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Aula Normal

Nesses meus muitos poucos anos de docência, que muito se parecem uma eternidade,

algo que sempre me chamou a atenção foi uma singela e truncada termo: "aula normal".

Como professor de Literatura, isso deveria não me maltratar tanto como maltrataria professor

de gramática e essas matérias menores. Parece ridículo assim pensar, mas esse termo tem todo

um contexto que deveria ser analisado antes de qualquer maldito pronunciamento.

Semana passada, por motivos de saúde, uma gripe do cão, não pude lecionar. Primeiro

ponto: Eu leciono, não "dou aula", pois quem supostamente trabalha de graça é cupim...

Enfim, estava eu muito caído e impossibilitado de ir à aula naquele dia, além de uma preguiça

dos infernos que me assolava a cabeça. Esse mal é um dos maus de quem se aventura

literariamente por caminhos como esse. Como de costume, no entanto, sem quebrar meus

protocolos, enviei um recado ao e-mail dos alunos avisando que nesta semana seria

impossível de comparecer as aulas, explicando minha situação, delineadamente, ainda que

soubesse que ninguém iria ler. Contudo, afirmei que na semana seguinte voltaríamos com o

conteúdo de onde havíamos parado, sem prejuízos educacionais.

Gripe normalizada e o cão nos infernos. Um chá de camomila ao lado esquerdo da

mesa, bolachas água e sal em um pequeno prato e o feijão cozinhando. Preparo os materiais

para a aula dessa semana quando um barulho insuportável no celular avisa sobre um novo e-

mail em minha caixa de entrada. Odeio celulares barulhentos, mas em casa preciso dos

barulhos para não me sentir sozinho e não esquecer que eu ainda vivo neste mundo tão

tecnológico que me abomina. Abro o tal do e-mail e vejo ser de um aluno. O aluno.

Dizia ele: "Professor, Li seu e-mail. Amanhã é aula normal?". Levei um susto. Parei.

Sentei. Preparei mais um chá de camomila e repus as bolachas no prato. Esqueci-me do feijão.

Meu coração sopitou de uma forma tão inesperada que me vi como o Jerry quando cercado

pelo Tom. Em um instante anormal pensei: "Minhas aulas são anômalas!".


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Aos poucos e com muito chá e bolacha fui me recompondo e comecei a escrever o e-

mail em resposta ao aluno:

"Estimado e atencioso aluno,

amanhã, infelizmente, teremos aula normal, com giz, quadro, apostila, talvez algumas xérox.

Haverá também um tipo de aula expositiva com participação dos alunos que se sintam a

vontade em discutir sobre o tema proposto. Peço desculpas por essa “aula normal”, mas é que

não tive tempo de preparar outro tipo de aula. Como leu no e-mail anterior, estive muito

doente, mas me recuperei, graças a elevação do cosmo. Apesar de ter conseguido alcançar

uma força surpreendente no meu cosmo, ela não foi o suficiente para que eu pudesse preparar

uma “aula anômala”. Ontem mesmo, tive que usar meu cosmo para ajudar Goku na busca das

esferas do dragão, o que fez meu cosmo se esvair um pouco. Perceba que isso já é anômalo,

usar meu cosmo que era para proteger Athena e sair em busca das esferas. Mas o Goku é meu

amigo e para amigos não se rejeita ajuda, não é mesmo?

Contudo, estimado e atencioso aluno, receio que na aula seguinte não teremos "aula

normal", pois já consegui reavivar meu cosmo e estou com alguns bons contatos para que

possamos sair da mesmice de aula normal. Penso, portanto, que para discutirmos sobre o

romantismo, nossa temática, devo conseguir trazer o esqueleto de Álvares de Azevedo, ou até

mesmo pedir a uma mãe de santo que o encarne, para que possamos ler um pouco da Lira dos

Vinte anos, ainda quando manuscrita, rascunhada e incompleta. Olha que bacana! Espero que

não tenha medo de espíritos! Pode ser que na aula que segue, ainda possamos entrar na

máquina do tempo, emprestada pelo McFly. Ele mesmo virá trazer! Logo, com essa viagem

no tempo poderemos perceber como foi o século XIX. Porém, nessa aula não creio que seja

interessante levar alunos negros. Sei que você me entende. Não é preconceito de minha parte,

longe de mim, mas pode ser que algumas pessoas do século retrasado não gostem muito de

ver escravos libertos. Avisarei que será de suma importância que tragam seus cartões de
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vacina, pois era muito comum, naquela época, as pessoas morrerem de tuberculose e pode

correr o risco de ficarmos presos no tempo durante um bom tempo, afinal a imersão no

assunto é de total relevância para que se aprenda. Além do mais, não quero depois ter que

atestar morte de aluno em meus diários, pois isso seria normal demais... Muitos já morreram

quando trabalhamos sobre a influência da Revolução Francesa no Romantismo. Eu até avisei

para não levarem a bíblia.

Só para constar, talvez nós consigamos, nessa aula, ir à lua, para entender um pouco do que

seriam questões de evasão do mundo e fuga da realidade, bem como fique para a próxima aula

realizar ceitas satânicas de morte, para entender o quão sofre o poeta romântico. Mas a ceita

será feita apenas para aqueles que possuem amores incompreendidos, amores de lonjuras ou

amores impossíveis. Os demais só poderão observar, fazendo anotações em seus cadernos,

pois não entenderão a essência de se morrer por amor.

Sem mais, nos vemos na aula normal de hoje.”

Ao fim do e-mail, o chá havia acabado e eu não percebi que as bolachas já tinham

formigas e o feijão estava por toda a parede da cozinha. Limpei cuidadosamente o feijão,

enquanto recompunha meu chá e jogava as bolachas no lixo. O calendário da cozinha, que

antes marcava 10 de junho de 2012, já ultrapassou o dia, era dia 11 e o feijão ainda estava na

parede.
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Desencantos Recorrentes

Ele sempre tentava combinar o seu tênis com a camisa vermelha da Adidas, que tanto

não gostava. Escolhia sempre a cueca mais nova e deixava seu cabelo sempre penteado da

maneira mais diferente que conseguia, apesar de não ser muito bom pra isso. Olhava-se

milhões e milhões de vezes no espelho para que pudesse corrigir qualquer imperfeição que

houvesse e deixá-la a pessoa mais feliz. O perfume era o seu favorito, disso não abria mão,

pois sempre recebia elogios dele, ainda nos tempos de faculdade.

Mas tudo isso não servia de nada. Na verdade, ele nem gostava daquele tênis e sempre

achou que aquela camisa o deixava meio estranho. Mas é coisa nova, de marca, então fazia

apenas para agradá-la. O perfume que ele tanto gostava, nunca soube se a agradava. Nunca

escutou um elogio simples do tipo “está cheiroso”. Parece que ela superior, ele era apenas um

alguém na vida dele. Poderia ser o cheiro de perfume nacional...

Naquele dia entrou no carro e um leve "oi", tão normal, ressoou no eco vazio que

havia entre os dois que o deixou ainda mais estranho do que a camisa que vestia. Pensou em

correr e trocar de camisa, pois aquele som tinha um gosto amargo, mas se segurou e com um

novo “oi” respondeu a ela. O eco era insuportável, mas só ele via isso. Marcaram algo, mas

ele queria sair, na verdade, para vê-la, conversar, saber sobre o dia dela, sobre seus sonhos,

desgostos... queria partilhar de tudo que a envolvesse. Mas ela sempre o deixa sozinho no

jantar. Era moça de negócios, negócios com qualquer um, exceto com ele. Pediu o prato de

sempre, o prato que há anos pedia, mas que ela nem se lembraria se é o que ele gostava.

Nunca tinha dado muita importância para os desatinos culinários dele. No celular, ela

conversava com as amigas, os amigos, os Power Rangers e quem mais surgisse, como se ele

não estivesse ali ou como se sua presença fosse apenas parte da mobília do restaurante. Às

vezes bem era e ele que não sabia!


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A verdade é que muito egocêntrica e idealitária, não podia fazer sexo consigo e os

vibradores que havia comprado escondido não eram bons. O jantar, que era uma desculpa

para que ele pudesse vê-la, para ela funcionava como preparatório do abate para uma mulher

que precisava de sexo.

No jantar, ainda, ele ainda tentava puxar algum tipo de assunto, falando de coisas que

interessam a ela, às vezes de assuntos que o interessavam... mas sempre era interrompido pelo

celular, pela televisão, pelo celular, pelo garçom, pelo cometa Halley, pelos Power Rangers!

Às vezes nem era muito interrupção, era ela mesmo que não sabia do que eu falava, havia se

perdido em qualquer coisa, menos na conversa da mobília. Onde já se viu mobília e garoto de

programa falarem? E não adiantava cobrar atenção da maneira mais sutil, para não parecer

infantil perante ela. Sempre acabaria sendo chamado de dramático e ridículo. Muitas das

vezes era mesmo, era o momento em que, por segundos, ganhava a atenção dela.

Mas ela tem vergonha dele e preferia sair ele primeiro para que depois desfrute das

amigas, dos amigos e dos Power Rangers. Não o convidava quase nunca, deveria ser tipo

programa que só aquele grupo de amigas sabe lidar: seria esse grupinho os próprios Power

Rangers? Ele seria um estranho ali, não teria morfador... Essa ideia de que o grupinho eram os

Rangers justificava o porquê saía escondido com o pessoal. Mas ele sempre sabia, os

morfadores nunca foram discretos!

Sentia-se como um gigolô! Isso, era um gigolô há dois anos e não sabia. Servia apenas

para uma saída de sexo casual, um jantar em que apenas ele comeria e conversas de assuntos

que só diziam respeito a ela. Era triste, se sentia ofuscado como pessoa. Muitos culpariam os

movimentos feministas, mas ele não. Sabia que caráter não é um movimento, é mais subjetivo

que isso. Contudo, preferia se conformar e dizer que não tinha problemas com a amada.

Beatriz era linda e o sentimento que ele sentia por ela era ainda mais bonito. Então deixou que

esse notório amor suprisse os desencantos recorrentes.


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Na volta do motel, ele tentou mudar a música do rádio e foi reprimido. Começaram a

primeira discussão, pois ele não gostava muito dos pops latinos, enquanto ela também não

gostava, mas colocava para irritá-lo. Ele queria Bom Jovi, ela queria qualquer outra música,

até mesmo o silêncio aglutinador do “oi” de mais cedo. Era cômodo a ela, era incômodo a ele.

Calou-se, no entanto, e lembrou que ainda a amava. Amava tanto que deixaria o vazio entrar

no carro, no desconforto da blusa da Adidas e no perfume nacional que não cheirava mais. Ela

o deixou na porta de casa e saiu. Não pôde ver, no entanto, quanto outro carro adentrava o

muro da casa de Heitor, acertando-o ainda no caminho para a porta de casa. Ela nunca achou

estranho não ter notícias dele durante os meses que seguiram. Comentava com as amigas,

meses depois, que não entendia o porquê do abandono dele... Disse para si mesmo, nunca

mais namoraria professores de literatura.


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E um dia tudo mudou

Cansada de sofrer de amor e de outros males que assombram a vida, Beatriz resolveu

mudar as coisas. Acordou cedo naquele dia, mas apenas para comprar pão quentinho, já que

só comia pão amanhecido. Uma grande mudança em sua vida. O cheiro do pão novo, o aroma

e o saco de papel ainda novo, sem muitos amassados, eram muito novos pra ela. Até um café

pretinho resolveu fazer! Nada de leite com chocolate barato.

Beatriz era muito sozinha, desde muito cedo, sabia se virar, mas era muito acomodada

com tudo. O problema de essas mudanças estarem começando agora foi Júlio. Júlio era

namorado de um amigo. Foi ele que apresentou a cunhada Madalena à Beatriz, que por sua

vez, apresentou Heitor. Parecia uma quadrilha de Drummond, entretanto, eram uma quadrilha

dessas quaisquer, de noticiários.

Heitor era boa praça. Mas nada acontecia na imaginação de Heitor e, por isso, logo

sumiu da vida de Beatriz, que se afastou de Madalena e de Júlio. Júlio não era boa praça,

mexia com algum tipo de droga que chamavam "droga do amor". Sempre apresentava pessoas

que sumiam da vida das pessoas e nunca mais apareciam. Madalena, coitada, era uma mulher

dessas que não fazem diferença nessa história.

Foi indo para o trabalho, depois de um café-da-manhã completamente diferente e

desacomodado, que Beatriz viu um anúncio de transplante de cérebros. Dizia o aviso

"Cansado de sofrer de amor? Os búzios já não dão a resposta esperada? Experimente um novo

cérebro!" Leu tão normalmente, como se fosse anúncio de manicure. Anotou o endereço e

desviou-se de seu trajeto. Ora, como um dia pode mudar nossa vida!

Pegou aquele ônibus de número meio apagado, que dizia Jardim da Luz ou era Jardim

Esperança... algo que indicasse esse sentimento que Beatriz tinha. A casa era meio velha, mas

cheio de aromas que ela não saberia reconhecer, mesmo que lhe fosse dito quais eram.
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Esperava ser atendida por uma Madame Suzana ou Paim André... Infelizmente não foi

atendida por ninguém. A casa estava vazia, abandonada...

Voltou triste, queria esquecer Heitor... entrou no ônibus chorando. No fundo do ônibus

avistou Heitor. Seria destino? Que péssimo destino seria esse então. Mas Heitor levantou e

anunciou o assalto. Não se lembrava de Beatriz, talvez no dia ele estivesse tão drogado de

amor, anfetamina que recebeu de Júlio, que apagara toda sua noite naquele dia. Ou talvez

Heitor só acontecesse na imaginação de Beatriz. Tentou ainda alguma comunicação com seu

Heitor, mas ele não queria conversa, talvez por que ele se chamasse Frederico. O que saberia,

Beatriz, é que deveria continuar na comodidade de sempre. Sem mais anfetaminas, Heitores e

amores românticos.
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Capitu

Seu nome era Capitu. Talvez fosse, tinha olhos de ressaca, mas não era esse o motivo

do seu nome. A culpa de uma carga tão pesada para o nome foi do médico, que se chamava

Joaquim. Mas não era Joaquim Maria, caso venha a pensar. Era mesmo Joaquim de Andrade,

mas leitor de Machado e não de Mário. Joaquim já era velhinho quando fez o parto de Capitu.

Tão velhinho que mal ouviu o grito da criança ao nascer e a castigara com muitas palmadas.

Nasceu sofredora essa Capitu. Talvez devesse se chamar Isaura, pois foi como viveu boa parte

de sua vida, nas mãos do padrasto, Guimarães. Não Bernardo, mas Tonivaldo. Pois tinha a

junção dos nomes da mãe, Tônia, e do pai, Emivaldo.

Isaura era triste desde pequena. Não se sabia a razão ao certo. Em sua primeira relação

sexual chorou feito criança. Talvez por que realmente fosse. Talvez por que eram dois

homens mais velhos. Talvez por que nem conhecia os homens e nem ficou com uma parte do

dinheiro, que foi todo gasto com cachaça pelo seu pai, Frederico.

Frederico, jovenzinho na época, foi quem vendeu Capitu para Tonivaldo. Graças a

venda, Fred conseguiu ir pra Goiânia, mas não ficou rico e hoje vive como favelado. Tentou

se mudar para São Paulo e para o Rio de Janeiro, mas dizem que as favelas de lá são mais

perigosas e o assalto não rende tanto, devido à polícia. Coisas que ouvi dizer, não posso

afirmar.

Dinamarque, mãe de Capitu e bem mais velha que Frederico, não foi contra a venda,

afinal, ganhou um belo vestido de festa, que usaria para trabalhar nas rodovias. Na verdade

foram dois vestidos, mas um ela não gostou muito e trocou por drogas dias depois.

Dinamarque era mulher guerreira, dessas de verdade, atendia toda noite e não reclamava

quando chegava em casa meio apática e pálida. Até mesmo, por que não teria com quem

reclamar, vendeu todos os filhos e os maridos eram passageiros.


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Joaquim, o médico, foi uma alma caridosa, pois viu Dinamarque dando a luz no meio

do mato, onde abandonaria o bebê. Mas Joaquim salvou Capitu do abandono e a inseriu no

mundo. Que ironia! A ideia da venda sempre foi de Frederico, pois viu que isso rendia algo.

Jovenzinho, queria vida melhor. A venda lhe rendeu passagem para Goiânia e dois vestidos.

Tonivaldo era homem bom, cuidava bem de seus filhos legítimos, mas tinha que sustentá-los,

por isso Isaura era escolhida para ajudar nessa árdua tarefa.

Poderia se chamar Cinderela, mas não havia sapatos de cristal, fadas, abóboras ou

príncipes. No entanto, conheceu homens que lhe prometeram isso tudo. Baixos, altos, gordos,

magros, da sua idade, mais velhos... conheceu mulheres desses tipos também. Não sabia ao

certo se chegou a ver o paraíso ou o inferno. Mas Isaura era forte, e queria se tornar Cinderela

um dia. Infelizmente a vida não foi boa com a menina, que não chegou aos 16 anos e morreu

na beira de uma estrada, como era para ter sido desde o início.
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Camisa do Homem-Aranha

E toda vez que fingia ser um herói, sua mãe o podava. As mães não entendem por que

é importante para um jovem de vinte e cinco anos ser um herói, ainda mais depois do modo

que veio ao mundo, que ele mesmo não sabia. Se tivesse os seus oito ou dez anos seria

possível compreender, mas as mães não entendem mesmo por que um jovem de vinte e cinco

anos precisa ser um herói. “Francamente, Marco”, dizia a mãe, “é um homem formado, tem

diploma de Direito, não tem cabimento pensar que é o Super-Homem”. O rapaz discordava

veemente, claro, mas preferia não criar confusão alguma. Mal sabia ele que ela o acolheu

quando tantos outros irmãos e irmãs não viveriam até os 16 anos. Também já tinha

ocasionado umas boas brigas por isso e sabia que não sairia ganhando.

Ele sempre foi sonhador, talvez devido a tantas leituras que fizera durante os anos,

contudo esse seu invencionismo despertou com mais força de uns meses pra cá, quando

sonhou ter uma doença mortal. Ninguém sabia, nem ele. Foi ao médico escondido e guardou

os exames em um local estratégico, junto ao seu caderno de literatura. Sua mãe nunca iria

mexer naquele lugar. Por quê? Não se sabe, ele sempre achou que era o esconderijo secreto,

como todo super herói tem.

Certo dia foi a uma loja de departamento, dessas de shoppings e achou uma camisa do

Homem-Aranha... vibrou. Comprou e já saiu vestido. Parecia uma criança sorrindo por ter

ganhando algo que sempre quis. Ele era assim, sentia-se feliz pelas coisas corriqueiras e

cotidianas. Uma simples balinha de morango, daquelas de dez centavos o fazia feliz. Nunca se

deixou abalar por qualquer razão. Quando acordou e soube da doença, por exemplo, abriu um

belo sorriso e saiu para dançar na chuva. Quer algo melhor para purificar a alma e o espírito

do que a água? Ele sempre repetia essa fala, que ouviu de Heitor, seu professor de Literatura.

Da janela de casa um dia o vi pular o muro e correr atrás de um filhotinho que iria ser

atropelado. Mesmo indo parar no hospital ficou feliz em saber que aquele filhote de labrador
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havia sido salvo. O médico ainda fez uma piada que agradou o garoto - Marquinhos, o nosso

superman! - pois ele trajava uma capa vermelha. Ele gostou, tinha sido reconhecido.

Sua mãe, coitada, entrava em desespero toda vez que ele resolvia se transformar em

herói. Seja na escolha dos óculos ou na vestimenta social. Quando fez dezesseis anos ficou

muito preocupada e o levou ao psicólogo... “Não é normal um menino dessa idade se portar

como um garotinho”. O que a mãe não entendia é que ele realmente não era normal, porém

não era nenhum garotinho.

Há algumas semanas, quando limpava o quarto do jovem, resolveu fazer uma boa

faxina e acabou mexendo naquele local secreto. Encontrou os exames intactos, ao lado de

alguns escritos do garoto. Como toda mãe, abriu. Abriu e leu os resultados. O filho viu a mãe

com os exames na mão. “Meu filho”, foi a única coisa que conseguiu dizer antes de ele sair

correndo, atravessando a porta em uma velocidade surpreendente, deixando a mãe como grito

ofuscado de dor, além dos exames e um papel que dizia "Serei quem eu sempre quis". Depois

disso ninguém nunca mais viu o jovem. Ouviu-se histórias durante um bom tempo de um

certo mascarado salvando pessoas... Diziam os jornais que parecia que ele tinha poderes

exímios... Mas os jornais dizem tantas coisas, não é mesmo?

O certo mesmo é que ninguém mais soube notícias do rapaz... no início alguns boatos

correram pela cidade, mas logo cessaram. O mascarado, que os jornais tanto falavam, sumiu,

coincidindo com a passagem de um meteoro. Ninguém nunca quis associar esses fatos.

Alguns anos depois, andando pela cidade, ainda em busca de pistas do desaparecimento do

filho, a mãe se depara com um mendigo usando uma camisa de Homem-Aranha, igual a que o

filho comprara... “Essas camisas de lojas de departamento são tão comuns”, pensou. O que

essa mãe não percebia era que nunca reparou no filho, e mesmo que ele aparecesse em sua

frente, ela não saberia identificar o jovem...


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Presente de Aniversário

Em meio a conversas idiotas, cervejas baratas e amendoim ele pegou o dinheiro. Por

alguma razão, resolveu pagar a conta e ir embora. Seria destino, muitos diriam. Na verdade

foi azar mesmo. Pegou o eixo anhanguera, na altura da Vila Nova e seguiu rumo ao Terminal

Praça A. Meio alto de cerveja barata e com o estômago revirando de amendoim estragado,

não percebeu que junto a ele, Frederico, o homem da mesa ao lado também pegou o ônibus.

Não era do tipo mal encarado. Ao contrário, usava uma Calvin Klein no peito e andava de

Nike. Com seus vinte e poucos anos, quase trinta, qualquer um julgaria que tinha planos,

comuns de qualquer jovem dessa idade. Mas era um assaltante desde pequeno.

João, ou José, ou Firmino, ou Pedro... o homem de estômago revirado só piorava com

o balançar do ônibus. Passou pelo Lago das Rosas segurando o vômito que era indomável. Ao

descer no Praça A, o moço das marcas o fez tropeçar. Caiu. Frederico tentou ajudar, e como

um vulto, deixou o dinheiro no escondido Nike e levantou o Herivaldo, Creonte ou Gustavo.

Com o dinheiro, o jovem partiu rumo ao Jardim Esperança. Nem quis ver toda a

cerveja e todo amendoim indo de encontro do chão, em uma lambança sem fim. Os demais

passageiros olhavam aquele bêbado e repugnavam. Nojo! No banheiro, limpou-se. Percebeu

que estava sem dinheiro. No lugar um pequeno poema de Drummond, guardou-o.

Meses depois o homem do dinheiro cobrou Joaquim, ou Santiago ou Diego. Ele não

tinha como pagar. A quantia era alta e sequer ele usou. Foi morto pelo agiota quando

atravessava a ponte perto de sua casa, no Bairro de Campinas. O corpo caiu e só foi

encontrado dias depois. Alexandre, esse era seu nome, foi identificado pelo IML. Naquele dia

Goiânia ganhava um presente de aniversário: a marginalidade.


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Conto de amor

Ele correu desesperadamente. Não estava desesperado, mas foi como correu. Largou a

lata de refrigerante sobre a mesa do bar, nem percebeu aquele homem bêbado em sua frente e

quase derrubou o amendoim que estava sobre a mesa dele. Um rapaz com a camisa da Calvin

Klein, que copiava algo de um livro para o guardanapo, estranhou a forma como ele saiu e

fingiu que não era com ele. Saiu sem pagar. Isso tudo devido àquela menina dos olhos azuis

falsos e cabelo preto. Sempre foi apaixonado por ela, mas depois de quase 15 anos sem vê-la,

precisava correr atrás e dizer o que sentia. Foram longos anos de espera, aguardava

ansiosamente esse encontro. Quando a conheceu ela tinha seus 10 anos, e ele sequer sabia o

que era amor. Hoje, mais maduro, entende o que sentiu e ainda sente. Ela nunca soube desse

amor... mas agora era o momento.

Correu de forma desesperada. Parecia cena de filme... os cabelos dela esvoaçavam

com o vento. Ela se debruçou sobre o parapeito do mirante. Tudo estava conforme ele sonhou

a vida toda. Malditos professores de literatura, será que sempre idealizam tudo? Aproximou-

se. Disse um boa noite meio que sussurrando. Teve que repetir, pois nem ele escutou. Ela,

ainda linda, respondeu. Era educada. Era o que sempre sonhou.

Seus 25 anos de beleza ainda reluziam a inocência de outrora. Seus 25 anos de beleza

reluziam a mulher que ela havia tornado. Sem saber mais o que falar, ela tomou a iniciativa.

- Eu te conheço? Me desculpe, mas eu não me lembro de você!

Nessa hora é que ele percebeu que tê-la visto uma única vez e se apaixonado era muita

insanidade, até para os mais românticos.

- Infelizmente não, apesar de essa ser minha vontade há mais de 15 anos. Desde que te vi em

um parquinho, aqui perto...

- Era você o garoto com roupa listrada e cabelo de anjo?


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- Sim... você lembra? Você lembra de mim?

- Lembro sim. Como poderia esquecer do amor da minha vida? Me apaixonei por você aquele

dia também!

Esse era o diálogo que ele queria ouvir. Mas sem coragem e sem querer parecer um

maníaco perseguidor, disse adeus, foi embora... e assim como o refrigerante não pago e

inacabado, ficou sua história de amor.

Ela, de longe, ainda o veria atravessar a rua e se lembraria daquele cabelo loiro

encaracolado. Seus 25 anos de beleza ainda reluziam o primeiro olhar apaixonado que ela

daria para aquele menino.


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Um dia de aniversário

Ele acordou. Não era um dia normal, como qualquer outro. Era o seu aniversário.

Grande coisa! O dia anterior não tinha sido nada bom, perdera o amor da sua vida... Como de

rotina, despertou, abriu o blackout de seu quarto, abriu a janela. Respirou um pouco daquele

dia. Que dia! Foi ao banheiro. Escovou os dentes, vestiu roupas, tomou banho, fez a barba,

penteou o cabelo. Nada foi nessa ordem. Depois de ontem nada mais fazia sentido ao

ultrarromântico. Mas fez tudo o que devia fazer. Ligou o computador. Não nessa ordem.

Abriu seu e-mail, suas redes sociais - Facebook e Twitter - e fechou. 15 minutos.

Sentia-se estranho. Nenhuma razão aparente. Ah, era seu aniversário! Mas essa não

era a razão de sua estranheza. Tinha outra razão, mas não queria revelar logo pela manhã.

Comeria o pão de ontem, se não estivesse cheio de formigas. Preferiu o achocolatado -

Toddynho -. Saiu aquela manhã de casa, como qualquer outra manhã. 10 minutos.

08 minutos. Chegou à escola. Sempre adiantado. Não eram sete ainda. Mas já havia

muito mais que sete na sala dos professores. Vieram dar os parabéns. Não que todos se

lembrassem da data. O mural da escola acusava os aniversariantes do mês, com aqueles

balões coloridos, impressos diretamente do clipart. Afinal, era onde a secretária da escola

sabia trabalhar bem. Word. Mentira! Ela era melhor em adicionar os amigos que nunca

conheceu em suas redes sociais - Orkut, ainda não sabia mexer no Facebook. Entrou no

próprio Orkut apenas quando não era mais por convites e nem em inglês. Não ganhou nenhum

presente especial, até então, não ganharia nenhum, talvez. 12 minutos.

Chegou para dar sua aula. Surpresa! Era um amontoado de adolescentes, ou jovens,

que fizeram uma festinha: João, Mário, Marianazinha, digo, Mariana... Bolo de chocolate,

Coca-Cola, salgadinhos... Seria uma recepção calorosa, se a maioria desses alunos não

quisesse apenas não ter aula nesse dia. Deu certo. Às vezes é bom sair da rotina, usar o que a

vida lhe oferece a seu favor. 54 minutos.


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Os alunos, porém, não escaparam do segundo horário. Ele não tinha o terceiro. Depois

haveria reunião. Chatíssima. Foi cancelada. 3 horas.

Almoçou em um restaurante muito caro. Resolveu gastar aquele dia. Gastou mesmo.

Almoço e compras no shopping. Trocou de celular, comprou um relógio e olha que detestava

relógios, uma carteira, alguns adesivos- pra quê? - roupas... só não usou todo o limite de seu

cartão, pois era ilimitado. O erro já começa por aqui, professor com cartão ilimitado. 4 horas.

No caminho de casa, os familiares ligaram. Iriam fazer uma festinha para ele - uma

reunião. Cada um iria levar algo para comer e beber. Casa cheia, cerca de doze pessoas.

Agora sim, ganhou presentes. Seus pais te deram um novo liquidificador, ele precisava. E

como eu precisava! Ganhou de seu irmão um tablet (único item que não comprou, pois já era

presente anunciado). O presente mais surpreendente foi de um primo já mais velho, Luiz. Ele

não tinha muita noção das coisas. Mudou-se para Goiânia desde a morte de sua mãe, que

deixou uma boa herança a ele. Luiz, o primo mais velho sem noção, deu um livro de

autoajuda para não errar no presente, afinal, para professor de literatura se dá livros de

presente. Livros?! Livros! Livros... O título não lembraria para dizer agora, mas era alguma

coisa referente a mito, mitologia, ensinamento chinês, tailandês e o monge... algo do tipo.

Festa ao fim. Convidados, aos poucos, foram embora. 3 horas.

Ainda restavam algumas horas do dia para limpar toda a bagunça. Começou. Jogou o

liquidificador velho fora, e também a caixa do novo. Odiava guardar caixas e outros

badulaques. Odiava quando diziam "Guarde, vai que um dia precisa?" - Se precisar eu

compro! – Pensava ele - O que não vou é encher minha casa de coisas que não preciso! Jogou

lixo fora, limpou, guardou, lavou... não nessa ordem. Mas fez tudo o que deveria fazer. O que

não sabia o que fazer era com o livro que ganhou...

Iria guardar junto a outros, Guimarães, Drummond, Balzac, Dante, Flaubert,

Machado... Mas um autoajuda não merecia estar ao lado dos grandes, ele sempre retrógrada
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dizia. Não sabia mesmo o que fazer com o livro. Tentou arrumar a prateleira de livros para

achar um espaço, tirou Guimarães e Drummond para colocar ao lado de Machado. Sem muito

espaço, debruçou os livros na janela e aos poucos ia organizando. Não viu seu Drummond

cair, o que deu espaço para guardar o presente. Contudo, sempre retrógrada, achava feio

ganhar presentes e não usá-los. Sem opção, resolveu ler. Virou a noite lendo. Leu o livro

inteiro em uma noite. Após o fim da leitura jogou o livro longe, tão longe que não chegou a

cair perto do Drummond, que ainda permaneceu na calçada até ser encontrado por um jovem

rapaz, que o pegou e levou pra casa. Foi dormir. Caía de sono já. Acordou horas depois.

Estava pronto no outro dia para dar aula. Seguiria a filosofia chinesa, japonesa, holandesa e

do monge... Parecia boa. Não se sentia mais estranho.

Não abriu o blackout, sequer a janela. Estava escuro. Sem perceber, tropeça em algo

que restou da festa do dia anterior. Cai e bate a cabeça no criado mudo e assim permanece,

mudo. Ambos fadados a nada falar. Naquele dia não foi dar aula, não seguiria a filosofia nova

que resolveu adotar. O telefone tocava sem parar aquela manhã. A escola teve que substituí-lo

naquele dia, e no dia seguinte e no outro. Aquela escola sempre teve problemas esse tipo de

professores. Contudo, os mais bem humorados diziam que os professores daquela escola

saiam da vida pra entrar na literatura, em um clichê, talvez uma verdade. Ninguém saberia

dizer.
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Marianazinha

Era a hora de jantar e Marianazinha não descia do quarto. A mãe, depois de chamar

várias e várias vezes, perdeu a paciência. Onde estaria Marianazinha? A janta era a comida

preferida dela, sopa de letrinhas. Cada letrinha com uma cor diferente, menos a cor verde, ela

não gostava... sabia que era de legumes. Teria, ainda, bolo de cenoura com cobertura de

chocolate de sobremesa. Mas passava das nove horas, e nove horas era a hora da janta. Onde

está Marianazinha?

Sua mãe gritava, e gritava pela filha no pé da escada. Escada essa que Marianazinha

sempre brincou como sendo à entrada da casa de princesa dos filmes da Disney. Quando

cresceu um pouco mais, desistiu dessa brincadeira. Cansava subir e descer as escadas sozinha.

Uma coisa estava certa, Marianazinha não parecia estar no quarto, ou não ouvia sua mãe

gritar. Onde estará Marianazinha?

Cansada de gritar, sua mãe subiu as escadas para ir ao quarto ver o que acontecia com

Marianazinha. Eram nove e dez e nada de a filha vir jantar, como pode? Um passo, dois

degraus. Dois passos, quatro degraus. Três passos, cinco degraus. A escada nem era assim, de

princesa... era a imaginação de Marianazinha que a fazia. Aliás, era a imaginação de

Marianazinha que dava àquela casa um tom de azul celeste, misturado ao rosa claro, cor de

edredom preferido da mãe da meninazinha, não dela.

A porta do quarto estava entreaberta, não mais trancada. O quarto, intacto.

Marianazinha ali não estava. Não jantaria em casa de novo, assim como não jantou noite

passada, assim como não jantou semana passada, assim como não jantava há alguns anos.

Marianazinha já era Mariana. E sua mãe, ainda era... bem... ela não tinha imaginação. Era

muito limitada para Marianazinha, digo, Mariana.

Daqui uns tempos, quem sabe, Mariana não volte para casa. Quando a casa tiver mais

degraus, talvez, ou a mente de sua mãe ter um pouco mais de espaço, para poder entender que
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Marianazinha agora era Mariana. Pode ser que Laura esteja mudando, hoje já se deu nome e

sempre deixa a porta entreaberta, caso a filha volte. Amanhã poderá tirar o edredom rosa claro

da cama... Só restariam os degraus... Laura precisa aprender a usar a imaginação e subir mais

alguns.
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Modernista, por opção

Marco Antônio Silveira Salgado era modernista brasileiro. Tinha todo um jeito

vanguardista no modo de falar. Às vezes meio Mário, como conta a história do armário. Ora,

também, acordava meio Bandeira, hasteado e pronto pra duelar. Mas muitos dos dias ele

acordava Tarsila, ao lado de Amaral, seu namorado.

Marco Antônio Silveira Salgado era modernista de colecionar livros literários e obras

artísticas do movimento. Tinha quadros verdadeiros e outros falsificados, afinal, não era tão

rico assim. Até tentou sobreviver de sua literatura, uma época, mas a literatura não dá espaço

para os marginais, assim como a sociedade não dá margem pros marginalizados. O jeito foi

virar office-boy de um escritório de advocacia, o mais perto que chegaria da arte.

Marco Antônio sabia que grandes escritores eram, por essência, “doutores”. Contudo,

percebeu logo cedo que os doutores de antes eram letrados, à medida que os que se dizem

doutores hoje são pragmáticos. "Que fim levava a literatura com tantas leis e pouca

relatividade?" Pensava ele muito sobre o caso, quando nas noites frias ia para a janela do seu

quarto olhar pra lua.

Marco Antônio percebeu que Tarsila não lhe fazia bem socialmente, deixou Amaral.

Encostou o armário na parede, para que não houvesse espaço atrás. Retirou a bandeira do

Brasil da entrada da casa... não procurava mais uma identidade brasileira. Se quer sabia qual

era sua identidade. Deixou sua casa ainda cedo, como deixaria de salvar o mundo e de usar a

literatura...

Marco Antonio logo se formaria em Direito, desistindo do sonho de literaturar as

coisas... esse verbo, caso não existisse na gramática, seria um grande erro de português para

ele agora. Com festa, com bebida e com comida festejou sua formatura ao lado dos colegas de

faculdade, futuros adversários. Se estivesse na literatura, seriam rivais... rivais de estilo,


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linguagem, posição ideológica. Mas, hoje, são apenas adversários de causas terrestres, nada

mais.

Dr. Silveira, como logo seria tratado, passou de office-boy a estagiário e de estagiário

a advogado, assim que passou na OAB. Em pensar que esse menino já deu sua vida para

salvar a de um simples labrador... Em pensar que esse menino queria entrar na ABL, ou, ao

menos, ganhar um prêmio Camões de Literatura... Era advogado credenciado e começava ali

sua carreira promissora.

Sr. Silveira atendeu muitos casos simples, muitos casos complicados, muitos casos.

Logo seria reconhecido pelo seu trabalho. E foi esse reconhecimento que levou seu nome para

a boca do povo e seus preços para o topo da pirâmide. E saber que teve um dia que só quis

reconhecimento...

O problema se deu, um dia, quando o Marquinhos resolveu aparecer. Marquinhos não

sabia ou não se lembrava da existência do Marco Antonio Silveira Salgado, do Marco

Antonio, do Dr. Silveira ou do Sr. Silveira... era simplesmente o Marquinhos que escreveu um

dia em um papel “Serei quem eu sempre quis”, assim que pegou os resultados do exame que

fizera e os guardou na gaveta de um móvel abandonado pelo tempo, que ninguém nunca

encontraria.

O gosto Salgado da lembrança correu todas as personalidades desse modernista.

Quando se deu conta de tudo o que havia acontecido, já com seus 40 anos de vida, percebeu

que nunca, se quer, foi modernista. Era nascido em outra época, sua infância foi longe dos

grandes centros urbanos, sua adolescência foi inocente... o problema foi ter sua juventude em

capital, perdido na cidade cheia de identidades para quem não sabia qual seguir. Por isso foi

vanguardista e se envolveu com tudo e todos. Por isso precisou ganhar dinheiro. Por isso

virou advogado. Por isso virou homem de respeito. Por isso perdeu o respeito de si.
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Marquinhos foi cruel. Deixou o Sr. Silveira transtornado. Ele pensou em se matar de

forma clássica, mas lembrou-se que se um dia foi artista, foi herói, foi moderno, foi

romântico... Que fim tomar? Que fim levar? Precisava mesmo de um fim? Sentou em sua

poltrona. Olhou para a sala e se sentiu como mais um elemento daquele ambiente. Antes ele

destoava, agora é parte inerente? Mudou.

A sala que tinha uma mesa bonita e estante com livros deu lugar a um quadro

esquecido no porão. Os livros voltaram a se espalhar pela casa toda. Na sala, agora, poderia se

encontrar não apenas livros de Direito Civil, mas A Dama das Camélias, e claro, Paulicéia

Desvairada e Estrela da Manhã. DVD’s de super-heróis faziam volume nas estantes. O sofá,

verde musgo, deu lugar a estampas e cores vivas. A parede branca se viu repleta de fotos e

cartazes de filmes e desenhos. O ambiente era outro, sem dúvida.

Ligou para o escritório e disse que não atenderia mais ninguém aquele dia. Nem mais

nos dias seguintes. A secretária estranhou, mas não questionou o chefe. O escritório se

manteria, mas ele não iria mais advogar. Pegou velhos escritos e sentou no tapete da sala

nova. Leu. Chorou feito criança, por horas. Deu-se conta que estava só, a doença terminar que

ele esperava era a solidão. Marquinhos foi embora. Era apenas o Sr. Silveira consigo mesmo.

Ele agora destoava da sala, mas se sentia como parte dela. Não era mais uma moldura, talvez

um jato de tinta que espirrou, sem querer, na parede.

Levantou-se do chão, ainda era dia. Pela janela pode ver um cometa que passava pelo

céu da cidade, antes que tivesse um infarto súbito. Morreu debruçado à janela, sorridente...

Por alguma razão que eu não saberia explicar, foi possível vê-lo saindo do apartamento dele,

conversando com dois homens... Seu corpo foi encontrado pela vizinha, Laura, solitária desde

o sumiço da filha. Todo sábado ela levava um bolo de cenoura com cobertura de chocolate

para o Sr. Silveira, era o predileto de sua filha, Marianazinha, e também o do Sr. Silveira. Ela

avisou aos bombeiros o ocorrido, mas escondeu o papel que Silveira segurava. Era um
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poema... Somente essa vizinha poderia nos contar sobre o poema, mas tenho certeza que ela

não faria isso. Talvez ali esteja o segredo da vida, da morte ou da imaginação de Laura.
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Distúrbio

Era um dia quente, como quase todos aqueles que se iniciaram já desde janeiro. Os

jornais estampavam uma notícia sobre um louco que usava máscaras e queria ser chamado de

super-herói. Refletindo sobre isso e em uma discussão idiota entre seu Ego e Super Ego,

ambos discutiam sobre o porquê não existirem super-heróis brasileiros.

- É impossível que apareça algum herói genuinamente brasileiro. Imagine só! - Baforava meu

ego!

- Mas por qual razão você assim pensa? O Brasil é, sem dúvida, um país que precisa

urgentemente de super-heróis. Acho muito justo que apareçam pessoas assim.

- Não nego que precise, mas vamos raciocinar aqui comigo: Batman e O Homem de Ferro são

os heróis mais ricos!

- Razão pela qual seria interessante que algum bilionário pudesse se tornasse um deles!

- Tá de zuação? Das duas uma: Ou seriam corrompidos pelo sistema, aliando-se ao Coringa e

afins ou seriam os primeiros a serem sequestrados, vivendo depois disso em qualquer outro

país mais tranquilo. Digo mais, se fosse pro Batman Brasileiro ter alguma síndrome seria de

que? De morcegos eu tenho certeza que não é!

- Ok, meu caro Ego, mas... quanto ao Homem-Aranha?

- Esse é outro pobrinho que não se daria bem! Desde quando fotógrafo ganha bem no Brasil

pra se sustentar? Sem contar que se ele fosse geneticamente modificado, iria ganhar dinheiro

com isso! Menino pobre que descobre que é super poderoso ia ficar escondido salvando

vidas? Faça-me rir!

- Mas temos tantos outros... Super Homem! Pronto, temos um com princípios. Sem contar que

o sol no Brasil faria com que ele ficasse ainda mais forte!

- Sua criptonita seria a poluição! Nem nós humanos conseguimos viver com nosso lixo,

imagine ele?
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- Deixe-me pensar, Ego, deixe-me pensar...

- Deixo!

- Temos ainda a Mulher Maravilha e tantas mulheres...

- Gostosas sendo heroínas? haha...

A conversa continuaria nesse nível, se o cérebro daquele rapaz não fundisse ao ver sob

a mesa de uma lanchonete um homem tomando uma Coca-Cola com gelo e limão.
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Alexandre Pessoa

Era maléfico, talvez tóxico. Mas o que importava. Ele bebia compulsivamente, como

água. Enfiou dentro da cabeça que deveria morrer. Bebeu. Aquele dia foi, quem sabe, um dos

que mais bebeu na vida. Exceto quando seu gato morreu, quando perdeu sua bola de futebol

predileta ou quando encheu a cara para afogar as mágoas da eliminação da seleção brasileira

na copa de 2010. Quando ia para sua trilhonésima dose o telefone tocou. Não o dele, o do bar.

Era um boteco de esquina requintado, tinha um telefone da época de minha avó, aqueles que

você gira cada número, demorando bons minutos. Urgência... um grito seria mais rápido.

O fato é que não era seu telefone, mas a ligação escandalosa, que se ouviu do outro

lado da rua, era para ele.

- Seu Alexandre tá qui sim, péra qui vô chamá ele.

Alexandre Alvacena odiava seu nome. Era nome de gente velha e feia, pensava ele

toda vez que se olhava no espelho. Ainda agradecia ser esse, pois poderia se chamar

Eustáquio, já pensou que desencanto de vida seria se seu nome fosse Eustáquio? Pensava em

mudar o nome um dia...

- Ô Seu Alexande, é procê qui ó!

Estúpido telefone, pensou em primeiro momento, era a última dose daquele dia, pois

seu dinheiro havia chegado ao fim, como sua vida. Não gostava de pendurar, como muitos

faziam. Ia ao boteco, na verdade, mais pelo ambiente. Gostava daquele nome estranho na

parede mofada, daquelas cadeiras amassadas, daquele forró-brega que tocava todos os dias e

dos bêbados que levantavam e dançavam. Gostava de ver aquelas prostitutas gordas e que

faziam programa por um copo de cerveja. Muitas vezes ganhavam uma garrafa inteira, mas

nenhum homem ou mulher tinha coragem de encarar. Eram feias. Exceto aqueles velhos com

cheiro de cachaça e nome velho. Não era seu caso, apesar do nome velho, nunca teve cheiro

de cachaça.
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Ia ao boteco pelas cenas, situação, pela visão de mundo que tinha ali. Achava tudo

pitoresco. Na verdade, nunca foi cliente assíduo de nenhum outro lugar, exceto deste boteco.

Foi nele que bebeu quando seu gato morreu, quando perdeu sua bola de futebol predileta e

quando a seleção brasileira foi eliminada na copa de 2010. Mentira, a copa de 2010 mereceu

outro bar, afinal, era a Copa do Mundo.

Pediu desculpas ao telefone, mentalmente. Ele não tinha culpa por mais um término de

seus relacionamentos. Aproveitou para ser politicamente correto e lembrou-se de pedir

desculpas, ainda mentalmente, ao errado português da dona do boteco. Odiava ter que aturar

tanto erro de português tendo que ouvir dizer que era uma "variação linguística". Percebeu

que aquela esquina nunca fora sua. Admirava beber sua Coca-Cola ali, observando toda a

cena, mas gostava apenas da Coca-Cola com gelo e limão e da visão em si. Lembrou-se do

dia que tomou seu porre de Coca na morte do gato que chamava de Pato, já estava velho,

precisa realmente partir. Ainda, recordou que ele foi o responsável por jogar a bola fora,

nunca quis aquela bola, a tinha por razões que não vale a pena aqui citar. E mais, lembrou que

foi a outro bar ver o Brasil perder por que aquele ritual de morte da seleção merecia um lugar

adequado com pessoas adequadas. Bebeu Coca como desculpa para tudo. Fazia mal a ele,

talvez tóxica para seu corpo, porém bebia compulsivamente. O gosto doce era magnífico.

Chegou ao telefone, colocou-o de volta ao gancho. Deixou dez reais sobre a mesa e

caíram 15 centavos sob o balcão. Não quis troco, não quis as moedas. Saiu lembrando que

não se chamava Alexandre à toa, era grande. Talvez o que te intrigava era que queria ser

chamado de Fernando, para não apenas ser grande, mas ser uma grande pessoa. Saiu correndo

e nunca mais voltou àquele bar. Nunca se teve mais notícias de Alexandre...
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Leveza

E simplesmente parou. Nada ali fazia muito sentido... sentido algum, se a verdade quer

saber. Já havia andado por outros lugares naquele mesmo dia. Pensava muito e não sabia o

que fazer. Passeou por livrarias, fazia bem a ele. Passeou por lojas de doces, fazia bem a ele.

Passeou, fazia bem. Mas não fez como deveria fazer. Nos bancos que ficavam defrontes ao

grande vão do último shopping qual foi naquele dia, sentou. Estava no terceiro andar. Um

parapeito de vidro... Altura de sua cintura, mais ou menos, e um pequeno espaço entre o chão

e seu início.

Sentado, observava tudo. Nem todos o observavam... ninguém o via, se a verdade quer

saber. No segundo piso, dois jovens estavam em frente a uma joalheria conversando... no

primeiro andar os seguranças do shopping levavam um outro rapaz, que parecia não entender

o que acontecia... observava apenas, sem que ninguém o reparasse. Lá do alto avistou uma

loja Sentiu-se próximo dela... quis entrar, era apenas um pulo. E pulou. Sentiu-se livre...

leve... voava. Mas tinha destino certo. A morte.

Foi interrompido quando ouviu crianças se aproximando. Acordou da ilusão. Uma

falava para a outra:

- Você tem coragem de pular?

- Eu não!

- Acho que só o Batman poderia pular...

- É, também acho.

Na mesma hora desistiu da insana ilusão e percebeu que ele não era o Batman. Não

poderia pular. Levantou com seu livro que propunha "Seis propostas para o novo milênio",

entre elas, a leveza. Decidiu ser leve de outras formas. Saiu daquele lugar pensando que não

era um super-herói.
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Aliança

O sonho dele era bem simples: queria usar uma aliança. Sabe aquela sensação que

todo mundo tem ou já usou... era justamente esse tipo de sensação que Caio tinha. O Davi

usava uma há anos, Maria adorava mostrar sua aliança com o nome dos dois. Joana, assim

que começou seu namoro ganhou uma linda aliança de Karen. Até Godofredo tinha uma que

ganhou recentemente do namorado. Mas Caio não tinha. Nunca teve. Até já namorou, mas

nenhum de seus namoros mereceu uma aliança.

Para se ter uma algo desse tipo, era preciso, primeiramente, que se tivesse uma

namorada, ou um namorado. Ele nem fazia questão, pois entendia que o amor não escolhe por

gênero, mas por razões que a própria razão desconhece.

Ninguém nunca entendeu, de fato, por que Caio nunca teve muitos namoros (foram

apenas três que duraram três meses). Era um rapaz classudo, bonitão, do tipo que qualquer

pessoa se interessaria. Não era nenhum galã de cinema, estava longe disso. Mas tinha uma

beleza que superava esses estereótipos clichês e cansativos.

Seu namoro com Fernanda não tinha vingado. Com Júlio vingou, mas logo secou, pois

esse não valia muita coisa. Com Ana Bela vingou, não secou, porém logo se cansaram

daquilo. Com Fernanda foram três meses pra perceber que não tinha dado certo. Já com Júlio

foram três meses pensando que tinha dado certo. Com Ana Bela foram três meses quentes, tão

quentes que no último já tinha perdido a graça.

Tinha certa inveja das alianças nos dedos de seus amigos. Lembra até hoje do dia que

foi com Davi escolher a aliança de Maria... ficou todo entusiasmado. Quando Joana mostrou a

dela, seus olhos pareciam ver diamantes (e eram!). Com Godofredo pensou: até com esse

nome ele conseguiu uma aliança. Ele não era tão amigo de Godofredo como dos outros dois.

Sempre desconfiou que Godô fosse meio frio com ele.


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E o tempo passou. Davi havia se casado com Maria. Tivera dois filhos e Caio era

padrinho do primeiro. Joana e Karen adotaram uma criança da Etiópia e outra do Egito, eram

muito ricas e ligadas em causas sociais, além de ser modinha adotar nessa época. Caio ainda

não tinha conquistado nenhuma aliança. Teve mais dois namoros, de dois meses cada.

Percebeu um dia que sua vida não era para viver ao lado de ninguém. Viveria só

eternamente. Foi nesse dia que entendeu que se ele, astuto, bonito, bom tipo e com nome

comum não tinha ninguém. Godofredo, por ter um nome feio, também não poderia ter.

Levantou cedo no dia seguinte e, sem piedade, matou Godofredo, que dormia com namorado.

Lembrou o porquê não gostava muito do amigo, ele havia roubado a pessoa que mais amava.

Matou o namorado também. O crime nunca foi solucionado pela polícia.

Voltando para casa, depois de um longo banho na casa de Godô, encontrou em sua

porta Ana Bela, ela como sempre, bela como sempre. Entraram. Conversaram. Entenderam-

se. Perceberam que deviam se juntar. Não se amavam muito, mas alimentavam um para com

o outro um sentimento diferente. Sabiam transar e terem prazer juntos. Vai que nasce amor?

O tempo passou. Davi e Maria tiveram sua primeira menina. Joana e Karen se

mudaram para Etiópia, ou para o Egito, um desses países do outro lado do atlântico sul. Eram

muito ligadas nessas causas sociais, mas já não tão ricas. O fantasma de Godofredo tentava,

toda noite, atormentar Caio, que ria dele quando aparecia. Caio ainda não tinha aliança, Ana

Bela não queria.

Em um passeio no shopping encontra Júlio, que observava alianças na vitrine de uma

loja. Conversaram. Se entenderiam. Júlio queria mudar de vida, cansou de não ser um bom

rapaz. Queria alguém para casar. Pediu Caio em casamento. Ele recusou. Júlio então disse que

estava falando sério. Entrou na primeira loja e comprou uma aliança. Caio aceitou. Fugiram.

Mudaram de vida. O sonho dele era bem simples: queria usar uma aliança.

Meridiano Alves
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Trabalhava arduamente todos os dias. Chovia, fazia sol, fazia sol chovendo... lá estava

ele trabalhando. Era cansativo, mas não se abatia fácil. Talvez por que fosse só. Sempre foi

um menino sozinho. Desde que teve que vender balas para se sustentar. Às vezes balas doces,

outras apenas embaladas em papel plástico colorido. Só teve onde morar quando atingiu a

maioridade, pois pode alugar algo decente. Pagou quase um ano para o proprietário e fez um

contrato no seu nome: Merediano Alves de Albuquerque. Sobrenome de rico e nome de mãe

criativa demais.

Lembro-me de ver Merediano, uma vez qualquer, me vendendo balinhas de caramelo,

na porta do colégio. Setor Bueno parecia render para ele, pois sempre estava por ali. Talvez

por ter tanta gente bem sucedida... ou esnobe, como costumava dizer. Disse-me isso, anos

depois, quando o encontrei vendendo CD's em um bar. Ou será que foi quando vendia flores

no restaurante? Bem, eu sei que me disse.

Em um desses encontros, que não me pareciam casuais, pedi que sentasse e tomasse

uma Coca-Cola comigo. Foi nesse dia que soube toda sua história de vida. Nasceu pobre,

cresceu de orfanato em orfanato, até que fugiu e viveu nas ruas. Juntou o dinheiro e alugou

um barracão. Dizem que a cerveja faz a verdade sair, mas a pobreza também.

Meridiano era homem decente. Ganhou da nova namorada, uma menina rica que fazia

medicina na Universidade Pública, uma corrente de ouro. Recusou, a princípio, por ser,

naquele tempo, apenas balconista de uma loja de materiais elétricos. Com jeitinho, ela o fez

aceitar. Só usava quando ia vê-la... Quando terminou com a namorada, pela traição dela com

um playboy do Bueno, devolveu a correntinha. Ela aceitou de primeira e deu ao novo

namorado.

Tenho dó desse rapaz, trabalhador, esforçado, honesto, mas parece que nada que fazia

ia pra frente. Dava-se mal no amor, no trabalho e até loteria. Chegou a ganhar na Mega-Sena,
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mas perdeu o bilhete em uma enxurrada na Marginal Cascavel. Foi atropelado duas vezes, em

uma delas perdeu a bicicleta, que o fez perder o emprego.

Trabalhava muito, Meridiano, mas nada realmente dava certo em sua vida. Seu grande

sonho de constituir família se esvaía. Pensou em abandonar tudo e ir pra São Paulo, como

muita gente faz, mas pensou melhor e achou mais justo passar dificuldade onde já conhecia

do que arriscar morrer de fome e ser jogado no Tietê.

Um dia, passeando no shopping, uma das suas distrações favoritas, foi barrado e

seguiu com os seguranças para uma salinha reservada. Assustou-se. Nunca havia feito nada de

errado. As balinhas em papel de plástico eram balinhas caseiras, que comprava de uma

senhora... Os CD's eram produção independente, nenhuma falsificação... Não entendeu nada.

Por alguma razão do destino, afinal, sua vida mudaria. Foi chamado nesta sala por um

motivo que transformaria o rumo de sua vida. Um olheiro, desses de reality show, achou que

ele era a pessoa certa pra um programa. Ganhou um milhão e meio de reais. Passou três meses

no programa. Não foi fácil. Mas ia sair, ia ficar milionário...

Mas, quem nasce pra camponês, morre camponês, já diziam esses ditados alheios.

Assim que recebeu a notícia da vitória do programa, o seu concorrente, incrédulo com o

resultado, o esfaqueou. Morreu ao vivo, enquanto a música dizia que tem que ir até o final se

quiser vencer. Balela! Foi até o final, mas não venceu na vida.
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Irmãos Souza e Silva

Era a noite esperada. Depois de tantos anos ali, passivamente observando tudo, chegou

a noite esperada. Ele, ansioso, mas nada demonstrava. Ela, talvez nada sabia. De algum modo

ele conseguiu o convite para a tal festa no tal palacete. Um salão nobre na entrada, escadas

que partiam do salão para o andar superior, corredores com quadros de famosos pintores,

cortinas de seda... tudo estava como por ela planejado, a casa cheia. Talvez ela nem soubesse

da presença dele, logo ele se fez presente. Aproximou-se dela, um andar leve, um sorriso

penetrante e um olhar indefeso. Esticou a mão para cumprimentar a anfitriã. Solícita, ela

retribuiu o aperto de mãos. Não eram próximos para um abraço em plena multidão. Ele fez

uma referência de despedida e voltou à festa, cumprimentou outros muitos, estava na alta

sociedade naquele momento.

Vestidos elegantes e bons ternos europeus, nem todos italianos, marcavam o centro do

salão. Ela, com seu vestido meio bege, se impunha diante as outras. Ele, com um terno que

sobrou-lhe de seu avô, passava despercebido entre os demais convidados. Ela dançava, ora

com um duque, ora com um príncipe. Ele a observava. Esbarrou em uma copeira que

derramou um champanhe no paletó. Assustada, disse que limparia, não queria ser despedida.

Como estavam no canto do salão, ninguém reparou. Foram à cozinha para secar o molhado da

roupa. Medrosa, pediu para que ninguém soubesse, todos ali foram contratados

exclusivamente para a festa. Calmo, disse que a copeira que não se preocupasse, pegou a mão

da dama e a tirou para dançar. Ali mesmo na cozinha. Ele precisava dançar. Ela precisava se

distrair. Depois dessa cena não se viu mais ele na festa, não até a metade para o fim.

O salão já estava cheio o suficiente para os parabéns. Outra copeira trouxe o bolo, era

melhor. Como de praxe de nobres, ela deveria fazer um discurso, não muito breve, não muito

longo. Não resistiu e optou pelo mais demorado discurso que já fez. Seu jeito a denunciava,

faria sempre o maior discurso. No salão as pessoas se misturavam e não se via um rosto que
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pudesse dizer quem era. Estavam todos ali em baixo. Esperava-se uma surpresa nessa hora.

Ela apareceu. Do teto descia um lindo pôster que seus pais e irmão o fizeram. Seu irmão,

Otávio, não estava presente, pois viajava a negócios. Mas o presente era deslumbrante.

Aquela foto escondia todo o andar de cima de tão grande. Animada com aquilo tudo, se

prolongou no discurso.

Foram os 10 minutos mais longos da vida de muitos ali. Parabéns cantado, bolo

repartido, mais música, mais bebida, mais noite e no fim, todos se foram. Longas 8 horas de

festa. Depois disso tudo, os pais desceram para o quarto de empregados, não precisava mais

fingir que os amava. Eles aceitavam as condições, ensinaram aos filhos tudo o que puderam e

agora dependiam deles para tudo e até os ajudavam, como nessa noite tão especial para todos.

As copeiras foram dormir, exceto a desastrada, que ficou por arrumar a casa a pedido da

aniversariante. Esta, cansada de sua festa, subiu, e ele, que sumiu durante boa parte da festa,

já a esperava no quarto. Abriu a porta. Encontrou seu presente: o quarto estava revestido de

todos os objetos valiosos da casa de boa parte dos convidados. Além de joias e outros bens

que renderiam um bom dinheiro. Riram muito os dois. Madalena agradeceu aos céus por

Otávio ter deixado Júlio de lado. Otávio, por sua vez, tirou sua fantasia de menino pobre, e

tão nobre quanto sua irmã, ficou irreconhecível. Ele, agora, podia sair pelos fundos e entrar

pela porta da frente... afinal, acabara de chegar de uma longa viagem de negócios. A copeira

desastrada quase não o deixaria entrar, pois não o conhecia.

No dia seguinte não houve muitas queixas de furto ou roubos em nenhum lugar. Mas o

comentário de que alguns amigos foram assaltados saiu nas colunas sociais. Algumas esposas

até notaram o sumiço de algumas joias, mas ficaram receosas em denunciar o roubo, afinal era

presente de amante.

No fim da semana, só ouviram-se boatos da boa festa que foi oferecida no Setor

Bueno. "A festa do ano", como algumas colunas sociais chamaram. "Ser rico tem suas
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vantagens", apontara a colunista do principal jornal da cidade. Porém, o mais importante de

tudo foi que os irmãos Souza e Silva agora tinham mais dinheiro para se manter durante um

tempo. Até o próximo plano de festa.


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Destoado do tempo

Já se ouvia aquela música estrondosa de longe. O som era tão alto que até abafava a

música que vinha de um certo palacete no Setor Bueno. Até fora convidado, mas aquelas

festas não faziam o seu estilo. Era Sábado. Era noite de sábado. Luiz vinha em seu carro

passado de dez anos de uso, para não pagar imposto, contudo era conservado. O carro e ele.

Meia idade, mas aparentava seus 30, no máximo. Estilo garotão ainda, vivia sozinho desde

que sua mãe faleceu, deixando uma boa fortuna a ele. Logo, ao receber, resolveu se mudar

para região metropolitana de Goiânia. Seu dinheiro daria pra viver até morrer, caso ficasse

solteiro para o resto da vida. E, assim decidiu fazer. Não deu muito certo por obra do destino

uma coisa, um filho ao acaso. Ele aparentando seus 30, nem se podia dizer que aquele menino

de 20, com cara de adolescente era seu filho. Nem ele podia dizer, afinal, do menino só

conhecia o número da conta bancária qual depositava todo mês a pensão, obrigado pela

justiça. E só a conta do menino, pois ele mesmo não tinha, coisas de pessoas do interior.

A noite estava tranquila, com poucos carros na rua, uma lua que brilhou no céu apenas

há 20 anos, quando se deitou com aquela mulher de vestido de velho, a mãe do menino,

menino que ele sustenta. Único menino que ela manteve, devido a pensão, pois os outros teve

que vender, seja por um vestido, seja por drogas... Esse ela teve que aturar! Mas isso já não

mais importa. É outra história, quem sabe...

No decorrer dos anos, que foram passando apenas para os outros, Luiz foi para cama

com outras mulheres - loiras, morenas, ruivas - foi pra cama com outros homens - loiros,

morenos, ruivos - e para sair da rotina frequentava algumas casas de massagem onde podia ir

pra cama com homens e mulheres - loiros e loiras, morenos e morenas, ruivos e ruivas...

Ele não tinha mais pudor depois que sua mãe falecera, mas era comedido por ainda ter

primos na cidade... Nem tanto... Era um homem de todos. Gastou muito com programas de

televisão de canal fechado, gastou muito com programas realizados por profissionais do sexo.
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Eram muitos seus ideais... era pouca sua inteligência. Era tão pouca que não sabia diferenciar

literatura de verdade de livros de autoajuda!

A porta da boate estava cheia. Mas como em qualquer lugar do mundo esnobe dessa

sociedade, o dinheiro abre portas. Na capital do centro do país isso não muda. Era o que

chama hoje de VIP, quase que alguém importante nos olhos dos invejosos que o viram furar

fila. Alguns ainda tentaram reclamar. Beatriz conversaria com suas amigas sobre o descaso,

mas não teria muita importância, pois ninguém daria ouvido. Passou, entrou direto ao

camarote e já pediu um energético. Precisava estar animado. Em dois dias iria conhecer a

cidade maravilhosa. Sim, com tanto dinheiro ainda não havia pensado em viajar, exceto para

as fazendas no interior do estado que comprou. Ainda era muito roceiro, também.

Um energético foi o suficiente para animar. Tocava uma modinha qualquer, dessas

músicas barulhentas que toca em qualquer boate que atraia os jovens, e também os senhores

de meia idade que se acham jovens. Uma menininha, vestidinho colado, pele clara e nada

delicada se insinuava para ele, à medida que fingia dançar. Dançavam colados, rosto a rosto,

pele a pele, mãos nas bundas. De provocante a cena ficou constrangedora. Ele mesmo deu um

perdido na menina, melhor dizendo, dispensou-a. Um garoto no canto sentado sozinho e

bebendo um Ice chamou sua atenção. Ia aproximar quando a menina que antes o provocava

sentou com o rapaz do Ice.

Pensou, sabia que podia ser uma chance de puxar papo com ele, já que ela ali estava.

Nem precisou, a menina foi até ele e o arrastou até a mesa.

- Meu amigo gostou de você... - antes que ele pudesse responder ela já completava - e eu

também gostei. Gostamos de homens maduros.

Ele não gostou de ser identificado como homem mais velho, ainda era garotão. Mas os

dois olhavam de um jeito que prendia seu comportamento de negação, ainda que houvesse. O

rapaz continuava a beber seu Ice, tímido, parecia um adolescente, talvez um adolescente
39

playboy, percebia pela blusa Nike que vestia. Mas ali estava cheio de playboys, desde homens

maduros metidos a garotões a jovens com camisas de Calvin Klein.

- Quer mais um Ice? - o garotão ofereceu para socializar mais rápido.

- Podemos tomar em outro lugar, mais calmo...

O recado estava dado. Meia hora de festa e ele já laçava sua vítima da noite. Ou suas

vítimas. O rapaz do Ice e a moça provocante. Saíram os três. Ele, todo pomposo, os chamou

pra sua casa, em seu Vectra GT.

- É o mais simples - gabava-se ele.

No carro ele dirigia e via os dois se beijando atrás.

- Eu também quero participar da brincadeira - sorria com canto de boa.

Pararam na primeira loja de conveniência que estava aberta, desceram os homens para

comprar a bebida. 20 garrafas, decidiram por levar uma vodca e um refrigerante de limão

também. O balconista pode ver quando o garotão, no caminho, passou a mão na bunda do

rapaz, que levava a bebida. Fingiu que nada viu e logo fechou o estabelecimento, pois pensou

ter visto um assaltante observando para dentro da loja.

No banco de trás, a provocadora retocava a maquilagem. Queria ser ainda mais

provocante. Algumas voltas na cidade e chegaram à casa do homem. Carro na garagem.

Desceu os três. Ela encosta o garotão na parede, o rapaz faz com a moça um sanduíche. Mãos

desconhecidas passam pelos três corpos. O rapaz pega a bebida e a chave da casa. Entra e vai

a cozinha preparar os drinks. A moça fica no sofá com o garoto mais velho.

- Três copos de vodca com limão e gelo.

O rapaz serve a moça e ao homem da casa. Brindam. O homem tenta beijar o rapaz,

que se esquiva. Ainda consegue passar a mão no corpo do rapaz. Bebem mais. Ele tenta
40

novamente. Mas dessa vez cai tonto. Vodca é muito forte para pessoas fracas, ignorantes e de

pouca inteligência.

Quando Luiz acordou, no dia seguinte, não sabia onde estava. Sua cama era o chão da

sala, que vazia estava. Os quartos eram cômodos fantasmas, exceto o quarto de hóspedes, que

havia panos rasgados. Guardar dinheiro em colchão nunca foi uma boa ideia. Pensou em

chamar a polícia, mas o que dizer? Havia sido roubado por uma garota e um menino que não

conhecia e levou para sua casa?

Nu, como os jovens o deixaram, foi ao jardim verificar se ao menos as roupas sujas

estavam ainda na máquina, porém não havia mais máquina. Sem lenço e sem documento.

Sem roupa e sem dinheiro. Voltava a ser quem nunca deixou de ser, um pouco pior agora. No

espelho que ficou na sala ele começava a perceber que a velhice começou a chegar. 30 anos

passou em questão de segundos. Antes um garotão, agora um homem de meia idade, tapeado

por uma garota e um rapaz que tinha idade para ser o seu filho.
41

Destoado do tempo [2]

Era uma noite como outra qualquer. Sentado em um banco na rua do lazer. Não sei por

que se chamava assim, pois o único lazer ali eram aqueles balanços quebrados, manchados de

porra e cercado por camisinhas. O lazer era das putas, ou as putas proporcionavam o lazer.

Não me pergunte o porquê eu estava ali. Nem eu sei responder. Poderia ser confundido com

algum garoto de programa ou assaltante...

Ali passavam putas diversas com diversos tipos de pessoas. Acompanhavam elas,

homens de meia idade, trabalhadores no final do expediente, mulheres decididas, jovens no

despertar da puberdade, jovens querendo experimentar outras coisas... Eu, sentado no banco

que ainda estava menos sujo, observava todo o movimento.

O dia estava meio frio, ou eu estava me sentindo assim. Acho que minha regata não

colaborava, ainda mais com aqueles buracos que nela existia há anos. Minha mão magra,

quase sem gordura ajudava o frio a dilacerar meu corpo. A cada hora outras diferentes putas,

passavam com outros diferentes clientes. Cada um com sua vida e sua forma de fugir de sua

realidade.

As últimas pessoas que avistei naquele dia foram um senhor de meia idade e um

jovem descendo de um carro, no outro lado da rua, entrando em uma loja de conveniência e

depois saíram com bebidas. Minha mão trêmula e minha boca seca já sangravam muito até

que não aguentei mais observar a vida dos outros. Era hora do meu flash de vida no momento

de morrer, quando passa um filme em sua cabeça para que possa se libertar. Não tive tempo

para ver meu filme até o fim... a luz que todos falam apareceu rapidamente, ao lado de

pessoas de branco. Da sarjeta ao hospital público... Alguém ainda acreditava em mim.


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Larissa Já vai Tarde.

Larissa já vai tarde. Já passava das 3 da manhã e somente agora resolveu seguir

adiante. Ficou parada ali por horas e horas, enfim resolveu ir em frente. Observei-a desde as

quando chegou, por volta das dez da noite. Ainda havia movimento na rua, carros passavam

com seus faróis que cegavam qualquer um. Sentada ali, lia um livro, calmamente, como se

aquele instante fosse tão precioso que não pudesse se mexer, sair, se quer olhar para o lado.

Lia o livro saboreando cada página.

Quando sentou, todos pensavam que estava a esperar por algo, mas logo arrumou sua

mochila vermelha, sacou um livro e começou sua leitura. As pessoas passavam e não a

observavam, era invisível, exceto para um senhor que perguntou as horas, já quase 11 da

noite, único momento em que ela deixou seu livro de lado. Contudo voltou em seguida para

sua atenta leitura.

Larissa já vai tarde. Sem medo e sem preocupação, ela se foi tarde da noite. Depois de

ter sentido sua leitura que se prolongou durante todo esse intervalo, ela se foi. Leitura fixa,

onde corria os olhos cuidadosamente por cada palavra que ali surgia. Pessoas sentavam ao seu

lado a todo o momento, ela não se importava, penso que nem as viam. Uma vez um garoto

com seu irmão, quase uma da manhã passou ali e deixou cair uma moeda, que andou até o pé

de Larissa. Ela se abaixou para pegar a moeda sem tirar os olhos do livro e entregou ao

garotinho. Se disser que viu o rosto dos meninos é mentira, sua leitura era hipnótica.

Assim, depois das 3 da manhã, ela escreve algo no livro e o deixa sobre o banco

branco em que sentava. Levanta-se, segue seu curso. Larissa já vai tarde. Já vai tarde para um

destino que não conhecia. E em minha curiosidade, desci, e fui ao banco ver o livro. E assim

começava minha leitura. Eu já cheguei tarde, passava das três quando cheguei...
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Ela e Eu

Seu perfume exalava perto de mim. Ela estava ali, alguns metros adiante, mas seu

cheiro em volta de mim. Poderia parar esse instante só pra me desdobrar em cada aroma que

aquela menina me transmitia. Doce, sereno, fugaz, voraz, eram inúmeras as sensações e

nenhuma poderia descrever precisamente o que estava sentindo. Quem era aquela garota do

parque?

Parada, sentada no banco de madeira pintado de branco e já envelhecido pelo tempo e

chuva, ficou esses centésimos de segundos em que eu a observava. O vento levemente

balançava seu cabelo, com todo cuidado. Parece que ele sabia: ela é uma semideusa, ou quase

isso. O sol tocava sua pele tão sutilmente que não percebia que essa tarde estava acima do

normal. Em seus dedos finos a delicadeza de quem nunca havia trabalhado, dondoca, filha

criada com todos os mimos que uma moça rica pode ter.

Esses dois minutos em que parei, o mundo a minha volta tomou sua cor, o céu azul

ficou, e o verde tomava toda a grama. A sombra das árvores ficou mais deliciosa, e o sabor

das maçãs menos envenenadas. Que moça é essa que me tomou em segundos, prendeu em

minutos e se assim ficar, entrarei em seu abismo.

Será que ela espera alguém? Um namorado, amigo, alguém especial... Um rapaz de

cabelos encaracolados, que havia chegado esbaforido depois de tanto correr aproximou-se.

Tão bela, deveria ter namorado, evidentemente. Contudo, ele pouco demorou e saiu. Não

pode ser nada dela, pois saiu muito rápido... talvez pediu uma informação, quem sabe!

Se ela, linda como é, não esperava por ele, só pode esperar por mim! Aproximei.

Sentei no banco ao lado. O homem que estava sentado no banco estava com uma leitura tão

concentrada que não me viu ao seu lado.


44

Dali, daquele lugar, pude perceber que quando cruzava as pernas com toda a

delicadeza de mulher ingênua pairava no ar. Iria falar com ela, até que um senhor apareceu.

- Aqui está o dinheiro.

- O programa será pra quantos?

- São dois homens e uma mulher, e devem topar de tudo.

- Está bem, nos vemos em instantes.

De bela a vadia. Náuseas me tomavam. Sua imagem não era mais a mesma, sua

sutileza se transformou em qualquer outra coisa, exceto ingenuidade. Levantei e fui embora.

Sem perceber esbarrei no homem ao meu lado, atrapalhando sua leitura. O senhor, então,

voltou, eu nem quis escutar o resto da conversa.

- O programa precisa estrear logo Luana, então providencie logo esses apresentadores, sua

função como produtora é essa.

- Ok. Estou com alguns nomes para entrevista, inclusive começam daqui a pouco, até mais.
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Luana

- Desculpe incomodar você. Imagino que esteja com pressa. Indo à faculdade, talvez. Mas eu

preciso conversar com você, será que me dá uns minutos?

Foi assim que ele começou a conversa com aquela menina de olhos castanhos e pele

clara. Estavam em uma praça, no centro daquela metrópole, ao menos para ele se tratava de

uma. Ela sem reação sussurrou um sim, que quase não ouviu, mas perceptível pela expressão

facial, um pouco assustada. Já estava de saída, realmente, quando ele a abordou.

- Não se assuste, eu peço. - realmente não havia razão, era um moço bem aparentado, de

mochila nas costas, alguns livros de literatura na mão e uma garrafa de Coca-Cola vazia, que

jogara fora assim que a abordou

- Não se assuste que eu só quero te dizer que te amo.

Lembro-me de ver uma reação estranha da parte dela. Do banco onde estava via e

ouvia quase toda a conversa. Era como se sentisse o que estavam a dizer e pensar. O livro que

acabara de ler me fez florear ainda mais aquela cena.

- Não se assuste novamente. Eu sei que isso pode parecer estranho. Mas quantas vezes nos

encontramos na rua, deste modo. Você indo e eu vindo. Ou ambos indo ou vindo. Sei que

nunca deve ter me notado. Mas eu sempre observei você. Sempre me chamou a atenção.

Lembro-me uma vez que sorria com suas amigas, sentada na grama perto do prédio de

estudos, tomavam sorvete e gargalhavam do menino que caiu de bicicleta.

Ela parecia estranhar, mas sem fisionomia, pasma, se manteve...

- Pode parecer loucura, eu sei disso, mas eu me apaixonei por você desde o primeiro momento

em que a vi. Estava eu passando pela calçada e você parada, esperando uma pessoa atravessar

do outro lado da rua. Deslumbrei-me com você. Logo você seguiu caminho, e ainda bem que
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não me viu tropeçar no meio fio e cair justo na lama que havia se formado ali. A lama era o de

menos, eu tinha encontrado você.

Nunca havia presenciado tal sublime momento de declaração. Ele pareceu ser sincero

com os sentimentos. Ela ainda estática, movia-se apenas para tirar o peso de um lado do corpo

para o outro.

- Parei você hoje, pois tive medo de ser nosso último encontro. Quando poderei vê-la de novo

não se sabe. E se nunca mais a visse, como saberia o que sinto por você? Você simplesmente

não me reconheceria, ainda que escrevesse um poema em seu nome. Poderia lê-lo anos depois

ou ainda hoje, e não saberia que a Luana dos meus versos seria você.

Nessa hora, ela olhou pra mim. Na verdade, olhou para o rapaz que atrás de mim e

seguia em sua direção. Ela abraçou o rapaz e se virou ao jovem enamorado.

- Desculpa, mas qual seu nome?

- Daniel - disse ele meio confuso com presença do rapaz. Ela deu continuidade à conversa.

- Daniel, gostei muito da sua sinceridade e achei muito importante você vir conversar comigo.

Mas eu realmente não sei quem é você e tenho namorado. Desejo sorte pra você e peço

desculpas por não ser como você esperava!

Sem reação, ele ficou ali, sentado onde eu estava. Ao meu lado. Luana e o rapaz

seguiram seu caminho. Ele, ainda sem rumo amassou um papel, jogou no chão e saiu aos

prantos. Não resisti e peguei. Desamassei e sem ler, coloquei dentro do livro que estava lendo.

Possivelmente era um poema com nome Luana, que o próximo que pegar o livro poderá,

talvez, confirmar.
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Criando seus Deuses

Foi em um dia desses quaisquer de tédio que ele resolveu criar seu próprio deus.

Sentado na cadeira, meio que largado e com o pé sobre a escrivaninha, desenhou vários

deuses. Uns pareciam Jesus, outros Buda, desenhou também Elefantes, Cobras, Raios e

Mares. Nada o agradou. Sua lixeira se entupia e seu caderno esvaziava, em um processo de

reciprocidade entre ambos os lixos. A verdade é que nunca fora bom para desenhos, mas

sempre teve um dom para a literatura. Resolveu então escrever sobre o deus que fazia questão

em criar. Queria um ser sobrenatural, mas ao mesmo tempo humano. Pensou na natureza,

pensou nos homens. Essa relação direta era destruição, parou de pensar. Pensou nos céus,

pensou nos homens. Que idiotice relacionar tudo aos homens. Pensou nos animais então, já

que eles são racionais.

Não deu muito tempo deixou de escrever, e foi discutir sobre deuses no Facebook, já

que sua imaginação não fluía. Três minutos já viu pessoas fanáticas por suas religiões e

antirreligiosos (que pra ele essa defesa tão categórica por uma não religião já se tornava uma).

Poderia jurar que entre chumbos cruzados de religiosos e não crédulos viu uma pomba, mas

era apenas a tela de seu computador suja.

Foi para o Twitter desabafar, mas logo sentiu vontade de fechar, quando um ser

qualquer lhe respondeu algo do tipo que não queria ouvir. A internet tem dessas, ouvimos,

vemos e fazemos o que queremos, não apenas, somos o que queremos ser. Ele era quem ele

queria, decidiu isso há muito tempo e já tinha até escrito em seu caderno de literatura. Aliás,

foi uma de suas primeiras frases naquele caderno: "Serei quem eu sempre quis". Mas lhe

faltava ainda um deus, um que lhe protegesse na luta contra o mundo. Todos temos essa

necessidade de ter um deus!

Foi escovar os dentes para lanchar depois (ordem imbecil essa, por sinal), e defronte

ao espelho teve sua ideia primordial. Seria seu próprio deus. Por que não? Ele faria história.
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Seria a História. Faria literatura. Seria a Literatura. Seria herói! Não faria desenhos, pois

nunca fora bom, mas fariam retratos dele. Ajudaria as pessoas necessitadas, apenas aquelas

que ele quisesse e gostasse. Faria o bem, o bem que achasse que fosse bom. Voaria ao infinito

e além... sempre além para sua vida. Engrandeceu-se vendo seu reflexo no espelho, uma luz

envolta de seu corpo e as pessoas gritando seu nome. Abriu um sorriso que desapareceu

segundos seguidos.

Sua mãe é quem ligara a luz do banheiro, que não possuía janela, e o chamava, aos

berros:

- Vai se atrasar Marco! Seu pai já está te esperando no carro.

Ele não sabia pra onde ia, na verdade, sabia. Seu destino já estava traçado por outros.

Nunca poderia ser seu deus, um herói, um literato... fadado às leis do mundo, às leis do

direito. Não tinha autonomia para ser quem quisesse, era o que pensava. Quando não fossem

seus pais, seriam outras pessoas, outros meios, outras culturas, outros arranjamentos...

Desistiu de criar um deus, e de sê-lo. Disse à mãe que já estava pronto e partiu para fora de

casa. No caminho pensou o quão difícil é ser deus, ainda que um deus egoísta como ele

pensara. Teve pena de Deus. Fez o sinal da cruz e entrou no carro.


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Ele está sozinho

Ela era prima daquela. Era tia daquele. Sobrinha deles ali. Pertencia àquela igreja. Ex-

esposa do que não veio. Ele é o filho dela. Ela era a irmã das duas no canto, filha da que

chora. Ela é a falecida.

Ela foi muitas, mas agora é apenas uma, a falecida. Os choros são contidos por uns,

mas incontroláveis para outros. Ele, o filho, está estático. Olhar paralisado. Será que ele sabe

o que houve? Digo, será que ao dormir hoje ele não ficará estranho, sem chão, sem forças...

Ele não chorava, outros se debulhavam. Lá fora, alguns riam e conversavam alto, será

que não percebiam a gravidade da situação para ele? Inocentes, as crianças corriam para todos

os lados, suadas, mas não demonstravam sinal de cansaço. O tempo quente da noite

colaborava para que todos estivessem exaltados, sejam sorrindo com outras conversas, ou

chorando pela falecida. Exceto ele.

Passava da meia noite quando ele saiu e foi descansar um pouco. E pouco demorou

para voltar. Debruçou sobre o caixão. Sem uma lágrima, sem um ruído. E estático, mais uma

vez permaneceu. A noite se prolongava. As horas até o enterro pareciam demorar durar mais

que o normal. A lua minguante reduzia a cada minuto, e a cada segundo as pessoas se

dispersavam.

Pouco passou a madrugada ali. Mas mal chegou as sete da manhã e já apareciam todos

da noite. Rezas, orações, unções, bênçãos... O choro tomou conta da sala. As pessoas seguiam

rumo aos carros. Iriam fechar o caixão. A tampa já sobre ela, o garoto quebra o silêncio com

um sinal para abri-lo novamente. Beija a testa da mãe e parece sussurrar algo. Seus dedos

finos e seu toque leve a acaricia. As lágrimas escorrem. Olhos vermelhos, ainda contidos. O

cortejo segue até o sepultamento. Rezas, orações, unções, bênçãos... Cânticos. Ela é enterrada.

Levou-se sonhos, não sei, não posso afirmar nada de seu otimismo para lutar contra o câncer.

Deixou seu filho, único. Ao acordar desse pesadelo, infelizmente, ele perceberá que ele se
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fará presente todos os dias. Nem sempre a vida é justa, até porque não temos a noção de

justiça.

Quando fui embora, ele estava pensativo. Ao dormir ou acordar verá sempre a mesma

cena, a vida com o mesmo compasso. Quando ninguém mais estava e a mãe já tinha ido, foi

pra casa e chorou, como não havia chorado durante todo o velório. Sentiu saudades, mas não

tinha como parar de sofrer. Revirou o guarda-roupa e lá no fundo achou aquela camisa regata,

já com furos do tempo, que usava pra jogar bola. Sua mãe sempre a quis jogar fora e ele não

deixava. Vestiu, era a maneira de se sentir mais próximo dela, como se pudesse ouvir a mãe

brigando com ele, dizendo que daria aquela roupa para os outros. Desnorteado, saiu pelas ruas

e sentou em um banco de praça e lá ficou esperando a morte... ainda pode observar o

movimento da rua e das pessoas até que viu uma luz branca se aproximando.
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Desafios

- Cuidado!

Mas já era tarde. Não deu tempo de avisar o que estava pra acontecer. Foi tudo muito

rápido. Aqueles nove segundos foram incapazes de dizer o que era preciso. A sensação era

que estava saindo do mundo, saindo do lugar que era comum a mim.

Estava eu em minha tranquilidade, sem nada reparar aos lados, vivendo e boiando em

meu mundinho, que para mim era o mais significativo de todos. Cada segundo nesse meu

mundo pareciam minutos, horas até meses. Sentia que nesse tempo crescia, evoluía, me

tornava gente. Estava leve, pensativo, vibrante. Estava me sentindo bem. Com toda essa

calmaria não percebi nada o que estava a minha volta e quando dei por mim, tudo se foi, tudo

chegava ao fim naquele momento. Meu mundo, minha calmaria, minha tranquilidade...

Nesse momento eu comecei a chorar. Já via uma luz branca como eles diziam que eu

iria ver. Ela se apoderava de meus olhos, uma luz branca brilhante me tomava. Chorei. Que

luz é essa que ofusca minha visão. Quem me chama do outro lado? Quem não quer me deixar

viver?

Mas já era tarde. Não deu tempo de avisar o que estava pra acontecer. Foi tudo muito

rápido. Aqueles nove segundos foram incapazes de dizer o que era preciso. A sensação era

que eu estava saindo do meu mundo, saindo do meu lugar comum, conhecendo outro mundo.

Que mundo é esse que desconheço?

- Um menino...

O que ele queria dizer? Como ele sabe isso sobre mim? Onde estou? Meus olhos mal

conseguem ficar abertos. Aqui não tem água para que fique me banhando a todo o momento.
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Quem é essa mulher que sorri a me ver? Quem são essas pessoas de branco? Onde está a

minha namorada?

- ...e uma menina! Parabéns mamãe, um casal!

Como assim, mamãe? Essa menininha ai não é a minha namorada? Ela é minha irmã?

Por que eu tenho que sofrer desde o primeiro momento que venho para esse mundo? O

homem de branco perguntou a um outro:

- Já sabe como vão chama-los?

- Otávio e Madalena, Doutor Joaquim Andrade, assim vão se chamar! – respondeu com brilho

nos olhos. E essa foi minha última lembrança daquele momento.


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Criando seus Deuses [2]

Felipe nasceu com um problema que só descobriria aos 16 anos. Era um menino feliz,

inquieto e sorridente. Aos quatro anos aprendeu a andar de bicicleta, com rodinhas, claro. Mas

nem completou os cinco anos e tirou. No primeiro tombo se ralou todo, deixando sua mãe

desesperada. Porém ele sorria, dizia aprender com a vida! Olha só, nessa idade e já falava

isso. Pensavam que era de escutar dos outros, eu nunca acreditei... a pessoa nasce com

personalidade.

Aos seis anos foi para a escola e fez muitos colegas e alguns amiguinhos, que se

perderiam ao passar dos anos, exceto um, Marquinho, pois esse sim era o seu melhor amigo.

Faziam artes... certo dia, me lembro, desapareceram dentro da escola, ninguém os achou.

Onde estavam? No lugar mais óbvio, na sala de leitura! Porém quando iam procurar por lá,

escondiam rapidamente, pois o portão rangia tanto que se escutava a milhares de quilômetros.

Quando completou nove anos sua mãe, religiosa que só ela, disse que o menino tinha

que frequentar a catequese e ser crismado. Matriculou o garoto, que todo sábado ia para os

rumos da aula cristã... só nos rumos. Sua mãe o matriculou tantas vezes que perdeu a conta.

Sorte dela que naquela época a igreja nada cobrava, pois caso contrário, teria ido à falência -

sem exageros.

Os anos se passaram e ele acabou sendo catequisado e crismado. Ia à igreja sempre,

sempre que sua mãe obrigava. Não era desses, gostava de contestar o subjetivo da alma e

perceber as brechas da lei de Deus. Enfim, completou seus 16 anos e eis que chegamos ao

problema: Felipe de Jesus era ateu. Cansou de esconder isso de sua mãe. Quando assumiu ser

ateu ela chorou, esbravejou...

- Deus, ó meu Deus, por que um filho ateu? Ele podia ser gay, namoradinho do tal do

Marquinho... podia ser negro! Mas ateu?


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Naquele momento, então, Felipe de Jesus percebeu que o respeito só era dado de um

dos lados e a ponte construída todos esses anos era muito frágil. Tentou atravessar e caiu.

Resolveu sair de casa naquele dia. Foi se tornar um ser humano por si e não um ser

domado por outros humanos que acham que sabem de tudo.


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Uma Quinta Feira Qualquer

E foi assim que começou toda aquela algazarra. Eram quase meia noite de uma quinta

qualquer. Na verdade, isso começou no dia anterior, com a fumaça do churrasco do 102 no

jogo do Campeonato Brasileiro. As meninas do 202 sentiram o cheiro e reclamaram.

- Como está tendo churrasco e vocês não convidam a gente?

Meninas lindas, eu confesso. Mas afirmo isso depois da quinta, depois de alguns

gritos. Tudo começou com duas janelas, até que totalizaram 8 janelas do prédio, no vão que

elas se encontravam. Meninas e meninos universitários interagindo. Cada hora um aparecia na

janela, janelas com uma pessoa, duas, três, quatro, até cinco pessoas.

Ninguém estava bêbado, ninguém estava criando confusão. As pessoas simplesmente

lembraram que o mundo imediato é um saco e resolveram encontrar o método mais prático de

conversa: as sacadas e janelas. Como as mulheres de Goiás Velho faziam, como a moça feia

de Chico fazia, apenas para parar o mundo e sentir para si a poesia que ele cantava.

Risos, gargalhadas, estilhaços de sons por todo canto. A felicidade ali pedia passagem.

Estavam querendo saber mais do churrasco do 102, sobre os torcedores do 303, os moradores

do 404... Felipe, Mariana, Marco, Luana... muitos ali se conversaram sem nem saber que um

dia suas vidas se cruzariam novamente. Conversavam como se já fossem amigos há anos, mas

seriam pessoas que não lembrariam na semana seguinte. Times, arrotos, músicas, lirismo...

tudo isso eram falas ritmadas e embriagadas pela alegria em se viver aquele instante. Aquele

efêmero instante.

Tempos depois, antes ainda da meia noite um dos apartamentos grita forte, reclamando

do excessivo barulho. Perguntei-me nessa hora, por que algumas pessoas não conseguem

sentir a poesia do mundo e se fecham em paredes, escutando apenas os ruídos de algo que não

existe?
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Histórias de Bêbado

-Tira a mão da minha bunda! - Gritava o bêbado do outro lado da rua para aquela moça ao

lado dele.

- Acha que só porque bebi um ou outro gole de álcool pode chegar e passando a mão em

mim? Me respeite senhorita!

A moça, abismada, ficou ali parada, sem nada entender. Já eram 7 da noite, ela estava

cansada. Seu patrão resolvera não mais trabalhar e tudo ficou sobrecarregado pra ela. Voltava

do trabalho quando tudo isso aconteceu.

- Não se faça de santinha não! Eu não sou um bêbado que fica jogado às traças não. Tenho

família. Bebi hoje, como nunca mais beberei, porque meu dia foi difícil. Perdi a mulher da

minha vida e desde então só me endividei...

Estática ali, naquela lamentação, ela continuou a escutar o bebum.

- Perdi a mulher da minha vida pra um safado que dizia ser meu amigo. Ele me traiu. Não, ela

me traiu. Não, os dois me traíram e roubaram tudo o que eu tinha. Por isso fiquei encostado

nessa parede chorando. E isso não te dá o direito de meter a mão na minha bunda.

Já sem paciência alguma para o bêbado, resolveu interagir.

- Peço desculpas, mas é que achei você muito bonito, aliás, gostoso, e passei a mão mesmo.

- Obrigado, ao menos tentou levantar minha autoestima.

Com assunto encerrado, ela foi embora. E, antes que fosse, passou a mão na bunda do

bêbado mais uma vez. Ele não gostou da atitude e pegou seu amendoim e foi para outro bar se

embriagar.
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10 centavos

- E se amanhã eu morrer? Ninguém sabe o que acontece no dia seguinte, na hora seguinte,

daqui uns segundos. Eu posso morrer a qualquer hora.

Foi exatamente assim que ela começou aquela interminável discussão. Dramática,

como só ela sabia ser. Infelizmente ela pegou Meridiano em um bom dia, ele havia acabado

de perder um bilhete de loteria premiado.

- Caso morra, será enterrada ou jogada em uma vala qualquer no IML como indigente.

Seus olhos pularam nas palavras que saíram de minha boca e sua mão, suada, queria

me esganar. Conteve-se, sabia que não era o momento, não era hora. Ele resolveu encerrar

logo o assunto.

- Moça, são apenas 10 centavos, mas se quiser, leve quantas balas quiser, de graça. No

entanto, estarei aqui amanhã, caso precise realmente dos 10 centavos.

Indignada. Ela não podia ser tratada assim por um qualquer, Patrícia era secretária de

um dos melhores advogados do país, Dr. Silveira. Contudo, levou a bala. Grosseiramente

virou-se e, de modo brusco, saiu batendo o salto alto de cor vibrante pelo tablado do fórum.

Ela sabia que eu estaria ali amanhã pela tarde, ele não saberia se ela voltaria e pagaria os 10

centavos pela bala. Caso ela volte, de qualquer modo, ele resolveu guardar o brinco de ouro

que caiu, quando se virou e foi embora.


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Malditos

Sabe aquelas discussões que não levam a nada? Bem, essa foi exatamente desse jeito.

No aeroporto, esperando um amigo que chegaria de viagem presenciei a discussão. O dia não

importa e não me lembro exatamente do tempo que ali fiquei sentado. Sei que quando vi

estava prestando atenção na conversa dos outros:

- Gosto de você, você é um bobo!

Quem foi que disse que bobo já tinha virado elogio no século XXI? Aquela pessoa que

recebera o elogio – ou não – fechou a cara. A outra quis saber o que foi...

- Bobo? Percebi que sua entonação foi tendenciosa...

Malditos analistas do discurso, pensei... Contudo a resposta veio de prontidão.

- Acho que você tem um complexo... essa reação sua me indica alguma síndrome...

Ok, acrescente os psicólogos aos malditos e feche essa sacola. A discussão parecia que

ia ficar ali, entre ambos os analistas. Mas, como toda discussão, tem as pessoas aleatórias que

se juntam as quaisquer, para fazer da linha, um novelo.

- Eu ouvi tudo de onde estava, percebi a má intenção, podemos processá-lo, foi um insulto...

É sempre assim, distorça algo que foi visto ou falado que aparece alguém que se acha

doutor, só por ter feito um bacharelado em Direito, para processar.

- Processo? Isso é imposição que o estado quer fazer, nos alienar...

Abra novamente aquele saco dos malditos e acrescente o “doutor” e o cientista social.

Esqueci-me de dizer que sempre que aparece alguém da direita, há a necessidade – não sei por

que – de se ter a esquerda... não há como haver um meio termo! É impossível. Nesse

momento ouvi um barulho lá de longe...

- Estamos aqui ao vivo para noticiar uma catástrofe que ocorreu entre dois amigos...
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Faltavam os diplomados em jornalismo... melhor... jornalistas, já que em nosso país

não precisa fazer doutorado pra ser chamado de doutor, nem precisa fazer jornalismo para ser

jornalista. Que país é esse?

De longe avistava um grupinho fofocando sobre o caso... o rapaz do meu lado

comentou...

- São todos hippies, bichos grilos, sabe? Pessoal que faz geografia... Eu que não me meto

nessas histórias, preciso manter meu status.

Aquele engenheiro me rendeu 30 segundos de conversa, momento esse que nem vi

quando os dois amigos foram embora... um para cada lado, imagino, um pensando que o outro

só pensa em sua própria vida, só pensa em trabalho e na profissão dele.

Eu, nada inocente também, continuei minhas anotações... sei que isso um dia me

renderia um conto razoável, que uns anos depois poderei melhorar. Fui interrompido por uma

voz que me gritava “Felipe, o voo dele chegou! Vem! Vem!”. Então me enfiei dentro daquela

sacola, junto ao engenheiro e aos geógrafos e resolvi ser mais um maldito, por outros.
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Alvo Arez

Tratava-se de um sucesso. Não era nada mais que isso. Todo dia ele acordava e ia para

o aeroporto na busca de seus ídolos. Na busca incansável que um dia alguém lhe daria moral e

ele seria famoso.

“O garoto de Goiânia que conquistava o Brasil e o mundo!” Esse era o sonho. Cada

dia no aeroporto era tediante, pois poucos famosos passam pelo aeroporto da capital de Goiás.

O que mais conseguiu presenciar eram parentes felizes com a chegada dos que moravam

longe, pais felizes com o retorno do filho que foi estudar fora e discussões aleatórias.

Contudo, o mais improvável aconteceu. Depois de um grito de uma menina ao lado,

que chamava pelo amigo, Alvo Arez foi desperto. No portão de desembarque pôde ver a

menina escandalosa e o amigo recepcionando um outro jovem boa pinta. Uma motorista

particular esperava um tal de Sr. Silveira, que chegou a cumprimentar a moça escandalosa e o

amigo. Foram-se todos embora.

Era um dia qualquer e aquela artista não qualquer o avistou. Bem disfarçada, não

chegou a ser visto pelos paparazzi que a esperavam. Ele era perspicaz, afinal, queria ser

famoso. Ela aproximou-se dele. Apaixonou-se por ele como se aquela história fosse

predestinada. Vai que realmente era? Por mais estranha que pareça essa história, namoraram.

Ele ficou muito famoso, muito mesmo. Por mais bizarro que pareça, casaram-se. Fotógrafos

para todos os lados. Tiveram filhos. Paparazzi conseguiram a foto dos gêmeos que ficou

estampada nos diversos sites internacionais.

Enfim, era famoso. Mas não sabia fazer nada mais do que ser famoso. Aceitava

convites da imprensa para todos os eventos que surgiram. Conseguiu ser famoso e pareceu

que isso bastava. Resolveu ser rico, ao menos mais rico. Foi convidado para participar de um

programa de TV. Hesitou, pois não queria tanta exposição mais. Porém resolveu aceitar,

depois de uma longa conversa com sua conta bancária. Conquistou bastantes vitórias no
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programa, chegando ao final. Infelizmente concorreu com uma pessoa humilde, que acabou

ganhando o maior prêmio. Enlouquecido e cheio de fúria, não se deu conta que o programa

era ao vivo e esfaqueou seu adversário até a morte. Foi preso e não se escuta mais histórias

dele desde então.


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Almoço de Domingo

Era um domingo qualquer, como esse de hoje. Foi por volta das onze horas que eles

começaram a ser feitos: arroz, carne, feijão, salada e um suco de laranja. O suco era de

laranja, do pé que minha avó plantava nos fundos da casa. A carne era de galinha caipira,

criação que ela tinha. A salada de tomate, alface, cebola e repolho era de sua horta. Todos

comeriam, vovô, vovó e eu. Mas naquela manhã, mamãe também se sentou a mesa conosco.

Dificilmente fazia isso, mas hoje ela estava lá.

Como sempre, todos sérios na mesa. Sem TV, sem rádio, sem nada. O silêncio do

almoço dominical era estranho dos demais almoços de domingo. Mamãe ia pegar o arroz,

vovó pegou primeiro que ela e colocou do outro lado da mesa. Logo depois vovô pegou e em

seguida eu. Coloquei-o de novo perto de mamãe, que pode se servir.

O mesmo ocorreu com a carne, feijão, salada e até mesmo com o suco de laranja.

Seriedade. Rostos fechados. Ninguém ali queria abrir a boca para falar. Pareciam estátuas de

mármore, mas vovó, apesar de tudo, era de gelo. Logo começou a se derreter. Chorou.

Soluçava e não parou mais de soluçar.

Vovô não se segurou e começou a chorar também. Eu não sabia o que fazer, mamãe

olhava os dois, com piedade nos olhos. Nada podia fazer por eles. Eu fiquei observando... não

sabia mais lidar com essa situação. Mamãe saiu da mesa, a cadeira caiu. Meus avós olharam

em direção a cadeira no chão. Um ano, desde então. Eu a podia ver, eles não. Eu a podia ver

desde o dia em que vesti aquela blusa e me perdi no centro da cidade. Talvez eu pudesse toca-

la, se vovó não tivesse me encontrado desmaiado na rua aquele dia.


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Desesperadamente

Ele saiu correndo. Correu desesperadamente. Esbarrou em mim nessa correria. Deixou

cair um papel. Pensei em gritá-lo, mas já estava longe demais e eu sem forças. As vistas já me

traíam. Minha mente insana e curiosa não me deixaria também devolver aquele papel com

cheiro de sangue e cor de solidão. Não o via mais. As pessoas olhavam assustadas os rastros

que o rapaz deixou. Vários papéis. Apenas um com cheiro de sangue e com cor de solidão.

Mas que pessoas, aquela altura da noite só eu estava ali. Vi várias pessoas que só eu via com

os papeis nas mãos, lendo atentamente. Uns sentaram nos bancos, outros no chão, alpendres...

A leitura imediata foi quase que obrigatória! Talvez por um impulso de leitura ou por um

impulso premeditado pelo rapaz, que já previa o acontecimento.

Crianças, adolescentes, jovens, adultos, velhos... de todas as raças e orientações

pegaram seus papeis e liam. Pareciam não se importar com o tempo. Bem provável que o

tempo havia parado também. Ao menos o relógio não caminhava. Não sentia o vento.

Ventava aquele dia? Eram pequenos alguns bilhetes... Com os mais velhos eram papéis de

cartas. Olha que interessante essa coerência! Isso era coincidência? Talvez fosse, talvez não.

Dizem que tudo tem cinquenta por cento de chance de dar certo nessa vida.

Parece que só eu (e você) nos perguntamos o porquê aquele rapaz corria

desesperadamente e deixava essas cartas e bilhetes. Parece que só eu (e você) achamos tudo

isso muito estranho. Ninguém se perguntava nada, era tudo muito normal. Será que aquele

garoto sempre passava ali? Mas eu nunca o tinha visto! Você já o viu?

Por que apenas a minha carta tinha esse cheiro desconfortante de sangue? Por que

somente a minha carta tinha cor de solidão? Por que sangue e solidão não combinam? Parei

de pensar. Levantei. Todos me olharam friamente. Eu me olhei friamente de onde estava

sentado. Senti que era preciso ler a carta. Todos assim esperavam. Sentei novamente. Os

olhares sumiram. Não me olhava mais friamente. Com cautela, abri a carta. Comecei a ler.
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Com o passar do tempo lia desesperadamente. Fiquei viciado naquela carta. Como pode

aquele rapaz? Aquele rapaz! Fechei a carta. Rapidamente ela sumiu entre meus dedos. Eu,

somente eu (e não você) poderia entender realmente o motivo daquela correria. Somente eu, e

não você, saberia sobre o cheiro de sangue, a cor de solidão e o gosto de tristeza. Ele correu.

Eu me desconfortei. Respirava com dificuldade, respirava por aparelhos... não estava mais em

um banco de praça, não usava mais minha blusa regata... A carta começou a fazer sentido.
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As Palavras Mudam(s)

Hoje ela me tratou com palavras mudas. Enquanto eu tentava mudar as palavras que

ela dizia. Parei num instante, um pequeno instante, quando uma lágrima parecia escorrer de

seu olho esquerdo e queria percorrer levemente sua face, deslizava em tons de rosa... Nesse

momento, um dos únicos momentos meus de lucidez interrompi o que ela dizia e pedi perdão.

Sem entender, ela se calou. Um silêncio ficou estático naquele clima acinzentado no qual

estávamos. Logo o garçom chegava com a bebida, quebrando o vazio que havia ficado.

- Quantas pedras de gelo senhor?

Não consegui responder, isso me levou segundos. Afinal, tudo ali estava por um fio

devido as pedras de gelo que sempre coloquei em nosso relacionamento. Isso me fez um cara

frio, distante, até mesmo quadrado. Não percebia a exuberância companhia que tinha ao meu

lado.

- Quantas pedras de gelo o senhor quer na bebida?

- Nenhuma. Obrigado.

Não havia sentido esfriar tudo mais uma vez. A bebida perde o gosto com o gelo, se

torna fraca, e ainda caso demore a beber, o gelo iria derreter superando o nível do copo e

derramaria.

- Nenhuma mesmo, senhor?

O rapaz insistiu para que colocasse uma pedra de gelo, pois a bebida realmente estava

quente. É incrível como as pessoas, mesmo sem a intenção, querem nos fazer mudar de ideia

do que queremos. Uma pedra de gelo seria o estopim para me tornar uma pessoa gélida.

- Estou certo, agradecido.


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Não diferente das demais bebidas, até a água mineral muda o gosto quando se coloca

gelo. É isso que não percebemos na vida. Sempre pensamos que algo tão simples não faz

diferença, mas a diferença é estar simples. Passados esses sessenta segundos, o garçom se vai

e ela se volta para mim perguntando por que pedi perdão. Respondi que sabia que se não

pedisse perdão hoje, daqui alguns anos seria um adeus. Ela me repreendeu, me chamou de

pessimista. Toquei seu rosto com minha mão direita, dei um beijo em sua face e disse que só

queria preservar o que ainda estava por conquistar, a cada dia.

O garçom voltou com a comida. Jantamos e fomos embora. 70 anos se passaram desde

então, 70 anos ao lado da pessoa que amo, e me recordo desse momento como se fosse o dia

de hoje. Foi esse momento que me fez superar tudo e me fez perceber o quão forte podemos

ser. Hoje, sinto falta dela... sinto falta de minha filha... mas sei que estão bem. Logo me

encontrarei com elas, assim que meu neto estiver pronto para seguir adiante.
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Minha Criança

Minha criança hoje faz aniversário, venho a uma semana pensando em que dar de

presente a ela. Ela adora escutar música, Pensei em comprar um Walkman, mas me

lembraram de que já está fora de moda, logo, lembrei que já existem os Diskman, e

novamente fui lembrado que hoje em dia se escuta música em MP3 e suas sequências

numéricas. Por isso, rapidamente, descartei essa ideia, esses aparelhos são muito individuais,

é inútil fazer com que minha criança cresça individualista.

Mas sei que ela gosta de bonecas, pensei em comprar uma boneca falante, do tamanho

dela, com cabelos, roupas, adereços, acessórios e tudo o que as bonecas de hoje têm. Porém

fui lembrado que quando se está com a idade dela, tudo passa rápido, a adolescência já bateu a

porta, esse século, infelizmente, é o vinte e um. Bonecas de pano ou porcelana para guardar,

talvez, entretanto quem guarda as coisas num mundo tão descartável?

Melhor pensar em alguma coisa que ela irá carregar por mais tempo, como uma

bicicleta, posso comprar uma que ela sempre poderá usar, até no fim de sua juventude. Só

preciso vigiar onde ela andará, pois hoje tudo está complicado, as ruas não são mais as

mesmas. Hoje elas têm braços que escorrem pelos corpos das pessoas e olhos que tudo

observam. Não quero que minha pequena criança sofra desse mal.

Minha bebê gosta de guloseimas, é efêmero, mas a alegria dos olhos dela me renderá a

felicidade que busco. Posso levá-la ao parque, ao cinema, zoológico, isso mesmo, um

passeio... Posso dar um livro a ela, para que sempre que leia, lembre-se de mim.

- Pai, o que tanto pensa que nem pisca?

- Vamos dar um passeio hoje, Larissa? Com direito a chocolate, doces, e tudo que um passeio

merece?
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Ela sorriu pra mim, adorou a ideia. Mas ao me abraçar, logo disse.

- Meu aniversário poderia ser todos os dias, ao menos teria você sempre ao meu lado.

Meus olhos encheram de lágrimas, tive que fazê-la acordar. Pois são apenas nessas

datas que posso visitá-la em seus sonhos e deixar um pequeno sorriso nela enquanto dorme,

nos outros dias, não passo de lembranças, fotografias em quadro em cima de sua estante e,

agora, um livro que ela encontrará sobre escrivaninha.


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Alguns dias estamos tão relapsos

Sem querer andando na rua ontem tropecei numa pedra. Isso é óbvio que foi sem

querer, ninguém tropeça por que quer. Enfim, andava tão distraído que não via nada pela

frente, nem mesmo aquele carro vermelho que passou a três centímetros de mim e saiu em

seguida xingando e buzinando. Alguns dias estamos mesmo assim, relapso com a vida.

Hoje em dia ninguém se preocupa mais com a vida, apenas com o tempo. O tempo das

coisas é muito mais importante que a própria vida, e a vida, ainda em segundo plano, é bem

menos importante que, o dinheiro, por exemplo. O tempo e o dinheiro sempre passam a frente

da vida em tudo. Se não fazemos algo ou é por falta de tempo ou pelo escasso dinheiro.

Quem hoje já caminhou, tomou seu café-da-manhã com a mesa com gostosuras que só

nós sabemos quais são, e ainda, quem foi para o serviço, para escola, faculdade cantarolando

uma música, sem som, sem nada? Retiro um a cada milhão de pessoas que deve ter feito uma

dessas coisas. Mas, o tempo não nos permite toda essa calmaria.

Quem hoje ao sair do trabalho irá comprar algo pra si, pelo simples prazer de se sentir

bem, comprar uma bebida que há tempos não ingere e aquele tira-gosto que só sabe a

importância dele? É, não se tem dinheiro para gastar com essas coisas, quando no fim do mês,

e durante todo seu decorrer, se chega pelo correio, água, luz, telefone, banco, avisos, reavisos,

informes, disformes...

O tempo e o dinheiro consomem nossa vida aos poucos e sempre sabemos disso, mas

não há como mudar. É muito melhor assistir televisão da hora que chega a hora que vai

dormir. Não há tempo, pois é final da novela. Aquela novela que acompanhei alguns capítulos

e que, com certeza, irei ver sua reprise no dia seguinte.

As pessoas são tão indecisas e ao mesmo tempo decididas das coisas erradas que me

enoja pensar que, é preferível esperar um filme sair na locadora que ir ao cinema com amigos.
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A plasticidade das coisas está tão acoplada no ser de cada um que, elas já crescem pensando

no quanto vão ganhar e não no que vão ser quando crescer. Medicina é um curso econômico e

não uma carreira profissional. Direito está inflamado e ser professor é simplesmente última

opção, perder seu tempo. Coitado de mim, sou professor. Sou professor de uma escola que

tem a fama de ter professores fantasmas de literatura. Fui lecionar nessa escola meio que por

acaso, quando o antigo professor não apareceu para dar suas aulas. O fato é que a educação é

falta de tempo enquanto a saúde é excesso de dinheiro.

Bem, ontem andando, em direção à escola, avistei certo movimento na praça e me

instigou um senhor que lia um livro em um banco. Despercebido do espaço, tropecei em uma

pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, e quando me dei conta, um carro vermelho

passou perto de mim, buzinando e me xingando. Mas o caminhão que vinha logo após não

tinha mais os três centímetros, a buzina não ecoou a tempo. Papeis voaram por toda a parte,

aquele dia na escola não haveria aula normal. Infelizmente é assim, alguns dias estamos

relapsos que não percebemos que pode ser o nosso último dia.

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