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Gwenaël Ponnau – A literatura fantástica e os fenômenos psíquicos no meio do

século XIX (1997)

[p. 33] Foi na França que encontramos a palavra fantástico, por causa do espanto
e da estupefação na qual nos mantinham certas obras de Hoffmann” 1. Essa constatação
feita por Champfleury em 1856 insiste a justo título na originalidade de um termo pelo
qual tentou-se, pelo bem ou pelo mal, recobrir a riqueza e a diversidade de uma obra – a
de Hoffmann – radicalmente nova 2.
Por oposição aos romances góticos ingleses que tiveram na França um vivo
sucesso, e que, nesse país, foram imitados e plagiados 3, a ausência de justificativas a
posteriori nas narrativas enigmáticas do autor alemão desconcertava. O vivíssimo
interesse suscitado por Os mistérios de Udolpho e por O italiano 4 era, para um grande
parte do público, baseado na explicação final dos fatos misteriosos amplamente
desenvolvidos de capítulo em capítulo.
Ora, historicamente, essa ultima ratio constitui a linha de partilha entre o
romance noir e o fantástico tal como a descobrimos na obra de Hoffmann. Há, com
efeito, nesse último recurso à razão mais do que um simples sacrifício à paisagem
mental e às exigências intelectuais do fim do século XVIII: essa necessidade de
esclarecer os caminhos escuros por onde o autor tinha conduzido seus personagens e
convidado o leitor a se perder em seguida, mostra que o romance radcliffiano e suas
inúmeras imitações, a despeito do seu gosto pelo mistério e pelo irracional, se
desenvolvem segundo um eixo que implica stricto sensu, um desfecho – o último
capítulo é exatamente o lugar onde tudo se desata, se desfaz, o lugar conde se abole o
mistério. Os “radcliffianos” pertencem ainda ao mundo estável da razão universal
momentaneamente ameaçado e finalmente restaurado em seus direitos e em suas leis.
Elas se referem, apesar de falharem, ao “racionalismo ambiente” 5 de sua época: esse
recurso e esse retorno à razão aparecem, portanto, como um paradoxo revelador de sua
natureza profunda. Essas sem-vergonhices de imaginação, essas extravagâncias
acumuladas no decorrer das páginas ficam subentendidas por essa razão soberana,
dissipadora final das ilusões e das loucuras, que é exatamente a tutora do discurso
romanesco de Anne Radcliffe.

[p. 34] Das phantasiestücke ao fantástico

Eis por que, adaptação francesa do título dado por Hoffmann a sua coletânea de
1814, Phantasiestücke in Callot’s Manier, o termo fantástico serviu para expressar a
diferença radical entre uma obra que zomba das leis da razão para dar a primazia ao
imaginário e aquelas narrativas em que a inspiração sobrenatural permanece
definitivamente, restrita pela exigência final de lógica. Contudo, Phantasiestücke
significa literalmente “peças, pedaços de fantasia”: ora essa tradução palavra por
palavra, que evoca também o universo da música, convinha “mal à inspiração
frequentemente sombria do contista berlinense” 6. Foi pelo preço de um “contrassenso”
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que a palavra “Fantástico se prestará à operação, por sua própria ambiguidade” 8.
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Esse contrassenso merece exame. Trata-se somente nesse caso “de uma
infidelidade literal [...] tornada necessária pelo gênio da língua francesa 9?” De fato, o
principal mérito do termo fantástico e parece exatamente que rapidamente se tome
consciência disso, atém-se ao seu caráter passavelmente opaco: por um lado, ele
enfatiza o caráter profundamente imaginário de uma obra estrangeira à língua e aos
critérios literários franceses. Por outro lado, e principalmente, ele reconhece, pela
novidade de seu emprego, a originalidade desconcertante dos primeiros contos de
Hoffmann que foram traduzidos em nossa língua.
Jean-Jacques Ampère que, um dos primeiríssimos, evocou os contos fantásticos
de Hoffmann, precisa com uma grande justeza pela qual essas narrativas rompem com
os “lugares comuns desgastados do horror”: entendamos dessa forma “gestos de
escamoteio [...] que se encontram [...] em certos romances”. Para esse crítico experiente,
as narrativas sem precedente de Hoffmann, longe de recorrer àqueles temas rebatidos e
àqueles procedimentos artificiais, apresentam uma nova “espécie de maravilhoso [...] o
maravilhoso natural” que se atém a expressar “os sonhos, os pressentimentos [...], as
fascinações, certos encontros singulares, certas impressões indefiníveis” 10.
Sobre essas evocações e sobre essas imagens que apresentam uma psicologia das
profundezas se baseia, como o destaca em uma fórmula completamente reveladora de
um comentarista anônimo, “o sobrenatural verdadeiro” da obra de Hoffmann 11.
Não seria possível, portanto, de se espantar que essa obra enraizada e, aos olhos
da crítica, especializada na evocação de casos singulares e mórbidos tenha podido
aparecer como o produto de delírio ao mesmo tempo manifesto e controlado.
Consequentemente, empregar o termo fantástico no início dos anos 1830 nessa
nova acepção é o mesmo que destacar a relação de causa e efeito que se acredita poder
estabelecer entre a estranheza psíquica de um autor e o caráter profundamente irracional
e desconcertante de sua obra: a influência capital do “hoffmannismo” consistiu,
portanto, em situar o sobrenatural não “nas coisas”, mas “no homem mesmo”, e “essa
grande descoberta [...] permitiu transformar em arte um gênero que [...] brotava de
procedimentos mecânicos ou de reminiscências literárias” 12.
O enraizamento do insólito no interior da psique confere, com efeito, seu valor
exemplar a uma obra chamada para servir de modelo aos autores que, em seguida de
Hoffmann, vão se esforçar para encontrara formulação de um sobrenatural moderno nas
aberrações do senso comum. A partir de um modo semiassustador semiburlesco,
Gautier revela a força dessa influência numa narrativa de 1832 [p. 35] Onuphrius Wphly
(que um ano mais tarde ganhou o subtítulo de “Ou as vexações fantásticas de um
admirador de Hoffmann”). O herói dessa narrativa é um jovem pintor apaixonado por
esoterismo e leitor entusiasta dos contos do escritor alemão. Esse personagem nunca
mais se recuperará do veneno literário do qual ele muito imprudentemente se deliciou:
acometido pelo que se poderia chamar de uma monomania fantástica, ele fica para
sempre prisioneiro de sua ideia fixa e se torna “o mais singular dos loucos”. A título
disso, Gautier o faz aprazivelmente figurar num quadro estatístico de fantasia atribuído
ao próprio Esquirol! 13
Essa obra é certamente paródica, mas ela tem o mérito de enfatizar o que
constitui já a herança literária de Hoffmann cujo nome foi, por muito tempo tanto na
França quanto na Alemanha, ligado às “extravagências” comuns do fantástico e da

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loucura. Imitar Hoffmann para Gautier e para os escritores de sua época, era colocar em
cena personagens loucos, ou, ainda representar as imagens desconcertantes nascidas de
umas experiência pessoal do pesadelo, da droga ou do álcool. A embriaguez e o desfile
de alucinações e de visões que a acompanham quando ela arrasta o bebedor para o
paroxismo da desrazão, torna-se além de tudo um método que se trata de seguir quando
se pretende criar obras fantásticas: é preciso vir “ao cabaré como Hoffmann [...] para
ver o ideal e o fantástico se desenharem nas nuvens de fumaça de tabaco ou aparecer
por entre os vapores da embriaguez” 14. A música, o tabaco e, certamente, o álcool
constituem os elementos de base que, segundo Loève-Veimars, acompanhado pelo
conjunto da crítica e do mundo das letras, estão na origem da obra fantástica de
Hoffmann. Para Philarère Chasles, não seria possível haver dúvida: “a arte de Hoffmann
nasceu nas adegas de Viena, nas tavernas de Leipzieg, em toda parte onde se pode
brindar com vinho do Reno, inebriar-se sem escrúpulos” 15. A loucura, produto da
intemperança do contista alemão, explica o caráter fantástico de sua obra.

As ligações originais da loucura e da literatura fantástica

A narrativa fantástica, obra de ficção, é, portanto, também obra de veracidade:


entre o autor e seus heróis a fronteira é sutil e ambígua a separar, de uma maneira às
vezes imperceptível ao leitor, a nosografia de caso de loucura e de aberração imputados
pelo escritor a seus personagens imaginários e o relatório, por assim dizer
autobiográfico, de experiências aberrantes efetivamente vividas 16. Sobre essa fusão,
operada pelo leitor entre o autor e seus personagens, constituiu-se o mito do escritor
fantástico louco. A crítica literária reúne assim a literatura psiquiátrica dessa época que
apoia suas observações clínicas sobre os casos de aberração mental descritos pelos
autores.
Hoffmann, o primeiro escritor fantástico, figura assim, como vimos, no lugar
correto no catálogo dos loucos de gênio estabelecido por Moreau de Tours 17, que se
inspira, nesse caso, muito visivelmente, em informações trazidas por Loève-Veimars 18.
Quanto a Walter Scott, ele tinha, desde 1827, apresentado o escritor alemão como um
louco acometido de dipsomania e cujas criações fantásticas eram o reflexo das
alucinações produzidas pela ação do álcool 19.
A frenologia se amparará também desse caso: a partir de Théodore Poupin, ela
atribui o talento fantástico do contista alemão a um prodigioso desenvolvimento de seu
“órgão da maravilhosidade”, explicação primeira e última de sua imaginação. Ora, “a
maravilhosidade leva a crer nos pressentimentos, nas [p. 36] inspirações secretas, aos
sonhos, aos fantasmas, enfim, a tudo o que é misterioso ou sobrenatural 20”.
A literatura, por sua vez, deduz, por assim dizer matematicamente, a obra de
Hoffmann das lições conjuntas da frenologia e da psiquiatria. George Sand faz de si seu
intérprete num julgamento que tem o mérito de revelar qual concepção,
verdadeiramente documental, o mundo das letras possui, através da obra de Hoffmann,
da literatura fantástica:

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“Nenhum espírito humano jamais penetrou mais francamente e mais nitidamente no mundo
dos sonhos, nenhum caminhou com mais lógica, senso e razão através das fantasias da
indução poética. Ninguém muito menos cedeu tanto à sua imaginação. A imaginação era,
entretanto, seu elemento vital, seu mundo real, o campo de seu pensamento. Se a frenologia
não estiver errada, ele devia ter por faculdade dominante a maravilhosidade” 21.

Tanto para a ciência quanto para a crítica, a literatura fantástica parece, portanto,
ter por origem uma predisposição orgânica, fisiológica. Ela é o efeito natural de um dom
para a evocação do mistério. Degeorge, em sua edição das obras de Hoffmann publicada
em 1848, pronuncia-se também medicalmente sobre o caso literário do autor: “da
mistura de sua verve artística e de uma hipocondria incurável, tinha resultado uma
espécie de monomania ultrajante” 22.
Assim, o caráter insólito de tal obra atém-se menos à natureza das coisas do que
ao psiquismo desconcertante do autor. Comentando uma passagem da Noite de São
Silvestre 23, Champfleury conclui nesse sentido: “não há coisa alguma de fantástico
nesse caso, tudo se encontra na maneira de descrever as fisionomias, os objetos” 24.
Assim a produção fantástica fica totalmente compreendida pelo ponto de vista adotado
pelo contista: ela não está nas coisas, mas no olhar que o escritor faz recair sobre elas.
“O fantástico não está no objeto, ele está sempre no olho” 25. Tal é a fórmula, muito
esclarecedora, pela qual Ernest Hello, em 1858, expressará o caráter eminentemente
pessoal e essencialmente subjetivo da literatura fantástica.
Importa, portanto, reter que, para os críticos e para os escritores que o imitam,
Hoffmann não inventa ex nihilo suas criaturas sobrenaturais: ele apenas transcreve
visões tiradas de sua experiência e da exasperação de seus nervos, produzida pela ação
do álcool e por sua loucura. Seus contos são, portanto, numa certa medida, admissíveis
para a razão do leitor porque, pensa-se, o autor as busca em seu próprio abismo
espiritual. Assim, o fantástico hoffmanniano (e a expressão nos anos 1830-1840 é
pleonástica) parece credível até em suas extravagâncias porque ele é considerado como
o reflexo de estados psicopatológicos efetivamente vividos. A partir daí se, certamente,
a loucura presumida do escritor alemão participa do mito romântico mais vasto do poeta
louco (Moreau de Tours, Lélut, Leuret fazem em suas obras a demonstração científica
das relações neurológicas e psicológicas entre o gênio e a loucura), essa loucura é, em
profundidade, muito mais ligada ainda à natureza fantástica da obra de Hoffmann 26.
Melhor: Hoffmann é um autor fantástico porque é louco. Tal é o silogismo
implicitamente formulado pelos censores e zeladores de sua obra. O que se gosta ou
critica nela é a evocação desses estados mórbidos que fazem do sujeito que os
experimenta e que os descreve, um caso excepcional: uma dessas figuras bizarras da
alienação estudadas pelos médicos dessa época.
Entre a loucura de Hoffmann e o caráter fantástico de sua arte, estabeleceu-se,
portanto, uma relação necessária de causa e efeito. O mito do contista louco presidiu o
advento de um gênero que imediatamente parece congenitamente ligado à expressão [p.
37] tanto figurada quanto realista das diferentes formas da loucura. Essa loucura pode
ser às vezes bufonaria: Poe se lembrará disso em 1840 em Histórias do grotesco e do
arabesco 27 e Baudelaire igualmente o fará ao ligar as “concepções cômicas mais

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sobrenaturais, mais fugitivas” do escritor alemão às “visões da embriaguez” 28. Essa
loucura é também alienação, no sentido médico, psiquiátrico do termo: a obra de
Hoffmann, nessa perspectiva, aparece como uma espécie de fenomenologia da da
loucura da qual “ele tira um prodigioso partido” assim como “tudo que se lhe parece,
ideias fixas, manias, disposições bizarras de todo tipo que desenvolva a exaltação da
alma ou certo desarranjo da organização” 29. Isso no diz respeito ao conteúdo. Porém,
mais sintomaticamente ainda, a própria forma das narrativas as aparenta aos discursos
atribuídos aos dementes:

“A própria ligação da narrativa, seu caminho amplo e natural tem alguma coisa de
assustador que lembra o delírio tranquilo e sério dos loucos” 30.

Essa loucura pode ser tão lucidamente controlada e o delírio que resulta disso
sabiamente organizado, dominado por um criador desejoso de conferir uma forma
estética às aberrações que ele evoca: tal é novamente o ponto de vista de Baudelaire ao
descobrir sob a casca superficial de uma demência aparentemente vagabunda, a
intervenção, cheia de sangue frio, de um artista e de um “fisiologista”, de um “médico
de loucos dos mais profundos e que de divertiria ao revestir essa profunda ciência de
formas poéticas” 31.
A fortuna literária de Hoffmann e de sua loucura determinou a fortuna da própria
literatura fantástica e, de alguma forma, modelou a concepção que escritores e críticos
fizeram dessa forma moderna de sobrenatural. A ligação original estabelecida entre as
narrativas do escritor alemão e do termo “fantástico” encontra-se confirmada, de alguma
forma, a contrario, pelas reservas que formularam respectivamente em 1836 e em 1856
Henry Egmont e Champfleury, ambos desejosos de nuançar os julgamentos rápidos
demais que serviram para constituir o mito hoffmanniano. Egmont destaca que:

“O próprio título atribuído ao conjunto das produções do autor alemão não lhe pertence, o
fantástico de Hoffmann reside mais em suas concepções do que em seu estilo: é o contrário
de seus imitadores” 32.

E o tradutor acrescenta, como se lamentasse, que “a tradição da palavra acabou


sendo estabelecida de maneira irrevogável”, e que teve de se “conformar com isso”.
Champfleury constrói uma constatação bastante semelhante ao voltar para a
voga extraordinária que alcançaram os contos fantásticos nos anos 1830:

“O Sr. Loëve-Weymars nomeou a primeira série de contos como fantásticos e, a partir


dessa época, fantástico permaneceu e permanecerá por muito tempo, embora a palavra
fantástico jamais tenha sido empregada pelo contista alemão. É verdade que o maravilhoso
desempenha um grande papel na obra de Hoffmann para justificar o epíteto de fantástico; é
igualmente verdade que os contos estavam na moda e que cada autor torturava o cérebro
para encontrar outra coisa além dos contos castanhos, dos contos rosados, contos de todas
as cores, contos de uma cabeça invertida. Esses motivos justificam um pouco o fato do Sr.
Loëve-Weymars de ter dado o título de fantástico a obras em que a realidade se combine
tão naturalmente à pintura do estado particular de uma natureza atormentada” 33.

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É, de fato, notável que a concepção de Champfleury, por mais nova que seja,
longe de participar do esforço de desmistificação e de reabilitação literária desejada por
seu autor, contribui, de fato, para reforçar a lenda. Leitor sarcástico do prefácio dos
Contos póstumos, Barbey d’Aurevilly, tira a partir disso [p. 38] conclusões que
expressam a certeza da loucura de Hoffmann e da insanidade do gênero fantástico “que
não está unicamente na esfera da fantasia e que nunca definiram nitidamente” 34. O
sucesso de Hoffmann é explicado além disso, aos olhos de Barbey d’Aurevilly, pelos
gostos bizarros e, para dizer tudo, degenerados de sua época. Philarète Chasles usa os
mesmos argumentos: o que se nomeou “fantástico” tem por fonte direta a loucura 35.
Pelo cuidado da precisão nosográfica, seu trabalho lembra o de Walter Scott (o qual
Babey d’Aurevilly louva igualmente por sua objetividade). Hoffmann era louco: nada é
menos duvidoso. Para se convencer disso, basta seguir o método dos psiquiatras e
interrogar sua hereditariedade. Esse filho nascido de uma mãe louca, encontrava em sua
família próxima “o espetáculo da dissipação e da ruína, da alucinação mental e de todos
os excessos” 36. Sua obra e, de uma maneira geral, o conjunto da literatura fantástica
constituem o amálgama heteróclito da “batuta de Mesmer”, “evocações de Cagliostro,
da eletricidade de Franklin e da harmônica de vidro” 37.
Barbey d’Aurevilly coloca no mesmo plano, iguais na extravagância, Hoffmann,
Fichte e Hegel; Philarète Chasles constata que “o pensamento lógico não existe [...] em
Hoffmann” e que ele não é sequer um “aluno de Kant, que estimula o delírio em honra
da metafísica” 38. O que é então sua obra e, consequentemente, o que é a literatura
fantástica senão um fato de nosologia e bacante” ? – loucura, grotesco e bufonaria
misturados. Deseja-se uma fórmula para definir o gênero? É a arte transformada em
mania [...] Aqui o doente e o médico, o louco e o observador se confundem” 39. Para
Barbey d’Aurevilly, assim como para Philarète Chasles, comentar a obra de Hoffmann
remete praticamente a proceder ao inventário psicopatológico das taras morais e
intelectuais dos personagens e de seu criador 40. Deve-se também recusar a seguir
“alguns belos espíritos franceses” que acharam boa ideia, após a morte de Hoffmann,
“ressuscitá-lo moralmente” e de “dar-lhe a roupagem que convém” 41.
Se esses julgamentos são polêmicos demais para serem imparciais, não são
senão testemunhos da vitalidade do mito do contista fantástico louco: uma lenda foi
criada, tenaz, e que será retomada, pelo bem ou pelo mal, a respeito de outros escritores.
A relação de causa e efeito estabelecida entre a loucura e o fantástico permanecerá uma
constante nos meios literários e no mundo da ciência psiquiátrica.

A literatura fantástica e os fenômenos psíquicos

Contudo, um tal mito não teria, certamente, podido nascer nem se desenvolver se
a literatura fantástica de, desde Hoffmann e depois dele, não tivesse constantemente
feito referência às ciências que estudam os fenômenos psíquicos.
A voga do magnetismo, o sucesso fantástico e mundano das experiências
sonambúlicas, o interesse apaixonado que suscita a evidência da vida onírica, o estudo
psiquiátrico das alucinações engendradas pelo álcool e pelos estimulantes do sistema
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nervoso, as visões provocadas pelo haxixe e pelo ópio formam justamente o pano de
fundo sobre o qual se desenha e se afirma uma literatura inspirada cada vez mais, de
acordo com a sensibilidade e os conhecimentos próprios a cada autor, nesse ou naquele
de seus elementos nas manifestações tidas como sobrenaturais ou objetivas dos
fenômenos psíquicos. Há nesse caso um vasto conjunto de fatos, verificados ou
presumidos, cultivados e estudados pelas ciências especializadas no estudo dos
mistérios da mente: a psiquiatria, que de tantas observações atentas revela por suas
próprias hesitações a complexidade do [p. 39] psiquismo humano, o magnetismo que
crê fazer a demonstração experimental dos extraordinários poderes da mente, o
espiritismo que entende penetrar os mistérios do além e da alma.
Essas diversas disciplinas formam para os escritores fantásticos um imenso
“reservatório de imagens” oníricas 42, supranormais e mórbidas que servem de
trampolim a sua imaginação criadora. O ecletismo de um Théophile Gautier na ordemdo
imaginário é a expressão dessa atitude: encontra-se assim em sua obra fantástica contos
inspirados pelos fatos misteriosos do mundo do sonho (A cafeteira), pela droga (O
cachimbo de ópio, O clube dos hachichins), pelo espiritismo (Spirite) e pela loucura
(Onuphrius) 43. Ora, Gautier não representa um caso particular dessa atração dos autores
pelo conjunto de mistérios ligados à vida enigmática da mente: ele faz parte daqueles
numerosos escritores seduzidos tanto pelas explicações e pelas hipóteses das ciências
positivas quanto pelas certezas das “ciências” parapsicológicas. Essa aliança,
aparentemente contraditória no seio das obras de imaginação que seguem o exemplo de
Hoffmann, de fatos reconhecidos pela ciência e efabulações audaciosas forma um dos
paradoxos sobre o qual se baseou originalmente a literatura fantástica.
Nada ilustra melhor essa realidade do que o sucesso tenaz do magnetismo no
interior das obras fantásticas ao longo de todo o século XIX. Do Magnetizador de
Hoffmann aos contos de Maupassant (Magnetismo, Um louco?, O Horla) passando
pelas narrativas de Poe, de Bulwer-Lytton, de Villiers de l’Isle Adam, os temas da
hipnose, da possessão e do enfeitiçamento não pararam de criar obras que apresentam o
interesse apaixonado suscitado por uma forma decididamente moderna de insólito 44.
Foi porque o magnetismo se tornou, desde o início do século, um feito de
civilização. As experiências de Mesmer puderam ser quase imediatamente denunciadas
como suspeitas 45, sua teoria, exaltada e modificada, tanto na Europa quanto na América,
tornou-se o magnetismo, que se propõe como uma ciência autêntica. Por essa razão as
experiências dos magnetizadores são retomadas e amplificadas nas narrativas
fantásticas: elas apresentam a preciosa vantagem de dar, aparentemente, ao maravilhoso
e ao sobrenatural a garantia de uma razão misteriosa certamente, mas cujos efeitos são
considerados inegáveis e patentes. Os estados hipnóticos, as crises de sonambulismo, os
fenômenos de catalepsia evocados e às vezes minuciosamente descritos pelos autores
conferem a suas ficções uma força de veracidade própria para obter a convicção do
leitor ainda que reserve para o mistério essencial exposto na obra todo seu prestígio. O
magnetismo tanto quanto a psiquiatria apresenta, portanto, aquele “sobrenatural
verdadeiro” que era evocado por um cronista anônimo do Figaro.
O barão du Potet, incansável prosélito dessa “ciência” moderna, lançou-se um
pouco antes do meio do século numa cruzada que mostra bem o extraordinário sucesso
na alta sociedade, na literatura e na ciência dos magnetizadores e dos hipnotizadores. O
primeiro número do seu Diário do Magnetismo, que foi publicado em 1845, expõe com

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os acentos permitidos por um triunfo supostamente próximo, o objetivo desse
apostolado:

“O magnetismo tornar-se-á sobretudo um meio explicativo não apenas de muitos enigmas


considerados até o presente como inexplicáveis (como por exemplo, diferentes doenças),
mas mais ainda com relação à esfera interior e mística do sono e dos sonhos, onde a
natureza poética do homem desempenha em seu esconderijo o papel mágico de tantas
diferentes maneiras” 46.

Dessa forma, encontra-se confirmada a dupla natureza do magnetismo: ao


mesmo tempo racional e místico, ele se interessa pela mente e pela alma e persegue
objetivos [p. 40] terapêuticos e espirituais.
Ocorre com as curas mágicas o mesmo que com certas práticas psiquiátricas: as
curas que resultam são tanto como conversões quanto os doentes devolvidos à sanidade
acabam se tornando iniciados e apóstolos. Du Potet, em seu zelo, cita atropeladamente o
caso de um epilético americano de Providence definitivamente curado graças ao
magnetismo e a extração sem dor de um dente na pessoa de um jovem epilético
magnetizado em Boston, a cidade natal de Edgar Poe! Em São Petersburgo, o barão voa
de sucesso em sucesso, ele magnetiza sucessivamente “a bela senhora Puchkin”, a
condessa Potocka e a senhora condessa Rostopchin que comete, nessa ocasião, um
poema entusiasta enfaticamente intitulado “Meu primeiro sono magnético” 47. A leitura
do Diário do Magnetismo mostra que os fenômenos estudados por Mesmer e seus
êmulos são de todas as épocas e de todos os países: se a Academia Real de Munique
ouve, em 1842, uma dissertação do Professor Ennemoser sobre o magnetismo, as
sociedades acadêmicas de Newcastle recebem uma comunicação de um caso
particularmente interessante de “sonambulismo magnético”. Na França, como em todo
lugar da Europa e dos Estados Unidos, eventos meio científicos meio elitistas reúnem,
em torno de sujeitos particularmente receptivos, homens da alta sociedade
impulsionados pela curiosidade e pelo gosto do estranho, médicos às vezes perturbados
por aquilo que veem ou pelo creem constatar e escritores fascinados pela evidência de
mistérios ligados às bizarrices do psiquismo humano 48.
As sessões de vidência sonambúlica também revelam essa espécie de
cumplicidade das elites literárias e científicas:

“A senhorita Pigeaire leu diante da elite parisiense, durante três meses, com os olhos
cobertos por uma grossa faixa preta. Os relatórios dessas sessões foram cobertos pelos
nomes mais consideráveis da arte, da literatura, das ciências” 49.

Os escritores fantásticos que usam em suas obras as revelações do magnetismo e


do sonambulismo, não são, com efeito, os únicos a ficarem perturbados. Vários médicos
se interrogam igualmente sobre a autenticidade do “fluido magnético”: fazer essa
pergunta já é confessar seu embaraço diante de um problema que interroga a fisiologia e
a psiquiatria. O doutor Ridard d’Angers fica visivelmente abalado com as experiências
da qual ele foi testemunha:

“Quem ousará dizer que o magnetismo, o fluido magnético, pelo simples fato de escapar à
análise de nossos sentidos, é um ser ideal, fictício, fora do estado, do tempo, da

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circunstância, não modifica, sabe-se lá como, o estado habitual do homem que lhe for
submetido?” 50.

A tais questões, mais retóricas do que realmente interrogativas, os autores


fantásticos trazem uma resposta que, reforçada pelas hipóteses e pelas quase certezas de
alguns estudiosos, confere a suas narrativas as garantias, ao menos aparentes,
científicas. O título que Edgar Poe dá a uma de suas narrativas Os fatos no caso do Sr.
Valdemar 51, mostra o quanto a ficção fantástica, apoiada pelo ensino das experiências
magnéticas pode ter o efeito de se apresentar sob a forma de um documentário objetivo.
Igualmente, Revelação magnética, escrito um ano antes, se baseia num diálogo
entre um moribundo, Sr. Vankirk, e um magnetizador que obtém de seu “sujeito”
revelações metapsíquicas sobre a vida no além e sobre a verdadeira natureza da mente e
da alma. O autor coloca inicialmente sua narrativa sob o patrocínio da “teoria positiva
do magnetismo” cujos “fulminantes efeitos são [p. 41] agora quase universalmente
aceitos” 52. E, com efeito, o jogo das questões e respostas reproduz muito exatamente
aquelas sessões no decorrer das quais o sonâmbulo, interrogado pelo magnetizador,
responde docilmente às perguntas que lhe são feitas.
Ora, os sonâmbulos e os sujeitos das experiências magnéticas formam uma
categoria de herói que se destaca no domínio da alienação mental e do supranormal: seu
advento na literatura recorre a esses fenômenos psíquicos apresentados pelas narrativas
fantásticas. Nesse caso, basta apenas interrogar os médicos: “os loucos, que outrora se
diziam perseguidos pelo diabo, acreditam-se hoje perseguidos pelos magnetizadores” 53.
Esse deslocamento do sobrenatural que opera, também na literatura, em detrimento dos
demônios e em benefício da ciência, é o sinal do enraizamento do fantástico em todas as
disciplinas que tratam da mente.
O magnetismo, a clarividência sonambúlica e os ensinamentos da psiquiatria
formam um conjunto de observações nosológicas e paramédicas na qual se inspiram os
autores: esses últimos, com efeito, estão frequentemente em contato direto com os
homens da ciência. Eles também são experimentadores. Foi assim que Brierre de
Boismont fornece em 1840 numa revista de estudiosos o relatório de uma experiência
de toxicologia que reuniu “cerca de trinta pessoas, dentre as quais, escreve ele, citarei os
Srs. Esquirol, Ferrus, Cottereau, Bussy, professor na escola de farmácia; os demais eram
homens de letras, estudiosos, artistas”.
E o especialista das alucinações acrescenta imediatamente essa observação que
mostra claramente o caráter, a seus olhos perfeitamente objetivo, de uma tal assembleia:
“Havia lá consequentemente todos os elementos de uma boa observação e a certeza de
que a experiência seria real” 54.
Essa experiência tinha o propósito de verificar em sujeitos cuidadosamente
escolhidos se os efeitos produzidos por uma “bebida” da composição do “Sr. A. de G.”
(trata-se de Ajasson de Grandsagne, o tradutor célebre de Plínio, o Velho) são análogos
aos do haxixe. Três participantes absorverão então “o licor”: um advogado conhecido,
B., um pintor que é também músico, enfim A.K., “romancista célebre” (Alphonse Karr).
Há outros casos de colaboração mais exemplares ainda. Théophile Gautier
publicou em La Presse de 10 de julho de 1843 um artigo que foi republicado na revista
Variétés: trata-se de descrever “os efeitos do haxixe” e de compará-los aos já

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conhecidos do ópio. Nesse caso, o autor evoca, em particular, a atmosfera singular
daquelas noites de “fantasia” que agrupavam em torno de personalidades pertencentes
ao corpo médico (Moreau de Tours é um desses “baluartes”), escritores, artistas,
estudiosos curiosos em descobrir os “paraísos artificiais”. Ora, esse artigo faiscante de
verve é retomado quase na íntegra, como se viu, na obra de Moreau sobre o haxixe.
Certamente o médico faz algumas reservas quanto ao estilo, mas esse “exagero na
forma” é, no fim das contas, um erro venal que não deve “de forma alguma levantar
dúvidas sobre a veracidade do escritor”. Esse artigo torna-se então um elemento da
literatura nosográfica. Mais significante ainda, os Anais médico-psicológicos o
reproduzirão integralmente a partir de 1843 assim como, dois anos mais tarde, o Diário
do Magnetismo. Assim, a experiência de Gautier, duas vezes transcrita em rubricas de
vocação literária, parece também exata o suficiente ao comitê de leitura da maior revista
francesa de psiquiatria para figurar em suas colunas a título de testemunho autêntico.
Um psiquiatra baseia nela a parte preliminar de sua tese sobre a identidade da loucura e
do estado psíquico do drogado. Os partidários do magnetismo descobrem assim, de sua
parte, a confirmação de suas hipóteses audaciosas sobre as faculdades extraordinárias da
mente humana. Nada mais restaria a Gautier senão tirar um partido literário de sua
experiência com a droga: isso será, em 1846, O Clube dos hachichins – uma narrativa
que mostra admiravelmente que a literatura fantástica, influenciada pela obra de
Hoffmann, situa-se bem, nos anos 1850, na encruzilhada das pesquisas empreendidas
pelos alienistas, nas revelações trazidas pelos magnetizadores e nas experiências
pessoais dos autores.
Brierre de Boismon atesta novamente essas relações entre os homens de ciência
e os escritores no prefácio de seu tratado sobre as alucinações: entendendo demonstrar
os fundamentos de sua tese sobre “a identidade da loucura e das alucinações”, o
psiquiatra não se contenta em citar “autoridades científicas”, Réveilleé-Parise, o Dr. L.
Cerise na França, Sigmond na Inglaterra, Ideler na Alemanha, ele invoca igualmente os
nomes de Victor Cousin, George Sand e Lamartine 55.
De fato, não cabe apenas aos psiquiatras se apoiar em textos e autoridades
literárias. Acontece também de os autores sugerirem experiências originais aos médicos.
Assim, Balzac, no dia seguinte a uma “fantasia da qual ele tinha participado”, escreve
uma carta a Moreau de Tours: ele descreve as impressões provocadas pela droga, mas
principalmente ele formula um projeto (sobre o qual ele medita, garante ele, há vinte
anos):

“refazer, com o auxílio do haxixe, o cérebro de um cretino, a fim de saber se é possível


criar um aparelho de pensar, desenvolvendo seus rudimentos” 56.

A droga e, de uma maneira geral, todos os estimulantes do sistema nervoso –


vinho, álcool, café, chá – estudados pelos psiquiatras e pelos toxicólogos, são, portanto,
o suporte ao mesmo tempo orgânico e psíquico de certas narrativas fantásticas. As
alucinações e os estados alterados engendrados por essas bebidas oferecem, ao mesmo
tempo em que o ópio e o haxixe, temas particularmente modernos aos escritores 57. AS
obras de Hoffmann poderão a partir de então aparecer como os produtos quase
experimentais das alucinações provocadas pelo vinho, as narrativas de Poe serão
igualmente imputadas à influência do álcool: tanto é verdade que cada droga, cada
estimulante, apresenta seu caráter específico.

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Assim como a embriaguez provocada pelo ponche é frequentemente presente,
como explicação subjacente do sobrenatural, em Vaso de ouro, de Hoffmann, as visões
relatadas por Balzac em O domo dos inválidos 58 são talvez muito simplesmente devidas
aos efeitos alucinatórios dos vinhos do Reno e do champanhe. Ora, os “efeitos do
álcool” estão na origem da “modificação intelectual primordial”, sinal distintivo da
loucura 59.
Na realidade, no seio de uma mesma obra, esses diversos elementos se reúnem
uns aos outros e se combinam: Gautier, em 1838, em O cachimbo de ópio, compara
inicialmente os efeitos da droga que produz um “café violento” antes de descrever um
sonho alucinante de verdade no decorrer do qual Esquiros, o autor do Mágico, sugere ao
sonhador que toda sua aventura é explicada pelo magnetismo. É nesse momento em que
essa narrativa alucinada relata a história de fantástica de Carlotta, a cantora morta. Esse
“sonho de ópio”, acrescenta Gautier, “não me deixou outros vestígios senão uma vaga
melancolia, uma sequência ordinária dessas espécies de alucinações” 60.
Assim, toda uma corrente de inspiração da literatura fantástica se baseia nas
revelações trazidas pela droga e sobre as imagens alucinatórias suscitadas pelo vinho,
pelo álcool e pelos estimulantes do sistema nervoso. Eis porque o sobrenatural tal como
o descobrimos inicialmente em Hoffmann, depois em Balzac, [p. 43] em Gautier e, mais
tarde, na obra de Poe, é tido por “verdadeiro”. É também pelo fato de o gênero
fantástico ser verdadeiro que as narrativas que se lhe associam são tão frequentemente
citadas na literatura psiquiátrica.

As imagens fantásticas da loucura

Convém considerar no advento do gênero fantástico o papel eminente que


desempenharam as relações entre, de um lado, os escritores e, de outro lado, os
psiquiatras e os “estudiosos” – magnetizadores, frenólogos, até mesmo homeopatas 61.
Entre uns e outros houve uma troca de informações e de revelações. Eles leem,
escrevem, encontram uns aos outros e participam às vezes, como vimos, de experiências
em comum no termo das quais a linguagem da literatura não parece incompatível com o
rigor que temos o direito de esperar das obras científicas. Novamente, não foi Brierre de
Boismont que, antes de ter ele mesmo uma experiência vivida da droga, embasou seu
conhecimento dos efeitos do ópio na célebre obra de Thomas de Quincey adaptada por
Musset? 62 Não foi Leuret que buscou, na obra de Lamartine, os exemplos destinados a
sustentar sua demonstração? 63 Moreau de Tours, por sua vez, convida para suas
fantasias do Hôtel Pimodan, Balzac, Gautier e Baudelaire. Théodore Poupin, o
frenologista, discípulo de Gall, de Lavater e de Spurzheim, não escreve uma obra
consagrada à fisiognomia, dedicada a “A [seu] indulgente amigo Jules Janin” que lhe
permitiu “abrigar-se à sombra de seu nome” 64?
Reciprocamente a ciência dos alienistas e dos especialistas – verdadeiros ou
falsos conhecedores –, dos fenômenos psíquicos inspira toda uma categoria de
narrativas fantásticas nas quais o autor utiliza, muito visivelmente, os ensinamentos da
psiquiatria, do magnetismo e da frenologia. Observar-se-á, a respeito disso, que essas

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diversas disciplinas formam um conjunto no interior do qual os elementos respectivos
de cada ciência se combinam e se fundem. Assim, George Sand, amiga do Doutor
David Richard, fundador das casas de socorro aos alienados e indigentes, não teria se
inspirado, acerca da doença do personagem Albert, ao escrever Consuelo 65, nas
observações de um alienista que é também um frenologista convicto? O mesmo ocorre
com Gautier em Onuphrius quando descreve o caso de um daqueles alienados
acometidos de demonomania tratados nas casas de saúde. Gogol, em O diário de um
louco evoca um tipo de alienação que a nosologia e a nomenclatura psicopatológicas
estudam: Poprishchin não poderia fazer parte daqueles “simples indivíduos que querem
desposar princesas”? – um dos tipos de loucura definidos por Leuret 66. O Reverendo
Mr. Hooper, herói do conto de Hawthorne, O véu negro do pastor 67, atormentado por
um estranho sentimento de culpa que o leva a esconder para sempre o seu rosto, parece
saído diretamente das concepções de Heinroth sobre as ligações metafísicas entre o
pecado e a demência. O protagonista de William Wilson 68 apresenta muito mais
diretamente ainda observações sobre a nosologia psicopatológica: esse personagem, que
cede constantemente a seus maus impulsos, e seu duplo, que não para de se opor a suas
intenções maléficas, parecem exatamente duas emanações de uma mesma personalidade
separada em duas partes inconciliáveis. Tal narrativa é estranhamente próxima dos
casos de desdobramento estudados pelos especialistas em alucinações: “duas
personalidades” entram num mesmo indivíduo “em oposição contínua: uma aconselha
para o mal [...] outra resiste às más sugestões” 69. O louco do Coração denunciador,
assassino que confessa, contra sua vontade, diante de três policiais mudos, o crime pelo
qual assumiu [p. 44] a culpa é também exatamente vítima de um desses fenômenos
alucinatórios estudados pelos psicanalistas. Atormentado pelo sentimento obsedante de
sua culpa, esse criminoso, acredita ouvir o batimento cardíaco de sua vítima que ele
enterrou sob o piso do quarto onde ele deve confrontar os investigadores. E eis que
contra a própria vontade, a outra voz que está nele articula as palavras acusadoras:

Senti que era preciso gritar ou morrer! [...] Confesso o negócio! Arranque as tábuas! Está
aqui! Está aqui! – é o batimento de seu apavorante coração!

Ora, a psicanálise dos anos 1840 estuda nos loucos semelhantes alucinações do
ouvido:

Acontece de a própria produção do pensamento ser acompanhada pela sensação de um


barulho que faz dele como se fosse um pensamento falado, sem o auxílio dos órgãos da
voz. O doente que o vivencia, ao mesmo tempo em que pensa, ouve seus pensamentos. E
do que ele ouve, conclui que os personagens que o cercam, também os ouvem. Por isso, é-
lhe uma questão de inquietação e de tormento 70.

Certamente em tais obras em que a ficção fantástica parece tão próxima das
observações da psiquiatria, as “condições culturais [...] sofridas em comum [pelos]
teóricos e [pelos] letrados” 71 desempenham um papel essencial. Portanto, não é de se
estranhar que a loucura, objeto de uma ciência que é também o reflexo dos preconceitos
de sua época, constitua a base, meio científica, meio imaginária, de narrativas que
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encontram nas observações da psiquiatria um terreno favorável à ficção fantástica. Há
obras que trazem a prova a contrario dessa influência. Na medida em que a loucura, tal
como ela é tratada pelos defensores do positivismo, escapa do domínio da imaginação
literária, alguns autores buscam se inscrever falsamente contra as conclusões dos
anatomistas e outros organicistas.
Assim, Nodier em A fada das migalhas, recusa, de forma irônica, o saber da
psiquiatria positivista: o “famoso médico de Londres” que conclui, com grande esforço
de termos científicos, a favor da loucura de Michel e que preconiza pacientemente para
seu paciente “efusões de água glacial [...], sinapismos [...], epispásticos [...],
moxabustão [...] flebotomia [...]” e, certamente, “camisa de força” 72 é a imagem
caricatural de Broussais cuja concepção organicista da loucura só pode ser oposta ao
projeto estético do escritor fantástico 73. Para Nodier, com efeito, o personagem do
louco se situa além da ciência quando ela pretende dar a última palavra sobre os
mistérios das aberrações mentais. A loucura, tal como ela é concebida por esse escritor
deve necessariamente ultrapassar os limites do inteligível. Ele deve ser ambíguo e se
situar a meio caminho da nosologia, por natureza experimental e racionalizadora, e do
espiritualismo: assim como Jean-François dos pedantes, o louco tem talvez duas almas,
uma que pertenceria “ao mundo grosseiro onde vivemos” (e que revelaria categorias da
ciência) e a outra que seria do “espaço sutil” onde o herói acredita “penetrar pelo
pensamento” 74.
A loucura nas narrativas fantásticas usa, portanto, exclusivamente os dados da
ciência psiquiátrica dos anos 1840-1850 permite aos escritores de fazer da loucura um
tema fantástico na medida em que, paradoxalmente, ela é ao mesmo tempo objeto de
investigações que se querem exatas e de conclusões que deixem à imaginação criadora
dos autores a possibilidade de se exercer.
O uso literário dos dados fornecidos pela psiquiatria deve portanto ser precisado:
se a influência da nosologia psicopatológica é constante, a loucura, no interior das
narrativas, serve sempre aos desejos do autor, cuja argumentação e a poética retêm
essencialmente os aspectos estranhos e quase sobrenaturais das observações feitas pelos
alienistas 75. A loucura em estado puro, descrita de uma [p. 45] maneira realista, a
loucura que não deixa lugar às hipóteses fantásticas é “uma dessas infelicidades que
tocam, mas enojam [...]. Sem dúvida, ao introduzir um louco em seu romance, um autor
está certo de produzir efeito. Ele faz vibrar uma corda sempre sensível; mas o meio é
vulgar” 76.
Assim, o louco deve ser na narrativa fantástica um personagem suficientemente
ambíguo menos pela causa da compaixão do que pelas dúvidas do leitor, chamado às
vezes para se pronunciar sobre o caráter sobrenatural ou mórbido dos fatos relatados.
Não é de se espantar portanto que, para os escritores fantásticos, a parte sedutora da
psiquiatria, seja aquela que se aproxima mais das outras disciplinas – frenologia,
magnetismo, espiritismo – cujos ensinamentos têm por principal efeito revelar, mas
também distanciar o mistério da mente humana. Os autores duvidam, com efeito,

Que um personagem romanesco possa ser reduzido a uma coleção de doenças e de lesões
orgânicas [...] eles não poderiam adotar os tipos nosológicos, tais como são concebidos
pelos práticos organicistas 77.

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É a razão pela qual os escritores dos anos 1850 encontraram, após Hoffmann e
em seguida Edgar Poe, suas principais fontes de inspiração ao menos tempo nas visões
alucinatórias suscitadas pelo álcool e pela droga, nas imagens oníricas que conferem a
suas narrativas uma significação de pesadelo, nas experiências dos magnetizadores e
dos espíritas, e nos fenômenos mórbidos tais como os revelados por alienistas tão
diversos como Ellis, Heinroth, Esquirol, Moreau de Tours, Leuret ou Brierre de
Boismont. Todas essas experiências em sua diversidade têm por característica comum
interrogar os mistérios do psiquismo do homem: a originalidade profunda da literatura
fantástica do meio do século vem do fato de ela expressar e cristalizar o conjunto dessas
influências. Esta é a sua modernidade. O sobrenatural dali em diante não está mais
exclusivamente ligado às manifestações do além, exteriores ao homem 78: as fadas e o
cortejo dos bons ou maus gênios, a teoria das feiticeiras e as legiões de demônios deram
pouco a pouco lugar a indivíduos que vivenciam eles próprios os efeitos de uma
estranheza cuja fonte possível, e raramente reconhecida pelo próprio personagem, situa-
se nesse abismo que o espírito se tornou. Foi nesse lugar fascinante e enigmático para o
qual se mudou o mistério. Situada em 1850 na encruzilhada do racionalismo científico
da psiquiatria e das investigações maravilhosas e modernas do magnetizadores e dos
frenologistas, a literatura fantástica é essencialmente a literatura dos fenômenos
psíquicos dentre os quais a loucura – contanto que não deixe de evocar todos os seus
aspectos – é a manifestação mais enigmática e, por isso mesmo, no plano estético, a
mais rica.

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