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1. Introdução
1. Um pouco de ironia
que estes são marcados profundamente pela auto-ironia, e que essa ironia
seria fruto de uma complexa consciência narrativa.
A ironia revela, sobretudo, uma visão crítica do mundo e pode ser
considerada um método de análise. Ainda, possui uma função maiêutica,
segundo Ferraz (1985, p. 18), que acrescenta: “Como forma de apreensão
da realidade, constitui, poder-se-á dizer, uma epistemologia, já que,
seguindo e glosando a esteira de Sócrates, só se conhece o que (quando)
se ignora”.
Além de prática cognitiva, a ironia é também uma prática persuasiva,
que, ainda segundo Ferraz (1985, p. 18), seria o “lado argumentativo do
método”. E que é “como “arte” de persuasão, estimulando em nós
convicções e opiniões, que a ironia, enquanto figura, revela um estilo, uma
atitude, um tom, que persegue o objetivo de não só movere, mas vencer,
ou melhor, convencer”.
3. Ironias
2003, p. XXXV). De fato, o livro vale pelo exercício da escrita e não pelo
conteúdo. E é esse exercício da escrita sustentado exatamente na ironia
que nos dá, então, a consciência da escrita.
Essa consciência da escrita, em Coração, cabeça e estômago, está
construída exatamente no exercício de fixação de um enredo em que o
narrador-personagem se leva a sério, como leva a sério sua escrita, seus
amores pífios, ao mesmo tempo em que se desvenda para o leitor a tibieza
de sua escrita como pensador de um tempo, a patifaria e a falta de chão de
seus amores, a completa caracterização, mais uma vez pelo avesso, de um
herói que não vale a pena. Em última instância, isto é significar exatamente
o contrário do que se disse.
A subjacente ironia parece ser o que faz manter o interesse pela
leitura, e o efeito geral auto-irônico pode ser observado, por exemplo, na
complexa consciência de seu lugar de fala, revelada na conjunção
explicativa no final do enunciado:
na verdade, não é uma defesa, mas uma elucidação irônica das práticas da
casa. O narrador da nota aparentemente desmente, assim, Silvestre, com a
ironia, sustentada pelo tom que, de formal, é, em última instância, um tom
fake, de pastiche mesmo, como já foi dito. A conversão em auto-ironia
estaria na necessidade de reforço ao narrador, na sua insuficiência de dizer,
dizendo o segundo narrador por ele o que poderia ter dito e que não foi
dito, invalidando o narrar de Silvestre. O que não foi dito por Silvestre é
dito, de outra maneira, num elogio que denuncia, pelo narrador
“complementar” da nota, o que cria um efeito de auto-ironia, pelo avesso.
À parte muitos exemplos de ironia e de auto-ironia que podem ser
arrolados aqui, o principal efeito de auto-ironia é a própria narrativa de
Silvestre da Silva, que, à medida que mostra todo o seu percurso,
encarecendo seu ponto de vista a partir do Estômago, estabelece sua
memorialística com a finalidade de denunciar , dissecando-se a si próprio, a
inépcia do idealismo de sua juventude (Coração), a ineficácia de suas
estratégias (a aplicação estreme de regras de galanteria registradas num
livro de versos) e sua desastrada ação pública como jornalista (Cabeça).
Há, nesse procedimento, uma espécie de retro-escarnecimento, na atitude
de o narrador da maturidade Silvestre da Silva parecer ter um objetivo
marcado de rebaixamento de sua própria pessoa. Além disso, na narrativa
como um todo, há um rebaixamento de todas as outras personagens, bem
como há um rebaixamento das diversas instituições sociais, rebaixamentos
calcados numa lógica do tipo “ninguém é melhor que ninguém; ninguém
presta”. Essa lógica, parece-me, será o eixo de sustentação de Eusébio
Macário e de A corja.
Nessa atividade memorialística, de gênero autobiográfico, portanto
algo reflexiva, é possível reconhecer também um exercício de análise que
faz Silvestre, e, nessa análise, concomitantemente, ocorre um dar-se a
conhecer, um conhecer a realidade, no sentido de, ao revisitá-la pela
escrita, apreender suas peculiaridades, as de Silvestre, marcando, pela
ironia, aqui auto-ironia, o tom em que deve ser dado a conhecer. Há, nessa
atitude, uma complexa consciência da linguagem.
Essa complexa consciência da linguagem também pode ser observada
em Eusébio Macário, o que, obviamente, se estende à sua continuação, A
4. Referências bibliográficas