Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
GÓTICO-ROMÂNTICA
RESUMO: Este artigo analisa o diálogo intertextual do filme Gothic com textos
da literatura gótica, destacando-se dentre eles, Frankenstein. Nessa produção
cinematográfica do diretor inglês Ken Russel, temos a recriação do insólito
evento conhecido como “o verão assombrado de 1816”, no qual foi elaborada a
trama básica desse romance, assim como o conto “The vampyre”, que
forneceu as características essenciais do vampiro literário. Assim, leio Gothic
como uma instigante metáfora visual sobre os excessos da imaginação gótico-
romântica, que deu origem a essas obras importantes nas quais encontramos
as bases dos fundamentos do horror moderno.
Palavras-chave: intertextualidade; gótico; Romantismo; fantástico;
sobrenatural.
ABSTRAC: This paper analyzes the intertextual dialogue between the movie
Gothic with texts of the Gothic literature, stressing among them, Frankenstein.
In this cinematographic production of the English director Ken Russell, we have
the recreation of the unusual event known as "the haunted summer of 1816", in
which the basic plot of this novel was elaborated, as well the short story "The
vampyre", which provided the essential characteristics of The literary vampire.
Thus, I read Gothic as an instigating visual metaphor on the excesses of the
Gothic-Romantic imagination, which gave rise to two importante works in which
we found the foundations of modern horror.
Keywords: intertextual dialogue; Gothic; Romanticism; fantastic; supernatural.
1
* Doutor em Estudos Literários pela UNESP. Atualmente, é pesquisador e atua nos seguintes
temas: os desdobramentos do gênero gótico nos séculos XVIII, XIX e XX; as relações de
proximidade do gótico com o movimento romântico no século XIX; a retomada e releitura dos
elementos góticos no cinema de horror; o diálogo intertextual do gótico com a narrativa policial
ou de mistério, ficção científica e o conto fantástico do século XIX. E-mails para contato:
alessandroyuri@bol.com.br ou alealegrette@gmail.com.
Imaginem a seguinte cena: uma mansão sombria à beira de um lago,
com um grupo de pessoas entediadas. Cai uma tempestade. Para passar o
tempo, eles começam a contar histórias de horror, cada uma mais assustadora
do que a outra. Agora imaginem que esse grupo é formado por uma garota de
18 anos, Mary Godwin, que já havia passado por várias tragédias pessoais, tais
como a perda da mãe devido à complicações no seu parto, e sucessivos e
traumáticos abortos; seu amante, Percy Shelley, poeta talentoso, mas imaturo
e viciado em ópio; a meia-irmã de Mary, Claire Clairmont, garota de imaginação
fértil, mas um tanto rebelde e alienada, com pretensões literárias; Lord Byron,
poeta igualmente talentoso, mas com fama de bad boy e sempre envolvido em
escândalos sexuais que faziam a alegria da imprensa britânica e, por último,
John Polidori, médico de Byron, que, apesar de ser fervorosamente católico,
não consegue esconder sua atração "pecaminosa" por seu patrão. Todos os
integrantes do grupo estão reunidos ao pé da lareira, contando histórias
assustadoras, enquanto lá fora, trovões iluminam uma noite tempestuosa.
É nesse cenário sinistro, que ocorreu o surgimento de duas importantes
obras, Frankenstein e “The vampyre”, nas quais se destacam a presença
marcante de dois seres sobrenaturais, - um monstro solitário sem nome e uma
criatura sensual e sedenta de sangue —, que definiram os rumos da literatura
gótica inglesa em pleno início século 19. Dessa forma, o insólito evento
envolvendo a criação de Frankenstein revela ser tão fascinante como a obra
que deu origem. Com o passar do tempo, esse romance adquiriu uma
dimensão mítica, e suscita o seguinte questionamento: como foi possível uma
jovem tão frágil como Mary Godwin, – que na época de sua escritura tinha
apenas dezoito anos de idade -, ser capaz de criar por meio de sua fértil
imaginação uma história que apesar de investir em eventos horríveis, também
é capaz de nos ajudar a compreender melhor os horrores e os mistérios da
natureza humana?
Para tentarmos responder essa pergunta, se torna necessário
comentamos sobre o surgimento da obra. A introdução de Frankenstein, -
publicada pela primeira vez em sua terceira edição (1831), na qual a autora fala
das razões para escrever o livro, - funciona como uma espécie de narrativa-
moldura de um romance que é formado a partir do cruzamento de subtramas
(BOTTING, 1996, p. 102). De acordo com anotações feitas por ela em seu
diário, e que foram inseridas nessa introdução, em uma noite do verão de
1816, George Byron, estimulado pela leitura de uma tradução francesa de uma
coletânea de contos góticos alemães chamada fantasmagoriana, propôs a
Mary, sua meia-irmã Claire, a Percy Shelley, e John Polidori, um desafio que
consistia em que cada um escrevesse uma história de horror, capaz de causar
uma genuína sensação de pavor.
Por fim, para tornar esse evento assustador, no qual foram
estabelecidos os fundamentos do horror moderno ainda mais impressionante,
acrescente, no século seguinte, a perspectiva peculiar de Ken Russel, cineasta
inglês conhecido por seu estilo transgressivo e barroco, cuja cinematografia é
composta por duras críticas à Igreja Católica, e uma profusão de cenas de sexo
e nudez, situações bizarras ou surreais. O resultado deste inusitado encontro
de talentos, que expõe o lado sombrio e inovador do movimento romântico, é
Gothic, um dos filmes mais estranhos e fascinantes produzidos na década de
1980.
Gothic é a produção cinematográfica que melhor soube recriar os anos
loucos do Romantismo inglês. No filme de Russel, os românticos do início do
século XIX podem ser considerados como pré-hippies. Eles são adeptos do
amor livre, usuários de substâncias alucinógenas, e demonstraram
abertamente sua revolta contra às rígidas regras de etiqueta da conservadora
sociedade britânica. Em Gothic, Percy Shelley e George Byron são retratados
como libertinos, e suas excentricidades, obsessões, neuroses e temores
conduzem ambos a um processo de alienação e autodestruição.
Na época em que se passa sua trama, Percy era uma celebridade nos
círculos literários e Queen Mab (1813), uma de suas principais obras poéticas
havia conquistado a admiração de Byron e de muitos leitores. A cena de Gothic
em que Percy é perseguido por duas garotas “animadinhas” ilustra bem o culto
à fama do poeta. Assim como ele, George Gordon Byron, ou Lord Byron é
considerado um dos expoentes do Romantismo inglês, em sua vertente gótica.
O comportamento excêntrico e amoral de Byron tem grande destaque no filme.
Em sua cena inicial, um grupo de pessoas fascinadas olham na direção da
mansão, que se tornou refúgio de Byron, após ele deixar a Inglaterra. O poeta
percebe que está sendo observado e aparece atrás de uma janela, estimulando
a curiosidade em torno de sua misteriosa figura. Quando Percy, Mary e sua
meia-irmã Claire chegam à mansão em que Byron está hospedado, ele os
recebe com aparente cordialidade. Ele chama Percy de “Shello”, faz elogios a
Queen Mab e inicia com Claire uma relação amorosa, com toques de
sadomasoquismo. Byron também tenta seduzir Mary, investindo em jogos
sexuais, que provocam nela uma forte sensação, misto de atração e repulsa
por ele.
Vale ressaltar que o único e principal cenário do filme, - a mansão de
Byron-, é decorada com elementos do Gothic Revival, destacando-se entre
eles, as armaduras que ficam expostas em vários cantos, de modo a evocar a
existência do passado no tempo presente. Também dentro desse ambiente
sinistro, vemos alguns quadros expostos nas paredes. Um deles, o autorretrato
de Byron ressalta seu aspecto melancólico, tendo como pano de fundo uma
paisagem sublime, de acordo com o gosto estético dos românticos. Outro
quadro que decora um dos cômodos da mansão, e aparece de forma
destacada em uma cena de Gothic é “O pesadelo” (1781), considerado uma
das obras mais importantes da arte gótica do século XVIII. Sobre essa pintura,
comentaremos sua importância no filme mais adiante.
Nesse cenário que parece ter saído das páginas de um romance gótico,
também existem autômatos com aparência feminina, que agem como se
fossem seres humanos – uma referência a “O homem de areia” (1814) do autor
romântico alemão, E. T. Hofmann. Em uma passagem do filme, Percy entra no
quarto de Byron, decorado com motivos orientalistas, e encontra um autômato
que tem as feições de uma odalisca, usado para satisfazer extravagantes
desejos sexuais. Dessa forma, essa mansão se destaca no filme como um
ambiente “não realista”, no qual é difícil estabelecer os limites entre o natural e
o sobrenatural.
Os românticos retratados em Gothic também gostavam muito de ler e
discutir romances góticos, que estimulam a imaginação. Em uma cena do filme,
Byron expressa sua profunda admiração por The Castle of Otranto (1764),
Vathek (1786) e The Monk (1896), obras que se destacam por seus elementos
macabros e sobrenaturais. Em outro trecho de Gothic, os integrantes do grupo
quando estão lendo trechos de fantasmagoriana, experimentam uma sensação
de “medo prazeroso” e colocam-se no lugar de protagonista dessas histórias.
Assim, o medo se exterioriza de forma diferente para cada um deles. Percy se
vê diante do cadáver de uma mulher pendurado no galho de uma àrvore, –
cena que remete ao suicídio de sua esposa, Harriet-, enquanto Claire é
atacada por fantasmagórico cavalheiro medieval, que também é visto por Mary
ameaçando a vida de seu filho.
Mas, dentro desse universo gótico-romântico, podemos encontrar
referências visuais a situações extraordinárias, que se destacam em
Frankenstein or, The Modern Prometheus (1818). Além disso, em grande parte
de sua duração, Gothic recria de forma inteligente, instigante e metafórica o
complexo processo de elaboração da trama básica desse romance. Para
enfatizar essa relação intertextual entre filme e obra, Gothic estabelece pontos
de intersecção entre Percy Shelley e Victor Frankenstein. Percy tem traços
peculiares de personalidade que o identificam com esse personagem. Ele é
retratado como homem egocêntrico, inseguro, fascinado pelos avanços da
Ciência associados aos mistérios da Natureza. Em uma emblemática do filme,
Percy sob o efeito do ópio, sobe nu ao telhado e, grita: "os raios elétricos são a
fonte da vida".
Mary Godwin que, depois adotaria o sobrenome de seu companheiro,
tornando-se Mary Shelley, também acreditava nessa teoria científica. Assim
como Percy, ela achava que a eletricidade possuía poderes sobrenaturais,
conforme demonstra anotações feitas em seu diário. Em um de seus registros,
Mary afirma que “as correntes galvânicas seriam capazes de reanimar um
cadáver, e talvez fosse possível fabricar as partes componentes de uma
criatura, juntá-las e animá-las com o que chamou de “o calor da vida”.
(SHELLEY, Mary, 2007, p. 9). Outra referência a Frankenstein pode ser
encontrada em Gothic, na cena em que Byron vê a sombra de uma gigantesca
árvore que, em seguida, se incendia devido a ação de um raio. Essa imagem
do filme, de forte simbolismo, remete a um trecho de Frankenstein, em que
Victor presencia de perto o imenso poder destruidor/criador da eletricidade –
elemento essencial utilizado para “gerar” sua criatura:
2
Em sua introdução de Frankenstein, a autora não faz nenhum comentário sobre essa situação
surreal que deixou Percy apavorado e é recriada em uma cena de Gothic: o poeta talvez sob
efeito do ópio, após ler um trecho de Christabel (1797), o poema gótico-romântico de Samuel
Colerigde, teria visto a formação do que pareciam ser olhos nos seios da meia-irmã de sua
companheira, Mary. Vale lembrar que a primeira menção a esse evento sobrenatural, que
supostamente teria acontecido durante o “verão assombrado de 1816”, é encontrada em The
Life of Percy Bysshe Shelley (1886), de Edward Dowden.
desespero, convencido de que ela está demonstrando sinais que está possuída
por uma entidade sobrenatural.
Apesar desses acontecimentos estranhos, se configurarem a partir de
elementos sobrenaturais, o espectador tem a impressão de que eles têm suas
origens em algo facilmente explicado: a imaginação que, sem amarras, - da
lavra da própria Mary Shelley, é capaz de dar vida aos nossos medos mais
terríveis, conforme a própria autora ressalta em sua introdução de
Frankenstein, que também mencionada no prólogo do filme:
REFERÊNCIAS