde manhã à noite, a bordo das fragatas;
E apinham-se num bairro aonde miam gatas,
E o peixe podre gera os focos de infecção!

O Sentimento dum Ocidental

Análise global do poema:

Em primeiro lugar, vejamos o título. “Ave-Marias” designava (e designa,

ainda hoje, sobretudo para as pessoas do campo e mais velhas) a hora que

marcava o início da noite, o “cair das badaladas”. Ora, logo no primeiro verso

temos essa mesma indicação – “ao anoitecer”.

O poema começa, de facto por esta localização temporal, mas também

espacial – “ ruas” e “Tejo”. O poema apresenta-nos uma cidade, Lisboa (pela

presença das “varinas”), ao anoitecer. Este “quadro” de Lisboa é bastante

completo, tanto do ponto de vista físico – ruas, edifícios, cais, becos,

arsenais, oficinas…, mas também humano – turba, os que se vão, mestres

carpinteiros, calafates, dentistas, querubins, varinas…, como do ponto de

vista temporal – ao anoitecer, ao cair das badaladas, o fim da tarde.


Mas o poeta também se inclui neste “cenário”, que descreve com enorme

concretismo, mas do qual nos dá também a sua “marca” subjectiva, as

sensações que a cidade provoca em si próprio – despertam-me, enjoam-me,

embrenho-me a cismar, erro, evoco. O poeta é um observador, torna-se

narrador do que observa, mas é também um protagonista. O poeta observa a

soturnidade, a melancolia das ruas ao anoitecer e esse ambiente desperta-

lhe um desejo de evasão, para outros espaços e/ou outros tempos. Vêm-lhe

à memória outros locais no mundo – países, cidades; e outras coisas –

exposições, crónicas navais, Camões.

À medida que anoitece, a cidade, melancólica, fecha-se sobre si própria e as

sombras e o cheiro do ar provocam no poeta um desejo de sofrer e de

evasão. Por outro lado, os focos de infecção, referidos no último verso,

podem apontar para as epidemias, a tuberculose (que veio a vitimar o poeta).

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