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O AUTO DA NAVE
DO INFERNO
Baseado na obra de “O Auto da Barca do Inferno” de Gil Vicente
Personagens:
VOZ DO AEROPORTO
ALMA PENADA 1
ALMA PENADA 2
ALMA PENADA 3
ALMA PENADA 4
ANJO
COPILOTO DO ANJO
DIABO
COPILOTO 2 DO DIABO
FIDALGO
NARCISO GATÃO
DONA DOLORES
ZÉ PISTOLA
BRIZIDA
CHOFER DA BRÍZIDA
Rá-PÓSTOLO
Cenário Principal:
1. Abertura
As almas penadas entram em cena e trazem pessoas que estão deitadas ao chão e as organiza
atras da plateia.
Ao som de musica solene e sinos entra em cena o Anjo e seu Assistente
Ao som de suspense e gargalhadas entra em cena o Diabo e seus assistentes
Cada um dirige-se para um lado do Aeroporto. Monta-se a Nave que vai para o Céu e a nave que
vai para o Inferno.
No momento em que acabamos de morrer chegamos a um aeroporto. Há duas naves (aviões) que nos esperam. Uma
nave vai para o paraíso e a outra para o inferno. Cada nave tem o seu Piloto. O do Paraíso tem um Anjo e o do Inferno
tem um Diabo.
Uma breve confusão entre os passageiros que estão de costas para as naves.
DIABO
À nave, à nave, venham todos para cá embarcar! Temos um voo quente e
turbulento pra voar!
ANJO
À nave, à nave, é hora de embarcar! Temos um voo agradável e sereno para
voar.
DIABO – (para o Anjo) Você verá meu caro, do jeito que andam as coisas,
virão todos para cá.
ANJO – (para o Diabo) – Não seja tão otimista, rapaz. Eu prefiro esperar.
CO-PILOTO DO DIABO
Sim, senhor, sim, senhor!
DIABO
– falando para o ar –
Dirigindo-se ao companheiro
DIABO
2. O Fidalgo
FIDALGO
DIABO
FIDALGO
Ora, isso parece um cortiço, um avião de empregados. Não me reservaram
uma nave melhor? Posso comprar tudo.
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FIDALGO
DIABO
FIDALGO - Ora, deixei na outra vida quem reze sempre por mim.
DIABO
Quem reze sempre por ti?!... Hi, hi, hi, hi, hi, hi, hi!...
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DIABO - Não, senhor. Tua passagem é pra essa nave. Assim que morreste
me deste logo o sinal.
FIDALGO - Pois eu vou para a outra nave. Aquela parece de primeira classe.
Não me misturo com ralé.
O Anjo o ignora
FIDALGO - Por deus, estou apressado! Sabem com quem tão falando? Não
tenho tempo para perder.
FIDALGO
ANJO
FIDALGO
ANJO
Desprezas-te os pequenos
Trataste o pobre com tirania
Toda tua alegria
Foi ter dinheiro e poder
Pois vai lá para a outra nave
Com o diabo faz parte
E nem adianta gemer
Aprende de vez irmão
Esta que é nobre lição
Quem a miséria semeia
A miséria vai colher
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DIABO
cantando:
FIDALGO
FIDALGO
DIABO
FIDALGO - Dei tudo aquela mulher. Ela chorava por mim no leito de morte.
DIABO:
DIABO
3. Narciso “Gatão”
VOZ DO AEROPORTO
Senhor passageiro gatão, dirija-se agora para o único portão e boa sorte.
Entra em cena Narciso. Um influencer digital que se acha o melhor e o mais belo de todos. Pede para que algumas
pessoas da plateia usem seus celulares para tirar foto com eles. Faz pose para que a plateia tire fotos.
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NARCISO - Legal, e esse mestre tá ai? Deve ser um cara baita famoso. A
gente precisa inventar um torneio de box, dá muito dinheiro. Um filmar a
gente dando comida para as criancinhas pobres da África. Vamos planejar.
Vamos estourar a internet aqui no céu.
O Diabo aparece
NARCISO - Qual é mano, tá doido? Eu só fiz coisa boa. Pessoal, filma aí para
subir meus likes e eu ganhar mais grana.
NARCISO - Nessa nave eu não vou mesmo. Tem outra ali me esperando.
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NARCISO - (para o anjo) Você pode me socorrer? É que eu fui uma celebridade,
milhões de seguidores, pode tirar foto comigo se quiser. Então eu soube
que tem um céu aqui só para influencer. Muita festa, muita badalação…
NARCISO - (muito bravo) Ora, ja sei, você é da turminha do insta que fica…
O Copilotos já estão esperando com a chibata. Narciso baixa a voz e sobe na nave
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4. Dolores E Ducolax
O menino Ducolax entra com a mãe, olha assustado para a plateia e chora.
DOLORES - Cala boca minino, que aperriação é essa? Já não bastava teu pai no
meu pé de ouvido?
DOLORES - Fecha essa bico, menino. Nem aqui eu tenho sossego. Não é possível.
Deixa eu falar com aquele moço ali. Será que precisa de senha? Tudo na vida era
fila, será que aqui também é assim?
Dolores se encontra com o Diabo. Ao ver o Diabo, o menino abre o berreiro e se mistura com o público.
DIABO - Dona Dolores, a mulher cheia de dores. Deixa eu ver que foi que a
senhora aprontou em vida.
DOLORES - Sou Dolores, sim, e dor nunca faltou mesmo: dor nas perna, dor nas
junta, dor no pescoço, dor na bacia… Parece que minha mãe já sabia do meu
destino.
Aprontei foi nada. E eu tive la tempo de aprontar nada? 04 filho pra criar, moço e
eu fazendo faxina na casa dos outros pra dá de comer; o peste do marido bebia
demais, era todo valente pra o meu lado. O homem era um bicho, dizia que não
gostava de gente negra, e olhe que eu sou preta; não gostava de gay, e um
menino nosso era bem delicado, e que mulher era pra fazer tudo o que o marido
quisesse, se não ele procurava rapariga na rua. Muita conta pra pagar todo mês,
feira, cartão e o peste não ajudava em nada, se o senhor quer saber.
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DOLORES - Aquele é meu caçula, lindo demais esse menino. Venha cá conhecer
o moço, Ducolax.
DIABO - Ducolax?
DOLORES - O nome dos meus filhos são todos lindo, fui em mesma que escolhi:
Losartana Potássica, já ta uma moça, Albendazol Luiz, Rivotril Fernando e o
José Ducolax da Silva Santos. Venha pra cá Ducolax.
DOLORES - Vige Nossa Senhora, minino. Se eu soubesse nem tinha vindo pra cá.
Ducolax abre ainda mais o berreiro enquanto se distancia. Ao chegar perto da nave do anjo, o menino transforma choro em
riso.
(vendo o anjo)
DOLORES - Fique quietinho meu filho que essa deve ser o avião do céu. Tem dois
anjos, olha a asinha deles.
Neste momento há um “congelamento” dos atores em cena. Um dos Copilotos percebe que a peça parou e começa a falar
com a plateia. Esse personagem se chama ZÉ TRAÍRA
COPILOTO 2 (ZÉ TRAÍRA) - Rapaz, eu tô aqui, mas é ruim demais. Ali eu vi que é
tudo beleza, tranquilidade. Aqui é fogo. Vou aproveitar que a peça parou e vou
prá lá que eu não sou besta.
5. Zé Pistola
ZÉ PISTOLA - Agora eu vi, agora eu vi. Que é que esse povo ta fazendo aqui?
Vendo teatro? Nunca gostei dessas coisas de teatro. Teatro não é pra cabra
macho não, é pra mocinhos delicados e mocinhas que não tem o que fazer. Fosse
meu filho metia-lo cinturão agora. (berrando) Vão pra casa que Zé Pistola
mandou!
(Zé Pistola caminha até o palco. Não percebe que os copilotos do Diabo já estão prontos para pegá-lo)
COPILOTOS 1 e 3 - O cão!
COPILOTO 1 (ZÉ TRAÍRA) (Do lado dos anjos) - Não disse? Se lascou!!! (da
gargalhada, mas logo se recompõe para não desconfiarem dele)
Os que estão na nave do Inferno percebem que aquele Anjo tem algo diferente, um canto de anjo diferente, desafinado)
Pedem para ele cantar sozinho. Ele canta arranhado. Os Copilotos percebem e tiram ele da nave na lapada.
6. Dona Irrita
DONA IRRITA - É aqui? Valha-me que lugar esquisito é esse? Que povo esquisito
esse aqui? Repara para aquele ali, esquisito demais. E esses dois aviões? E essas
asas? Menino falar em asa, não é que ontem eu resolvi comer asa de galinha e o
osso enganchou na minha garganta e eu terminei caindo e morrendo embaixo
da mesa. Eu estava brigando com meu marido e ele mandando eu calar a boca e
eu mandando ele calar a boca dele. A boca é minha. Porque boca, boca mesmo
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tem uma vizinha minha. Menino, a mulher quando rir a boca engole as orelhas,
dá para ver até o último dente e ainda ver o pinguelo da garganta balançando.
Pinguelo é essa carninha no meio da garganta, povo malicioso, malicioso e feio.
Nunca vi tanta feiura que nem nessa sala. Essa sala é de barro ou de tijolo e
alvenaria. Lá em casa a sala toda a gente cobriu de cerâmica e eu botei um
quadro bem grande.
Eu vou para onde eu quiser e nem você e nem ninguém tem nada a ver com isso
não, tá querendo ser como meu marido? Nem lhe conheço e nem quero
conhecer. Conhecer, conhecer mesmo a gente só conhece direito a família e olhe
lá. Porque na minha família eu tenho um irmão que se chama Barnabé, esse
nome é muito antigo. Eu não botaria o nome do filho de Barnabé porque o
pessoal ia ficar tirando onda com ele na rua Barnabé, Barnabé, Barnabéeeee. E
sabe do que, filho eu nunca quis ter. Minha vizinha teve muitos. A Railde
Railton, a Raíze, a Raniele e Renalvo. Todos com RRR. eu que não sou…
DIABO (enlouquecido) - tire essa senhora daqui antes que eu fique doido.
DONA IRRITA - Senhora não começa com R não meu filho. Não estudou o
alfabeto. Eu tinha a cartilha do Abc, adorava aquelas imagens: A de avião, B de
bola, C de casa, D de dado, E de estrela… Estrela nem todo dia aparece, tu já
percebeu isso? E eu ainda tô achando que o céu anda meio estranho, cinzento.
Coisa do fim do mundo mesmo, do Apocalipse.
Maria Rita chega a barca do Anjo. Fica em silêncio um tempo. Olhando para a outra barca.
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DONA IRRITA - Deu certo. Menino, eu tava vendo tudo dali e pensando. Jesus,
como eu vou me salvar dessa.
7. brízida
BRÍZIDA – Dona Nada. Eu não sei onde eu ando com a cabeça que contrato gente
de sua laia. Eu, Brizida Germano Alcântara Belmonte Caiado de Médice. Um
Mané da Silva Um iletrado, um favelado, que deve ter comprado a carteira de
motorista lá na Feira do Rato. Diga-se de passagem, é um lugar que não sei nem
onde fica
CHOFER – Dona Brizida, Eu trabalho para a senhora 24 horas por dia, sem folga,
sou chofer, Jardineiro, Porteiro, zelador, segurança e ouvido de aluguel para
todas os seus gritos. E eu já lhe disse, não me chamo Mané da Silva.
CHOFER – Passar como? A senhora não me pagava em vida, como vai me pagar
em morte?
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BRIZIDA – Morri por sua causa! Diga-se de passagem. O senhor virou o carro de
propósito.
BRIZIDA (toma um susto) – Que horrorosas! Vamos ter que fazer mais
harmonização facial ai.
BRIZIDA (de longe, aos berros) – Brízida Germano Alcântara Belmonte Caiado
de Médice. Que demora é essa?
BRIZIDA – Claro que não, idiota! Você tem que me obedecer e não a ele. Sou eu
que lhe pago. Vamos na outra nave.
BRIZIDA – Fale com ela seu inútil. Primeiro pergunte se quer trabalhar comigo.
Com essa carinha de anjo, vai atrair muitos ricaços e muitos políticos.
CHOFÉR – Sou eu dona Brizida. 10 anos de trabalho e a senhora nunca quis saber
meu nome.
ANJO – Senhor, Jonh Wolker, o senhor pode vim. É um homem bom. Aguentou
tudo para poder sustentar seus filhos. Não merece mais servir a essa cobra.
CHOFER – Va-se embora prá o diabo que lhe pariu prostituta de satã. (muito
alegre) consegui, consegui desabafar depois de tantos anos.
Chofer vai para a nave do Céu e Brizida vai para a Nave do Inferno.
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8. Rá-póstolo real
Rá-PÓSTOLO - Eu vendo feijão que cura doença, eu vendo dancinha que espanta
o diabo, eu tenho bola de assopro com meu bafo sagrado, eu faço aleijado andar,
eu faço mudo falar, gordo ficar magro e gay virar macho. Põe dinheiro no meu
bolso. Tô ouvindo a voz, tô ouvindo. Tô sentindo, tô sentindo. ta chegando, tô
sentindo! Eu profetizo: deposite um salário mínimo na minha conta.
COPILOTOS - Viemos.
COPILOTOS - Temos.
COPILOTOS - Nosso irmão ali também está possuído e sua nave também está
possuída.
Rá-PÓSTOLO - Ele tem dinheiro? Pode fazer uma doação para eu comprar o que
eu quiser aqui?
COPILOTOS - Pode.
Rá-PÓSTOLO - Venha meu irmão. Eu quero ungir essa manga. Põe dinheiro no
meu bolso. Tô ouvindo a voz, tô ouvindo. Tô sentindo, tô sentindo. ta chegando,
tô sentindo!
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Os que forem para o céu são convidados para entrar na Nave e os do Inferno
Também.
FIM