Você está na página 1de 8

O pacto fáustico e a presença do Diabo em O Mandarim

ANDERSON VITORINO PINHEIRO*


JOSYE GONÇALVES FERREIRA**

Resumo: Este trabalho traz uma leitura da novela O mandarim, de Eça de Queirós,
tendo em vista um diálogo com o Fausto, de Goethe. Inspirado pela canônica obra
alemã, o escritor português recria o pacto fáustico de forma paródica, mesclando
realidade e fantasia. Buscando apontar em que medida essas obras se aproximam e
se distanciam entre si, analisamos os protagonistas e também de que forma o Diabo
aparece representado em ambas. O diálogo com o texto bíblico também está
presente, porém de forma muito mais crítica e irônica na novela queirosiana.
Palavras-chave: literatura comparada; literatura portuguesa; pacto fáustico;
paródia; intertextualidade; performance.
The faustian pact and the Devil's presence in The Mandarin
Abstract: This work brings a reading of the novel The Mandarin, by Eça de Queirós,
in view of a dialogue with The Faust, by Goethe. Inspired by the canonical German
work, the Portuguese writer recreates the Faustian bargain in a parody, merging
reality and fantasy. In order to determine the extent that these texts approach and
distance themselves, we analyze the protagonists and also how the Devil is
represented in both. The dialogue with the biblical text is also present, but in a much
more critical and ironic way in the Queirosian novel.
Key words: comparative literature; Faustian bargain; parody; intertextuality;
performance.

*
ANDERSON VITORINO PINHEIRO é doutorando no Programa de Pós-graduação em Estudos
Literários da Universidade Federal de Uberlândia.

**
JOSYE GONÇALVES FERREIRA é doutoranda no Programa de Pós-graduação em Estudos
Literários da Universidade Federal de Uberlândia.

88
Em 1865, estreava em Lisboa a ópera Mandarim (1880) que Eça de Queirós vai
Fausto, de Charles Gounod. Baseada no harmonizar fantasia e crítica social,
livro homônimo de Goethe, a peça fez um recriando o pacto do homem com o
sucesso estrondoso e chegou a ser demônio à moda portuguesa.
apresentada na cidade inúmeras vezes.
Devido ao êxito da ópera, o Fausto de Já no prólogo da novela, o leitor é
Goethe tornou-se popular em Portugal, advertido de que haverá uma suspensão da
sendo que a primeira tradução da obra estética realista e de que o estudo da
alemã seria publicada no país dois anos realidade humana será substituído por um
depois, em 1867. Araújo (2008) informa mergulho no campo dos sonhos e do
que essa popularidade da ópera de Gounod sobrenatural. Veja-se:
e da peça de Goethe ocasionou uma “onda Camarada, por estes calores do Estio,
fáustica” em Portugal no final do século que embotam a ponta da sagacidade,
XIX e início do século XX, sob a qual repousemos do áspero estudo da
vários autores se inspiraram no Fausto Realidade humana... Partamos para os
alemão. Dentre esses autores, destaca-se campos do Sonho, vaguear por essas
José Maria de Eça de Queirós (1845- azuladas colinas românticas onde se
1900). ergue a torre abandonada do
Sobrenatural, e musgos frescos
Embora seja mais conhecido como recobrem as ruínas do Idealismo....
precursor do realismo em Portugal, Eça de Façamos fantasia!... (QUEIRÓS,
1996, p. 5).
Queirós foi bastante influenciado, em sua
fase romântica, pela literatura alemã, De acordo com Gamba (2009), o diálogo
especialmente por Goethe e pelos contos entre os dois amigos, utilizado como
fantásticos de Hoffman. De acordo com prólogo, funciona como um roteiro de
Araújo (2008), é possível reconhecer as leitura que fornece indícios do tipo de
marcas do romantismo alemão nos texto que o leitor encontrará a seguir. Não
primeiros textos queirosianos publicados, um texto típico do estilo realista, do qual
primeiramente, no jornal Gazeta de Eça de Queirós era o principal
Portugal e postumamente reunidos sob o representante em Portugal, mas um texto
título de Prosas Bárbaras. São desse paródico, que mescla realidade e fantasia.
período o conto “O Senhor Diabo”, no O fato de a novela ser narrada em primeira
qual o autor narra o último amor de um pessoa, diferentemente das obras realistas
Diabo já velho, na Alemanha, e a crônica anteriores, também contribui para uma
“Mefistófeles”, análise da ópera Fausto, maior subjetividade e facilita o mergulho
composta pelo francês Charles Gounod, no fantástico, que aparece aqui não só pela
em 1859 – narrativas que expressam a presença do demônio e do pacto, mas
admiração de Eça de Queirós pela figura também pela representação de uma China
mítica do Diabo e pelas lendas alemãs. à qual o escritor português nunca fora.
Mesmo em sua fase mais realista, iniciada Pode-se considerar essa mistura de estilos,
com O Crime do Padre Amaro (1875), o realismo e romantismo, crítica social e
diálogo com o Fausto de Goethe está fantasia, como um primeiro ponto de
nitidamente presente na prosa queirosiana. aproximação entre a obra goethiana e a
Em O Primo Basílio (1878), por exemplo, novela de Eça, para além da presença do
Luíza vai ao teatro assistir à ópera Fausto. pacto demoníaco, obviamente. No Fausto,
Já no segundo capítulo de A Relíquia obra escrita e reescrita ao longo de toda a
(1887), Teodorico tem um sonho com vida de Goethe, é possível notar a
Mefistófeles. Porém, é na novela O influência de diferentes escolas literárias,

89
do Classicismo de Weimar ao ápice do a Nossa Senhora das Dores, e comprava
Romantismo alemão, como observado por décimos da lotaria.” (QUEIRÓS, 1996, p.
Haroldo de Campos em Deus e o diabo no 8), ou seja, aparece aí a religiosidade e a
Fausto de Goethe. Em O Mandarim, o crença em jogos de azar, características
grande expoente e teórico do Realismo opostas ao racionalismo e positivismo
português flerta ironicamente com o autoproclamado de Teodoro.
Romantismo e a literatura fantástica para
criticar a classe média e o português Por outro lado, o protagonista do Fausto,
comum, materializado na figura do de Goethe, é um homem sábio, detentor de
protagonista que será analisado adiante. conhecimentos variados,
multidisciplinares e que, no entanto, está
Teodoro é um amanuense do Ministério do angustiado por se sentir ainda incompleto
Reino de Portugal que vivia na casa de diante de tantos mistérios existentes no
hóspedes da viúva Augusta que o chamava mundo. É imbuído da sede de tudo saber e
de Enguiço – “(…) por eu ser magro, conhecer que o doutor Fausto firma um
entrar sempre as portas com o pé direito, pacto com Mefistófeles e experimenta as
tremer de ratos, ter à cabeceira da cama delícias e as dores do conhecimento e do
uma litografia de Nossa Senhora das Dores amor. Vejamos como Goethe descreve o
que pertencera à mamã, e corcovar.” doutor Fausto em um trecho da tragédia
(QUEIRÓS, 1996, p. 6). O tom satírico de para observar a distância deste
Eça marca presença nessa descrição que o protagonista daquele da novela de Eça:
protagonista faz de sua aparência e
costumes ao justificar o apelido que Fermento o impele ao infinito,
Semiconsciente é de seu vão
recebera da dona da pensão onde vivia.
conceito;
Tinha uma rotina tranquila e aproveitava a Do céu exige o âmbito irrestrito,
simplicidade, embora também se Como da Terra o gozo mais perfeito,
denominasse ambicioso: “(…) pungia-me E o que lhe é perto, bem como o
o desejo de poder jantar no Hotel Central infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito.
com champanhe, apertar a mão mimosa de
(GOETHE, 2004, p. 53)
viscondessas, e, pelo menos duas vezes
por semana, adormecer, num êxtase mudo, Como observado acima, o personagem
sobre o seio fresco de Vénus.” principal de O Mandarim distancia-se
(QUEIRÓS, 1996, p. 6-7). bastante daquele da obra de Goethe.
Teodoro se apresenta como racional e Teodoro é um homem simples e tem uma
“positivo”, no entanto fazia leituras que visão restrita do mundo. Suas ambições
cheiravam a romantismo: giram em torno de desejos materiais e
eróticos. Flagra-se então uma
Eram sempre obras de títulos aproximação paródica, ou seja, pela
poderosos: «Galera da Inocência», diferença, entre as criações de Goethe e a
«Espelho Milagroso», «Tristeza dos de Eça. O escritor português rebaixa o
Mal-Deserdados»... O tipo venerando,
personagem sábio e com ânsia de
o papel amarelado com picadas de
traça, a grave encadernação freirática, conhecimento a um funcionário público
a fitinha verde marcando a página — que fazia cópias e que entra em acordo
encantavam-me! (QUEIRÓS, 1996, p. fúnebre com o diabo em troca de dinheiro
8). e mulheres.
O protagonista afirma ainda que fazia tudo Em O Mandarim, Teodoro narra a história
que um português e um constitucional de como tornou-se milionário por meio de
deveria fazer: “… pedia-as todas as noites um evento sobrenatural. Para herdar a

90
fortuna de um mandarim chinês, bastava presença de um corpo – “(…) que existe
tocar uma campainha que, enquanto relação, a cada momento
fantasticamente, surge em seu quarto em recriado, do eu ao seu ser físico (...)”
mais uma noite de leituras românticas. O (ZUMTHOR, 2014, p. 38). Por fim, o
diabo então aparece para convencê-lo a corpo liga a performance ao espaço e aí
tocar a campainha e aceitar o pacto: entra a valorização da noção de
E vi, muito pacificamente sentado, um teatralidade. Passemos à observação e à
indivíduo corpulento, todo vestido de análise da figura do Diabo nas obras aqui
preto, de chapéu alto, com as duas estudadas sob a perspectiva de Zumthor.
mãos calçadas de luvas negras
O Diabo, figura mítica que assombra as
gravemente apoiadas ao cabo de um
guarda-chuva. Não tinha nada de
centenárias lendas populares, aparece aqui
fantástico. Parecia tão sob um retrato realista diferente das
contemporâneo, tão regular, tão classe narrativas fantásticas da fase romântica do
média como se viesse da minha autor e da obra goethiana, fonte de
repartição… inspiração. De acordo com Pires (1980),
Toda a sua originalidade estava no
nos contos “O senhor Diabo” e
rosto, sem barba, de linhas fortes e “Mefistófeles”, Eça de Queirós reproduz o
duras; o nariz brusco, de um aquilino diabo das lendas românticas alemãs “feito
formidável, apresentava a expressão cavaleiro, menestrel e requestador de
rapace e atacante de um bico de águia; donzelas [...]” (PIRES, 1980, p. 34). Em O
o corte dos lábios, muito firme, fazia- Mandarim, porém, o diabo assemelha-se a
lhe como uma boca de bronze; os um homem comum de sua época, de classe
olhos, ao fixar-se, assemelhavam dois média, quase um funcionário público –
clarões de tiro, partindo subitamente como o próprio protagonista, narrador do
de entre as sarças tenebrosas das conto.
sobrancelhas unidas; era lívido —
mas, aqui e além na pele, corriam-lhe Em Goethe, Mefistófeles apresenta-se ao
raiações sanguíneas como num velho doutor Fausto, no capítulo “Quarto de
mármore fenício. (QUEIRÓS, 1996, trabalho”, sob as figuras fantásticas de cão,
p. 13). hipopótamo, elefante e, por fim, como um
Cabe aqui, então, fazer uma breve análise estudante viandante. Logo depois, no
da presença e da performance do Diabo em “Quarto de trabalho II”, Mefisto se
ambas as obras. Por que o Diabo aparece apresenta como um “nobre fidalgote, em
na obra e o que ele representa em cada rubras vestes de veludo, capa de rígido
uma? E mais: como esta figura é cetim” (GOETHE, 2004, p. 157), o que
representada em termos de vestuário, significa que ele estava vestido de forma
aparência física, gestos e voz? Essas distinta, como um nobre da época. Em O
questões tornam-se mais importantes ao Mandarim, o Diabo também surge com
lembrarmos que o Fausto de Goethe é uma roupas características de sua época, ainda
obra dramatúrgica, ou seja, feita para ser mais humanizado e com aparência de
falada, encenada. homem comum.
Quando se pensa em teatro, gestos e O indivíduo vestido de preto, entretanto,
oralidade, pensa-se logo em performance não se apresenta como o “príncipe das
e, embora o conceito dele não se restrinja trevas” e é Teodoro quem deduz: “Veio-
a isso, Zumthor (2014) considera um me a ideia de repente que tinha diante de
acontecimento oral e gestual como mim o Diabo, mas logo todo o meu
performance. E seguindo o percurso deste raciocínio se insurgiu resolutamente
autor, ele integra à ideia de performance a contra esta imaginação. Eu nunca acreditei

91
no Diabo – como nunca acreditei em e as diversas maneiras de desfrutar da
Deus.” (QUEIRÓS, 1996, p. 14). herança do mandarim. Argumentando que
o chinês já estaria decrépito e inútil,
Sem a aparência aterrorizante do
consegue convencer Teodoro a tocar a
imaginário cristão, fica muito mais fácil
campainha.
para o demônio eciano argumentar e
convencer o amanuense a tocar a Depois de receber a herança, Teodoro
campainha, mostrando que “o diabo não é segue atormentado pela figura do
tão feio como o pintam”. Ao contrário, a mandarim morto e seu papagaio de papel.
representação de Mefistófeles na novela Em busca de alívio para sua consciência, o
assemelha-se ao que Nogueira (1986) novo milionário parte rumo à China com o
chama de diabo popular, ou seja, “uma propósito de reparar o mal que havia feito
personagem familiar, às vezes benfazeja, à família de Ti-Chin-Fu. É somente no
muito menos terrível do que o afirma a final da novela que Teodoro voltará a se
Igreja, [...]” (NOGUEIRA, 1986, p. 76). encontrar com o diabo, ou, como ele
Enfim, uma figura que se apresenta e se mesmo descreve, “o personagem vestido
comporta tipicamente como um português de preto com o guarda-chuva debaixo do
de classe média do século XIX. braço” (QUEIRÓS, 1996, p. 98).
Desesperado para romper o pacto e
Na obra O diabo no imaginário cristão recuperar a paz, o amanuense implora:
(1986), Nogueira informa que, durante o
Romantismo, Satã tornou-se símbolo do – Livra-me das minhas riquezas!
espírito livre, da ciência e do progresso. Ressuscita o mandarim! Restitui-me a
Nesse sentido, o demoníaco passou a paz da Miséria!
representar o questionamento aos dogmas – Não pode ser, meu prezado Senhor,
da religião, a rebelião do homem contra a não pode ser...
fé e a moral tradicional. Da mesma
– Eu atirei-me aos seus pés numa
maneira, o personagem Teodoro suplicação abjeta: mas só vi diante de
representa o homem moderno, mim, sob uma luz mortiça de gás, a
individualista e hedonista, que se preocupa forma magra de um cão farejando o
com os prazeres terrenos e que não almeja lixo. Nunca mais voltei a ver este
“paraísos fictícios” (QUEIRÓS, 1996, p. indivíduo. (QUEIRÓS, 1996, p. 98).
10). Tem-se, assim, as condições ideais
Enquanto Mefistófeles se apresenta
para a realização de um pacto com o
inicialmente para o doutor Fausto sob a
demônio.
forma de um cão preto, também é sob a
Araújo (2008), na dissertação de mestrado forma canina que o Diabo queirosiano
intitulada O legado de Fausto na obra de aparece pela última vez na novela. Mas
Eça de Queirós, afirma que “o legado desta vez, o cão diabólico representa a
deixado por Goethe e por seu Fausto, pode impossibilidade de redenção do pactuário
ser visto na representação da figura do uma vez que não se pode desfazer o pacto.
Diabo, aquele que, sendo integrante de Não há salvação possível e nem perdão no
uma unidade dual, tem sempre uma visão reino diabólico, assim como também não
crítica e cínica do mundo” (ARAÚJO, há culpa, nem remorso, sentimentos que
2008, p. 50). É esse diabo crítico e cínico acometem Teodoro em meio ao desfrute
que tenta persuadir o nosso Fausto da riqueza herdada do mandarim
português a matar o mandarim. assassinado. Na novela de Eça, como na
Aproveitando-se da ambição de Teodoro, peça de Goethe, os protagonistas
o homem de preto mostra as vantagens de encontram riqueza, prazer carnal e
se tocar a campainha em troca dos milhões intelectual, sem, no entanto, encontrarem

92
felicidade e uma consciência tranquila. No Teodoro a matar o mandarim a fim de
caso do doutor Fausto, seu desfecho é herdar milhões e o protagonista reluta em
ainda pior, visto que ele testemunha o fim acreditar, ou melhor, tenta se convencer de
doloroso de sua amada Gretchen, também que a figura que tentava levá-lo a cometer
chamada de Margarida. um assassinato por dinheiro não era o
Diabo. Entra em cena mais uma vez a
Outro ponto de aproximação entre as obras
paródia, a crítica social farsesca de Eça, ao
é o diálogo que ambas desenvolvem com a
desmascarar a tentativa humana de
Bíblia. O diabo em si já é um personagem
enganar-se para seu bel prazer.
bíblico, mas a intertextualidade vai muito
Observemos o trecho em que o
além. Goethe abre sua obra dramática com
protagonista reflete sobre a oferta e seu
um prólogo no céu bem aos moldes
autor:
daquele do Livro de Jó e, assim como nos
escritos bíblicos, o Diabo faz uma aposta Eu sei o que deve a si mesmo um
com Deus no Fausto. No livro do Antigo cristão. Se este personagem me tivesse
Testamento, o Diabo desafia a confiança levado ao cume de uma montanha na
de Deus em um de seus filhos, o piedoso Palestina, por uma noite de lua cheia,
Jó, ao afirmar que este só faz bondades e aí, mostrando-me cidades, raças e
porque Deus o abençoou. Então Deus impérios adormecidos, sombriamente
me dissesse: “Mata o mandarim, e
permite que o Diabo retire a riqueza, os
tudo o que vês em vale e colina será
filhos e os servos de Jó, que nem doente teu”, eu saberia replicar-lhe, seguindo
amaldiçoa Deus, mas passa a questionar um exemplo ilustre, e erguendo o dedo
sua fé. às profundidades consteladas: “O meu
reino não é deste mundo!” Eu conheço
Em Fausto, no “Prólogo no Céu”, temos
os meus autores. Mas eram cento e
em destaque o tema barroco por tantos mil contos, oferecidos à luz de
excelência: a disputa entre o terreno e o uma vela de estearina, na Travessa da
divino, entre a razão e a fé, seja nas Conceição, por um sujeito de chapéu
palavras dos arcanjos, seja na própria alto, apoiado a um guarda-chuva…
aposta entre Deus e o Diabo. Assim como (QUEIRÓS, 1996, p. 16).
no Livro de Jó, Mefistófeles vai ao céu
desafiar Deus colocando em dúvida a fé de A referência aqui é à passagem em que
um de seus filhos e recebe a permissão Jesus vence mais uma tentação do Diabo
divina para tentar o servo – seja Jó, no no deserto, presente, por exemplo, em
livro bíblico, seja Fausto, na peça de trecho do Evangelho de Lucas,
Goethe. De fato, conforme análise de especificamente nos versículos de 5 a 8, do
Araújo (2008), o personagem Fausto é a capítulo 4, no qual é narrado o momento
personificação de toda a humanidade, em que o Diabo leva Cristo a um monte e
escolhido por Deus – para provar a fé de oferece a ele todos os reinos do mundo,
seus servos – e por Mefisto, para provar o poder e glória caso o filho de Deus resolva
contrário: a fraqueza da fé dos homens, adorá-lo em vez de seu Pai:
que está em conflito constante com o 5 E o diabo, levando-o a um alto
terreno. Por fim, Mefistófeles faz a monte, mostrou-lhe num momento de
proposta a Deus de levar Fausto por seus tempo todos os reinos do mundo. 6 E
caminhos diabólicos e recebe a permissão, disse-lhe o diabo: Dar-te-ei a ti todo
já que o Criador confia em sua criação. este poder e a sua glória; porque a mim
me foi entregue, e dou-o a quem
O texto sagrado aparece de outra maneira quero. 7 Portanto, se tu me adorares,
na novela de Eça de Queirós. Estamos já tudo será teu. 8 E Jesus, respondendo,
no momento em que o Diabo tenta disse-lhe: Vai-te para trás de mim,

93
Satanás; porque está escrito: Adorarás então, por que rezava e mantinha uma
o SENHOR teu Deus, e só a ele imagem de Nossa Senhora em seu quarto?
servirás. Bem, o protagonista deixa claro a atitude
O personagem tentado pelo Diabo em O interesseira que mantém com a
Mandarim parece até conhecer sua religiosidade: reza para prevenir ou
condição de rebaixado em relação aos conseguir algo, mesmo sem acreditar na
livros canônicos que inspiraram a criação existência divina. Eça critica a hipocrisia
da novela queirosiana – o Fausto de da sociedade portuguesa mais uma vez por
Goethe e a Bíblia Sagrada. Retomamos meio de seu protagonista.
com essa afirmação a ideia de paródia que Ainda no terreno religioso, Teodoro é
já exploramos antes ao relacionar a obra de acometido de uma culpa cristã pela morte
Eça com a do alemão: a aproximação pela do velho mandarim e embarca rumo à
diferença e com teor cômico e irônico. China imbuído da tarefa de restituir o
A ironia, que marca profundamente as dinheiro herdado à família de Ti-Chin-Fu.
obras realistas do português, aparece aqui Porém, a frivolidade e a hipocrisia do
também como elemento predominante. protagonista vêm à tona, como observado
Eça não escolhe ao acaso um representante por Berrini:
clássico da classe média portuguesa para Também na China, esquece-se
ser protagonista de sua obra fáustica. Eça Teodoro da razão que o levou até o
utiliza Teodoro e suas aventuras pós-pacto Oriente, e com má vontade recebe a
para criticar a sociedade portuguesa. Já notícia que a família do seu Mandarim
comparamos os protagonistas das duas fora encontrada. A ambiguidade
obras aqui e observamos como Teodoro é interior de Teodoro, dominado pelo
remorso e logo depois esquecido do
uma versão rebaixada do Fausto criado por
seu crime; programando uma viagem
Goethe. para encontrar a família da sua vítima
Essa diferença expõe a visão de Eça acerca e esquecendo tal objetivo ao chegar no
dos portugueses, especialmente aqueles da Oriente – acentua o caráter superficial
classe média: homens sem grandes da personagem do protagonista,
conhecimentos, que desempenham extremamente volúvel nos seus
desígnios. (BERRINI, 1992, p. 69).
funções repetitivas e pouco intelectuais e,
acima de tudo, interessados apenas em Por fim, apesar de toda ironia e crítica
bens materiais e prazeres fugazes. Teodoro social presente em O Mandarim, Eça
utiliza o pacto com o demônio para realizar termina sua novela restabelecendo a vida
desejos materiais, sexuais e de prestígio do protagonista ao estágio inicial, numa
social, em oposição ao Fausto, que realiza espécie de punição cristã pelos pecados
o pacto justamente por saber que esses cometidos. Já Goethe oferece redenção a
prazeres não o satisfariam por completo. seu protagonista e, mais uma vez, temos
uma diferença marcante entre as duas
A volubilidade de Teodoro e, por
obras.
extensão, da sociedade portuguesa,
aparece, por exemplo, na relação do A novela de Eça entrega ao fim a
protagonista com a religião. Ele tinha uma moralidade prometida no prólogo da obra.
imagem de Nossa Senhora das Dores à A visão do português acerca do homem é,
cabeceira de sua cama e rezava para a enfim, escancarada. Vejamos:
Virgem, no entanto, apostava na loteria, E todavia, ao expirar, consola-me
algo condenado pela igreja. Em outro prodigiosamente esta ideia: que do
momento, Teodoro afirma que não norte ao sul e do oeste a leste, desde a
acreditava no demônio e nem em Deus, Grande Muralha da Tartária até as

94
ondas do mar Amarelo, em todo o propagada pela tradição cristã. A
vasto Império da China, nenhum impossibilidade de redenção ao final da
mandarim ficaria vivo, se tu, tão novela expressa a visão realista de Eça de
facilmente como eu, o pudesses Queirós, rompendo com a ideia
suprimir e herdar-lhe os milhões, ó
maniqueísta de Bem e Mal. Teodoro não é
leitor, criatura improvisada por Deus,
obra má de má argila, meu semelhante
salvo por Deus, como no Fausto, nem
e meu irmão! (QUEIRÓS, 1996, p. tampouco é condenado pelo Diabo. Ao
100). contrário, torna-se vítima de suas próprias
escolhas, sugerindo que Deus e Diabo,
Eça, por meio das palavras de Teodoro, Bem e Mal não passam de criações
expressa sua concepção pessimista do humanas.
homem, criação divina, porém
improvisada, feita de má argila, ou seja,
ruim por natureza. O protagonista chama o Referências
leitor de semelhante e irmão, portanto, A Bíblia de Jerusalém. Edições Paulinas.
feitos à imagem e semelhança não de
ARAÚJO, R. R. O legado de Fausto na obra de
Deus, mas desse homem falho, mesquinho Eça de Queirós. Dissertação de mestrado.
e imperfeito. Universidade de São Paulo, 2008.
Predomina, então, na obra O Mandarim, a BERRINI, Beatriz. O Mandarim: Edição crítica
paródia em relação ao Fausto de Goethe, das obras de Eça de Queirós. Lisboa, Imprensa
visto que como observado ao longo do Nacional – Casa da Moeda, 1992.
artigo, a aproximação entre as obras se dá GAMBA, A. P. F. Prólogo e Prefácio em O
pela diferença, sobretudo no tom de sátira mandarim (Eça de Queiroz): um roteiro de leitura.
e ironia que o escritor português lança mão Disponível em
http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/num8/dos
para criar sua história fáustica, por meio da sie/Dossie_AnaPaulaFoloniGamba.pdf, acesso em
qual critica a sociedade lusa. 26/10/2017.
Enquanto o protagonista de Goethe GOETHE, J. W. V. Fausto: uma tragédia. Trad.
representa os valores mais nobres, o Jenny Klabin Segall. São Paulo: Ed. 34, 2004.
personagem eciano carrega os traços NOGUEIRA, C. R. F. O diabo no imaginário
amplamente criticados pelo realismo: o cristão. São Paulo: Ática, 1986.
falso moralismo, a hipocrisia religiosa, a PIRES, A. M.B. M. Realismo e fantasia n´O
ambição materialista, a luxúria. Teodoro Mandarim de Eça de Queirós. Disponível em
representa a deterioração dos valores https://repositorio.uac.pt/bitstream/10400.3/559/1/
morais da sociedade portuguesa ao mesmo AntonioMBMachadoPires_p27-52.pdf, acesso em
26/10/2017.
tempo em que encarna características
eminentemente humanas, quais sejam a QUEIRÓS, Eça de. O Mandarim. São Paulo: Paz e
fraqueza diante das tentações do mundo e Terra, 1996.
a capacidade de vender a alma ao diabo em ZUMTHOR, Paul. Performance, recepção, leitura.
troca de interesses. Por outro lado, o Diabo São Paulo: Cosac Naify, 2014.
também aparece na novela de forma
bastante humanizada, personificando um Recebido em 2017-12-14
homem de classe média comum e Publicado em 2018-06-20
distanciando-se da figura mítica

95

Você também pode gostar