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REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA Nº 23: 43-53 NOV.

2004

A DEMOCRACIA DO HOMEM COMUM:


RESGATANDO A TEORIA POLÍTICA DE JOHN DEWEY

Thamy Pogrebinschi

RESUMO
Entre os principais assuntos que vêm marcando presença na agenda da teoria política contemporânea nos
últimos anos, estão os temas da deliberação, da comunidade e da comunicação. O que os “novos” debates
sobre a democracia deliberativa, o comunitarismo e a teoria da comunicação não deixam claro, contudo,
consiste no fato de que a “novidade” que apresentam já se encontrava anunciada na teoria pragmatista
desenvolvida no começo do século XX, especialmente nos escritos de John Dewey. Com efeito, nos primeiros
anos desse século, Dewey elaborou uma consistente teoria política normativa, cujo principal foco centrava-
se na questão da democracia. Isso não teria nenhuma relevância especial caso a teoria democrática avança-
da por Dewey não abarcasse efetivamente uma concepção normativa de democracia participativa ou
deliberativa nos mesmos moldes discutidos pelas mais recentes tendências e autores da teoria democrática
contemporânea. A partir da leitura de Dewey e de alguns de seus comentadores, é possível identificar um
conceito de democracia “radical”, “procedimental” e “deliberativa” que apresenta fortes ressonâncias,
por exemplo, com os temas de comunidade, participação, comunicação, espaço público e educação. Diante
disso, o objetivo deste artigo consiste em recuperar o pensamento de John Dewey, demonstrando o seu
vanguardismo frente à teoria política contemporânea e indicando a relevância de sua contribuição para o
atual debate da teoria da democracia.
PALAVRAS-CHAVE: democracia; homem comum; teoria política; John Dewey.

“Regarded as an idea, democracy is not an alternative to other


principles of associated life. It is the idea of community life itself”
John Dewey (1927, p. 148)1.

I. INTRODUÇÃO recentes debates em torno, por exemplo, do


comunitarismo e das formas deliberativa e
O nome de John Dewey é usualmente associa-
procedimental da democracia. Nesse sentido, o
do à Filosofia da Educação ou ainda à Psicologia
pragmatismo político de Dewey é ainda extrema-
e à Ética, tendo sido por longo tempo conhecido e
mente atual e inovador e apresenta infinitas pos-
estudado apenas nos domínios restritos da Filoso-
sibilidades de contribuição para os debates con-
fia ou da Pedagogia. Com a revivescência do
temporâneos2.
pragmatismo nos últimos 20 anos e o conseqüen-
te surgimento daquilo que se passou a chamar de Conforme acreditamos ficar claro nas páginas
neopragmatismo, o pensamento de Dewey come- que se seguem, Dewey possui efetivamente uma
çou a ser recuperado em sua integridade, trans- teoria do Estado e uma teoria da democracia. Os
pondo assim as barreiras das disciplinas acadêmi- principais temas que orientam seu pensamento po-
cas e fazendo-se ouvir também no campo das Ci-
ências Sociais. Com efeito, é no âmbito das Ciên- 1 No original: “Encarada como uma idéia, a democracia
cias Sociais e, especialmente, da Teoria Política
não é uma alternativa a outros princípios de vida
que o pensamento de Dewey encontra sua maior associativa. Ela é a própria idéia de vida em comunidade”.
potencialidade de aplicação e inovação. Confor- Todos os trechos originalmente em inglês foram traduzi-
me tentaremos argumentar neste artigo, a teoria dos pela autora.
política desenvolvida por John Dewey no come- 2 Sobre a atualidade do pensamento de Dewey e suas re-
ço do século XX é perfeitamente condizente com lações com a Teoria Política contemporânea, veja-se: Ryan
a atual agenda da Teoria Política contemporânea. (1995, p. 23, 36), Festenstein (1997, p. 9) e Bernstein
De fato, Dewey antecipou em várias décadas os (1998, p. 151-153).

Recebido em 19 de novembro de 2003


Aprovado em 10 de agosto de 2004
Rev. Sociol. Polít., Curitiba, 23, p. 43-53, nov. 2004
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A DEMOCRACIA DO HOMEM COMUM

lítico, com efeito, são os temas da comunidade e essência do conceito de democracia enquanto uma
da democracia. Como já nos indica Dewey na idéia, é preciso ir por partes, reconstruindo a tra-
epígrafe deste artigo, ambos os temas estão de- jetória da formulação desse conceito no pensamen-
masiada e inevitavelmente conectados, sendo to de seu autor.
muito difícil, portanto, tratá-los como duas cate-
gorias separadas. No entanto, neste artigo tratare- A idéia de democracia é tão vasta e tão plena
mos apenas do conceito de democracia, fazendo que, de acordo com Dewey, não pode ser
algumas referências ao conceito de comunidade exemplificada por meio do Estado. Nenhum Es-
apenas quando isso nos parecer inevitável – ape- tado, nenhuma forma de Estado, por melhor que
sar de que, como veremos, a compreensão de um seja, é suficiente para exemplificar a idéia de de-
implica necessariamente a compreensão do outro. mocracia em sua integridade. Isso porque a de-
mocracia, a sua realização, transcende o Estado:
As idéias de Dewey acerca da democracia sur- ela encontra-se, simultaneamente, em todos os
preendem pela sua atualidade. Diante disso, o que modos de associação humana dentro da comuni-
pode ser chamado de neopragmatismo na Teoria dade, afetando-os reciprocamente. Para que a idéia
Política vem-se formando muito mais a partir de de democracia seja realizada, em conseqüência,
um resgate das idéias de Dewey do que propria- ela precisa produzir efeitos sobre a família, a es-
mente por meio da elaboração de novos argumen- cola, a religião, o trabalho (“industry”, no sentido
tos sobre o assunto. Com efeito, há, nos últimos mais amplo que a tradução não confere), além de
anos, um número crescente de estudiosos que se outras formas de associação humana. Nesse sen-
preocupam com a discussão crítica e a interpreta- tido, a “democracia política” – isto é, a democra-
ção dos escritos de Dewey. É nesse sentido, por- cia como um sistema de governo – com seus ar-
tanto, que podemos propriamente falar de um ranjos políticos e instituições governamentais –
neopragmatismo político: no sentido de uma consiste meramente em um mecanismo destinado
reatualização das idéias desenvolvidas inicialmen- a assegurar canais de operação para a “idéia” de
te por Dewey na primeira metade do século XX. democracia. Diante disso, as críticas, as desapro-
Dessas idéias, ao lado do conceito de comunida- vações e mesmo as modificações da “maquina-
de, a democracia é sem dúvida a principal. ria” da democracia política não afetam a “idéia”,
II. A DEMOCRACIA COMO IDÉIA que permanece sempre intocável. Em outras pala-
vras, a democracia enquanto forma de governo,
Para entender o conceito de democracia de ou seja, a “democracia política”, pode a qualquer
Dewey é preciso partir de uma distinção por ele momento ser revista, modificada, sem que isso
mesmo operada. Trata-se, por um lado, de distin- afete a idéia de democracia. Isso porque a “idéia”
guir a democracia como uma idéia e, por outro sempre encontrará uma maquinaria política mais
lado, como um sistema de governo. À democra- adequada para, por meio dela, continuar funcio-
cia enquanto um sistema de governo Dewey cha- nando3.
ma de democracia política. Mas é com a “idéia
de democracia” que Dewey está mais preocupa- A primeira lição da teoria democrática de
do, ainda que os dois conceitos estejam Dewey, portanto, é não confundir, e jamais iden-
conectados. Contudo, é possível perceber facil- tificar, a “idéia de democracia” com os seus “ór-
mente na essência do pensamento deweyano as gãos e estruturas externas”. Ao passo que a idéia
linhas definidoras de cada uma dessas duas fra- de democracia é inabalável, suas “formas políti-
ções do conceito de democracia e será com base cas” estão sujeitas a críticas e crises constantes.
nelas que orientaremos nossa exposição a partir Disso decorre, afirma Dewey, ser um erro repetir
de agora. o velho bordão que afirma que o remédio para os
males da democracia é mais democracia. Afinal,
A democracia como uma idéia (social ou mo-
ral, conforme Dewey acrescenta indistintamente)
consiste na abordagem do conceito de democra-
cia que foi quantitativa e qualitativamente mais 3 Observe-se como aqui operam claramente o contextua-
desenvolvido por Dewey e também aquele a cujo lismo e o conseqüencialismo característicos do
respeito ele parecia preferir escrever e pensar. Tra- pragmatismo de Dewey. A “democracia política” adapta-
ta-se essa idéia de acreditar que a democracia é se continuamente ao seu contexto e ao seu fim, em ambos
um modo de vida. Mas, antes de anteciparmos a os casos a “idéia de democracia”.

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se os males vêm a ser remediados por meio da que ele acredita que o seu papel não deve ser o de
adição do mesmo tipo de “maquinaria” (leia-se engrossar esse rol, mas o de discutir as questões
instituições e arranjos políticos) já existente ou mais profundas que estão por trás dele. Essas ques-
mesmo por meio do aperfeiçoamento ou refina- tões, que segundo ele configuram um problema
mento daquela maquinaria, a democracia perma- intelectual e não político, consistem em tentar
nece doente, passível dos mesmos males. A cura descobrir os meios pelos quais o público pode re-
para uma democracia em crise, diz Dewey, ape- conhecer a si mesmo de modo a definir e expres-
nas pode ser alcançada se ao velho bordão for sar seus próprios interesses (idem, p. 145-146).
conferido um outro sentido, qual seja, o de retornar
Na busca das condições por meio das quais o
à própria “idéia” de democracia. A solução para
público pode funcionar democraticamente, é pre-
os males da democracia política reside, assim, em
ciso ir ao encontro do tema da comunidade e aos
encontrar a substância da “idéia”, em clarificá-la,
problemas a ele relativos. Esses, afinal, são os pro-
compreendê-la, apreendê-la em seu sentido mais
blemas que Dewey quer enfrentar, ao contrário de
profundo, de modo a então possibilitar a crítica e
se preocupar em sugerir aperfeiçoamentos para os
a reconstrução de suas “manifestações políticas”
governos democráticos – até porque, enquanto a
(DEWEY, 1927, p. 143-144).
“Grande Sociedade” não se converter em “Gran-
De acordo com o autor, é um erro considerar de Comunidade”, “é de certo modo fútil conside-
que foi a “idéia de democracia” por si mesma que rar qual maquinaria política irá servi-la” (idem, p.
produziu as práticas governamentais encontráveis 147)4. “No exame das condições sob as quais o
nos estados democráticos, isto é, o sufrágio, a re- público disforme agora existente pode funcionar
presentação, a regra da maioria, entre outras. A democraticamente, devemos proceder a partir de
“idéia” apenas influenciou movimentos políticos uma proposição da natureza da idéia democrática
concretos que resultaram nessas práticas, mas não
as causou. Em outras palavras, as formas assumi-
das pela “democracia política” ao longo do tem- 4 Conforme mostramos em outro lugar (POGREBINSCHI,
po, bem como as formas que se encontram conso- 2002), o objetivo de Dewey em seu livro The Public and
lidadas atualmente, representam o efeito cumula- its Problems é duplo. Ele quer, por um lado, compreender
tivo de inúmeros eventos de ordem histórica e não como a era industrial, ao desenvolver a Grande Sociedade
(Great Society), invalidou e desintegrou as comunidades
foram simplesmente determinadas pela “idéia” de pequenas dos tempos passados sem gerar uma “Grande
democracia. Assim, explica Dewey, a intenção que Comunidade”. Além disso, ele quer que o público descu-
levou à criação das conhecidas instituições da de- bra a sua própria identidade, saindo do eclipse em que se
mocracia moderna foi a de satisfazer necessida- encontra. O desafio de Dewey naquele livro portanto, é o
des e demandas concretas e não a de promover a de investigar as condições a partir das quais a Grande So-
“idéia” democrática. ciedade pode converter-se em uma Grande Comunidade.
Lembramos que o conceito de “Grande Sociedade” foi cri-
Destarte, considerar que o governo existe para ado pelo teórico político britânico Graham Wallas, amigo
servir sua comunidade e que seus propósitos ape- de Walter Lippmann, que, por sua vez, era um grande ad-
versário intelectual de Dewey. Esse conceito implica a idéia
nas são alcançados quando a própria comunidade
de que as sociedades industriais modernas são
participa da escolha de seus governantes e da de- crescentemente abstratas e impessoais, bem como
terminação das políticas por eles implementadas crescentemente privam seus membros de entenderem-se
é pouco para Dewey. Isso corresponde apenas a uns com os outros por meio de um contato pessoal em
uma parte da idéia democrática, sua “fase políti- comunidades de pequena escala. O conceito de “Grande
ca”. Dewey está certo de que qualquer modifica- Comunidade” que Dewey cria para contrapor-se ao con-
ceito de Wallas insiste exatamente na direção oposta, qual
ção que venha a ser implementada na “maquina-
seja, na afirmação de que as sociedades industriais preci-
ria democrática” existente deverá fazer que os in- sam ser recriadas a partir da experiência das pequenas co-
teresses do público (“the public”) constituam-se munidades locais, em que o contato humano dá-se face-a-
cada vez mais como os critérios e parâmetros da face. Assim como o conceito de democracia, de que estamos
atividade governamental, de modo que ele, o pú- ora tratando, o conceito deweyano de comunidade consis-
blico, possa formar e manifestar seus propósitos te antes em uma concepção idealizada de vida comunal,
isto é, em um certo modo de vida a ser perseguido como
de forma cada vez mais decisiva. Dewey está cer-
um ideal ético ou moral. Conforme ficará claro nas próxi-
to também de que muitas sugestões de reforma e mas páginas, a democracia para Dewey possui os mesmos
melhoria da “forma política da democracia” são – pressupostos que a comunidade, quais sejam, a participa-
e serão – permanentemente discutidas. Por isso é ção, a educação e a comunicação.

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em seu sentido social genérico. Do ponto de vista provêm da própria associação e por ela são com-
do indivíduo, isso consiste em ter uma parcela de partilhados (idem, p. 150)5.
responsabilidade de acordo com a capacidade de
O que há de essencial, em conseqüência, nes-
formar e dirigir as atividades dos grupos a que se
se modo como Dewey encara a democracia, vale
pertence e em participar de acordo com a necessi-
dizer, em sua concepção de democracia como
dade dos valores sustentados pelo grupo. Do pon-
idéia, é que ela deixa de ser vinculada unicamen-
to de vista dos grupos, isso demanda liberação das
te à política. A política passa a ser apenas um dos
potencialidades dos seus membros em harmonia
lugares, um dos momentos, uma das formas que
com os interesses e bens que são comuns. Uma
assume a democracia. Quando não está revestida
vez que todo indivíduo é membro de vários gru-
de sua “forma política”, portanto, a democracia é
pos, essa especificação só pode ser cumprida se
muito mais ampla: ela apresenta-se como uma
grupos diferentes interagirem flexível e plenamen-
idéia que espalha seus efeitos de múltiplas for-
te em conexão com outros grupos. [...] Um bom
mas, em vários lugares ao mesmo tempo. Mas, de
cidadão considera a sua conduta como membro
certa forma, podemos dizer que essa
de um grupo político enriquecedora e enriquecida
multiplicidade de expressões da democracia con-
pela sua participação na vida familiar, no trabalho
centra-se em um lugar: na comunidade. “A demo-
e nas associações científicas e artísticas” (idem,
cracia precisa começar em casa e sua casa é a co-
p. 147-148).
munidade vicinal [neighborly]” (idem, p. 213). É
É nesse ponto, portanto, que os conceitos de na comunidade, afinal, que se encontram os indi-
democracia e comunidade encontram-se definiti- víduos, os grupos, as famílias, as escolas, as fá-
vamente. Encarada como uma idéia, conforme diz- bricas, as igrejas, as associações de caráter cientí-
nos Dewey na epígrafe deste artigo, a democracia fico e artístico, enfim, todas as formas de associa-
não é uma alternativa a outros princípios de vida ção humana. É na comunidade que os indivíduos
associativa, mas é a própria idéia de comunidade. e os grupos podem comunicar-se, interagindo uns
Em suma, a idéia de democracia consiste em um com os outros, compartilhando suas atividades e
ideal – um ideal de uma comunidade levada ao conseqüências. Diante disso, talvez possamos afir-
seu último limite; uma comunidade completa, per- mar que, para Dewey, a democracia encontra-se
feita: “A pura consciência de uma vida comunal, mais no social que no político – mesmo porque
com todas as suas implicações, constitui a idéia este último plano só deve vir à tona quando o pú-
de democracia” (idem, p. 149). blico descobrir-se e isso somente pode acontecer
por meio do social.
De acordo com Dewey, em conseqüência, uma
idéia de democracia só não é uma idéia utópica III. DEMOCRACIA E AUTOGOVERNO: UMA
quando se toma como ponto de partida a comuni- PERSPECTIVA VANGUARDISTA?
dade, ou melhor, o fato da comunidade, com to-
A democracia, portanto, é a solidificação das
dos os seus elementos constitutivos. Diante disso,
possibilidades inerentes à vida comunitária, soci-
Dewey acredita que todas as concepções tradicio-
al; é um todo único em que se incluem as
nalmente associadas à idéia de democracia ape-
potencialidades e as capacidades dos indivíduos
nas adquirem sentido e eficácia verdadeira quan-
que são desenvolvidas por meio de atividades co-
do estão vinculadas a uma comunidade real. Des-
operativas levadas a cabo pela comunidade. Con-
se modo, por exemplo, o famoso lema revolucio-
tudo, se a democracia é uma forma de vida
nário francês que clama por “liberdade, igualda-
comunal que oferece oportunidades intermináveis
de e fraternidade” precisa realizar-se na vida
para o desenvolvimento da individualidade em sua
comunal, sem o que ele consistiria em mera abs-
plenitude, é preciso que os indivíduos possam
tração ineficaz. Assim, apenas quando está asso-
ciada à comunidade, a liberdade consiste na “li-
beração e satisfação das potencialidades pessoais”;
5 Compare-se essas idéias com “Philosophy and Demo-
a igualdade, por sua vez, implica o “comparti-
cracy” (1919), em que Dewey refere-se novamente aos
lhamento das conseqüências da ação coletiva” por ideais revolucionários como abstrações quando dissociados
parte de cada indivíduo membro da comunidade da vida comunitária, conferindo um conteúdo inteiramen-
e, por fim, a fraternidade passa a ser “outro nome te pragmatista às idéias de liberdade e igualdade, retirando
para os bens conscientemente apreciados” que delas todo aspecto metafísico, idealista ou fundacionalista.

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participar da direção das suas vidas e da vida da em contraste com outros que não o são. Pela nos-
comunidade em que estão inseridos. Os indivídu- sa hipótese, todos os governos são representati-
os membros das comunidades, portanto, devem vos” (idem, p. 76). O que faz que todos os gover-
participar da formação dos valores individuais e nos sejam necessariamente representativos é que
sociais que regulam sua vida comum. Em conse- eles pretendem manter os interesses do público
qüência, na medida em que a idéia de democracia no comportamento dos indivíduos e dos grupos7.
engloba essa noção de auto-realização, ou seja, Um governo apenas é representativo quando o
de constituição e consolidação recíprocas da indi- público está definitivamente organizado em sua
vidualidade e da coletividade uma por meio da intenção de assegurar o predomínio da prosperi-
outra, estabelece-se uma espécie de autogoverno. dade pública sobre quaisquer outros desejos que
cada membro individual da comunidade tenha em
Quando a auto-realização individual conver-
seus papéis e ações não-políticas. Nesse sentido,
te-se em autogoverno, a comunidade converte-se
todos os indivíduos possuem uma “capacidade
em uma democracia participativa. Com efeito, a
dual”: uma enquanto membro do governo e outra
idéia de democracia expressa-se na participação
enquanto aquele que o elege. Potencialmente, to-
do indivíduo em todos os momentos e lugares da
dos podem ocupar essas duas posições e trabalhar
vida comunal, de que a esfera propriamente polí-
para que o bem-estar do público prevaleça, assim
tica representa apenas um aspecto. Ao lado de to-
como fazem em outras atividades associativas da
das as suas funções enquanto membros da comu-
comunidade que não o governo. Em tese, portan-
nidade, os indivíduos possuem uma função espe-
to, todos os governos são de fato representativos
cificamente política, qual seja, a de participar de
– e essa afirmação de Dewey não é nem um pou-
maneira “direta” e “ativa” na regulação dos ter-
co contraditória no contexto de uma teoria da de-
mos da vida associativa e na busca do bem co-
mocracia que considera as instituições governa-
mum. Entenda-se por regulação a participação na
mentais tão ou menos importantes que os demais
formulação, na definição e na implementação de
desdobramentos da vida comunal.
políticas públicas. Por políticas públicas, por sua
vez, entendam-se políticas que de fato constituem A necessidade de participação para a consti-
as necessidades e os interesses do público, as ne- tuição da comunidade e a absoluta indissociabi-
cessidades e interesses “comuns” no sentido de lidade entre participação e democracia e entre esta
serem necessidades e interesses da comunidade. e a comunidade leva-nos a supor que Dewey efe-
Desse modo, o governo e suas instituições consti- tivamente antecipou em várias décadas algumas
tuem apenas uma das várias atividades associativas das recentes discussões da Teoria Política contem-
da comunidade. Os cidadãos deweyanos não pre- porânea em torno das idéias de participação, ci-
cisam de um governo que não seja o deles própri- dadania participativa e democracia participativa.
os, a ser exercido de maneira direta e constante – Nesse sentido, o testemunho de Westbrook logo
seja em casa, na escola, no trabalho, nas inúmeras em uma das primeiras páginas de sua biografia
associações com seus múltiplos fins: a democra- intelectual de Dewey é valioso: “Entre os intelec-
cia faz-se a si mesma em toda parte6. tuais liberais do século XX, Dewey foi o mais im-
portante defensor da democracia participativa, isto
Ao sustentar isso que inequivocamente é uma
é, a crença de que a democracia como um ideal
forma de democracia direta, Dewey não abre mão
ético clama que os homens e as mulheres constru-
da idéia de representação, mas confere a ela um
am comunidades em que as oportunidades e os
outro significado, uma outra compreensão, distinta
recursos necessários estão disponíveis para cada
daquela que estamos tradicionalmente acostuma-
dos a pensar. De acordo com ele, “nós comumente
falamos de alguns governos como representativos
7 Observe-se que o que Dewey chama de “interesses e
necessidades do público” ou “interesses e necessidades
comuns” não poderia jamais ser identificado com a vonta-
6 As semelhanças com o conceito de “espaço público” de geral rosseauniana, que, segundo Dewey, “com a influ-
desenvolvidos no final do século XX por Hannah Arendt ência da metafísica alemã, foi erigida no dogma de uma
e Jürgen Habermas são aqui evidentes. É lastimável, con- vontade absoluta mística e transcendente, a qual por sua
tudo, que não se encontre na obra desses dois autores ne- vez apenas não é outro nome para força porque foi
nhuma análise ou menção à contribuição de Dewey. identificada com razão absoluta” (DEWEY, 1927, p. 54).

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indivíduo realizar plenamente suas capacidades e é imprescindível nas últimas é que elas interna-
poderes particulares por meio da participação na mente funcionem de modo inteiramente delibe-
vida política, social e cultural” (WESTBROOK, rativo. “O ponto mais forte a ser feito mesmo em
1991, p. xiv-xv). favor de tais formas políticas rudimentares que a
democracia já alcançou, o voto popular, a regra
Essa idéia de democracia que promove, simul-
da maioria e assim por diante, é que em alguma
taneamente, a individualidade e o bem comum por
medida elas envolvem uma consulta e uma dis-
meio de uma participação que não é meramente
cussão que revelam as necessidades e os proble-
política, mas é, antes de tudo, social, faz de Dewey,
mas sociais” (DEWEY, 1927, p. 206; sem grifos
conforme acreditamos, um dos precursores do
no original).
tema da participação na Teoria Política. O que le-
vou Dewey a elaborar uma teoria da democracia Assim, de acordo com Dewey, o que faz que o
– sem dúvida normativa, ressalte-se – como esta, sistema eleitoral com a sua regra de maioria não
foi o seu desejo de opor-se às concepções realis- seja uma insensatez absoluta é que, para que a
tas de democracia vigentes no seu tempo que sus- maioria seja alcançada, por exemplo, faz-se ne-
tentavam uma versão elitista dela. Muito antes de cessário todo um processo de “discussão”, “con-
Joseph Schumpeter, a quem os novos teóricos da sulta” e “persuasão”. Vale dizer, as instituições
democracia vieram a opor-se nas últimas décadas representativas não podem prescindir de um certo
do século XX, Dewey opunha-se no começo des- grau de deliberação interna – sua maior (ou úni-
se mesmo século ao elitismo democrático de au- ca) virtude segundo Dewey. E já que, por uma
tores como Walter Lippmann e Graham Wallas8. questão de lógica, não existem governos que não
sejam representativos, aquela fração política da
A verdade é que a concepção de democracia
vida associativa que se chama governo deve, ne-
avançada por Dewey corresponde em grande me-
cessariamente, ser minimamente deliberativa em
dida àquilo que Teoria Política contemporânea
seu interior.
vem denominando de “democracia deliberativa”.
Com efeito, o próprio Westbrook afirmou recen- Quanto aos problemas da “democracia políti-
temente que se este termo já estivesse tão em voga ca’” que Dewey abstém-se de discutir porque con-
enquanto ele estava escrevendo sua conceituada sidera mais prementes as questões atinentes à
biografia de Dewey, ele teria preferido usá-lo ao “idéia de democracia”, podemos encontrar no pre-
invés de “democracia participativa” (WEST- sente contexto de nossa análise uma indicação de
BROOK, 1998, p. 138). O fato é que, conforme sua posição sobre o assunto. Se o remédio para os
argumentamos em discussão específica sobre o males da democracia não é mais “democracia po-
conceito de comunidade (POGREBINSCHI, lítica” e sim mais “idéia de democracia”, todavia,
2002, p. 108-132), além da participação, há outra certamente Dewey concorda que a “maquinaria
noção igualmente essencial para Dewey, qual seja, política” existente seria aperfeiçoada se aperfei-
a de comunicação. Além disso, o que torna a ex- çoados fossem também os procedimentos de deli-
pressão “democracia deliberativa” a mais adequa- beração que dela fazem parte. A necessidade es-
da, ao invés de “democracia participativa” ou ainda sencial, esclarece ele, “é o aperfeiçoamento dos
“democracia direta”, é o fato de que Dewey não métodos e condições de debate, discussão e per-
abdica absolutamente, como vimos, das institui- suasão. Esse é o problema do público” (idem, p.
ções representativas. 208; grifo no original). E esse é também o proble-
ma da democracia.
Com efeito, a teoria da democracia deweyana
funciona combinando características das formas O que há de mais inquietante no desvelamento
direta e representativa de democracia, mas o que dessa parte da teoria da democracia de Dewey,
contudo, é a percepção de que todo o debate atual
em torno da idéia de deliberação que vem ocu-
8 Cf. Graham Wallas, The Great Society (1914); Walter pando o centro da agenda da Teoria Política con-
Lippmann, Public Opinion (1997 [1922]) e The Phanton temporânea nos últimos anos resolutamente igno-
Public (1993 [1925]) – este último livro foi o que moveu ra a contribuição de Dewey sobre o assunto. É de
definitivamente Dewey a publicar em 1927 o seu The Public saltar aos olhos o fato de que praticamente ne-
and Its Problems, partindo do mesmo diagnóstico que os
nhum autor contemporâneo faça menção expres-
seus dois opositores, porém encaminhando-se a uma dire-
ção completamente oposta, como resta evidente. sa a Dewey em suas postulações em prol de uma

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democracia deliberativa. Conforme dizem James determinado conteúdo substantivo constitutivo da


Bohman e William Rehg na introdução de uma idéia de democracia. Ou seja, a democracia
das principais coletâneas sobre o tema, por eles deweyana, além de não se expressar pelas tradici-
editada em 1997, “até a metade deste século [sé- onais vias do poder ou do interesse, não está
culo XX], as teorias da democracia eram geral- tampouco contida na concretização, por exemplo,
mente suspeitosas quanto à deliberação pública” dos tradicionais ideais da liberdade ou mesmo da
(BOHMAN & REHG, 1997b, p. x). Ora, se para igualdade, assim como também não visa à
eles as teorias elitistas só passaram a existir com materialização de um sistema de direitos. Se isso
Schumpeter, não é de surpreender que achem tam- nos serve de argumento para afastar o pragmatismo
bém que a idéia de deliberação surgiu apenas a político de Dewey do liberalismo, também nos
partir da década de 1980. Com efeito, segundo serve para indicar uma certa antecipação do
acreditam esses dois teóricos políticos da procedimentalismo, mas com uma diferença im-
contemporaneidade, a idéia de democracia portante: ao contrário das investidas contemporâ-
deliberativa apareceu pela primeira vez em um ar- neas em direção a uma concepção procedimental
tigo de Joseph Bessette, publicado em 1980 – e a de democracia, entre as quais a mais notória é a
partir daí “sua provocação uniu o coro de vozes de Habermas, a concepção de Dewey não é
clamando por uma visão participativa da política formalista e, muito menos, dogmática10.
democrática” (idem, p. xii)9.
Outro argumento que Dewey desenvolveu na
Sem dúvida, conforme já mencionamos antes, década de 1930 e que recentemente vem sendo
a concepção de democracia de Dewey é uma con- utilizado por Habermas e outros teóricos da de-
cepção normativa. Aliás, a Teoria Política mocracia (tais como Joshua Cohen, Andrew Arato
pragmatista como um todo que pode ser inferida e Chantal Mouffe) – sem nenhuma menção, evi-
de Dewey também se antecipa nesse caráter dentemente, ao fato de que Dewey utilizou o ter-
normativo, estando ainda a oferecer, em conseqü- mo antes – é a noção de democracia radical. Por
ência, inúmeras contribuições para a teoria essa idéia Dewey entendia o fato de que os meios
normativa contemporânea ainda em processo de e os fins da democracia são inevitavelmente
construção (FESTENSTEIN, 1997). Outro argu- inseparáveis. Ou seja, a democracia não é mera-
mento que ainda desejamos ressaltar é que, em mente um fim, mas também não se resume a um
alguma medida, Dewey parece também antecipar meio; ela é ao mesmo tempo meio e fim. Esses
um certo procedimentalismo em sua teoria demo-
crática. Vale dizer, ao sustentar que a democracia
deve ser exercida deliberativamente no seio das 10 É preciso mencionar que Habermas cita Dewey três
múltiplas formas associativas da sociedade, inclu- vezes ao longo de todo o seu Between Facts and Norms,
indo-se entre estas o governo e as instituições pro- apesar de não se dar ao trabalho de agregar às referências
priamente políticas, Dewey não especifica um nem mesmo uma breve análise do autor. Uma das alusões
a Dewey, contudo, dá-se justamente no capítulo dedicado
à democracia deliberativa, quando afirma que “ninguém
trabalhou este ponto de vista mais energicamente do que
John Dewey” (HABERMAS, 1996, p. 304). O “ponto de
9 Alguns dos principais autores sobre democracia vista” a que se refere é que “o procedimento democrático
deliberativa e participativa que ignoram o pragmatismo é institucionalizado em discursos e processos de barganha
político e a contribuição de Dewey são, entre outros além pelo emprego de formas de comunicação que prometem
dos próprios Bohman e Rehg: Jon Elster, Joshua Cohen, que todos os resultados alcançados em conformidade com
Frank Michelman, David Held e James Fishkin. O próprio o procedimento serão razoáveis” (ibidem). Convenhamos
Habermas, apesar de mostrar-se um bom conhecedor do que Dewey jamais falou em “processos de barganha” ou
pragmatismo social de Mead e Peirce, jamais demonstrou em qualquer coisa semelhante que possa indicar isso. Pa-
expressamente ser um leitor de Dewey e tampouco se refe- rece ser um pouco exagerado da parte de Habermas trans-
riu de maneira efetiva à sua teoria da democracia ao de- formar a palavra “persuasão”, que de fato Dewey empre-
senvolver seus conceitos de “espaço público”, “delibera- ga, em um processo de barganha. De todo modo, foi feita
ção” e “democracia procedimental”. Como aponta Robert a referência ao fato de que Dewey tratou do assunto, coisa
Westbrook nesse sentido, as duas únicas exceções, ou seja, que muitos teóricos recentes da democracia deliberativa
os dois únicos autores que parecem vincular mais clara- parecem ignorar. Resta faltando que algum deles aventu-
mente suas concepções de democracia deliberativa com re-se a estudar o pensamento de Dewey de maneira mais
Dewey são William Sullivan e Benjamin Barber (cf. sistemática, de modo a conceder-lhe o seu devido lugar no
WESTBROOK, 1991, p. 550). início da estrada da democracia deliberativa.

49
A DEMOCRACIA DO HOMEM COMUM

meios e fins podem ser de qualquer espécie, pois pode, por exemplo, ser imposto de fora nem ser
sempre haverá um meio de concretizar um fim. derivado de nenhuma externalidade. Trata-se de
Assim, “não há nada mais radical do que a insis- um modo de vida pessoal, constituído por cada
tência sobre métodos democráticos como os mei- indivíduo. Para entender a idéia de democracia,
os pelos quais mudanças sociais radicais são portanto, é preciso perceber “[...] no pensamento
efetuadas” (DEWEY, 1998 [1937], p. 339). Des- e na ação que a democracia é um modo pessoal
se modo, afirma Dewey, não haveria oposição, por de vida individual; que ela significa a possessão e
exemplo, em sustentar meios democráticos libe- o uso contínuo de certas atitudes, formando o ca-
rais combinados com fins que são socialmente ráter pessoal e determinando o desejo e o propó-
radicais. “O fim da democracia é um fim radical. sito em todas as relações da vida. Ao invés de pen-
Pois é um fim que não tem sido adequadamente sar em nossas próprias disposições e hábitos como
realizado em nenhum país em nenhum momento. acomodados a certas instituições, nós temos que
Ele é radical porque requer uma grande mudança aprender a pensar nestas últimas como expressões,
nas instituições sociais, econômicas, jurídicas e projeções e extensões das atitudes pessoais habi-
culturais existentes” (idem, p. 338-339). tualmente dominantes” (idem, p. 341; grifos no
original).
O que faz que a concepção de democracia de
Dewey possa combinar, ao mesmo tempo, meca- Em conseqüência, a idéia de democracia não
nismos diretos e indiretos, participação e repre- tem que se adaptar às instituições, sobretudo às
sentação, deliberação e procedimento, liberalis- instituições políticas, mas, ao contrário, são as
mo e radicalismo social, é justamente a sua ex- instituições que têm que se adaptar não somente à
pressão por meio da “idéia de democracia”. Esta democracia, mas também aos hábitos dos indiví-
idéia, alternativamente adjetivada por Dewey e duos – aos seus modos de vida. Em outras pala-
seus comentadores como sendo social, moral ou vras – deweyanas, certamente –, a “democracia
ética, não é nem forma nem substância, é algo ao política” deve subordinar-se à “idéia de democra-
mesmo tempo abstrato e concreto... é algo que, cia”.
em um sentido bem pragmatista, ainda está – e
Inevitavelmente associado à idéia de democra-
sempre estará – sendo feito (“in the making”). Não
cia como um modo de vida, está um outro concei-
existe, portanto, um princípio que expresse essa
to importantíssimo correlato à teoria democrática
idéia, assim como não existe uma forma nem um
de Dewey: a fé. Evidentemente, não se está falan-
conteúdo predeterminado e tampouco um ponto
do de qualquer fé. Trata-se de uma fé democráti-
de chegada para ela11.
ca, digamos assim. Essa fé deweyana, por sua vez,
IV. A DEMOCRACIA COMO UM MODO DE decerto expressa a mais interessante das crenças
VIDA do seu autor, qual seja, a crença no “Homem Co-
mum”. “A democracia é um modo de vida coman-
A melhor maneira de compreender a idéia de
dado por uma operante fé nas possibilidades da
democracia Dewey ofereceu-nos em um artigo
natureza humana. A crença no Homem Comum é
escrito por ocasião da comemoração do seu ani-
um artigo familiar do credo democrático. Essa
versário de 80 anos (DEWEY, 1998 [1939], p.
crença não tem base nem significado senão quan-
340-343). Esse artigo, que certamente poderá per-
do significa fé nas potencialidades da natureza
manecer por todo o resto da história democrática
humana na medida em que essa natureza é exibi-
como um panfleto em prol da democracia, um belo
da em todo ser humano sem distinção de raça, cor,
e vivo manifesto pela democracia, reitera a cren-
sexo, nascimento e família, riqueza material ou
ça de que a mesma não pode ser encarada mera-
cultural. Essa fé pode ser decretada em leis, mas
mente como um mecanismo político. A democra-
ela será apenas papel a não ser que seja colocada
cia, a “idéia”, afinal, é um “modo de vida”. Mas
em vigor nas atitudes que os seres humanos pos-
esse modo de vida não é qualquer um; ele não
suem uns com os outros em todos as circunstânci-
as e relações da vida cotidiana” (ibidem).
A democracia é, assim, um modo de vida pes-
11 Observe-se como as origens experimentalistas e
soal comandado não apenas pela fé na natureza
hegelianas do pragmatismo são incontestáveis nesse con-
humana em geral, explica Dewey, mas pela fé na
ceito de “idéia de democracia” de Dewey.

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capacidade de os seres humanos terem vida associativa. É preciso que os indivíduos te-
discernimento (judgement) e uma ação inteligen- nham oportunidade de aprender a pensar e a agir
te. Estão em jogo aqui os conceitos pragmatistas diante de todos os problemas da sua comunidade
de inteligência e criatividade. Alguns autores con- – do contrário, afinal, ela não seria uma comuni-
sideram que Dewey utiliza o conceito de inteli- dade democrática. A fé democrática, portanto, tra-
gência muitas vezes como substitutivo da idéia de duz-se na confiança nessa capacidade inesgotá-
razão (BERNSTEIN, 1971, p. 222; WEST- vel do homem de responder aos problemas da sua
BROOK, 1991, p. 356-361; ALEXANDER, 1995, comunidade por meio do exercício
p. 138-142). No entanto, a inteligência é uma comunicativamente livre e prático de suas própri-
potencialidade de todos os seres humanos que, as respostas. “Pois o que é a fé na democracia nos
contudo, não se encontra plenamente desenvolvi- papéis de consulta, de conferência, de persuasão,
da sem a educação. Assim como a educação é es- de discussão, na formação da opinião pública, a
sencial para a constituição da comunidade, ela é qual a longo prazo é autocorretiva, senão fé na
também essencial para a consolidação da demo- capacidade de inteligência do homem comum para
cracia. Aliás, a prática da vida comunal e da de- responder com bom senso ao livre jogo de fatos e
mocracia nela incluída é também, por sua vez, idéias que são assegurados pelas garantias efeti-
constitutiva do aprendizado e desse tipo de inteli- vas da livre investigação, da livre reunião e da li-
gência de que nos fala Dewey. “[...] O objetivo da vre comunicação?” (DEWEY, 1998 [1939], p.
educação é capacitar o indivíduo para continuar a 342).
sua educação – ou o objeto e a recompensa do
Dewey sabe perfeitamente que, no contexto de
aprendizado é a capacidade contínua de cresci-
um processo tão livre, e tão intrinsecamente
mento. No entanto, essa idéia não pode ser apli-
autocorretivo de intercomunicação, é inevitável
cada para todos os membros de uma sociedade
que surjam conflitos entre os indivíduos, dado que
exceto onde o intercurso do homem com o ho-
cada um tem a sua própria maneira de enxergar
mem seja mútuo, exceto onde exista provisão ade-
necessidades, fins e conseqüências (afinal, a de-
quada para a reconstrução dos hábitos e institui-
mocracia é um modo pessoal de vida). A solução
ções sociais por meio de um amplo incentivo ori-
para tais conflitos é a “cooperação amigável” –
ginado dos interesses eqüitativamente distribuí-
que, como nos esportes, pode incluir a rivalidade
dos. E isso significa uma sociedade democrática”
e a competição, porém não a força – que se exer-
(DEWEY, 1998 [1916], p. 250; grifo no original).
ce, no âmbito do debate e da inteligência, por meio
A capacidade da inteligência do homem co- da tentativa constante de aprender-se alguma coi-
mum para responder satisfatoriamente aos proble- sa com aqueles de quem discordamos e, nessa
mas sociais deve, em conseqüência, ser desenvol- medida, fazer deles amigos em potencial. Em ou-
vida não apenas por meio da educação, mas tam- tras palavras, as disputas e controvérsias devem
bém por meio da prática cotidiana do exercício da ser transformadas em empreendimentos coopera-
cidadania em uma sociedade democrática. O que tivos em que as duas partes aprendem ao possibi-
propicia, contudo, que a inteligência seja desen- litar, uma à outra, a chance de expressar-se. E essa
volvida tanto nas escolas como em outros lugares chance deve ser conferida não porque consiste em
e momentos da vida associativa comunal é o livre um direito das pessoas, mas porque representa uma
exercício da comunicação. Em outras palavras, na crença na expressão das diferenças, que, por sua
medida em que os indivíduos passam a ter plena vez, consiste em “um meio de enriquecer a expe-
oportunidade de interagir, discutir e deliberar pu- riência de vida pessoal de cada um” (ibidem).
blicamente a respeito dos problemas que envol-
V. CONSIDERAÇÕES FINAIS
vem a sua comunidade, sua inteligência desenvol-
ve-se. O que está em jogo nessa noção de inteli- Em conclusão, a democracia deweyana é um
gência, portanto, é também uma capacidade prá- modo de viver que acredita na experiência simul-
tica de lidar com os problemas efetivos que a so- taneamente como meio e como fim. Os processos
ciedade real apresenta cotidianamente. E se a edu- e interações intercomunicativos servem, assim,
cação promovida pelas escolas contribui para isso para alargar e enriquecer essa experiência. A atu-
ao constituir-se em um protótipo de comunidade, alidade do pensamento de Dewey mostra como é
ela sozinha não basta – é preciso que ela possa ser possível pensar a partir de alguns dos conceitos
estendida para as outras atividades e núcleos da mais atuais da Teoria Política contemporânea, tais

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A DEMOCRACIA DO HOMEM COMUM

como deliberação, procedimento e comunicação, ria política pragmatista é efetivamente uma tarefa
sem, no entanto, precisar abrir mão de alguns dos de recuperação, no sentido de recriação. Não é
conceitos centrais da matriz filosófica do preciso um neopragmatismo que pretenda mera-
pragmatismo, como é o caso do conceito de expe- mente buscar na matriz filosófica do pragmatismo
riência12. É possível, portanto, e ao contrário do clássico elementos para construir uma nova teo-
que pensam alguns neopragmatistas como Richard ria política pragmatista. O pragmatismo político
Rorty, elaborar uma teoria política genuinamente de Dewey é ainda uma teoria política viva. Sua
pragmatista sem deixar de lado o conceito filosó- atualidade e sua vitalidade precisam ser conheci-
fico de experiência – e, principalmente, sem pre- das e, a partir disso, re-criadas. E é nisso que deve
cisar substituí-lo pela idéia de linguagem. Como residir a inteligência, a criatividade, dos novos
vimos com Dewey, a comunicação é peça essen- pragmatistas13.
cialmente necessária aos conceitos pragmatistas
de comunidade e democracia. Mas ela não é sufi-
ciente. A comunicação só é relevante na medida
em que é ela que possibilita que a experiência seja
permanentemente ampliada, alargada, enriquecida
e perpetuada. Diante disso, a comunicação é sem-
pre secundária em face da experiência; ela é sem-
pre um meio, enquanto a experiência é sempre, e 13 Há dois artigos recentes sobre a democracia deweyana
ao mesmo tempo, meio e fim. que efetivamente apresentam uma recriação criativa dos
argumentos de Dewey. Um deles é o do neopragmatista
A democracia, afinal, não consiste em uma Hilary Putnam (1991, p. 217-246) que intenta encontrar
crença no potencial ainda não inteiramente conhe- em Dewey uma justificação epistemológica da democra-
cido da comunicação, mas consiste em uma cren- cia. O outro é de Robert Westbrook (1998, p. 128-140),
ça nas múltiplas e infinitas potencialidades da ex- que, de tanto estudar o pensamento de Dewey com lentes
de historiador vem-se mostrando um verdadeiro
periência humana e da experiência social. Por con-
neopragmatista, apto a discutir todos os seus aspectos po-
seguinte, a tarefa premente de recuperar uma teo- líticos com uma qualidade que poucos apresentam. Vale
atentar no início do artigo de Westbrook justamente para
essa idéia de que o neopragmatismo, seja pelas mãos dele,
12 Sobre a matriz filosófica do pragmatismo e seus pres- de Rorty, de Putnam ou de qualquer outro que se aventure,
supostos antifundacionalistas, contextualistas e consequen- consiste em uma re-criação do pragmatismo clássico, o
cialistas, veja-se Pogrebinschi e Eisenberg (2002, p. 107- que pode se dar de maneira mais ou menos fidedigna, lite-
110) e Pogrebinschi (2002, p. 8-65). ral, em cada um que tome para si tal tarefa.

Thamy Pogrebinschi (thamy@iuperj.br) é Doutoranda em Ciência Política no Instituto Universitário de


Pesquisas do Rio de Janeiro (IUPERJ), autora dos livros Onde está a democracia?, com José Eisenberg
(2002) e O problema da obediência em Thomas Hobbes (2003). Vencedora do Prêmio Associação
Nacional de Pós-graduação em Ciências Sociais-Editora da Universidade do Sagrado Coração (ANPOCS-
EDUSC) 2002 na área de Ciência Política.

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