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O narrador e a ironia em camilo: pequeno estudo

Luzimar Goulart Gouvêa


Unipinhal

1. Introdução

A investigação de alguns procedimentos de utilização da ironia em

Camilo Castelo Branco ajuda a descobrir aspectos muito particulares da


construção do narrador que interessam aos estudos camilianos, uma vez
que, mais que evidenciar a maestria dessa narrativa, desvelam a
especificidade do recorte realista de Camilo. Para tal investigação, serão
tomados os romances Coração, cabeça e estômago e Eusébio Macário. Para
alguns contrapontos, também serão trazidos Amor de Perdição, A queda
dum anjo e A corja.
O enfoque no narrador contempla uma preocupação em registrar uma
espécie de modus operandi de um escritor que ascende na cena literária
portuguesa, num momento em que o romance estava longe de ter uma
fórmula já consagrada. Se considerarmos os momentos anteriores à
produção de Camilo, muita coisa era o romance, e esse estar-sendo-feito
abria brechas para toda sorte de experimentações. As fórmulas e a forma
do romance eram uma mescla e tinham um sentido um tanto quanto
aberto. Conforme Moretti (2003, P.201), “o romance é tão diversificado, tão
livre – tão louco, de fato – quanto podia ser: Sátira e Lágrimas, Picaresca e
Filosofia, Viagem, Pornografia, Autobiografia, Cartas...” E, lembra ainda
Moretti (idem), quando

o paradigma anglo-francês está no lugar e o segundo


surto é uma história completamente diferente:

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romances históricos em terceira pessoa, não muito


mais. Mais nenhuma invenção morfológica. Difusão: a
grande força conservadora. Uma forma; e importada.
Se se considerar que, quando Camilo Castelo Branco inicia sua
produção escrita, por volta de 1848, muito já se tinha experimentado em
termos da linguagem do romance e a estética romântica já andava em
curso em Portugal havia uma geração, a produção literária de Almeida
Garrett e de Alexandre Herculano é o horizonte próximo que Camilo tem
como experiência de linguagem narrativa na forma romance, experiência
tardia em termos de Europa.
Ainda: à época de Camilo, a experiência de narrar estava vinculada à
conformação e à manutenção da imagem do mundo exterior, assim como
havia uma crença num certo mundo ético e, hoje, mundo exterior e mundo
ético, segundo Walter Benjamim (1985, p. 198), “sofreram transformações
que antes não julgaríamos possíveis”.
Naquele universo, diverso e concorrente da narrativa oral, a narrativa
escrita recorria, preferencial e majoritariamente, ao narrador clássico como
forma de viabilização de enredos, caracterização de personagens etc. É
importante lembrar, com Vasconcelos (2002), que, dentre as manifestações
literárias anteriores, o romanesco ainda estava no horizonte ou na memória
recente tanto de escritores como de leitores dos séculos XVIII e XIX, bem
como a forma ideal, fixa, “eterna” da épica era o que de mais modelar
havia. O narrador, tanto no contexto da épica como no contexto do
romanesco, obedecia a fórmulas já consagradas e guardava uma relação
diferente com a realidade e os novos conteúdos sociais que se
apresentavam à época da ascensão do romance. Ora, o narrador do
romance é preso de uma imposição vital: como apresentar-se e ao seu
universo próprio ficcional como verdade e com verossimilhança? A ironia
pode contribuir para essa verdade? É ela que dá a originalidade desse
narrador, originalidade que estaria na conjugação única de um realismo
atemporal?

1. Um pouco de ironia

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A ironia, dentre tantas acepções, pode ser considerada, em seu


sentido clássico, logo grego, como um recurso de linguagem ou modo de
exprimir-se que consiste em dizer algo para significar exatamente o
contrário daquilo que se está pensando ou sentindo. Pode também ser
visto, ainda no campo da linguagem figurada (figura de retórica), como um
contraste fortuito que parece um escárnio. Se tomada na sua origem,
eironéia, em grego, assimilada via latim ironia, a palavra pode significar
“interrogação”, “dissimulação”. O significado de “interrogação” pode ser
reconhecido juntamente com aquilo que se convencionou chamar ironia
socrática, consistindo essa num modo de interrogar que leva o interlocutor
ao reconhecimento de sua própria ignorância.
Ainda preliminarmente, Maria de Lourdes A. Ferraz (1985, p. 15) diz
que

Paredes meias com o humor, o sarcasmo, a sátira, o


termo aparece, por vezes, confundido com designações
mais gerais, como cepticismo, troça, quando não
impostura (ignorância fingida) ou até mentira, e não
raro acaba por ocupar uma terra de ninguém. Não
admira, portanto, que se chegue a aventar a sua não
utilidade, perdida que foi, nas diversíssimas
conotações, a força da denotação...

Ferraz (1985, p. 15) observa, curiosamente, que o que tem ficado


consagrado como uso mais corrente do termo é “significar o contrário do
que se diz”, e que há uma tendência de se substituir o termo pensar por
dizer. Tal substituição, segundo Catherine Kerbrat-Orecchoni, citada por
Ferraz, pode evitar a sempre incômoda referência a uma intenção do
locutor. De qualquer modo, é sempre bom lembrar, a ironia, dizendo o
contrário do que afirma, “diz sobretudo mais do que fica expresso”.
Ferraz (1985) ainda cita o artigo de Nortrop Frye, em que este afirma
explicitamente ser central o tom irônico na literatura moderna, assim como
cita o estudo de Anne Marie Bülow MӨller, em que esta, comentando sobre
textos narrativos de ficção das duas primeiras décadas do século XX, diz

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que estes são marcados profundamente pela auto-ironia, e que essa ironia
seria fruto de uma complexa consciência narrativa.
A ironia revela, sobretudo, uma visão crítica do mundo e pode ser
considerada um método de análise. Ainda, possui uma função maiêutica,
segundo Ferraz (1985, p. 18), que acrescenta: “Como forma de apreensão
da realidade, constitui, poder-se-á dizer, uma epistemologia, já que,
seguindo e glosando a esteira de Sócrates, só se conhece o que (quando)
se ignora”.
Além de prática cognitiva, a ironia é também uma prática persuasiva,
que, ainda segundo Ferraz (1985, p. 18), seria o “lado argumentativo do
método”. E que é “como “arte” de persuasão, estimulando em nós
convicções e opiniões, que a ironia, enquanto figura, revela um estilo, uma
atitude, um tom, que persegue o objetivo de não só movere, mas vencer,
ou melhor, convencer”.

A ironia em Camilo Castelo Branco será um dos recursos que melhor


darão sustentação ao seu estilo, marcando as peculiaridades de seu (s)
narrador (es) e chegando, mesmo, a fazer escola.

2. Camilo, seus narradores e alguma ironia

Uma das características do narrador camiliano que melhor contribui


para a utilização da ironia, não porque seja condição sine qua non, é a sua
subjetividade marcada.
Mesmo quando Camilo se utiliza de um narrador mais distanciado,
francamente em terceira pessoa, como é o caso do narrador em A queda
dum anjo, de 1866, temos incursões de um plural majestático, como
quando o narrador nota que, tendo ido Calisto Elói a Lisboa de liteira, em
dez dias de jornada, esta foi “trabalhada de perigos, superiores à descrição
de que somos capaz” (cf. BRANCO, s/d., p. 32). Já em Amor de perdição,
de 1862, há um recurso de abertura da narrativa que traz o início de uma
espécie de abundância de narradores: há uma “Introdução”, em que
aparece um narrador em primeira pessoa do singular, na qual há um
documento com um outro narrador em primeira pessoa do singular; há

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também o “Capítulo 1”, em que se inicia numa segunda vez a narrativa,


com um narrador em terceira pessoa, do tipo narrador onisciente, não
participante, que se alterna com marcas de narração ora em primeira
pessoa do singular, ora em primeira pessoa do plural. Além disso, ao longo
do texto de Amor de perdição, encontramos algumas notas do autor, um
documento, alguns bilhetes e uma carta, em que emergem,
instantaneamente, outros narradores e/ou personagens erigidos em
narradores.
Em Coração, cabeça e estômago, também de 1862, a aludida
abundância de narradores se faz sentir mais intensa. Há uma “Advertência
do autor”, em primeira pessoa, e quem a assina é “o autor”. Há um
“Preâmbulo”, dialogado entre uma primeira pessoa, o narrador, e Faustino
Xavier de Novaes. Daí, segue-se o início da narrativa propriamente dita, a
parte 1, “Coração”, com um narrador, também em primeira pessoa, agora
reconhecido por Silvestre da Silva. Entretanto, há, no corpo da narrativa (e
não no rodapé), algumas notas, em primeira pessoa, não reconhecíveis
como o narrador Silvestre da Silva. Funcionam como uma espécie de
narrador auxiliar, ou complementar. Ainda mais um narrador: nas notas de
rodapé, há narrador (es) em terceira pessoa, não participante (s),
onisciente (s).
Em Coração, cabeça e estômago, temos essa abundância de
narradores, que, por outro lado, pode levantar uma questão que pode ser
enunciada como uma espécie de insuficiência da narração. Por outro lado, é
a forma mais evidente e imediatamente acabada daquele efeito que, a
partir da lição de Bakthin (1997), pode ser chamado de polifônico.
Essa profusão de vozes narrativas, no entanto, em Eusébio Macário,
de 1879, e A corja, de 1880, com uma subjetividade mais formalmente
marcada, aquela em primeira pessoa, parece diminuída ao longo da
narrativa. Entretanto, os paratextos permanecem: há uma “Dedicatória”,
em primeira pessoa do singular, assinada pelo autor; uma “Nota
preambular”, em terceira pessoa; um “Prefácio da segunda edição”,
assinado por Camilo Castello Branco, e, finalmente, uma “Advertência”, não
assinada, em terceira pessoa, entretanto, como o “Prefácio da segunda
edição”, com a mesma localização, S. Miguel de Seide (Sic) e uma datação:

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a “Advertência” é de junho de 1879, e o “Prefácio da segunda edição” é de


setembro de 1879. A corja, com uma informação entre parênteses,
“continuação de Eusébio Macário”, traz o início/continuação da narrativa,
com um narrador em terceira pessoa, sem paratextos imediatos.
Tomando essas narrativas camilianas, podemos perceber, quanto ao
narrador, como Camilo ainda estava experimentando as formas de narrar,
não tendo assumido a fórmula já consolidada dos “romances históricos em
terceira pessoa”. Esse experimentalismo de linguagem e a não assunção de
uma forma acabada de cristalizar deixam a narrativa de Camilo, por outro
lado, livre, flexível. Acresça-se a isso aquilo que é uma das marcas de estilo
de Camilo, a ironia, e teremos, textualmente, um modo extremamente
moderno de narrar, que inclui uma constante interpelação do leitor, o
recurso à intertextualidade e a notação metalingüística, que também é um
dado revelador da consciência crítica da escrita.
Se, em Amor de perdição, a ironia ocorre como recurso
possivelmente mais controlado, em momentos pontuais, em Coração,
cabeça e estômago a ironia, por ser auto-ironia, ocorre desbragadamente.
O narrador, em Amor de perdição, apesar de em primeira pessoa,
narra sobre terceiros, e o herói “opõe-se ao grupo social” dominante num
conflito de “tensão máxima”, conforme o que preconiza Goldmann (1967). A
ironia nunca recai sobre os protagonistas, mas, sim, em relação aos
antagonistas, como é o caso do primo Baltazar que, “a juízo de seu tio, era
um composto de excelência, tinha apenas uma quebra: a absoluta carência
de brios” (conf. BRANCO, 1999, p. 31), e como também é o caso da fala do
narrador, após a fala da prioresa à Teresa sobre a mestra e a organista, em
que a prioresa escancara o comportamento das auxiliares: “Este edificante
discurso da caridade foi interrompido pela madre escrivã, que vinha,
palitando os dentes, pedir à prelada um copinho de certo vinho estomacal
com que todas as noites era brindada” (idem, p.49). Mais adiante (idem,
ibidem, p.51):

Não delongaremos esta amostra do evangélico e


exemplar viver do convento onde Tadeu de
Albuquerque mandara sua filha a respirar o puríssimo

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ar dos anjos, enquanto se lhe preparava crisol mais


depurador dos sedimentos do vício no convento de
Monchique.”

Tais cenas apontam para um realismo e para um jogo de


antagonização que salvaguardam o lugar do herói (aqui, a heroína Teresa
Albuquerque, assim como Simão Botelho), depositário de valores lídimos
num mundo em deterioração. Vale lembrar as condições de produção do
romance Amor de perdição, e poderemos entender porque a ironia não recai
sobre os heróis.
Isto não é o que acontece com A queda dum anjo, que tem outras
circunstâncias de produção, inclusa nelas a dedicatória ao Sr. Antônio
Rodrigues Sampaio, benfeitor de Camilo. Na “Advertência da segunda
edição”, não assinada, em terceira pessoa, lemos: “O autor cuidou, quando
escreveu esta novela, que alguma intenção moralizadora se transluzia da
contextura da história”(conf. BRANCO, s/d., p.15). Esse fragmento também
revela parte das intenções do autor e, sendo o romance narrado
majoritariamente em terceira pessoa, a ironia não é desferida contra o herói
de maneira pontual, mas há uma espécie de grande efeito de ironia que
recobre o todo, carregando o narrador até ao exagero na caricaturização do
herói.
Efeitos bem diversos serão vistos em Coração, cabeça e estômago,
em Eusébio Macário e em A corja. No primeiro, a auto-ironia, nos outros
dois, uma espécie de ironia lúdica possibilitada pela intenção parodística.

3. Ironias

A ironia trazida em Coração, cabeça e estômago é, como já foi dito, a


auto-ironia. O narrador, Silvestre da Silva, em primeira pessoa, portanto
subjetivamente, destila sobre si o veneno irônico.
Paulo Franchetti, na “Apresentação” que faz a Coração, cabeça e
estômago, diz que o interesse maior da obra não está no enredo da história
narrada, mas “nos efeitos cômicos produzidos pela distância de pontos de
vista entre Silvestre-personagem e Silvestre-narrador.” (conf. BRANCO,

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2003, p. XXXV). De fato, o livro vale pelo exercício da escrita e não pelo
conteúdo. E é esse exercício da escrita sustentado exatamente na ironia
que nos dá, então, a consciência da escrita.
Essa consciência da escrita, em Coração, cabeça e estômago, está
construída exatamente no exercício de fixação de um enredo em que o
narrador-personagem se leva a sério, como leva a sério sua escrita, seus
amores pífios, ao mesmo tempo em que se desvenda para o leitor a tibieza
de sua escrita como pensador de um tempo, a patifaria e a falta de chão de
seus amores, a completa caracterização, mais uma vez pelo avesso, de um
herói que não vale a pena. Em última instância, isto é significar exatamente
o contrário do que se disse.
A subjacente ironia parece ser o que faz manter o interesse pela
leitura, e o efeito geral auto-irônico pode ser observado, por exemplo, na
complexa consciência de seu lugar de fala, revelada na conjunção
explicativa no final do enunciado:

Comecei por beber licor de hortelã-pimenta e acabei


no absinto estreme. A minha embriaguez era pacífica e
até certo ponto catedrática. Eu me explico. Se o
auditório me favorecia, deixava-me ir em discursos
sobre a filosofia da história, alternados com outros
discursos sobre a história da filosofia. Estas matérias,
que a todo homem, em estado normal, se figuram
áridas e insípidas, a mim pareciam-me deleitosas e
lucidíssimas; e os ouvintes, salvo a lisonja,
mostravam-se igualmente admirados que instruídos.
Não podemos inferir daqui o fato de que as ciências de
certa transcendência as devemos à alucinação de
certas cabeças?, e que o espírito humano, sem o
completo conhecimento de outros espíritos, cuja
mortalidade ninguém discute, há-de sentir sempre a
estreiteza dos seus limites? Não discorro agora a este
respeito, porque bebo água há dois anos.

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Outro momento em que ocorre o efeito auto-irônico pode ser


observado quando Silvestre guarda para si e para suas páginas uma
importância que não têm. Para compensar essa pequenez, ou para
ombrear-se em importância, o narrador eleva o tom pó meio de duas
citações em latim, pela citação de uma personagem histórica e pela
paráfrase ao texto de Cícero, não creditada, obviamente, o que já é
revelador do caráter embusteiro do narrador. No parágrafo, há um
contraponto entre o ex-corregedor e o atual, o próprio Silvestre:

Deixá-lo lá com suas foscas, o infeliz! Come-lhe as


entranhas o rancor político. Um dia virá em que ele,
descoroçoado de apanhar a corregedoria, veja a pátria
pelos olhos de Bruto e, com b pequeno, se deixe
morrer num fartadela de rojões de porco, sem alguma
esperança de renome entre as vítimas do patriotismo.
Não!, pobre tolo que tinhas em ti uma alma tal e qual,
ceteris paribus, como a dos grandes estadistas, que se
hão de rir de tuas agonias: não, meu êmulo desditoso,
a posteridade falará de ti, as gerações provindouras
lerão nesta página, mais durável que o bronze das
estátuas, o teu infortúnio e a minha generosidade. Vae
perennius victis! (Conf. BRANCO, 2003, p. 180)

Outro exemplo absolutamente irônico, que se converte em auto-


ironia, enlaça, ao mesmo tempo, não somente o narrador Silvestre da Silva
como também o narrador do paratexto. Localizado na subseção IV das
“Paginas sérias da minha vida”, da parte II,
“Cabeça”, o trecho fala do Dr. Sanches, descrito por Silvestre da Silva como
alguém ilibado, no reconhecimento social imediato. Empenhado na
caracterização idônea que o meio faz do Dr. Sanches, Silvestre, por
contraste, ataca a Assembléia Portuense. Nesse momento, numa nota de
rodapé, um narrador em primeira pessoa, num tom extremamente formal,
o que dá à nota um caráter de pastiche, faz a defesa da Assembléia, o que,

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na verdade, não é uma defesa, mas uma elucidação irônica das práticas da
casa. O narrador da nota aparentemente desmente, assim, Silvestre, com a
ironia, sustentada pelo tom que, de formal, é, em última instância, um tom
fake, de pastiche mesmo, como já foi dito. A conversão em auto-ironia
estaria na necessidade de reforço ao narrador, na sua insuficiência de dizer,
dizendo o segundo narrador por ele o que poderia ter dito e que não foi
dito, invalidando o narrar de Silvestre. O que não foi dito por Silvestre é
dito, de outra maneira, num elogio que denuncia, pelo narrador
“complementar” da nota, o que cria um efeito de auto-ironia, pelo avesso.
À parte muitos exemplos de ironia e de auto-ironia que podem ser
arrolados aqui, o principal efeito de auto-ironia é a própria narrativa de
Silvestre da Silva, que, à medida que mostra todo o seu percurso,
encarecendo seu ponto de vista a partir do Estômago, estabelece sua
memorialística com a finalidade de denunciar , dissecando-se a si próprio, a
inépcia do idealismo de sua juventude (Coração), a ineficácia de suas
estratégias (a aplicação estreme de regras de galanteria registradas num
livro de versos) e sua desastrada ação pública como jornalista (Cabeça).
Há, nesse procedimento, uma espécie de retro-escarnecimento, na atitude
de o narrador da maturidade Silvestre da Silva parecer ter um objetivo
marcado de rebaixamento de sua própria pessoa. Além disso, na narrativa
como um todo, há um rebaixamento de todas as outras personagens, bem
como há um rebaixamento das diversas instituições sociais, rebaixamentos
calcados numa lógica do tipo “ninguém é melhor que ninguém; ninguém
presta”. Essa lógica, parece-me, será o eixo de sustentação de Eusébio
Macário e de A corja.
Nessa atividade memorialística, de gênero autobiográfico, portanto
algo reflexiva, é possível reconhecer também um exercício de análise que
faz Silvestre, e, nessa análise, concomitantemente, ocorre um dar-se a
conhecer, um conhecer a realidade, no sentido de, ao revisitá-la pela
escrita, apreender suas peculiaridades, as de Silvestre, marcando, pela
ironia, aqui auto-ironia, o tom em que deve ser dado a conhecer. Há, nessa
atitude, uma complexa consciência da linguagem.
Essa complexa consciência da linguagem também pode ser observada
em Eusébio Macário, o que, obviamente, se estende à sua continuação, A

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corja. Tudo o que foi possível fazer em termos da instituição do narrador


majoritariamente em primeira pessoa do singular, Silvestre da Silva, em
Coração, cabeça e estômago, agora será feito, com outros ganhos, com um
narrador majoritariamente em terceira pessoa do singular, em Eusébio
Macário: afastada a possibilidade da auto-ironia, por conta da
impessoalidade do narrador, resta a ironia, dessa vez mais distanciada, mas
não menos intensa.
O tipo de narrador que possibilita esse maior afastamento estará,
então, marcado por uma maior objetividade. E a objetividade é algo que se
impõe à narrativa, uma vez que Eusébio Macário é um dos “romances
facetos” de Camilo. Sobre esses dois romances, se consideradas as
observações dos paratextos, em que há a afirmação e o elogio da nova
forma do fazer literário, a dos processos de construção narrativa do
Realismo/Naturalismo, e se se desconfiar delas, entendendo os dois
romances como uma radical paródia, teremos uma tese que irá opor-se a
uma outra, a da “premeditação”, preconizada por Mário Braga, citado por
Rodrigues na “Introdução” à edição da Ulisseia (conf. BRANCO, 2000, p.18).
Braga diz: “Pode opinar-se que, achando-se transviado ou prejudicado no
romantismo, Camilo usou rodeios e disfarces para entrar secretamente na
galeria realista.” Rodrigues (Idem, p.18-19) acrescenta ainda que Mário
invoca

o facto de Eusébio Macário abrir com propósitos


francamente caricaturais, bem visíveis na exagerada
minúcia com que os objetos e os ambientes são
descritos na acentuada deformação física das figuras,
ganhando depois o estilo uma toada mais natural e
equilibrada, à medida que a história progride. Assim
parece, esta mais visível n’A corja.

Assumindo a tese da radical paródia, é possível tratar a ironia,


pensando no narrador que tem diante de si a possibilidade de um
distanciamento textual tamanho e um comprometimento com a matéria
narrada que é apenas o da pilhéria.

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Segundo J. Cândido Martins, num “Prefácio” a Eusébio Macário e A


corja (conf. BRANCO, 2003, p. 7):

Estas duas narrativas camilianas constituem um


magistral exercício de paródia dos códigos literários e
ideológicos que nortearam o Realismo, quer dos
pressupostos teóricos da sua matriz francesa, quer
sobretudo dos processos usados na sua aclimatação
portuguesa, a partir da década de 1870. De facto,
Camilo imitou, com enorme gozo lúdico e assumido
distanciamento estético- crítico, os tiques e a
fisionomia do novo gosto literário realista-naturalista,
tão distanciado das concepções do ‘velho escritor de
novelas românticas’”.

A complexa consciência da linguagem agora explora o recurso


parodístico, por um lado, e a ironia, por outro. A manejar essas duas
armas, que atira intermitentemente, está um narrador, emprestando a
expressão de J. Cândido Martins, “com um enorme gozo lúdico”.

Também alude a esse gozo Jacinto Prado Coelho (1983-2º.V, p.162):


“Os dois termos (recriação e recreação) vêm a
propósito porque o nosso novelista, ao cumprir o
projeto duma recriação ou imitação parodística, nos
deu um seivoso, portentoso entretenimento, onde o
prazer do autor se multiplica no prazer dos leitores.
Concentrando na forma a sua pujança criadora, a
paródia levou-o a patentear uma vitalidade, uma
fantasia, uma verve inesgotáveis, com permanentes
achados de palavras expressivas e bem sucedidas
combinações inesperadas – o que torna as duas obras,
particularmente o Eusébio Macário, um momento único
de libertação, de festa verbal, espécie de orgia
carnavalesca, rasurados todos os interditos e

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recalques. Talvez termos como gozo, gozar, com seus


diversos sentidos, definam bem essa festa: gozo na
volúpia dos contactos com o lado sensual, carnal da
linguagem; gozo pela charge que põe maliciosamente
em xeque os rivais da escola realista-naturalista; gozo,
ao nível da diegese, pela pintura caricatural, satírica, a
traço grosso, de personagens medíocres e duma
sociedade dissoluta – sendo a este nível que
transparece a outra face do Carnaval, a sensação de
náusea, de vazio, como reverso da festa sem peias.

A aproximação do conceito de “carnaval” aqui é francamente


bakhtiniana e abre novas possibilidades de discussão do ludismo do
narrador, que foge à envergadura deste trabalho. Resta, então, tratar da
ironia em Eusébio Macário, não sem antes dizer que há um caráter
extremamente moderno nesse jogo lúdico, também persuasivo – assim
como a ironia.
A ironia em Eusébio Macário é, como já foi dito, uma arma que o
narrador empunha e dispara intermitentemente, como os efeitos do jogo
parodístico. Assim, na noite de núpcias de Custódia e do Barão (conf.
BRANCO, 1943, p.81):

Os noivos tinham-se deitado, e disseram que os


assobios agudos das requintas os não deixaram pregar
olho. O abade piscava ao Motta prego, que dizia ao
Trigueiros que as requintas é que pagavam as favas.
Nesse dia à noite, com grande fadiga, chegaram ao
Porto. A baroneza tosquenejava na liteira com sono; o
marido também; e, como iam defronte um do outro, às
vezes davam marradas; acordavam estrouvinhados,
riam-se, e beijavam-se murmurando arrulhos de
pombos.

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A cena ironizada é a da noite de núpcias em que se não dorme por


conta das “requintas” e, num casamento francamente de interesses, os
noivos fecham a cena com beijos e arrulhos de pombos.
Numa outra cena, a ironia recobre os “brasileiros de gosto”, os novos
ricos:

A casa dos noivos, no Poço das patas, não deixava


nada a desejar. Brasileiros de gosto com exclamações
admirativas visitavam o quarto da noiva, diziam que
estava uma capella, coisa muito papa-fina, uma
riqueza; e, a respeito do leito nupcial com pavilhão
franjado, faziam observações chulas, dum pitoresco
obsceno, com gargalhadas e piparotes no ventre
sonoro do barão. (conf. BRANCO, 1943, p. 75)

Felícia, a irmã do Barão, recebe promessa do irmão da seguinte


forma: “Que lhe daria marido ainda novo, porque em Portugal, quem tinha
dinheiro, isso de idade era uma história.” E acrescenta: “Que quisesse ela, e
os maridos seriam tantos como papagaios em bananeiras – estilo figurado
de Vassouras” . Felícia, após tudo o que já havia vivido com o abade, passa
a considerar a proposta do irmão, confere suas condições físicas e punha
“uma grande confiança no maciço dos seios, na largueza roliça, nédia, dos
ombros esbagaxados, e na carnação boleada das pantorrilhas que bojavam
premidas pelo elástico repuxado da liga”. Ao que segue-se:

“Acima destas considerações realistas, preocupavam-


na a Moral, a Religião, o Sacramento, as coisas nobres
do matrimônio que se edificam sobre as colunas
sensitivas, materialíssimas dos bons braços, dos peitos
redondos e das pernas grossas: as grandes
bestialidades do puro amor santificado na forma do
sagrado Concílio Tridentino e Constituições do
Arcebispado” (Conf. BRANCO, 1943, p. 74)

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É possível perceber a instalação da ironia na confluência do sagrado e


do profano no pensamento da personagem, que, embora seja seu desejo,
não é sua verdade, nem sua história.
A grande ironia que se apresenta em Eusébio Macário e em A corja,
na verdade, pode ser considerada uma ironia estrutural. O que dá
estruturação ao texto parece ser a pretensão da construção parodística,
que, em última instância, apresenta um sentido ao contrário do texto que
se quer dizer. Quando Camilo optou pela paródia, quis pilhar os processos
realistas-naturalistas, sabendo-se realizador não de um Realismo de escola,
mas de algo mais que o mero Romantismo que não escapa àquelas
verdades da realidade humana sobre a Terra, coisa que viveu na sua pele e
que fez viver na de seus personagens.

4. Por ora, um fim. Ou outro começo?

Muitas coisas podem ser ditas ainda sobre a maestria do narrador,


sobre a maestria dos vários narradores camilianos, na sua profusão de
pontos de vista, sobre sua aparente insuficiência de narrar ou sobre sua
hiper-inflação de dizer, quer seja por meio dos paratextos, quer seja pela
insistente aproximação da matéria narrada (narradores em primeira pessoa
do plural e do singular, narradores aparentemente em terceira pessoa),
quer seja pela máscara parodística, deleitosa... O gênio de Camilo parece
ser múltiplo.
Por ora, é possível dizer, como pretensão de fecho, que as diversas
experiências que Camilo se permitiu, mesmo premido pela escravidão-
sobrevivência da experiência da escrita como forma de sustento, ofício da
escrita como profissão, revelam um gênio da escrita que parece melhorar e
aprender a cada experiência: se, em Amor de Perdição, temos um narrador
passional e moralmente comprometido com a matéria narrada , em
Coração, cabeça e estômago, do mesmo ano de Amor de perdição, temos
um exercício de escrita já experimentando uma alteridade, um
descolamento da matéria narrada, inclusive via auto-ironia da personagem,

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que também é narradora. Por outro lado, se há um passado a ser


reverenciado em A queda dum anjo, causa romântica que se quebra, que
também cai, que perde sua função na ordem do mundo, em Eusébio
Macário e em A corja, o futuro é o grande sedutor das personagens, o
capital e não mais o mundo do passado como ideal. Outras questões a se
pensar na obra de Camilo.

4. Referências bibliográficas

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Forense Universitária, 1997.

BENJAMIM, Walter. “O narrador” in Obras escolhidas – Magia e técnica, arte


e política. São Paulo: Brasiliense, 1985.

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_____________________ . Coração, cabeça e estômago. São Paulo:


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_____________________ . A corja. Porto: Lello & Irmão, 1943.

_____________________ . A queda dum anjo. Rio de Janeiro: Ediouro, s/


d.
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_____________________ . Eusébio Macário/ A corja. Porto: Caixotim,


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Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1983, 2º. Volume.

FERRAZ, Maria de Lourdes A. A ironia romântica – estudo de um processo


comunicativo. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1985.

GOLDAMANN, Lucien. Sociologia do romance. Rio de Janeiro: Paz e Terra,


1967.

MORETTI, Franco. Atlas do romance europeu 1800-1900. São Paulo:


Boitempo, 2003.

VASCONCELOS, Sandra Guardini. Dez lições sobre o romance inglês do


século XVIII. São Paulo: Boitempo, 2002.

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