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DIABO – Abaixa logo esse rabo! FIDALGO – Não há aqui outro navio?
Deixa preparado o cabo
E ajeita a corda de içar. DIABO – Não que o senhor tenha reservado.
COMPANHEIRO- Vamos lá! Içar, Içar! FIDALGO – (confuso, sem compreender nada)
DIABO – Oh! Que caravela esta! Como? Quando reservei?
Põe bandeiras, que é festa!
(vendo um Fidalgo que se aproxima) DIABO – A boa vida que levastes!
Oh! Poderoso dom Henrique!
Vós aqui? Que coisa é esta? FIDALGO – (dirigindo-se à barca do Paraíso) A esta
outra barca me vou.
Cena ll
(gritando para o Anjo que está na barca) Olá! Pra
Vem o FIDALGO acompanhado de um rapaz com uma onde partis?
cadeira. Chegando á barca do Inferno, diz: (o Anjo não responde)
Ó barqueiro, não me ouvis?!
FIDALGO- Esta barca, que sai agora, Respondei-me! Olá!
Aonde vai tão preparada? Por Deus, mal arranjado estou...
Mas isto agora é pior...
DIABO- Vai para a ilha danada Que bestas!... Não me entendem...
E há de partir sem demora.
ANJO – (aproximando-se)
FIDALGO- Para lá vai a... senhora? Que queres?
demais. Coisa que esteve na igreja não se há de
FIDALGO – Diga se a barca do paraíso é esta em que embarcar aqui
navegais?
(apontando o Fidalgo) Ele uma outra terá,
ANJO – É esta. Que desejais? uma outra de marfim, toda enfeitada de dores, com
tantos e tais primores que estará fora de si..
FIDALGO – Que me deixeis embarcar.
Sou de família nobre. E é bom que me recolhas nesta
tua barca.
Carregando uma bolsa, vem um ONZENEIRO, isto é, AGIOTA – Eu vou pro paraíso, é claro.
um agiota, alguém que explora com juros abusivos
aqueles que precisam de dinheiro emprestado. ANJO – Não pense que eu estou a fim de te levar.
Aproxima-se da barca do Inferno e diz: (aponta para a outra barca) Essa outra te levará.
Vai lá com quem te enganou!
AGIOTA – Para onde embarcais?
AGIOTA – Por quê?
DIABO – Oh!
agiota, meu parente! ANJO – (apontando para a bolsa) Porque esse bolsão
Por que demoraste tanto? tomará todo o navio.
AGIOTA – Mais quisera eu demorar... AGIOTA – Juro por Deus que vai vazio!
Mas na hora de lucrar,
de o dinheiro recolher, ANJO – Mas não o teu coração.
aconteceu-me... morrer!
AGIOTA – (lamentando-se)
DIABO – Ora, que muito me espanto Na terra deixei, com a confusão,
Não trouxeste nenhum dinheiro? Toda a minha riqueza... e também riqueza alheia.
Cadê toda aquela riqueza que acumulaste na terra?
(abraça o Onzeneiro) ANJO – Ó ganância, como és feia, e filha da maldição!
ANJO – (faz gesto decisivo para não deixá-lo entrar) PARVO – Dos tolos.
Não dê nem mais um passo!
DIABO – É vossa. Entrai.
DIABO – De quê?
PARVO – De caga-merdeira!
PARVO – O quê?
DIABO – Quem está aí? Santo sapateiro honrado! ANJO – Tivesses vivido direito, já estariam
Como vens tão carregado! embarcadas.
DIABO – Para o lago dos danados. ANJO – (severo) Teu nome está no caderno dos
registros infernais..
SAPATEIRO – E os que se confessaram antes de
morrer? Onde têm a sua entrada? SAPATEIRO – (voltando resignado á barca dos
condenados) Ó barqueiros! Que aguardais?
DIABO – Quê?! Sem conversa fiada, que esta é tua Vamos, venha a prancha logo e levai-me àquele fogo!
barca, esta! Não nos detenhamos mais!
DIABO – Mas do dinheiro roubado. Não deste DIABO – Pois, entrai! Eu tocarei. E faremos um
satisfação!... festão.
SAPATEIRO – Mas que grande confusão! (olhando para a Moça que acompanha o Frade)
Não quero saber de nada! É uma puta trapalhada em Essa dama, ela é vossa?
que se vê aqui João Antão! (vai à barca do Anjo e diz:)
Oh, da santa caravela. Podereis levar-me nela? FRADE – Por minha a tenho eu e sempre a tive de
meu.
ANJO – (apontando para as coisas que ele carrega)
Tua carga te embaraça. DIABO – Fizestes bem, que é um encanto! E ninguém
vos censurava no vosso convento santo?
SAPATEIRO – Mas não há favor de Deus?
(tentando de desfazer das coisas que traz, diz) FRADE – Pois se eles fazem outro tanto...
FRADE – (ao Anjo). Deo gratias! Há lugar
DIABO – Que coisa tão preciosa! (fazendo uma Para minha reverência? E a senhora Florença, por ser
reverência irônica). Entrai, padre reverendo! minha, pode entrar?
FRADE – Para onde levais a gente? PARVO - (aproximando-se). Chegastes em hora má!
Roubou este facão, frade?
DIABO – Para aquele fogo ardente. FRADE – (desesperançado, pois o Anjo nem
Que não temeste vivendo. responde)
Acho, senhora, em verdade, que o caso perdido está.
FRADE – Juro a Deus que não te entendo! Vamos aonde temos de ir. Não quer Deus esta ribeira!
(apontando para a roupa). E este hábito, não me vale? Não vejo outra maneira senão enfim... desistir!
DIABO – Ó gentil padre mundano, a Belzebu vos DIABO – (de longe, chamando)
encomendo! Padre, venha logo?
FRADE – (surpreso) Que eu não posso entender isto! FRADE – Sim, passai-me lá Florençae cumpramos a
Eu hei de ser condenado? Um padre apaixonado e sentença. É a hora de partir.
tanto dado à virtude! Que Deus me dê em saúde!
DIABO – (irônico) Que medinho saboroso!... Volta BRÍSIDA VAZ à barca do Inferno, dizendo:
BRÍSIDA – Não é nesta barca que embarco. BRÍSIDA - Ó barqueiros de má hora, ponde a prancha
que eu me vou. O destino me marcou e mal me sinto
DIABO – E trazeis vós muito fardo? aqui fora.
BRÍSIDA – O que me convém levar. DIABO – Ora, entrai, minha senhora, e sereis bem
recebida... Se vivestes santa vida, vós o sentireis agora.
DIABO – O que é que haveis de embarcar?
Cena lX
BRÍSIDA – Muitas falsas virgindades e três arcas de
feitiço, arcas tão carregadinhas! Três armários de Vem um CORREGEDOR, isto é, um juiz, carregado de
mentir alguns furtos alheios, joias de vestir e guarda autos e processos e com uma vara na mão. Chegando
roupa de encobrir. à barca do Inferno diz:
Enfim – um estrado de cortiça, com almofadas de
iludir. Mas a maior carga são essas moças que vendia. CORREGEDOR – Ó da barca!
DIABO – (mostrando a barca) Ora, ponde aqui o pé! DIABO – Que quereis?
BRÍSIDA – Que?! Vou para o paraíso! CORREGEDOR – Está aqui o senhor juiz.
DIABO – E quem te disse isso? DIABO – Ó amigo, que bela carga trazeis!
– Como vai lá o Direito?
BRÍSIDA – Lá hei de embarcar, pois uma heroína sou
eu. Açoites tenho levado, e tormentos suportados. CORREGEDOR – Nestes autos o vereis.
Fosse eu ao fogo infernal, então iria todo o mundo!
DIABO – Ora, pois, entrai. Veremos o que diz esse
Chegando à barca da Glória, diz ao ANJO: papel...
BRÍSIDA – Barqueiro, mano, meu velho. Leve a CORREGEDOR – E aonde vai esse batel?
Brísida Vaz.
DIABO – No inferno vos poremos.
ANJO – Não sei quem é que te traz.
CORREGEDOR – (indignado) Como?! À terra dos
BRÍSIDA – Eu vos peço! (ajoelhando-se) Pensais que demos há de ir um corregedor?!
trago piolhos, Anjo de Deus, minha rosa? Sou Brísida,
a preciosa, que dava moças aos montes, a que criava as DIABO – (com ironia) Santo “descorregedor”,
meninas para os cônegos da Sé.. Passai-me, por vossa embarcai e remaremos! Ora, entrai, já que viestes.
fé, meu amor, minha florzinha, olhos de perolazinha!
CORREGEDOR – Isto não é justo, não! Não é DIABO – Ora estais bem arranjado!... Entrai agora,
de regulae júris, não! entrai já!
DIABO – Sim, sim, ita, ita! Daí cá a mão! (segura a CORREGEDOR – (dirigi-se ao anjo). Barqueiro dos
mão do Corregedor) Remareis um remo destes. gloriosos passai-me nesse batel.
Faz de conta que nascestes para nosso companheiro.
ANJO – (olhando os processos e os livros que ele traz)
CORREGEDOR – Oh! Recuso essa viagem e quem Oh! homem odioso! Não honrou seu cargo. Condenou
me há de levar! Há cá um oficial do mar? inocentes, E livrou criminosos! Com seus atos ilícitos!
DIABO – Tempo não há, bacharel! Pois julgastes com CAVALEIRO 1 - Vamos, vamos à barca segura!
malícia. Fugir da barca perdida! Vamos, vamos à barca da vida!
Todos que por Deus trabalharam Na vida passageira
CORREGEDOR – Sempre agi com justiça, Entrem na barca divina!
DIABO – E o dinheiro dos judeus que vossa mulher CAVALEIRO 2- Para a barca, vamos à barca, mortais!
pegava? Mas se a vida foi perdida. Também é a barca da Vida!
Mas cuidado pecadores Depois da vida há prazeres ou
CORREGEDOR – Com isso não me ocupava, não dores!
eram problemas meus.
Não são, pois, meus pecados, esses pecados são dela. CAVALEIROS3 - Vamos para a barca!
Barca nobríssima! À barca! À barca da vida!
DIABO – E vós pecastes com ela, não temestes nem a
Deus, e muito enriquecestes com o sangue dos Passam pela barca do inferno
lavradores, ignorantes pecadores. Por que não os DIABO - Para onde vão?
atendestes?
CAVALEIROS 4 - Você não faz ideia? Nem sequer
CORREGEDOR – (irônico) Vós nunca lestes, nos conhece bem!
barqueiro, que move pedras o dinheiro?
O direito então se cala e a justiça nada fala... DIABO - Deixa disso, entrem aqui!
DIABO – (raivoso) Pois juntai-vos aos condenados! CAVALEIROS 4 - Quem morre fazendo o bem como
Ireis ao lago dos cães e vereis os escrivães como estão Jesus Cristo, nunca merecerá isto!
tão prosperados...
Vão à barca celeste, assim que chegam o Anjo diz:
CORREGEDOR – Pois eu não vou para lá.
Outro navio aqui está muito melhor preparado. ANJO - Santos cavaleiros! Estava esperando por
vocês! Morreram fazendo o bem em nome de Deus,
Por isso são livres do mal! Quem morre em tal batalha
contra o mal Merece paz eternal!
E assim embarcaram .Fim