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Aula Normal
Nesses meus muitos poucos anos de docência, que muito se parecem uma eternidade,
algo que sempre me chamou a atenção foi uma singela e truncada termo: "aula normal".
Como professor de Literatura, isso deveria não me maltratar tanto como maltrataria professor
de gramática e essas matérias menores. Parece ridículo assim pensar, mas esse termo tem todo
Semana passada, por motivos de saúde, uma gripe do cão, não pude lecionar. Primeiro
ponto: Eu leciono, não "dou aula", pois quem supostamente trabalha de graça é cupim...
Enfim, estava eu muito caído e impossibilitado de ir à aula naquele dia, além de uma preguiça
dos infernos que me assolava a cabeça. Esse mal é um dos maus de quem se aventura
literariamente por caminhos como esse. Como de costume, no entanto, sem quebrar meus
protocolos, enviei um recado ao e-mail dos alunos avisando que nesta semana seria
soubesse que ninguém iria ler. Contudo, afirmei que na semana seguinte voltaríamos com o
mesa, bolachas água e sal em um pequeno prato e o feijão cozinhando. Preparo os materiais
para a aula dessa semana quando um barulho insuportável no celular avisa sobre um novo e-
mail em minha caixa de entrada. Odeio celulares barulhentos, mas em casa preciso dos
barulhos para não me sentir sozinho e não esquecer que eu ainda vivo neste mundo tão
tecnológico que me abomina. Abro o tal do e-mail e vejo ser de um aluno. O aluno.
Dizia ele: "Professor, Li seu e-mail. Amanhã é aula normal?". Levei um susto. Parei.
Sentei. Preparei mais um chá de camomila e repus as bolachas no prato. Esqueci-me do feijão.
Meu coração sopitou de uma forma tão inesperada que me vi como o Jerry quando cercado
Aos poucos e com muito chá e bolacha fui me recompondo e comecei a escrever o e-
amanhã, infelizmente, teremos aula normal, com giz, quadro, apostila, talvez algumas xérox.
Haverá também um tipo de aula expositiva com participação dos alunos que se sintam a
vontade em discutir sobre o tema proposto. Peço desculpas por essa “aula normal”, mas é que
não tive tempo de preparar outro tipo de aula. Como leu no e-mail anterior, estive muito
doente, mas me recuperei, graças a elevação do cosmo. Apesar de ter conseguido alcançar
uma força surpreendente no meu cosmo, ela não foi o suficiente para que eu pudesse preparar
uma “aula anômala”. Ontem mesmo, tive que usar meu cosmo para ajudar Goku na busca das
esferas do dragão, o que fez meu cosmo se esvair um pouco. Perceba que isso já é anômalo,
usar meu cosmo que era para proteger Athena e sair em busca das esferas. Mas o Goku é meu
Contudo, estimado e atencioso aluno, receio que na aula seguinte não teremos "aula
normal", pois já consegui reavivar meu cosmo e estou com alguns bons contatos para que
possamos sair da mesmice de aula normal. Penso, portanto, que para discutirmos sobre o
romantismo, nossa temática, devo conseguir trazer o esqueleto de Álvares de Azevedo, ou até
mesmo pedir a uma mãe de santo que o encarne, para que possamos ler um pouco da Lira dos
Vinte anos, ainda quando manuscrita, rascunhada e incompleta. Olha que bacana! Espero que
não tenha medo de espíritos! Pode ser que na aula que segue, ainda possamos entrar na
máquina do tempo, emprestada pelo McFly. Ele mesmo virá trazer! Logo, com essa viagem
no tempo poderemos perceber como foi o século XIX. Porém, nessa aula não creio que seja
interessante levar alunos negros. Sei que você me entende. Não é preconceito de minha parte,
longe de mim, mas pode ser que algumas pessoas do século retrasado não gostem muito de
ver escravos libertos. Avisarei que será de suma importância que tragam seus cartões de
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vacina, pois era muito comum, naquela época, as pessoas morrerem de tuberculose e pode
correr o risco de ficarmos presos no tempo durante um bom tempo, afinal a imersão no
assunto é de total relevância para que se aprenda. Além do mais, não quero depois ter que
atestar morte de aluno em meus diários, pois isso seria normal demais... Muitos já morreram
Só para constar, talvez nós consigamos, nessa aula, ir à lua, para entender um pouco do que
seriam questões de evasão do mundo e fuga da realidade, bem como fique para a próxima aula
realizar ceitas satânicas de morte, para entender o quão sofre o poeta romântico. Mas a ceita
será feita apenas para aqueles que possuem amores incompreendidos, amores de lonjuras ou
Ao fim do e-mail, o chá havia acabado e eu não percebi que as bolachas já tinham
formigas e o feijão estava por toda a parede da cozinha. Limpei cuidadosamente o feijão,
enquanto recompunha meu chá e jogava as bolachas no lixo. O calendário da cozinha, que
antes marcava 10 de junho de 2012, já ultrapassou o dia, era dia 11 e o feijão ainda estava na
parede.
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Desencantos Recorrentes
Ele sempre tentava combinar o seu tênis com a camisa vermelha da Adidas, que tanto
não gostava. Escolhia sempre a cueca mais nova e deixava seu cabelo sempre penteado da
maneira mais diferente que conseguia, apesar de não ser muito bom pra isso. Olhava-se
milhões e milhões de vezes no espelho para que pudesse corrigir qualquer imperfeição que
houvesse e deixá-la a pessoa mais feliz. O perfume era o seu favorito, disso não abria mão,
Mas tudo isso não servia de nada. Na verdade, ele nem gostava daquele tênis e sempre
achou que aquela camisa o deixava meio estranho. Mas é coisa nova, de marca, então fazia
apenas para agradá-la. O perfume que ele tanto gostava, nunca soube se a agradava. Nunca
escutou um elogio simples do tipo “está cheiroso”. Parece que ela superior, ele era apenas um
Naquele dia entrou no carro e um leve "oi", tão normal, ressoou no eco vazio que
havia entre os dois que o deixou ainda mais estranho do que a camisa que vestia. Pensou em
correr e trocar de camisa, pois aquele som tinha um gosto amargo, mas se segurou e com um
novo “oi” respondeu a ela. O eco era insuportável, mas só ele via isso. Marcaram algo, mas
ele queria sair, na verdade, para vê-la, conversar, saber sobre o dia dela, sobre seus sonhos,
desgostos... queria partilhar de tudo que a envolvesse. Mas ela sempre o deixa sozinho no
jantar. Era moça de negócios, negócios com qualquer um, exceto com ele. Pediu o prato de
sempre, o prato que há anos pedia, mas que ela nem se lembraria se é o que ele gostava.
Nunca tinha dado muita importância para os desatinos culinários dele. No celular, ela
conversava com as amigas, os amigos, os Power Rangers e quem mais surgisse, como se ele
não estivesse ali ou como se sua presença fosse apenas parte da mobília do restaurante. Às
A verdade é que muito egocêntrica e idealitária, não podia fazer sexo consigo e os
vibradores que havia comprado escondido não eram bons. O jantar, que era uma desculpa
para que ele pudesse vê-la, para ela funcionava como preparatório do abate para uma mulher
No jantar, ainda, ele ainda tentava puxar algum tipo de assunto, falando de coisas que
interessam a ela, às vezes de assuntos que o interessavam... mas sempre era interrompido pelo
celular, pela televisão, pelo celular, pelo garçom, pelo cometa Halley, pelos Power Rangers!
Às vezes nem era muito interrupção, era ela mesmo que não sabia do que eu falava, havia se
perdido em qualquer coisa, menos na conversa da mobília. Onde já se viu mobília e garoto de
programa falarem? E não adiantava cobrar atenção da maneira mais sutil, para não parecer
infantil perante ela. Sempre acabaria sendo chamado de dramático e ridículo. Muitas das
vezes era mesmo, era o momento em que, por segundos, ganhava a atenção dela.
Mas ela tem vergonha dele e preferia sair ele primeiro para que depois desfrute das
amigas, dos amigos e dos Power Rangers. Não o convidava quase nunca, deveria ser tipo
programa que só aquele grupo de amigas sabe lidar: seria esse grupinho os próprios Power
Rangers? Ele seria um estranho ali, não teria morfador... Essa ideia de que o grupinho eram os
Rangers justificava o porquê saía escondido com o pessoal. Mas ele sempre sabia, os
Sentia-se como um gigolô! Isso, era um gigolô há dois anos e não sabia. Servia apenas
para uma saída de sexo casual, um jantar em que apenas ele comeria e conversas de assuntos
que só diziam respeito a ela. Era triste, se sentia ofuscado como pessoa. Muitos culpariam os
movimentos feministas, mas ele não. Sabia que caráter não é um movimento, é mais subjetivo
que isso. Contudo, preferia se conformar e dizer que não tinha problemas com a amada.
Beatriz era linda e o sentimento que ele sentia por ela era ainda mais bonito. Então deixou que
Na volta do motel, ele tentou mudar a música do rádio e foi reprimido. Começaram a
primeira discussão, pois ele não gostava muito dos pops latinos, enquanto ela também não
gostava, mas colocava para irritá-lo. Ele queria Bom Jovi, ela queria qualquer outra música,
até mesmo o silêncio aglutinador do “oi” de mais cedo. Era cômodo a ela, era incômodo a ele.
Calou-se, no entanto, e lembrou que ainda a amava. Amava tanto que deixaria o vazio entrar
no carro, no desconforto da blusa da Adidas e no perfume nacional que não cheirava mais. Ela
o deixou na porta de casa e saiu. Não pôde ver, no entanto, quanto outro carro adentrava o
muro da casa de Heitor, acertando-o ainda no caminho para a porta de casa. Ela nunca achou
estranho não ter notícias dele durante os meses que seguiram. Comentava com as amigas,
meses depois, que não entendia o porquê do abandono dele... Disse para si mesmo, nunca
Cansada de sofrer de amor e de outros males que assombram a vida, Beatriz resolveu
mudar as coisas. Acordou cedo naquele dia, mas apenas para comprar pão quentinho, já que
só comia pão amanhecido. Uma grande mudança em sua vida. O cheiro do pão novo, o aroma
e o saco de papel ainda novo, sem muitos amassados, eram muito novos pra ela. Até um café
Beatriz era muito sozinha, desde muito cedo, sabia se virar, mas era muito acomodada
com tudo. O problema de essas mudanças estarem começando agora foi Júlio. Júlio era
namorado de um amigo. Foi ele que apresentou a cunhada Madalena à Beatriz, que por sua
vez, apresentou Heitor. Parecia uma quadrilha de Drummond, entretanto, eram uma quadrilha
Heitor era boa praça. Mas nada acontecia na imaginação de Heitor e, por isso, logo
sumiu da vida de Beatriz, que se afastou de Madalena e de Júlio. Júlio não era boa praça,
mexia com algum tipo de droga que chamavam "droga do amor". Sempre apresentava pessoas
que sumiam da vida das pessoas e nunca mais apareciam. Madalena, coitada, era uma mulher
"Cansado de sofrer de amor? Os búzios já não dão a resposta esperada? Experimente um novo
cérebro!" Leu tão normalmente, como se fosse anúncio de manicure. Anotou o endereço e
desviou-se de seu trajeto. Ora, como um dia pode mudar nossa vida!
Pegou aquele ônibus de número meio apagado, que dizia Jardim da Luz ou era Jardim
Esperança... algo que indicasse esse sentimento que Beatriz tinha. A casa era meio velha, mas
cheio de aromas que ela não saberia reconhecer, mesmo que lhe fosse dito quais eram.
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Esperava ser atendida por uma Madame Suzana ou Paim André... Infelizmente não foi
Voltou triste, queria esquecer Heitor... entrou no ônibus chorando. No fundo do ônibus
avistou Heitor. Seria destino? Que péssimo destino seria esse então. Mas Heitor levantou e
anunciou o assalto. Não se lembrava de Beatriz, talvez no dia ele estivesse tão drogado de
amor, anfetamina que recebeu de Júlio, que apagara toda sua noite naquele dia. Ou talvez
Heitor só acontecesse na imaginação de Beatriz. Tentou ainda alguma comunicação com seu
Heitor, mas ele não queria conversa, talvez por que ele se chamasse Frederico. O que saberia,
Beatriz, é que deveria continuar na comodidade de sempre. Sem mais anfetaminas, Heitores e
amores românticos.
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Capitu
Seu nome era Capitu. Talvez fosse, tinha olhos de ressaca, mas não era esse o motivo
do seu nome. A culpa de uma carga tão pesada para o nome foi do médico, que se chamava
Joaquim. Mas não era Joaquim Maria, caso venha a pensar. Era mesmo Joaquim de Andrade,
mas leitor de Machado e não de Mário. Joaquim já era velhinho quando fez o parto de Capitu.
Tão velhinho que mal ouviu o grito da criança ao nascer e a castigara com muitas palmadas.
Nasceu sofredora essa Capitu. Talvez devesse se chamar Isaura, pois foi como viveu boa parte
de sua vida, nas mãos do padrasto, Guimarães. Não Bernardo, mas Tonivaldo. Pois tinha a
Isaura era triste desde pequena. Não se sabia a razão ao certo. Em sua primeira relação
sexual chorou feito criança. Talvez por que realmente fosse. Talvez por que eram dois
homens mais velhos. Talvez por que nem conhecia os homens e nem ficou com uma parte do
dinheiro, que foi todo gasto com cachaça pelo seu pai, Frederico.
Frederico, jovenzinho na época, foi quem vendeu Capitu para Tonivaldo. Graças a
venda, Fred conseguiu ir pra Goiânia, mas não ficou rico e hoje vive como favelado. Tentou
se mudar para São Paulo e para o Rio de Janeiro, mas dizem que as favelas de lá são mais
perigosas e o assalto não rende tanto, devido à polícia. Coisas que ouvi dizer, não posso
afirmar.
Dinamarque, mãe de Capitu e bem mais velha que Frederico, não foi contra a venda,
afinal, ganhou um belo vestido de festa, que usaria para trabalhar nas rodovias. Na verdade
foram dois vestidos, mas um ela não gostou muito e trocou por drogas dias depois.
Dinamarque era mulher guerreira, dessas de verdade, atendia toda noite e não reclamava
quando chegava em casa meio apática e pálida. Até mesmo, por que não teria com quem
Joaquim, o médico, foi uma alma caridosa, pois viu Dinamarque dando a luz no meio
do mato, onde abandonaria o bebê. Mas Joaquim salvou Capitu do abandono e a inseriu no
mundo. Que ironia! A ideia da venda sempre foi de Frederico, pois viu que isso rendia algo.
Jovenzinho, queria vida melhor. A venda lhe rendeu passagem para Goiânia e dois vestidos.
Tonivaldo era homem bom, cuidava bem de seus filhos legítimos, mas tinha que sustentá-los,
por isso Isaura era escolhida para ajudar nessa árdua tarefa.
Poderia se chamar Cinderela, mas não havia sapatos de cristal, fadas, abóboras ou
príncipes. No entanto, conheceu homens que lhe prometeram isso tudo. Baixos, altos, gordos,
magros, da sua idade, mais velhos... conheceu mulheres desses tipos também. Não sabia ao
certo se chegou a ver o paraíso ou o inferno. Mas Isaura era forte, e queria se tornar Cinderela
um dia. Infelizmente a vida não foi boa com a menina, que não chegou aos 16 anos e morreu
na beira de uma estrada, como era para ter sido desde o início.
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Camisa do Homem-Aranha
E toda vez que fingia ser um herói, sua mãe o podava. As mães não entendem por que
é importante para um jovem de vinte e cinco anos ser um herói, ainda mais depois do modo
que veio ao mundo, que ele mesmo não sabia. Se tivesse os seus oito ou dez anos seria
possível compreender, mas as mães não entendem mesmo por que um jovem de vinte e cinco
anos precisa ser um herói. “Francamente, Marco”, dizia a mãe, “é um homem formado, tem
diploma de Direito, não tem cabimento pensar que é o Super-Homem”. O rapaz discordava
veemente, claro, mas preferia não criar confusão alguma. Mal sabia ele que ela o acolheu
quando tantos outros irmãos e irmãs não viveriam até os 16 anos. Também já tinha
ocasionado umas boas brigas por isso e sabia que não sairia ganhando.
Ele sempre foi sonhador, talvez devido a tantas leituras que fizera durante os anos,
contudo esse seu invencionismo despertou com mais força de uns meses pra cá, quando
sonhou ter uma doença mortal. Ninguém sabia, nem ele. Foi ao médico escondido e guardou
os exames em um local estratégico, junto ao seu caderno de literatura. Sua mãe nunca iria
mexer naquele lugar. Por quê? Não se sabe, ele sempre achou que era o esconderijo secreto,
Certo dia foi a uma loja de departamento, dessas de shoppings e achou uma camisa do
Homem-Aranha... vibrou. Comprou e já saiu vestido. Parecia uma criança sorrindo por ter
ganhando algo que sempre quis. Ele era assim, sentia-se feliz pelas coisas corriqueiras e
cotidianas. Uma simples balinha de morango, daquelas de dez centavos o fazia feliz. Nunca se
deixou abalar por qualquer razão. Quando acordou e soube da doença, por exemplo, abriu um
belo sorriso e saiu para dançar na chuva. Quer algo melhor para purificar a alma e o espírito
do que a água? Ele sempre repetia essa fala, que ouviu de Heitor, seu professor de Literatura.
Da janela de casa um dia o vi pular o muro e correr atrás de um filhotinho que iria ser
atropelado. Mesmo indo parar no hospital ficou feliz em saber que aquele filhote de labrador
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havia sido salvo. O médico ainda fez uma piada que agradou o garoto - Marquinhos, o nosso
superman! - pois ele trajava uma capa vermelha. Ele gostou, tinha sido reconhecido.
Sua mãe, coitada, entrava em desespero toda vez que ele resolvia se transformar em
herói. Seja na escolha dos óculos ou na vestimenta social. Quando fez dezesseis anos ficou
muito preocupada e o levou ao psicólogo... “Não é normal um menino dessa idade se portar
como um garotinho”. O que a mãe não entendia é que ele realmente não era normal, porém
Há algumas semanas, quando limpava o quarto do jovem, resolveu fazer uma boa
faxina e acabou mexendo naquele local secreto. Encontrou os exames intactos, ao lado de
alguns escritos do garoto. Como toda mãe, abriu. Abriu e leu os resultados. O filho viu a mãe
com os exames na mão. “Meu filho”, foi a única coisa que conseguiu dizer antes de ele sair
correndo, atravessando a porta em uma velocidade surpreendente, deixando a mãe como grito
ofuscado de dor, além dos exames e um papel que dizia "Serei quem eu sempre quis". Depois
disso ninguém nunca mais viu o jovem. Ouviu-se histórias durante um bom tempo de um
certo mascarado salvando pessoas... Diziam os jornais que parecia que ele tinha poderes
O certo mesmo é que ninguém mais soube notícias do rapaz... no início alguns boatos
correram pela cidade, mas logo cessaram. O mascarado, que os jornais tanto falavam, sumiu,
coincidindo com a passagem de um meteoro. Ninguém nunca quis associar esses fatos.
Alguns anos depois, andando pela cidade, ainda em busca de pistas do desaparecimento do
filho, a mãe se depara com um mendigo usando uma camisa de Homem-Aranha, igual a que o
filho comprara... “Essas camisas de lojas de departamento são tão comuns”, pensou. O que
essa mãe não percebia era que nunca reparou no filho, e mesmo que ele aparecesse em sua
Presente de Aniversário
Em meio a conversas idiotas, cervejas baratas e amendoim ele pegou o dinheiro. Por
alguma razão, resolveu pagar a conta e ir embora. Seria destino, muitos diriam. Na verdade
foi azar mesmo. Pegou o eixo anhanguera, na altura da Vila Nova e seguiu rumo ao Terminal
Praça A. Meio alto de cerveja barata e com o estômago revirando de amendoim estragado,
não percebeu que junto a ele, Frederico, o homem da mesa ao lado também pegou o ônibus.
Não era do tipo mal encarado. Ao contrário, usava uma Calvin Klein no peito e andava de
Nike. Com seus vinte e poucos anos, quase trinta, qualquer um julgaria que tinha planos,
comuns de qualquer jovem dessa idade. Mas era um assaltante desde pequeno.
o balançar do ônibus. Passou pelo Lago das Rosas segurando o vômito que era indomável. Ao
descer no Praça A, o moço das marcas o fez tropeçar. Caiu. Frederico tentou ajudar, e como
Com o dinheiro, o jovem partiu rumo ao Jardim Esperança. Nem quis ver toda a
cerveja e todo amendoim indo de encontro do chão, em uma lambança sem fim. Os demais
Meses depois o homem do dinheiro cobrou Joaquim, ou Santiago ou Diego. Ele não
tinha como pagar. A quantia era alta e sequer ele usou. Foi morto pelo agiota quando
atravessava a ponte perto de sua casa, no Bairro de Campinas. O corpo caiu e só foi
encontrado dias depois. Alexandre, esse era seu nome, foi identificado pelo IML. Naquele dia
Conto de amor
Ele correu desesperadamente. Não estava desesperado, mas foi como correu. Largou a
lata de refrigerante sobre a mesa do bar, nem percebeu aquele homem bêbado em sua frente e
quase derrubou o amendoim que estava sobre a mesa dele. Um rapaz com a camisa da Calvin
Klein, que copiava algo de um livro para o guardanapo, estranhou a forma como ele saiu e
fingiu que não era com ele. Saiu sem pagar. Isso tudo devido àquela menina dos olhos azuis
falsos e cabelo preto. Sempre foi apaixonado por ela, mas depois de quase 15 anos sem vê-la,
precisava correr atrás e dizer o que sentia. Foram longos anos de espera, aguardava
ansiosamente esse encontro. Quando a conheceu ela tinha seus 10 anos, e ele sequer sabia o
que era amor. Hoje, mais maduro, entende o que sentiu e ainda sente. Ela nunca soube desse
com o vento. Ela se debruçou sobre o parapeito do mirante. Tudo estava conforme ele sonhou
a vida toda. Malditos professores de literatura, será que sempre idealizam tudo? Aproximou-
se. Disse um boa noite meio que sussurrando. Teve que repetir, pois nem ele escutou. Ela,
Seus 25 anos de beleza ainda reluziam a inocência de outrora. Seus 25 anos de beleza
reluziam a mulher que ela havia tornado. Sem saber mais o que falar, ela tomou a iniciativa.
Nessa hora é que ele percebeu que tê-la visto uma única vez e se apaixonado era muita
- Infelizmente não, apesar de essa ser minha vontade há mais de 15 anos. Desde que te vi em
- Lembro sim. Como poderia esquecer do amor da minha vida? Me apaixonei por você aquele
dia também!
Esse era o diálogo que ele queria ouvir. Mas sem coragem e sem querer parecer um
maníaco perseguidor, disse adeus, foi embora... e assim como o refrigerante não pago e
Ela, de longe, ainda o veria atravessar a rua e se lembraria daquele cabelo loiro
encaracolado. Seus 25 anos de beleza ainda reluziam o primeiro olhar apaixonado que ela
Um dia de aniversário
Ele acordou. Não era um dia normal, como qualquer outro. Era o seu aniversário.
Grande coisa! O dia anterior não tinha sido nada bom, perdera o amor da sua vida... Como de
rotina, despertou, abriu o blackout de seu quarto, abriu a janela. Respirou um pouco daquele
dia. Que dia! Foi ao banheiro. Escovou os dentes, vestiu roupas, tomou banho, fez a barba,
penteou o cabelo. Nada foi nessa ordem. Depois de ontem nada mais fazia sentido ao
ultrarromântico. Mas fez tudo o que devia fazer. Ligou o computador. Não nessa ordem.
Abriu seu e-mail, suas redes sociais - Facebook e Twitter - e fechou. 15 minutos.
Sentia-se estranho. Nenhuma razão aparente. Ah, era seu aniversário! Mas essa não
era a razão de sua estranheza. Tinha outra razão, mas não queria revelar logo pela manhã.
Toddynho -. Saiu aquela manhã de casa, como qualquer outra manhã. 10 minutos.
08 minutos. Chegou à escola. Sempre adiantado. Não eram sete ainda. Mas já havia
muito mais que sete na sala dos professores. Vieram dar os parabéns. Não que todos se
balões coloridos, impressos diretamente do clipart. Afinal, era onde a secretária da escola
sabia trabalhar bem. Word. Mentira! Ela era melhor em adicionar os amigos que nunca
conheceu em suas redes sociais - Orkut, ainda não sabia mexer no Facebook. Entrou no
próprio Orkut apenas quando não era mais por convites e nem em inglês. Não ganhou nenhum
Chegou para dar sua aula. Surpresa! Era um amontoado de adolescentes, ou jovens,
que fizeram uma festinha: João, Mário, Marianazinha, digo, Mariana... Bolo de chocolate,
Coca-Cola, salgadinhos... Seria uma recepção calorosa, se a maioria desses alunos não
quisesse apenas não ter aula nesse dia. Deu certo. Às vezes é bom sair da rotina, usar o que a
Os alunos, porém, não escaparam do segundo horário. Ele não tinha o terceiro. Depois
Almoçou em um restaurante muito caro. Resolveu gastar aquele dia. Gastou mesmo.
Almoço e compras no shopping. Trocou de celular, comprou um relógio e olha que detestava
relógios, uma carteira, alguns adesivos- pra quê? - roupas... só não usou todo o limite de seu
cartão, pois era ilimitado. O erro já começa por aqui, professor com cartão ilimitado. 4 horas.
No caminho de casa, os familiares ligaram. Iriam fazer uma festinha para ele - uma
reunião. Cada um iria levar algo para comer e beber. Casa cheia, cerca de doze pessoas.
Agora sim, ganhou presentes. Seus pais te deram um novo liquidificador, ele precisava. E
como eu precisava! Ganhou de seu irmão um tablet (único item que não comprou, pois já era
presente anunciado). O presente mais surpreendente foi de um primo já mais velho, Luiz. Ele
não tinha muita noção das coisas. Mudou-se para Goiânia desde a morte de sua mãe, que
deixou uma boa herança a ele. Luiz, o primo mais velho sem noção, deu um livro de
autoajuda para não errar no presente, afinal, para professor de literatura se dá livros de
presente. Livros?! Livros! Livros... O título não lembraria para dizer agora, mas era alguma
coisa referente a mito, mitologia, ensinamento chinês, tailandês e o monge... algo do tipo.
Ainda restavam algumas horas do dia para limpar toda a bagunça. Começou. Jogou o
liquidificador velho fora, e também a caixa do novo. Odiava guardar caixas e outros
badulaques. Odiava quando diziam "Guarde, vai que um dia precisa?" - Se precisar eu
compro! – Pensava ele - O que não vou é encher minha casa de coisas que não preciso! Jogou
lixo fora, limpou, guardou, lavou... não nessa ordem. Mas fez tudo o que deveria fazer. O que
Machado... Mas um autoajuda não merecia estar ao lado dos grandes, ele sempre retrógrada
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dizia. Não sabia mesmo o que fazer com o livro. Tentou arrumar a prateleira de livros para
achar um espaço, tirou Guimarães e Drummond para colocar ao lado de Machado. Sem muito
espaço, debruçou os livros na janela e aos poucos ia organizando. Não viu seu Drummond
cair, o que deu espaço para guardar o presente. Contudo, sempre retrógrada, achava feio
ganhar presentes e não usá-los. Sem opção, resolveu ler. Virou a noite lendo. Leu o livro
inteiro em uma noite. Após o fim da leitura jogou o livro longe, tão longe que não chegou a
cair perto do Drummond, que ainda permaneceu na calçada até ser encontrado por um jovem
rapaz, que o pegou e levou pra casa. Foi dormir. Caía de sono já. Acordou horas depois.
Estava pronto no outro dia para dar aula. Seguiria a filosofia chinesa, japonesa, holandesa e
Não abriu o blackout, sequer a janela. Estava escuro. Sem perceber, tropeça em algo
que restou da festa do dia anterior. Cai e bate a cabeça no criado mudo e assim permanece,
mudo. Ambos fadados a nada falar. Naquele dia não foi dar aula, não seguiria a filosofia nova
que resolveu adotar. O telefone tocava sem parar aquela manhã. A escola teve que substituí-lo
naquele dia, e no dia seguinte e no outro. Aquela escola sempre teve problemas esse tipo de
professores. Contudo, os mais bem humorados diziam que os professores daquela escola
saiam da vida pra entrar na literatura, em um clichê, talvez uma verdade. Ninguém saberia
dizer.
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Marianazinha
Era a hora de jantar e Marianazinha não descia do quarto. A mãe, depois de chamar
várias e várias vezes, perdeu a paciência. Onde estaria Marianazinha? A janta era a comida
preferida dela, sopa de letrinhas. Cada letrinha com uma cor diferente, menos a cor verde, ela
não gostava... sabia que era de legumes. Teria, ainda, bolo de cenoura com cobertura de
chocolate de sobremesa. Mas passava das nove horas, e nove horas era a hora da janta. Onde
está Marianazinha?
Sua mãe gritava, e gritava pela filha no pé da escada. Escada essa que Marianazinha
sempre brincou como sendo à entrada da casa de princesa dos filmes da Disney. Quando
cresceu um pouco mais, desistiu dessa brincadeira. Cansava subir e descer as escadas sozinha.
Uma coisa estava certa, Marianazinha não parecia estar no quarto, ou não ouvia sua mãe
Cansada de gritar, sua mãe subiu as escadas para ir ao quarto ver o que acontecia com
Marianazinha. Eram nove e dez e nada de a filha vir jantar, como pode? Um passo, dois
degraus. Dois passos, quatro degraus. Três passos, cinco degraus. A escada nem era assim, de
Marianazinha que dava àquela casa um tom de azul celeste, misturado ao rosa claro, cor de
Marianazinha ali não estava. Não jantaria em casa de novo, assim como não jantou noite
passada, assim como não jantou semana passada, assim como não jantava há alguns anos.
Marianazinha já era Mariana. E sua mãe, ainda era... bem... ela não tinha imaginação. Era
Daqui uns tempos, quem sabe, Mariana não volte para casa. Quando a casa tiver mais
degraus, talvez, ou a mente de sua mãe ter um pouco mais de espaço, para poder entender que
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Marianazinha agora era Mariana. Pode ser que Laura esteja mudando, hoje já se deu nome e
sempre deixa a porta entreaberta, caso a filha volte. Amanhã poderá tirar o edredom rosa claro
da cama... Só restariam os degraus... Laura precisa aprender a usar a imaginação e subir mais
alguns.
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Marco Antônio Silveira Salgado era modernista brasileiro. Tinha todo um jeito
vanguardista no modo de falar. Às vezes meio Mário, como conta a história do armário. Ora,
também, acordava meio Bandeira, hasteado e pronto pra duelar. Mas muitos dos dias ele
Marco Antônio Silveira Salgado era modernista de colecionar livros literários e obras
artísticas do movimento. Tinha quadros verdadeiros e outros falsificados, afinal, não era tão
rico assim. Até tentou sobreviver de sua literatura, uma época, mas a literatura não dá espaço
para os marginais, assim como a sociedade não dá margem pros marginalizados. O jeito foi
Marco Antônio sabia que grandes escritores eram, por essência, “doutores”. Contudo,
percebeu logo cedo que os doutores de antes eram letrados, à medida que os que se dizem
doutores hoje são pragmáticos. "Que fim levava a literatura com tantas leis e pouca
relatividade?" Pensava ele muito sobre o caso, quando nas noites frias ia para a janela do seu
Marco Antônio percebeu que Tarsila não lhe fazia bem socialmente, deixou Amaral.
Encostou o armário na parede, para que não houvesse espaço atrás. Retirou a bandeira do
Brasil da entrada da casa... não procurava mais uma identidade brasileira. Se quer sabia qual
era sua identidade. Deixou sua casa ainda cedo, como deixaria de salvar o mundo e de usar a
literatura...
coisas... esse verbo, caso não existisse na gramática, seria um grande erro de português para
ele agora. Com festa, com bebida e com comida festejou sua formatura ao lado dos colegas de
linguagem, posição ideológica. Mas, hoje, são apenas adversários de causas terrestres, nada
mais.
Dr. Silveira, como logo seria tratado, passou de office-boy a estagiário e de estagiário
a advogado, assim que passou na OAB. Em pensar que esse menino já deu sua vida para
salvar a de um simples labrador... Em pensar que esse menino queria entrar na ABL, ou, ao
menos, ganhar um prêmio Camões de Literatura... Era advogado credenciado e começava ali
Sr. Silveira atendeu muitos casos simples, muitos casos complicados, muitos casos.
Logo seria reconhecido pelo seu trabalho. E foi esse reconhecimento que levou seu nome para
a boca do povo e seus preços para o topo da pirâmide. E saber que teve um dia que só quis
reconhecimento...
Antonio, do Dr. Silveira ou do Sr. Silveira... era simplesmente o Marquinhos que escreveu um
dia em um papel “Serei quem eu sempre quis”, assim que pegou os resultados do exame que
fizera e os guardou na gaveta de um móvel abandonado pelo tempo, que ninguém nunca
encontraria.
Quando se deu conta de tudo o que havia acontecido, já com seus 40 anos de vida, percebeu
que nunca, se quer, foi modernista. Era nascido em outra época, sua infância foi longe dos
grandes centros urbanos, sua adolescência foi inocente... o problema foi ter sua juventude em
capital, perdido na cidade cheia de identidades para quem não sabia qual seguir. Por isso foi
vanguardista e se envolveu com tudo e todos. Por isso precisou ganhar dinheiro. Por isso
virou advogado. Por isso virou homem de respeito. Por isso perdeu o respeito de si.
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Marquinhos foi cruel. Deixou o Sr. Silveira transtornado. Ele pensou em se matar de
forma clássica, mas lembrou-se que se um dia foi artista, foi herói, foi moderno, foi
romântico... Que fim tomar? Que fim levar? Precisava mesmo de um fim? Sentou em sua
poltrona. Olhou para a sala e se sentiu como mais um elemento daquele ambiente. Antes ele
A sala que tinha uma mesa bonita e estante com livros deu lugar a um quadro
esquecido no porão. Os livros voltaram a se espalhar pela casa toda. Na sala, agora, poderia se
encontrar não apenas livros de Direito Civil, mas A Dama das Camélias, e claro, Paulicéia
Desvairada e Estrela da Manhã. DVD’s de super-heróis faziam volume nas estantes. O sofá,
verde musgo, deu lugar a estampas e cores vivas. A parede branca se viu repleta de fotos e
Ligou para o escritório e disse que não atenderia mais ninguém aquele dia. Nem mais
nos dias seguintes. A secretária estranhou, mas não questionou o chefe. O escritório se
manteria, mas ele não iria mais advogar. Pegou velhos escritos e sentou no tapete da sala
nova. Leu. Chorou feito criança, por horas. Deu-se conta que estava só, a doença terminar que
ele esperava era a solidão. Marquinhos foi embora. Era apenas o Sr. Silveira consigo mesmo.
Ele agora destoava da sala, mas se sentia como parte dela. Não era mais uma moldura, talvez
Levantou-se do chão, ainda era dia. Pela janela pode ver um cometa que passava pelo
céu da cidade, antes que tivesse um infarto súbito. Morreu debruçado à janela, sorridente...
Por alguma razão que eu não saberia explicar, foi possível vê-lo saindo do apartamento dele,
conversando com dois homens... Seu corpo foi encontrado pela vizinha, Laura, solitária desde
o sumiço da filha. Todo sábado ela levava um bolo de cenoura com cobertura de chocolate
para o Sr. Silveira, era o predileto de sua filha, Marianazinha, e também o do Sr. Silveira. Ela
avisou aos bombeiros o ocorrido, mas escondeu o papel que Silveira segurava. Era um
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poema... Somente essa vizinha poderia nos contar sobre o poema, mas tenho certeza que ela
não faria isso. Talvez ali esteja o segredo da vida, da morte ou da imaginação de Laura.
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Distúrbio
Era um dia quente, como quase todos aqueles que se iniciaram já desde janeiro. Os
jornais estampavam uma notícia sobre um louco que usava máscaras e queria ser chamado de
super-herói. Refletindo sobre isso e em uma discussão idiota entre seu Ego e Super Ego,
- É impossível que apareça algum herói genuinamente brasileiro. Imagine só! - Baforava meu
ego!
- Mas por qual razão você assim pensa? O Brasil é, sem dúvida, um país que precisa
- Não nego que precise, mas vamos raciocinar aqui comigo: Batman e O Homem de Ferro são
- Razão pela qual seria interessante que algum bilionário pudesse se tornasse um deles!
- Tá de zuação? Das duas uma: Ou seriam corrompidos pelo sistema, aliando-se ao Coringa e
afins ou seriam os primeiros a serem sequestrados, vivendo depois disso em qualquer outro
país mais tranquilo. Digo mais, se fosse pro Batman Brasileiro ter alguma síndrome seria de
- Esse é outro pobrinho que não se daria bem! Desde quando fotógrafo ganha bem no Brasil
pra se sustentar? Sem contar que se ele fosse geneticamente modificado, iria ganhar dinheiro
com isso! Menino pobre que descobre que é super poderoso ia ficar escondido salvando
- Mas temos tantos outros... Super Homem! Pronto, temos um com princípios. Sem contar que
o sol no Brasil faria com que ele ficasse ainda mais forte!
- Sua criptonita seria a poluição! Nem nós humanos conseguimos viver com nosso lixo,
imagine ele?
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- Deixo!
A conversa continuaria nesse nível, se o cérebro daquele rapaz não fundisse ao ver sob
a mesa de uma lanchonete um homem tomando uma Coca-Cola com gelo e limão.
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Alexandre Pessoa
Era maléfico, talvez tóxico. Mas o que importava. Ele bebia compulsivamente, como
água. Enfiou dentro da cabeça que deveria morrer. Bebeu. Aquele dia foi, quem sabe, um dos
que mais bebeu na vida. Exceto quando seu gato morreu, quando perdeu sua bola de futebol
predileta ou quando encheu a cara para afogar as mágoas da eliminação da seleção brasileira
na copa de 2010. Quando ia para sua trilhonésima dose o telefone tocou. Não o dele, o do bar.
Era um boteco de esquina requintado, tinha um telefone da época de minha avó, aqueles que
você gira cada número, demorando bons minutos. Urgência... um grito seria mais rápido.
O fato é que não era seu telefone, mas a ligação escandalosa, que se ouviu do outro
Alexandre Alvacena odiava seu nome. Era nome de gente velha e feia, pensava ele
toda vez que se olhava no espelho. Ainda agradecia ser esse, pois poderia se chamar
Eustáquio, já pensou que desencanto de vida seria se seu nome fosse Eustáquio? Pensava em
Estúpido telefone, pensou em primeiro momento, era a última dose daquele dia, pois
seu dinheiro havia chegado ao fim, como sua vida. Não gostava de pendurar, como muitos
faziam. Ia ao boteco, na verdade, mais pelo ambiente. Gostava daquele nome estranho na
parede mofada, daquelas cadeiras amassadas, daquele forró-brega que tocava todos os dias e
dos bêbados que levantavam e dançavam. Gostava de ver aquelas prostitutas gordas e que
faziam programa por um copo de cerveja. Muitas vezes ganhavam uma garrafa inteira, mas
nenhum homem ou mulher tinha coragem de encarar. Eram feias. Exceto aqueles velhos com
cheiro de cachaça e nome velho. Não era seu caso, apesar do nome velho, nunca teve cheiro
de cachaça.
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Ia ao boteco pelas cenas, situação, pela visão de mundo que tinha ali. Achava tudo
pitoresco. Na verdade, nunca foi cliente assíduo de nenhum outro lugar, exceto deste boteco.
Foi nele que bebeu quando seu gato morreu, quando perdeu sua bola de futebol predileta e
quando a seleção brasileira foi eliminada na copa de 2010. Mentira, a copa de 2010 mereceu
Pediu desculpas ao telefone, mentalmente. Ele não tinha culpa por mais um término de
desculpas, ainda mentalmente, ao errado português da dona do boteco. Odiava ter que aturar
tanto erro de português tendo que ouvir dizer que era uma "variação linguística". Percebeu
que aquela esquina nunca fora sua. Admirava beber sua Coca-Cola ali, observando toda a
cena, mas gostava apenas da Coca-Cola com gelo e limão e da visão em si. Lembrou-se do
dia que tomou seu porre de Coca na morte do gato que chamava de Pato, já estava velho,
precisa realmente partir. Ainda, recordou que ele foi o responsável por jogar a bola fora,
nunca quis aquela bola, a tinha por razões que não vale a pena aqui citar. E mais, lembrou que
foi a outro bar ver o Brasil perder por que aquele ritual de morte da seleção merecia um lugar
adequado com pessoas adequadas. Bebeu Coca como desculpa para tudo. Fazia mal a ele,
talvez tóxica para seu corpo, porém bebia compulsivamente. O gosto doce era magnífico.
Chegou ao telefone, colocou-o de volta ao gancho. Deixou dez reais sobre a mesa e
caíram 15 centavos sob o balcão. Não quis troco, não quis as moedas. Saiu lembrando que
não se chamava Alexandre à toa, era grande. Talvez o que te intrigava era que queria ser
chamado de Fernando, para não apenas ser grande, mas ser uma grande pessoa. Saiu correndo
e nunca mais voltou àquele bar. Nunca se teve mais notícias de Alexandre...
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Leveza
E simplesmente parou. Nada ali fazia muito sentido... sentido algum, se a verdade quer
saber. Já havia andado por outros lugares naquele mesmo dia. Pensava muito e não sabia o
que fazer. Passeou por livrarias, fazia bem a ele. Passeou por lojas de doces, fazia bem a ele.
Passeou, fazia bem. Mas não fez como deveria fazer. Nos bancos que ficavam defrontes ao
grande vão do último shopping qual foi naquele dia, sentou. Estava no terceiro andar. Um
parapeito de vidro... Altura de sua cintura, mais ou menos, e um pequeno espaço entre o chão
e seu início.
Sentado, observava tudo. Nem todos o observavam... ninguém o via, se a verdade quer
saber. No segundo piso, dois jovens estavam em frente a uma joalheria conversando... no
primeiro andar os seguranças do shopping levavam um outro rapaz, que parecia não entender
o que acontecia... observava apenas, sem que ninguém o reparasse. Lá do alto avistou uma
loja Sentiu-se próximo dela... quis entrar, era apenas um pulo. E pulou. Sentiu-se livre...
- Eu não!
- É, também acho.
Na mesma hora desistiu da insana ilusão e percebeu que ele não era o Batman. Não
poderia pular. Levantou com seu livro que propunha "Seis propostas para o novo milênio",
entre elas, a leveza. Decidiu ser leve de outras formas. Saiu daquele lugar pensando que não
era um super-herói.
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Aliança
O sonho dele era bem simples: queria usar uma aliança. Sabe aquela sensação que
todo mundo tem ou já usou... era justamente esse tipo de sensação que Caio tinha. O Davi
usava uma há anos, Maria adorava mostrar sua aliança com o nome dos dois. Joana, assim
que começou seu namoro ganhou uma linda aliança de Karen. Até Godofredo tinha uma que
ganhou recentemente do namorado. Mas Caio não tinha. Nunca teve. Até já namorou, mas
Para se ter uma algo desse tipo, era preciso, primeiramente, que se tivesse uma
namorada, ou um namorado. Ele nem fazia questão, pois entendia que o amor não escolhe por
Ninguém nunca entendeu, de fato, por que Caio nunca teve muitos namoros (foram
apenas três que duraram três meses). Era um rapaz classudo, bonitão, do tipo que qualquer
pessoa se interessaria. Não era nenhum galã de cinema, estava longe disso. Mas tinha uma
Seu namoro com Fernanda não tinha vingado. Com Júlio vingou, mas logo secou, pois
esse não valia muita coisa. Com Ana Bela vingou, não secou, porém logo se cansaram
daquilo. Com Fernanda foram três meses pra perceber que não tinha dado certo. Já com Júlio
foram três meses pensando que tinha dado certo. Com Ana Bela foram três meses quentes, tão
Tinha certa inveja das alianças nos dedos de seus amigos. Lembra até hoje do dia que
foi com Davi escolher a aliança de Maria... ficou todo entusiasmado. Quando Joana mostrou a
dela, seus olhos pareciam ver diamantes (e eram!). Com Godofredo pensou: até com esse
nome ele conseguiu uma aliança. Ele não era tão amigo de Godofredo como dos outros dois.
E o tempo passou. Davi havia se casado com Maria. Tivera dois filhos e Caio era
padrinho do primeiro. Joana e Karen adotaram uma criança da Etiópia e outra do Egito, eram
muito ricas e ligadas em causas sociais, além de ser modinha adotar nessa época. Caio ainda
não tinha conquistado nenhuma aliança. Teve mais dois namoros, de dois meses cada.
Percebeu um dia que sua vida não era para viver ao lado de ninguém. Viveria só
eternamente. Foi nesse dia que entendeu que se ele, astuto, bonito, bom tipo e com nome
comum não tinha ninguém. Godofredo, por ter um nome feio, também não poderia ter.
Levantou cedo no dia seguinte e, sem piedade, matou Godofredo, que dormia com namorado.
Lembrou o porquê não gostava muito do amigo, ele havia roubado a pessoa que mais amava.
Voltando para casa, depois de um longo banho na casa de Godô, encontrou em sua
porta Ana Bela, ela como sempre, bela como sempre. Entraram. Conversaram. Entenderam-
se. Perceberam que deviam se juntar. Não se amavam muito, mas alimentavam um para com
o outro um sentimento diferente. Sabiam transar e terem prazer juntos. Vai que nasce amor?
O tempo passou. Davi e Maria tiveram sua primeira menina. Joana e Karen se
mudaram para Etiópia, ou para o Egito, um desses países do outro lado do atlântico sul. Eram
muito ligadas nessas causas sociais, mas já não tão ricas. O fantasma de Godofredo tentava,
toda noite, atormentar Caio, que ria dele quando aparecia. Caio ainda não tinha aliança, Ana
loja. Conversaram. Se entenderiam. Júlio queria mudar de vida, cansou de não ser um bom
rapaz. Queria alguém para casar. Pediu Caio em casamento. Ele recusou. Júlio então disse que
estava falando sério. Entrou na primeira loja e comprou uma aliança. Caio aceitou. Fugiram.
Mudaram de vida. O sonho dele era bem simples: queria usar uma aliança.
Meridiano Alves
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Trabalhava arduamente todos os dias. Chovia, fazia sol, fazia sol chovendo... lá estava
ele trabalhando. Era cansativo, mas não se abatia fácil. Talvez por que fosse só. Sempre foi
um menino sozinho. Desde que teve que vender balas para se sustentar. Às vezes balas doces,
outras apenas embaladas em papel plástico colorido. Só teve onde morar quando atingiu a
maioridade, pois pode alugar algo decente. Pagou quase um ano para o proprietário e fez um
contrato no seu nome: Merediano Alves de Albuquerque. Sobrenome de rico e nome de mãe
criativa demais.
na porta do colégio. Setor Bueno parecia render para ele, pois sempre estava por ali. Talvez
por ter tanta gente bem sucedida... ou esnobe, como costumava dizer. Disse-me isso, anos
depois, quando o encontrei vendendo CD's em um bar. Ou será que foi quando vendia flores
Em um desses encontros, que não me pareciam casuais, pedi que sentasse e tomasse
uma Coca-Cola comigo. Foi nesse dia que soube toda sua história de vida. Nasceu pobre,
cresceu de orfanato em orfanato, até que fugiu e viveu nas ruas. Juntou o dinheiro e alugou
um barracão. Dizem que a cerveja faz a verdade sair, mas a pobreza também.
Meridiano era homem decente. Ganhou da nova namorada, uma menina rica que fazia
medicina na Universidade Pública, uma corrente de ouro. Recusou, a princípio, por ser,
naquele tempo, apenas balconista de uma loja de materiais elétricos. Com jeitinho, ela o fez
aceitar. Só usava quando ia vê-la... Quando terminou com a namorada, pela traição dela com
namorado.
Tenho dó desse rapaz, trabalhador, esforçado, honesto, mas parece que nada que fazia
ia pra frente. Dava-se mal no amor, no trabalho e até loteria. Chegou a ganhar na Mega-Sena,
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mas perdeu o bilhete em uma enxurrada na Marginal Cascavel. Foi atropelado duas vezes, em
Trabalhava muito, Meridiano, mas nada realmente dava certo em sua vida. Seu grande
sonho de constituir família se esvaía. Pensou em abandonar tudo e ir pra São Paulo, como
muita gente faz, mas pensou melhor e achou mais justo passar dificuldade onde já conhecia
Um dia, passeando no shopping, uma das suas distrações favoritas, foi barrado e
seguiu com os seguranças para uma salinha reservada. Assustou-se. Nunca havia feito nada de
errado. As balinhas em papel de plástico eram balinhas caseiras, que comprava de uma
senhora... Os CD's eram produção independente, nenhuma falsificação... Não entendeu nada.
Por alguma razão do destino, afinal, sua vida mudaria. Foi chamado nesta sala por um
motivo que transformaria o rumo de sua vida. Um olheiro, desses de reality show, achou que
ele era a pessoa certa pra um programa. Ganhou um milhão e meio de reais. Passou três meses
Mas, quem nasce pra camponês, morre camponês, já diziam esses ditados alheios.
Assim que recebeu a notícia da vitória do programa, o seu concorrente, incrédulo com o
resultado, o esfaqueou. Morreu ao vivo, enquanto a música dizia que tem que ir até o final se
quiser vencer. Balela! Foi até o final, mas não venceu na vida.
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Era a noite esperada. Depois de tantos anos ali, passivamente observando tudo, chegou
a noite esperada. Ele, ansioso, mas nada demonstrava. Ela, talvez nada sabia. De algum modo
ele conseguiu o convite para a tal festa no tal palacete. Um salão nobre na entrada, escadas
que partiam do salão para o andar superior, corredores com quadros de famosos pintores,
cortinas de seda... tudo estava como por ela planejado, a casa cheia. Talvez ela nem soubesse
da presença dele, logo ele se fez presente. Aproximou-se dela, um andar leve, um sorriso
penetrante e um olhar indefeso. Esticou a mão para cumprimentar a anfitriã. Solícita, ela
retribuiu o aperto de mãos. Não eram próximos para um abraço em plena multidão. Ele fez
uma referência de despedida e voltou à festa, cumprimentou outros muitos, estava na alta
Vestidos elegantes e bons ternos europeus, nem todos italianos, marcavam o centro do
salão. Ela, com seu vestido meio bege, se impunha diante as outras. Ele, com um terno que
sobrou-lhe de seu avô, passava despercebido entre os demais convidados. Ela dançava, ora
com um duque, ora com um príncipe. Ele a observava. Esbarrou em uma copeira que
derramou um champanhe no paletó. Assustada, disse que limparia, não queria ser despedida.
Como estavam no canto do salão, ninguém reparou. Foram à cozinha para secar o molhado da
roupa. Medrosa, pediu para que ninguém soubesse, todos ali foram contratados
exclusivamente para a festa. Calmo, disse que a copeira que não se preocupasse, pegou a mão
da dama e a tirou para dançar. Ali mesmo na cozinha. Ele precisava dançar. Ela precisava se
distrair. Depois dessa cena não se viu mais ele na festa, não até a metade para o fim.
O salão já estava cheio o suficiente para os parabéns. Outra copeira trouxe o bolo, era
melhor. Como de praxe de nobres, ela deveria fazer um discurso, não muito breve, não muito
longo. Não resistiu e optou pelo mais demorado discurso que já fez. Seu jeito a denunciava,
faria sempre o maior discurso. No salão as pessoas se misturavam e não se via um rosto que
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pudesse dizer quem era. Estavam todos ali em baixo. Esperava-se uma surpresa nessa hora.
Ela apareceu. Do teto descia um lindo pôster que seus pais e irmão o fizeram. Seu irmão,
Otávio, não estava presente, pois viajava a negócios. Mas o presente era deslumbrante.
Aquela foto escondia todo o andar de cima de tão grande. Animada com aquilo tudo, se
prolongou no discurso.
Foram os 10 minutos mais longos da vida de muitos ali. Parabéns cantado, bolo
repartido, mais música, mais bebida, mais noite e no fim, todos se foram. Longas 8 horas de
festa. Depois disso tudo, os pais desceram para o quarto de empregados, não precisava mais
fingir que os amava. Eles aceitavam as condições, ensinaram aos filhos tudo o que puderam e
agora dependiam deles para tudo e até os ajudavam, como nessa noite tão especial para todos.
As copeiras foram dormir, exceto a desastrada, que ficou por arrumar a casa a pedido da
aniversariante. Esta, cansada de sua festa, subiu, e ele, que sumiu durante boa parte da festa,
já a esperava no quarto. Abriu a porta. Encontrou seu presente: o quarto estava revestido de
todos os objetos valiosos da casa de boa parte dos convidados. Além de joias e outros bens
que renderiam um bom dinheiro. Riram muito os dois. Madalena agradeceu aos céus por
Otávio ter deixado Júlio de lado. Otávio, por sua vez, tirou sua fantasia de menino pobre, e
tão nobre quanto sua irmã, ficou irreconhecível. Ele, agora, podia sair pelos fundos e entrar
pela porta da frente... afinal, acabara de chegar de uma longa viagem de negócios. A copeira
No dia seguinte não houve muitas queixas de furto ou roubos em nenhum lugar. Mas o
comentário de que alguns amigos foram assaltados saiu nas colunas sociais. Algumas esposas
até notaram o sumiço de algumas joias, mas ficaram receosas em denunciar o roubo, afinal era
presente de amante.
No fim da semana, só ouviram-se boatos da boa festa que foi oferecida no Setor
Bueno. "A festa do ano", como algumas colunas sociais chamaram. "Ser rico tem suas
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tudo foi que os irmãos Souza e Silva agora tinham mais dinheiro para se manter durante um
Destoado do tempo
Já se ouvia aquela música estrondosa de longe. O som era tão alto que até abafava a
música que vinha de um certo palacete no Setor Bueno. Até fora convidado, mas aquelas
festas não faziam o seu estilo. Era Sábado. Era noite de sábado. Luiz vinha em seu carro
passado de dez anos de uso, para não pagar imposto, contudo era conservado. O carro e ele.
Meia idade, mas aparentava seus 30, no máximo. Estilo garotão ainda, vivia sozinho desde
que sua mãe faleceu, deixando uma boa fortuna a ele. Logo, ao receber, resolveu se mudar
para região metropolitana de Goiânia. Seu dinheiro daria pra viver até morrer, caso ficasse
solteiro para o resto da vida. E, assim decidiu fazer. Não deu muito certo por obra do destino
uma coisa, um filho ao acaso. Ele aparentando seus 30, nem se podia dizer que aquele menino
de 20, com cara de adolescente era seu filho. Nem ele podia dizer, afinal, do menino só
conhecia o número da conta bancária qual depositava todo mês a pensão, obrigado pela
justiça. E só a conta do menino, pois ele mesmo não tinha, coisas de pessoas do interior.
A noite estava tranquila, com poucos carros na rua, uma lua que brilhou no céu apenas
há 20 anos, quando se deitou com aquela mulher de vestido de velho, a mãe do menino,
menino que ele sustenta. Único menino que ela manteve, devido a pensão, pois os outros teve
que vender, seja por um vestido, seja por drogas... Esse ela teve que aturar! Mas isso já não
No decorrer dos anos, que foram passando apenas para os outros, Luiz foi para cama
com outras mulheres - loiras, morenas, ruivas - foi pra cama com outros homens - loiros,
morenos, ruivos - e para sair da rotina frequentava algumas casas de massagem onde podia ir
pra cama com homens e mulheres - loiros e loiras, morenos e morenas, ruivos e ruivas...
Ele não tinha mais pudor depois que sua mãe falecera, mas era comedido por ainda ter
primos na cidade... Nem tanto... Era um homem de todos. Gastou muito com programas de
televisão de canal fechado, gastou muito com programas realizados por profissionais do sexo.
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Eram muitos seus ideais... era pouca sua inteligência. Era tão pouca que não sabia diferenciar
A porta da boate estava cheia. Mas como em qualquer lugar do mundo esnobe dessa
sociedade, o dinheiro abre portas. Na capital do centro do país isso não muda. Era o que
chama hoje de VIP, quase que alguém importante nos olhos dos invejosos que o viram furar
fila. Alguns ainda tentaram reclamar. Beatriz conversaria com suas amigas sobre o descaso,
mas não teria muita importância, pois ninguém daria ouvido. Passou, entrou direto ao
camarote e já pediu um energético. Precisava estar animado. Em dois dias iria conhecer a
cidade maravilhosa. Sim, com tanto dinheiro ainda não havia pensado em viajar, exceto para
as fazendas no interior do estado que comprou. Ainda era muito roceiro, também.
Um energético foi o suficiente para animar. Tocava uma modinha qualquer, dessas
músicas barulhentas que toca em qualquer boate que atraia os jovens, e também os senhores
de meia idade que se acham jovens. Uma menininha, vestidinho colado, pele clara e nada
delicada se insinuava para ele, à medida que fingia dançar. Dançavam colados, rosto a rosto,
pele a pele, mãos nas bundas. De provocante a cena ficou constrangedora. Ele mesmo deu um
bebendo um Ice chamou sua atenção. Ia aproximar quando a menina que antes o provocava
Pensou, sabia que podia ser uma chance de puxar papo com ele, já que ela ali estava.
- Meu amigo gostou de você... - antes que ele pudesse responder ela já completava - e eu
Ele não gostou de ser identificado como homem mais velho, ainda era garotão. Mas os
dois olhavam de um jeito que prendia seu comportamento de negação, ainda que houvesse. O
rapaz continuava a beber seu Ice, tímido, parecia um adolescente, talvez um adolescente
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playboy, percebia pela blusa Nike que vestia. Mas ali estava cheio de playboys, desde homens
O recado estava dado. Meia hora de festa e ele já laçava sua vítima da noite. Ou suas
vítimas. O rapaz do Ice e a moça provocante. Saíram os três. Ele, todo pomposo, os chamou
Pararam na primeira loja de conveniência que estava aberta, desceram os homens para
comprar a bebida. 20 garrafas, decidiram por levar uma vodca e um refrigerante de limão
também. O balconista pode ver quando o garotão, no caminho, passou a mão na bunda do
rapaz, que levava a bebida. Fingiu que nada viu e logo fechou o estabelecimento, pois pensou
Desceu os três. Ela encosta o garotão na parede, o rapaz faz com a moça um sanduíche. Mãos
desconhecidas passam pelos três corpos. O rapaz pega a bebida e a chave da casa. Entra e vai
a cozinha preparar os drinks. A moça fica no sofá com o garoto mais velho.
O rapaz serve a moça e ao homem da casa. Brindam. O homem tenta beijar o rapaz,
que se esquiva. Ainda consegue passar a mão no corpo do rapaz. Bebem mais. Ele tenta
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novamente. Mas dessa vez cai tonto. Vodca é muito forte para pessoas fracas, ignorantes e de
pouca inteligência.
Quando Luiz acordou, no dia seguinte, não sabia onde estava. Sua cama era o chão da
sala, que vazia estava. Os quartos eram cômodos fantasmas, exceto o quarto de hóspedes, que
havia panos rasgados. Guardar dinheiro em colchão nunca foi uma boa ideia. Pensou em
chamar a polícia, mas o que dizer? Havia sido roubado por uma garota e um menino que não
Nu, como os jovens o deixaram, foi ao jardim verificar se ao menos as roupas sujas
estavam ainda na máquina, porém não havia mais máquina. Sem lenço e sem documento.
Sem roupa e sem dinheiro. Voltava a ser quem nunca deixou de ser, um pouco pior agora. No
espelho que ficou na sala ele começava a perceber que a velhice começou a chegar. 30 anos
passou em questão de segundos. Antes um garotão, agora um homem de meia idade, tapeado
por uma garota e um rapaz que tinha idade para ser o seu filho.
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Era uma noite como outra qualquer. Sentado em um banco na rua do lazer. Não sei por
que se chamava assim, pois o único lazer ali eram aqueles balanços quebrados, manchados de
porra e cercado por camisinhas. O lazer era das putas, ou as putas proporcionavam o lazer.
Não me pergunte o porquê eu estava ali. Nem eu sei responder. Poderia ser confundido com
Ali passavam putas diversas com diversos tipos de pessoas. Acompanhavam elas,
despertar da puberdade, jovens querendo experimentar outras coisas... Eu, sentado no banco
O dia estava meio frio, ou eu estava me sentindo assim. Acho que minha regata não
colaborava, ainda mais com aqueles buracos que nela existia há anos. Minha mão magra,
quase sem gordura ajudava o frio a dilacerar meu corpo. A cada hora outras diferentes putas,
passavam com outros diferentes clientes. Cada um com sua vida e sua forma de fugir de sua
realidade.
As últimas pessoas que avistei naquele dia foram um senhor de meia idade e um
jovem descendo de um carro, no outro lado da rua, entrando em uma loja de conveniência e
depois saíram com bebidas. Minha mão trêmula e minha boca seca já sangravam muito até
que não aguentei mais observar a vida dos outros. Era hora do meu flash de vida no momento
de morrer, quando passa um filme em sua cabeça para que possa se libertar. Não tive tempo
para ver meu filme até o fim... a luz que todos falam apareceu rapidamente, ao lado de
Larissa já vai tarde. Já passava das 3 da manhã e somente agora resolveu seguir
adiante. Ficou parada ali por horas e horas, enfim resolveu ir em frente. Observei-a desde as
quando chegou, por volta das dez da noite. Ainda havia movimento na rua, carros passavam
com seus faróis que cegavam qualquer um. Sentada ali, lia um livro, calmamente, como se
aquele instante fosse tão precioso que não pudesse se mexer, sair, se quer olhar para o lado.
Quando sentou, todos pensavam que estava a esperar por algo, mas logo arrumou sua
mochila vermelha, sacou um livro e começou sua leitura. As pessoas passavam e não a
observavam, era invisível, exceto para um senhor que perguntou as horas, já quase 11 da
noite, único momento em que ela deixou seu livro de lado. Contudo voltou em seguida para
Larissa já vai tarde. Sem medo e sem preocupação, ela se foi tarde da noite. Depois de
ter sentido sua leitura que se prolongou durante todo esse intervalo, ela se foi. Leitura fixa,
onde corria os olhos cuidadosamente por cada palavra que ali surgia. Pessoas sentavam ao seu
lado a todo o momento, ela não se importava, penso que nem as viam. Uma vez um garoto
com seu irmão, quase uma da manhã passou ali e deixou cair uma moeda, que andou até o pé
de Larissa. Ela se abaixou para pegar a moeda sem tirar os olhos do livro e entregou ao
garotinho. Se disser que viu o rosto dos meninos é mentira, sua leitura era hipnótica.
Assim, depois das 3 da manhã, ela escreve algo no livro e o deixa sobre o banco
branco em que sentava. Levanta-se, segue seu curso. Larissa já vai tarde. Já vai tarde para um
destino que não conhecia. E em minha curiosidade, desci, e fui ao banco ver o livro. E assim
começava minha leitura. Eu já cheguei tarde, passava das três quando cheguei...
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Ela e Eu
Seu perfume exalava perto de mim. Ela estava ali, alguns metros adiante, mas seu
cheiro em volta de mim. Poderia parar esse instante só pra me desdobrar em cada aroma que
aquela menina me transmitia. Doce, sereno, fugaz, voraz, eram inúmeras as sensações e
nenhuma poderia descrever precisamente o que estava sentindo. Quem era aquela garota do
parque?
balançava seu cabelo, com todo cuidado. Parece que ele sabia: ela é uma semideusa, ou quase
isso. O sol tocava sua pele tão sutilmente que não percebia que essa tarde estava acima do
normal. Em seus dedos finos a delicadeza de quem nunca havia trabalhado, dondoca, filha
criada com todos os mimos que uma moça rica pode ter.
Esses dois minutos em que parei, o mundo a minha volta tomou sua cor, o céu azul
ficou, e o verde tomava toda a grama. A sombra das árvores ficou mais deliciosa, e o sabor
das maçãs menos envenenadas. Que moça é essa que me tomou em segundos, prendeu em
Será que ela espera alguém? Um namorado, amigo, alguém especial... Um rapaz de
cabelos encaracolados, que havia chegado esbaforido depois de tanto correr aproximou-se.
Tão bela, deveria ter namorado, evidentemente. Contudo, ele pouco demorou e saiu. Não
pode ser nada dela, pois saiu muito rápido... talvez pediu uma informação, quem sabe!
Se ela, linda como é, não esperava por ele, só pode esperar por mim! Aproximei.
Sentei no banco ao lado. O homem que estava sentado no banco estava com uma leitura tão
Dali, daquele lugar, pude perceber que quando cruzava as pernas com toda a
delicadeza de mulher ingênua pairava no ar. Iria falar com ela, até que um senhor apareceu.
De bela a vadia. Náuseas me tomavam. Sua imagem não era mais a mesma, sua
sutileza se transformou em qualquer outra coisa, exceto ingenuidade. Levantei e fui embora.
Sem perceber esbarrei no homem ao meu lado, atrapalhando sua leitura. O senhor, então,
- O programa precisa estrear logo Luana, então providencie logo esses apresentadores, sua
- Ok. Estou com alguns nomes para entrevista, inclusive começam daqui a pouco, até mais.
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Luana
- Desculpe incomodar você. Imagino que esteja com pressa. Indo à faculdade, talvez. Mas eu
Foi assim que ele começou a conversa com aquela menina de olhos castanhos e pele
clara. Estavam em uma praça, no centro daquela metrópole, ao menos para ele se tratava de
uma. Ela sem reação sussurrou um sim, que quase não ouviu, mas perceptível pela expressão
- Não se assuste, eu peço. - realmente não havia razão, era um moço bem aparentado, de
mochila nas costas, alguns livros de literatura na mão e uma garrafa de Coca-Cola vazia, que
Lembro-me de ver uma reação estranha da parte dela. Do banco onde estava via e
ouvia quase toda a conversa. Era como se sentisse o que estavam a dizer e pensar. O livro que
- Não se assuste novamente. Eu sei que isso pode parecer estranho. Mas quantas vezes nos
encontramos na rua, deste modo. Você indo e eu vindo. Ou ambos indo ou vindo. Sei que
nunca deve ter me notado. Mas eu sempre observei você. Sempre me chamou a atenção.
Lembro-me uma vez que sorria com suas amigas, sentada na grama perto do prédio de
- Pode parecer loucura, eu sei disso, mas eu me apaixonei por você desde o primeiro momento
em que a vi. Estava eu passando pela calçada e você parada, esperando uma pessoa atravessar
do outro lado da rua. Deslumbrei-me com você. Logo você seguiu caminho, e ainda bem que
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não me viu tropeçar no meio fio e cair justo na lama que havia se formado ali. A lama era o de
Nunca havia presenciado tal sublime momento de declaração. Ele pareceu ser sincero
com os sentimentos. Ela ainda estática, movia-se apenas para tirar o peso de um lado do corpo
para o outro.
- Parei você hoje, pois tive medo de ser nosso último encontro. Quando poderei vê-la de novo
não se sabe. E se nunca mais a visse, como saberia o que sinto por você? Você simplesmente
não me reconheceria, ainda que escrevesse um poema em seu nome. Poderia lê-lo anos depois
ou ainda hoje, e não saberia que a Luana dos meus versos seria você.
Nessa hora, ela olhou pra mim. Na verdade, olhou para o rapaz que atrás de mim e
- Daniel - disse ele meio confuso com presença do rapaz. Ela deu continuidade à conversa.
- Daniel, gostei muito da sua sinceridade e achei muito importante você vir conversar comigo.
Mas eu realmente não sei quem é você e tenho namorado. Desejo sorte pra você e peço
Sem reação, ele ficou ali, sentado onde eu estava. Ao meu lado. Luana e o rapaz
seguiram seu caminho. Ele, ainda sem rumo amassou um papel, jogou no chão e saiu aos
prantos. Não resisti e peguei. Desamassei e sem ler, coloquei dentro do livro que estava lendo.
Possivelmente era um poema com nome Luana, que o próximo que pegar o livro poderá,
talvez, confirmar.
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Foi em um dia desses quaisquer de tédio que ele resolveu criar seu próprio deus.
Sentado na cadeira, meio que largado e com o pé sobre a escrivaninha, desenhou vários
deuses. Uns pareciam Jesus, outros Buda, desenhou também Elefantes, Cobras, Raios e
Mares. Nada o agradou. Sua lixeira se entupia e seu caderno esvaziava, em um processo de
reciprocidade entre ambos os lixos. A verdade é que nunca fora bom para desenhos, mas
sempre teve um dom para a literatura. Resolveu então escrever sobre o deus que fazia questão
em criar. Queria um ser sobrenatural, mas ao mesmo tempo humano. Pensou na natureza,
pensou nos homens. Essa relação direta era destruição, parou de pensar. Pensou nos céus,
pensou nos homens. Que idiotice relacionar tudo aos homens. Pensou nos animais então, já
Não deu muito tempo deixou de escrever, e foi discutir sobre deuses no Facebook, já
que sua imaginação não fluía. Três minutos já viu pessoas fanáticas por suas religiões e
antirreligiosos (que pra ele essa defesa tão categórica por uma não religião já se tornava uma).
Poderia jurar que entre chumbos cruzados de religiosos e não crédulos viu uma pomba, mas
Foi para o Twitter desabafar, mas logo sentiu vontade de fechar, quando um ser
qualquer lhe respondeu algo do tipo que não queria ouvir. A internet tem dessas, ouvimos,
vemos e fazemos o que queremos, não apenas, somos o que queremos ser. Ele era quem ele
queria, decidiu isso há muito tempo e já tinha até escrito em seu caderno de literatura. Aliás,
foi uma de suas primeiras frases naquele caderno: "Serei quem eu sempre quis". Mas lhe
faltava ainda um deus, um que lhe protegesse na luta contra o mundo. Todos temos essa
Foi escovar os dentes para lanchar depois (ordem imbecil essa, por sinal), e defronte
ao espelho teve sua ideia primordial. Seria seu próprio deus. Por que não? Ele faria história.
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Seria a História. Faria literatura. Seria a Literatura. Seria herói! Não faria desenhos, pois
nunca fora bom, mas fariam retratos dele. Ajudaria as pessoas necessitadas, apenas aquelas
que ele quisesse e gostasse. Faria o bem, o bem que achasse que fosse bom. Voaria ao infinito
e além... sempre além para sua vida. Engrandeceu-se vendo seu reflexo no espelho, uma luz
envolta de seu corpo e as pessoas gritando seu nome. Abriu um sorriso que desapareceu
segundos seguidos.
Sua mãe é quem ligara a luz do banheiro, que não possuía janela, e o chamava, aos
berros:
Ele não sabia pra onde ia, na verdade, sabia. Seu destino já estava traçado por outros.
Nunca poderia ser seu deus, um herói, um literato... fadado às leis do mundo, às leis do
direito. Não tinha autonomia para ser quem quisesse, era o que pensava. Quando não fossem
seus pais, seriam outras pessoas, outros meios, outras culturas, outros arranjamentos...
Desistiu de criar um deus, e de sê-lo. Disse à mãe que já estava pronto e partiu para fora de
casa. No caminho pensou o quão difícil é ser deus, ainda que um deus egoísta como ele
Ela era prima daquela. Era tia daquele. Sobrinha deles ali. Pertencia àquela igreja. Ex-
esposa do que não veio. Ele é o filho dela. Ela era a irmã das duas no canto, filha da que
Ela foi muitas, mas agora é apenas uma, a falecida. Os choros são contidos por uns,
mas incontroláveis para outros. Ele, o filho, está estático. Olhar paralisado. Será que ele sabe
o que houve? Digo, será que ao dormir hoje ele não ficará estranho, sem chão, sem forças...
Ele não chorava, outros se debulhavam. Lá fora, alguns riam e conversavam alto, será
que não percebiam a gravidade da situação para ele? Inocentes, as crianças corriam para todos
os lados, suadas, mas não demonstravam sinal de cansaço. O tempo quente da noite
colaborava para que todos estivessem exaltados, sejam sorrindo com outras conversas, ou
Passava da meia noite quando ele saiu e foi descansar um pouco. E pouco demorou
para voltar. Debruçou sobre o caixão. Sem uma lágrima, sem um ruído. E estático, mais uma
vez permaneceu. A noite se prolongava. As horas até o enterro pareciam demorar durar mais
que o normal. A lua minguante reduzia a cada minuto, e a cada segundo as pessoas se
dispersavam.
Pouco passou a madrugada ali. Mas mal chegou as sete da manhã e já apareciam todos
da noite. Rezas, orações, unções, bênçãos... O choro tomou conta da sala. As pessoas seguiam
rumo aos carros. Iriam fechar o caixão. A tampa já sobre ela, o garoto quebra o silêncio com
um sinal para abri-lo novamente. Beija a testa da mãe e parece sussurrar algo. Seus dedos
finos e seu toque leve a acaricia. As lágrimas escorrem. Olhos vermelhos, ainda contidos. O
cortejo segue até o sepultamento. Rezas, orações, unções, bênçãos... Cânticos. Ela é enterrada.
Levou-se sonhos, não sei, não posso afirmar nada de seu otimismo para lutar contra o câncer.
Deixou seu filho, único. Ao acordar desse pesadelo, infelizmente, ele perceberá que ele se
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fará presente todos os dias. Nem sempre a vida é justa, até porque não temos a noção de
justiça.
Quando fui embora, ele estava pensativo. Ao dormir ou acordar verá sempre a mesma
cena, a vida com o mesmo compasso. Quando ninguém mais estava e a mãe já tinha ido, foi
pra casa e chorou, como não havia chorado durante todo o velório. Sentiu saudades, mas não
tinha como parar de sofrer. Revirou o guarda-roupa e lá no fundo achou aquela camisa regata,
já com furos do tempo, que usava pra jogar bola. Sua mãe sempre a quis jogar fora e ele não
deixava. Vestiu, era a maneira de se sentir mais próximo dela, como se pudesse ouvir a mãe
brigando com ele, dizendo que daria aquela roupa para os outros. Desnorteado, saiu pelas ruas
movimento da rua e das pessoas até que viu uma luz branca se aproximando.
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Desafios
- Cuidado!
Mas já era tarde. Não deu tempo de avisar o que estava pra acontecer. Foi tudo muito
rápido. Aqueles nove segundos foram incapazes de dizer o que era preciso. A sensação era
que estava saindo do mundo, saindo do lugar que era comum a mim.
Estava eu em minha tranquilidade, sem nada reparar aos lados, vivendo e boiando em
meu mundinho, que para mim era o mais significativo de todos. Cada segundo nesse meu
mundo pareciam minutos, horas até meses. Sentia que nesse tempo crescia, evoluía, me
tornava gente. Estava leve, pensativo, vibrante. Estava me sentindo bem. Com toda essa
calmaria não percebi nada o que estava a minha volta e quando dei por mim, tudo se foi, tudo
chegava ao fim naquele momento. Meu mundo, minha calmaria, minha tranquilidade...
Nesse momento eu comecei a chorar. Já via uma luz branca como eles diziam que eu
iria ver. Ela se apoderava de meus olhos, uma luz branca brilhante me tomava. Chorei. Que
luz é essa que ofusca minha visão. Quem me chama do outro lado? Quem não quer me deixar
viver?
Mas já era tarde. Não deu tempo de avisar o que estava pra acontecer. Foi tudo muito
rápido. Aqueles nove segundos foram incapazes de dizer o que era preciso. A sensação era
que eu estava saindo do meu mundo, saindo do meu lugar comum, conhecendo outro mundo.
- Um menino...
O que ele queria dizer? Como ele sabe isso sobre mim? Onde estou? Meus olhos mal
conseguem ficar abertos. Aqui não tem água para que fique me banhando a todo o momento.
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Quem é essa mulher que sorri a me ver? Quem são essas pessoas de branco? Onde está a
minha namorada?
Como assim, mamãe? Essa menininha ai não é a minha namorada? Ela é minha irmã?
Por que eu tenho que sofrer desde o primeiro momento que venho para esse mundo? O
- Otávio e Madalena, Doutor Joaquim Andrade, assim vão se chamar! – respondeu com brilho
Felipe nasceu com um problema que só descobriria aos 16 anos. Era um menino feliz,
inquieto e sorridente. Aos quatro anos aprendeu a andar de bicicleta, com rodinhas, claro. Mas
nem completou os cinco anos e tirou. No primeiro tombo se ralou todo, deixando sua mãe
desesperada. Porém ele sorria, dizia aprender com a vida! Olha só, nessa idade e já falava
isso. Pensavam que era de escutar dos outros, eu nunca acreditei... a pessoa nasce com
personalidade.
Aos seis anos foi para a escola e fez muitos colegas e alguns amiguinhos, que se
perderiam ao passar dos anos, exceto um, Marquinho, pois esse sim era o seu melhor amigo.
Faziam artes... certo dia, me lembro, desapareceram dentro da escola, ninguém os achou.
Onde estavam? No lugar mais óbvio, na sala de leitura! Porém quando iam procurar por lá,
escondiam rapidamente, pois o portão rangia tanto que se escutava a milhares de quilômetros.
Quando completou nove anos sua mãe, religiosa que só ela, disse que o menino tinha
que frequentar a catequese e ser crismado. Matriculou o garoto, que todo sábado ia para os
rumos da aula cristã... só nos rumos. Sua mãe o matriculou tantas vezes que perdeu a conta.
Sorte dela que naquela época a igreja nada cobrava, pois caso contrário, teria ido à falência -
sem exageros.
sempre que sua mãe obrigava. Não era desses, gostava de contestar o subjetivo da alma e
perceber as brechas da lei de Deus. Enfim, completou seus 16 anos e eis que chegamos ao
problema: Felipe de Jesus era ateu. Cansou de esconder isso de sua mãe. Quando assumiu ser
- Deus, ó meu Deus, por que um filho ateu? Ele podia ser gay, namoradinho do tal do
Naquele momento, então, Felipe de Jesus percebeu que o respeito só era dado de um
dos lados e a ponte construída todos esses anos era muito frágil. Tentou atravessar e caiu.
Resolveu sair de casa naquele dia. Foi se tornar um ser humano por si e não um ser
E foi assim que começou toda aquela algazarra. Eram quase meia noite de uma quinta
qualquer. Na verdade, isso começou no dia anterior, com a fumaça do churrasco do 102 no
Meninas lindas, eu confesso. Mas afirmo isso depois da quinta, depois de alguns
gritos. Tudo começou com duas janelas, até que totalizaram 8 janelas do prédio, no vão que
janela, janelas com uma pessoa, duas, três, quatro, até cinco pessoas.
lembraram que o mundo imediato é um saco e resolveram encontrar o método mais prático de
conversa: as sacadas e janelas. Como as mulheres de Goiás Velho faziam, como a moça feia
de Chico fazia, apenas para parar o mundo e sentir para si a poesia que ele cantava.
Risos, gargalhadas, estilhaços de sons por todo canto. A felicidade ali pedia passagem.
Estavam querendo saber mais do churrasco do 102, sobre os torcedores do 303, os moradores
do 404... Felipe, Mariana, Marco, Luana... muitos ali se conversaram sem nem saber que um
dia suas vidas se cruzariam novamente. Conversavam como se já fossem amigos há anos, mas
seriam pessoas que não lembrariam na semana seguinte. Times, arrotos, músicas, lirismo...
tudo isso eram falas ritmadas e embriagadas pela alegria em se viver aquele instante. Aquele
efêmero instante.
Tempos depois, antes ainda da meia noite um dos apartamentos grita forte, reclamando
do excessivo barulho. Perguntei-me nessa hora, por que algumas pessoas não conseguem
sentir a poesia do mundo e se fecham em paredes, escutando apenas os ruídos de algo que não
existe?
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Histórias de Bêbado
-Tira a mão da minha bunda! - Gritava o bêbado do outro lado da rua para aquela moça ao
lado dele.
- Acha que só porque bebi um ou outro gole de álcool pode chegar e passando a mão em
A moça, abismada, ficou ali parada, sem nada entender. Já eram 7 da noite, ela estava
cansada. Seu patrão resolvera não mais trabalhar e tudo ficou sobrecarregado pra ela. Voltava
- Não se faça de santinha não! Eu não sou um bêbado que fica jogado às traças não. Tenho
família. Bebi hoje, como nunca mais beberei, porque meu dia foi difícil. Perdi a mulher da
- Perdi a mulher da minha vida pra um safado que dizia ser meu amigo. Ele me traiu. Não, ela
me traiu. Não, os dois me traíram e roubaram tudo o que eu tinha. Por isso fiquei encostado
nessa parede chorando. E isso não te dá o direito de meter a mão na minha bunda.
- Peço desculpas, mas é que achei você muito bonito, aliás, gostoso, e passei a mão mesmo.
Com assunto encerrado, ela foi embora. E, antes que fosse, passou a mão na bunda do
bêbado mais uma vez. Ele não gostou da atitude e pegou seu amendoim e foi para outro bar se
embriagar.
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10 centavos
- E se amanhã eu morrer? Ninguém sabe o que acontece no dia seguinte, na hora seguinte,
Foi exatamente assim que ela começou aquela interminável discussão. Dramática,
como só ela sabia ser. Infelizmente ela pegou Meridiano em um bom dia, ele havia acabado
- Caso morra, será enterrada ou jogada em uma vala qualquer no IML como indigente.
Seus olhos pularam nas palavras que saíram de minha boca e sua mão, suada, queria
me esganar. Conteve-se, sabia que não era o momento, não era hora. Ele resolveu encerrar
logo o assunto.
- Moça, são apenas 10 centavos, mas se quiser, leve quantas balas quiser, de graça. No
Indignada. Ela não podia ser tratada assim por um qualquer, Patrícia era secretária de
um dos melhores advogados do país, Dr. Silveira. Contudo, levou a bala. Grosseiramente
virou-se e, de modo brusco, saiu batendo o salto alto de cor vibrante pelo tablado do fórum.
Ela sabia que eu estaria ali amanhã pela tarde, ele não saberia se ela voltaria e pagaria os 10
centavos pela bala. Caso ela volte, de qualquer modo, ele resolveu guardar o brinco de ouro
Malditos
Sabe aquelas discussões que não levam a nada? Bem, essa foi exatamente desse jeito.
No aeroporto, esperando um amigo que chegaria de viagem presenciei a discussão. O dia não
importa e não me lembro exatamente do tempo que ali fiquei sentado. Sei que quando vi
Quem foi que disse que bobo já tinha virado elogio no século XXI? Aquela pessoa que
recebera o elogio – ou não – fechou a cara. A outra quis saber o que foi...
- Acho que você tem um complexo... essa reação sua me indica alguma síndrome...
Ok, acrescente os psicólogos aos malditos e feche essa sacola. A discussão parecia que
ia ficar ali, entre ambos os analistas. Mas, como toda discussão, tem as pessoas aleatórias que
- Eu ouvi tudo de onde estava, percebi a má intenção, podemos processá-lo, foi um insulto...
É sempre assim, distorça algo que foi visto ou falado que aparece alguém que se acha
Abra novamente aquele saco dos malditos e acrescente o “doutor” e o cientista social.
Esqueci-me de dizer que sempre que aparece alguém da direita, há a necessidade – não sei por
que – de se ter a esquerda... não há como haver um meio termo! É impossível. Nesse
- Estamos aqui ao vivo para noticiar uma catástrofe que ocorreu entre dois amigos...
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não precisa fazer doutorado pra ser chamado de doutor, nem precisa fazer jornalismo para ser
comentou...
- São todos hippies, bichos grilos, sabe? Pessoal que faz geografia... Eu que não me meto
quando os dois amigos foram embora... um para cada lado, imagino, um pensando que o outro
Eu, nada inocente também, continuei minhas anotações... sei que isso um dia me
renderia um conto razoável, que uns anos depois poderei melhorar. Fui interrompido por uma
voz que me gritava “Felipe, o voo dele chegou! Vem! Vem!”. Então me enfiei dentro daquela
sacola, junto ao engenheiro e aos geógrafos e resolvi ser mais um maldito, por outros.
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Alvo Arez
Tratava-se de um sucesso. Não era nada mais que isso. Todo dia ele acordava e ia para
o aeroporto na busca de seus ídolos. Na busca incansável que um dia alguém lhe daria moral e
“O garoto de Goiânia que conquistava o Brasil e o mundo!” Esse era o sonho. Cada
dia no aeroporto era tediante, pois poucos famosos passam pelo aeroporto da capital de Goiás.
O que mais conseguiu presenciar eram parentes felizes com a chegada dos que moravam
longe, pais felizes com o retorno do filho que foi estudar fora e discussões aleatórias.
que chamava pelo amigo, Alvo Arez foi desperto. No portão de desembarque pôde ver a
menina escandalosa e o amigo recepcionando um outro jovem boa pinta. Uma motorista
particular esperava um tal de Sr. Silveira, que chegou a cumprimentar a moça escandalosa e o
Era um dia qualquer e aquela artista não qualquer o avistou. Bem disfarçada, não
chegou a ser visto pelos paparazzi que a esperavam. Ele era perspicaz, afinal, queria ser
famoso. Ela aproximou-se dele. Apaixonou-se por ele como se aquela história fosse
predestinada. Vai que realmente era? Por mais estranha que pareça essa história, namoraram.
Ele ficou muito famoso, muito mesmo. Por mais bizarro que pareça, casaram-se. Fotógrafos
para todos os lados. Tiveram filhos. Paparazzi conseguiram a foto dos gêmeos que ficou
Enfim, era famoso. Mas não sabia fazer nada mais do que ser famoso. Aceitava
convites da imprensa para todos os eventos que surgiram. Conseguiu ser famoso e pareceu
que isso bastava. Resolveu ser rico, ao menos mais rico. Foi convidado para participar de um
programa de TV. Hesitou, pois não queria tanta exposição mais. Porém resolveu aceitar,
depois de uma longa conversa com sua conta bancária. Conquistou bastantes vitórias no
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programa, chegando ao final. Infelizmente concorreu com uma pessoa humilde, que acabou
ganhando o maior prêmio. Enlouquecido e cheio de fúria, não se deu conta que o programa
era ao vivo e esfaqueou seu adversário até a morte. Foi preso e não se escuta mais histórias
Almoço de Domingo
Era um domingo qualquer, como esse de hoje. Foi por volta das onze horas que eles
começaram a ser feitos: arroz, carne, feijão, salada e um suco de laranja. O suco era de
laranja, do pé que minha avó plantava nos fundos da casa. A carne era de galinha caipira,
criação que ela tinha. A salada de tomate, alface, cebola e repolho era de sua horta. Todos
comeriam, vovô, vovó e eu. Mas naquela manhã, mamãe também se sentou a mesa conosco.
Como sempre, todos sérios na mesa. Sem TV, sem rádio, sem nada. O silêncio do
almoço dominical era estranho dos demais almoços de domingo. Mamãe ia pegar o arroz,
vovó pegou primeiro que ela e colocou do outro lado da mesa. Logo depois vovô pegou e em
O mesmo ocorreu com a carne, feijão, salada e até mesmo com o suco de laranja.
Seriedade. Rostos fechados. Ninguém ali queria abrir a boca para falar. Pareciam estátuas de
mármore, mas vovó, apesar de tudo, era de gelo. Logo começou a se derreter. Chorou.
Vovô não se segurou e começou a chorar também. Eu não sabia o que fazer, mamãe
olhava os dois, com piedade nos olhos. Nada podia fazer por eles. Eu fiquei observando... não
sabia mais lidar com essa situação. Mamãe saiu da mesa, a cadeira caiu. Meus avós olharam
em direção a cadeira no chão. Um ano, desde então. Eu a podia ver, eles não. Eu a podia ver
desde o dia em que vesti aquela blusa e me perdi no centro da cidade. Talvez eu pudesse toca-
Desesperadamente
Ele saiu correndo. Correu desesperadamente. Esbarrou em mim nessa correria. Deixou
cair um papel. Pensei em gritá-lo, mas já estava longe demais e eu sem forças. As vistas já me
traíam. Minha mente insana e curiosa não me deixaria também devolver aquele papel com
cheiro de sangue e cor de solidão. Não o via mais. As pessoas olhavam assustadas os rastros
que o rapaz deixou. Vários papéis. Apenas um com cheiro de sangue e com cor de solidão.
Mas que pessoas, aquela altura da noite só eu estava ali. Vi várias pessoas que só eu via com
os papeis nas mãos, lendo atentamente. Uns sentaram nos bancos, outros no chão, alpendres...
A leitura imediata foi quase que obrigatória! Talvez por um impulso de leitura ou por um
pegaram seus papeis e liam. Pareciam não se importar com o tempo. Bem provável que o
tempo havia parado também. Ao menos o relógio não caminhava. Não sentia o vento.
Ventava aquele dia? Eram pequenos alguns bilhetes... Com os mais velhos eram papéis de
cartas. Olha que interessante essa coerência! Isso era coincidência? Talvez fosse, talvez não.
Dizem que tudo tem cinquenta por cento de chance de dar certo nessa vida.
desesperadamente e deixava essas cartas e bilhetes. Parece que só eu (e você) achamos tudo
isso muito estranho. Ninguém se perguntava nada, era tudo muito normal. Será que aquele
garoto sempre passava ali? Mas eu nunca o tinha visto! Você já o viu?
Por que apenas a minha carta tinha esse cheiro desconfortante de sangue? Por que
somente a minha carta tinha cor de solidão? Por que sangue e solidão não combinam? Parei
sentado. Senti que era preciso ler a carta. Todos assim esperavam. Sentei novamente. Os
olhares sumiram. Não me olhava mais friamente. Com cautela, abri a carta. Comecei a ler.
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Com o passar do tempo lia desesperadamente. Fiquei viciado naquela carta. Como pode
aquele rapaz? Aquele rapaz! Fechei a carta. Rapidamente ela sumiu entre meus dedos. Eu,
somente eu (e não você) poderia entender realmente o motivo daquela correria. Somente eu, e
não você, saberia sobre o cheiro de sangue, a cor de solidão e o gosto de tristeza. Ele correu.
Eu me desconfortei. Respirava com dificuldade, respirava por aparelhos... não estava mais em
um banco de praça, não usava mais minha blusa regata... A carta começou a fazer sentido.
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As Palavras Mudam(s)
Hoje ela me tratou com palavras mudas. Enquanto eu tentava mudar as palavras que
ela dizia. Parei num instante, um pequeno instante, quando uma lágrima parecia escorrer de
seu olho esquerdo e queria percorrer levemente sua face, deslizava em tons de rosa... Nesse
momento, um dos únicos momentos meus de lucidez interrompi o que ela dizia e pedi perdão.
Sem entender, ela se calou. Um silêncio ficou estático naquele clima acinzentado no qual
estávamos. Logo o garçom chegava com a bebida, quebrando o vazio que havia ficado.
Não consegui responder, isso me levou segundos. Afinal, tudo ali estava por um fio
devido as pedras de gelo que sempre coloquei em nosso relacionamento. Isso me fez um cara
frio, distante, até mesmo quadrado. Não percebia a exuberância companhia que tinha ao meu
lado.
- Nenhuma. Obrigado.
Não havia sentido esfriar tudo mais uma vez. A bebida perde o gosto com o gelo, se
torna fraca, e ainda caso demore a beber, o gelo iria derreter superando o nível do copo e
derramaria.
O rapaz insistiu para que colocasse uma pedra de gelo, pois a bebida realmente estava
quente. É incrível como as pessoas, mesmo sem a intenção, querem nos fazer mudar de ideia
do que queremos. Uma pedra de gelo seria o estopim para me tornar uma pessoa gélida.
Não diferente das demais bebidas, até a água mineral muda o gosto quando se coloca
gelo. É isso que não percebemos na vida. Sempre pensamos que algo tão simples não faz
diferença, mas a diferença é estar simples. Passados esses sessenta segundos, o garçom se vai
e ela se volta para mim perguntando por que pedi perdão. Respondi que sabia que se não
pedisse perdão hoje, daqui alguns anos seria um adeus. Ela me repreendeu, me chamou de
pessimista. Toquei seu rosto com minha mão direita, dei um beijo em sua face e disse que só
O garçom voltou com a comida. Jantamos e fomos embora. 70 anos se passaram desde
então, 70 anos ao lado da pessoa que amo, e me recordo desse momento como se fosse o dia
de hoje. Foi esse momento que me fez superar tudo e me fez perceber o quão forte podemos
ser. Hoje, sinto falta dela... sinto falta de minha filha... mas sei que estão bem. Logo me
encontrarei com elas, assim que meu neto estiver pronto para seguir adiante.
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Minha Criança
Minha criança hoje faz aniversário, venho a uma semana pensando em que dar de
presente a ela. Ela adora escutar música, Pensei em comprar um Walkman, mas me
lembraram de que já está fora de moda, logo, lembrei que já existem os Diskman, e
novamente fui lembrado que hoje em dia se escuta música em MP3 e suas sequências
numéricas. Por isso, rapidamente, descartei essa ideia, esses aparelhos são muito individuais,
Mas sei que ela gosta de bonecas, pensei em comprar uma boneca falante, do tamanho
dela, com cabelos, roupas, adereços, acessórios e tudo o que as bonecas de hoje têm. Porém
fui lembrado que quando se está com a idade dela, tudo passa rápido, a adolescência já bateu a
porta, esse século, infelizmente, é o vinte e um. Bonecas de pano ou porcelana para guardar,
Melhor pensar em alguma coisa que ela irá carregar por mais tempo, como uma
bicicleta, posso comprar uma que ela sempre poderá usar, até no fim de sua juventude. Só
preciso vigiar onde ela andará, pois hoje tudo está complicado, as ruas não são mais as
mesmas. Hoje elas têm braços que escorrem pelos corpos das pessoas e olhos que tudo
observam. Não quero que minha pequena criança sofra desse mal.
Minha bebê gosta de guloseimas, é efêmero, mas a alegria dos olhos dela me renderá a
felicidade que busco. Posso levá-la ao parque, ao cinema, zoológico, isso mesmo, um
passeio... Posso dar um livro a ela, para que sempre que leia, lembre-se de mim.
- Vamos dar um passeio hoje, Larissa? Com direito a chocolate, doces, e tudo que um passeio
merece?
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Ela sorriu pra mim, adorou a ideia. Mas ao me abraçar, logo disse.
- Meu aniversário poderia ser todos os dias, ao menos teria você sempre ao meu lado.
Meus olhos encheram de lágrimas, tive que fazê-la acordar. Pois são apenas nessas
datas que posso visitá-la em seus sonhos e deixar um pequeno sorriso nela enquanto dorme,
nos outros dias, não passo de lembranças, fotografias em quadro em cima de sua estante e,
Sem querer andando na rua ontem tropecei numa pedra. Isso é óbvio que foi sem
querer, ninguém tropeça por que quer. Enfim, andava tão distraído que não via nada pela
frente, nem mesmo aquele carro vermelho que passou a três centímetros de mim e saiu em
seguida xingando e buzinando. Alguns dias estamos mesmo assim, relapso com a vida.
Hoje em dia ninguém se preocupa mais com a vida, apenas com o tempo. O tempo das
coisas é muito mais importante que a própria vida, e a vida, ainda em segundo plano, é bem
menos importante que, o dinheiro, por exemplo. O tempo e o dinheiro sempre passam a frente
da vida em tudo. Se não fazemos algo ou é por falta de tempo ou pelo escasso dinheiro.
Quem hoje já caminhou, tomou seu café-da-manhã com a mesa com gostosuras que só
nós sabemos quais são, e ainda, quem foi para o serviço, para escola, faculdade cantarolando
uma música, sem som, sem nada? Retiro um a cada milhão de pessoas que deve ter feito uma
dessas coisas. Mas, o tempo não nos permite toda essa calmaria.
Quem hoje ao sair do trabalho irá comprar algo pra si, pelo simples prazer de se sentir
bem, comprar uma bebida que há tempos não ingere e aquele tira-gosto que só sabe a
importância dele? É, não se tem dinheiro para gastar com essas coisas, quando no fim do mês,
e durante todo seu decorrer, se chega pelo correio, água, luz, telefone, banco, avisos, reavisos,
informes, disformes...
O tempo e o dinheiro consomem nossa vida aos poucos e sempre sabemos disso, mas
não há como mudar. É muito melhor assistir televisão da hora que chega a hora que vai
dormir. Não há tempo, pois é final da novela. Aquela novela que acompanhei alguns capítulos
As pessoas são tão indecisas e ao mesmo tempo decididas das coisas erradas que me
enoja pensar que, é preferível esperar um filme sair na locadora que ir ao cinema com amigos.
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A plasticidade das coisas está tão acoplada no ser de cada um que, elas já crescem pensando
no quanto vão ganhar e não no que vão ser quando crescer. Medicina é um curso econômico e
não uma carreira profissional. Direito está inflamado e ser professor é simplesmente última
opção, perder seu tempo. Coitado de mim, sou professor. Sou professor de uma escola que
tem a fama de ter professores fantasmas de literatura. Fui lecionar nessa escola meio que por
acaso, quando o antigo professor não apareceu para dar suas aulas. O fato é que a educação é
instigou um senhor que lia um livro em um banco. Despercebido do espaço, tropecei em uma
pedra, tinha uma pedra no meio do caminho, e quando me dei conta, um carro vermelho
passou perto de mim, buzinando e me xingando. Mas o caminhão que vinha logo após não
tinha mais os três centímetros, a buzina não ecoou a tempo. Papeis voaram por toda a parte,
aquele dia na escola não haveria aula normal. Infelizmente é assim, alguns dias estamos
relapsos que não percebemos que pode ser o nosso último dia.