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TEORIAS DEMOCRÁTICAS
Múltiplos olhares sobre um fenômeno em mutação
Se esse impasse surgisse em uma grande empresa, ele seria de fácil resolução.
Uma possível saída seria fazer duas garrafas de café (uma com açúcar e outra sem
açúcar), agradando a todos e a todas. Outra saída seria perguntar ao presidente
da empresa como gostaria que o café fosse preparado. Como o impasse surgiu em
uma ONG, no entanto, ambas as soluções pareciam inadequadas. Primeiro não
havia duas garrafas, nem recursos sobrando para preparar diferentes modalida-
des de café todos os dias. Segundo, como uma boa ONG que se deseja democrática,
as pessoas responsáveis por aquela dolorosa decisão não podiam tomá-la de uma
forma hierárquica, assentada na opinião de uma única pessoa. O jeito foi apelar
para a democracia. Realizou-se uma enquete com todos os “bebedores” de café
da instituição a partir da seguinte pergunta: “como você prefere o cafezinho da
Mas será que essa foi a decisão mais democrática? Será que democracia é
necessariamente realizada por uma enquete? Quais são os elementos definido-
res de democracia? Afinal, o que é uma democracia? Apesar da simplicidade do
exemplo que abre este capítulo, as questões por ele suscitadas não são simples.
Há muito tempo, pensadores de diferentes origens e tradições tentam responder
a essas perguntas. Não há um único conceito de democracia, e as ideias em torno
desse termo guarda-chuva se alteram em contextos diversos e segundo linhas
de pensamento distintas. O objetivo deste capítulo é apresentar, de forma pano-
râmica, algumas teorias democráticas, explorando a forma como essas teorias
buscaram responder às questões listadas. Nesse percurso, passaremos por abor-
dagens protetoras, elitistas, pluralistas, participacionistas e deliberacionistas de
democracia. Não se trata, obviamente, de uma varredura exaustiva das teorias
democráticas ou mesmo das abordagens enfocadas, mas de uma breve introdução
a algumas perspectivas que se mostraram fortes historicamente na definição da
ideia de democracia. Antes de iniciarmos nosso percurso cabe fazer, aqui, algu-
mas ponderações sobre teorias.
como o mundo poderia (ou deveria) ser. Teorias portam, assim, uma dupla dimen-
são: elas têm uma faceta descritiva e outra normativa.
No caso das teorias democráticas, foco de nosso texto, elas buscam dizer o que
é uma democracia, mas também justificar sua relevância, apontar suas falhas e,
frequentemente, a forma como democracias deveriam (ou não deveriam) operar.
Essas formas de ver e entender a democracia podem nos auxiliar a compreender
contextos concretos, mas também a projetar novas instituições e práticas que
levem a um aprofundamento ou à efetivação da ideia de democracia.
Importante mencionar, por fim, que esses modos de ver e entender o mundo não
são meras escolhas individuais diante de um cardápio de possibilidades adequa-
das aos gostos do freguês. Teorias não devem ser pensadas como lentes que indi-
cam preferências puramente individuais. Para se consolidarem como teorias, no
âmbito da produção do conhecimento científico, elas precisam sobreviver a testes
concretos, demonstrando sua capacidade explicativa e seu potencial de geração
de novas ideias. Teorias são fruto de um debate amplo e de longo prazo, em que
pensadores buscam atritar esses modos de ver e entender com outras formas
de compreensão e com o próprio mundo. Este texto busca apontar algumas das
correntes mais fortes e visíveis no longo debate ocidental em torno da ideia de
democracia.
cidadãos). Ademais, o poder precisaria ser freado por outros poderes, de modo a
evitar sua apropriação por uma vontade política particular que o utilizasse a seu
bel-prazer.
Justamente por isso, alguns autores que tentam organizar o conjunto das
teorias democráticas, como C. B. Macpherson (1977) e David Held (1987), denomi-
nam certas teorias desenvolvidas nesse momento da história de teorias protetoras
da democracia. A ideia é a de que o governo representativo (termo preferido em
relação à democracia) seria um modo de proteger os cidadãos do poder do Estado
(que não seria, pois, absoluto) e de seus concidadãos. Cada cidadão teria direitos
fundamentais, que deveriam ser assegurados e protegidos. O governo deveria ser
responsivo à multiplicidade de cidadãos para evitar que uma pessoa ou grupo se
apoderasse do poder político e se impusesse sobre todos os outros. Assim, seria
fundamental assegurar o direito ao voto, as liberdades fundamentais, os controles
entre Poderes e a possibilidade de competição política permanente.
Três pensadores podem ser compreendidos dentro dessa ótica que entende
o governo representativo como uma proteção aos cidadãos. O primeiro deles é
James Madison (1751-1836), considerado um dos pais fundadores dos Estados
Unidos da América, país do qual foi o quarto presidente. Madison participou da
escrita de alguns artigos muito importantes que fizeram uma defesa da ratificação
da Constituição norte-americana no final do século XVIII. Inicialmente publicados
por dois jornais de Nova York e, posteriormente, compilados em um livro intitu-
lado O federalista, esses artigos apresentam os pilares fundamentais do sistema
político dos EUA.
No contexto dessa obra, Madison faz uma crítica à ideia de que o autogoverno
poderia ser promovido por meio da democracia direta (como a ateniense). Essa
forma de governo seria intolerante e injusta, conduzindo à já mencionada dita-
dura da maioria, que acabaria por cercear as liberdades fundamentais de parce-
las da população. Em seu lugar, Madison advogava, no artigo 10, que a melhor
forma de organizar politicamente uma sociedade seria assegurando a delegação
do poder político por meio da representação eleitoral em um contexto de larga
escala.
3. Elitismo Democrático:
a Democracia como Forma de Escolha de Lideranças
De modo geral, na teoria política, a chamada teoria das elites foi elabo-
rada a partir do final do século XIX por autores como Vilfredo Pareto (1848-1923),
Gaetano Mosca (1858-1941) e Robert Michels (1876-1936). Na sua base, está uma
crença de que o surgimento de elites é inerente à associação humana. Como
explica Miguel (2014, p. 138), o objetivo geral dessa abordagem “era desinflar
as expectativas de igualdade, afirmando de maneira categórica a inevitabilidade
da manutenção de assimetrias de poder e de riqueza, em qualquer sociedade
humana possível”.
Nesse cenário, Weber já deixa muito claro o papel que atribuía à democracia. O
governo representativo seria essencial para a seleção de líderes de que a política
necessitava para que a sociedade não fosse dominada pelo poder da burocracia.
A visão de Weber sobre a democracia fica clara no diálogo entre ele e um general
alemão, relatado por sua esposa e biógrafa Marianne Weber:
WEBER: Mais tarde, o povo pode fazer o julgamento. Se o líder tiver cometido
erros – à forca com ele! (WEBER, 1995, p. 30 apud VITULLO, 2010, p. 8).
O foco de Weber na liderança política ganha ainda mais força na sua progres-
siva migração de apoio ao sistema parlamentar para uma defesa do presidencia-
lismo no final de sua vida, como relatado por Carlos Sell (2010). Para Weber, a
vantagem da democracia era concentrar poder legítimo nas mãos de um político
profissional que pudesse ser responsabilizado por suas escolhas e decisões. É esse
foco na democracia como procedimento para seleção de líderes que caracteriza o
elemento mais fundamental da visão elitista de democracia.
Além disso, Schumpeter criticava a ideia de que a opinião pública seria racio-
nal e unificada. Mesmo porque os indivíduos não agiriam de forma essencial-
mente racional. A psicologia social de Le Bon e a psicanálise de Freud já teriam
evidenciado que os indivíduos se pautam por impulsos vagos e obscuros, expres-
sando dimensões irracionais ou extrarracionais em suas ações. Os sujeitos opera-
riam com uma lógica de curto prazo, sem se responsabilizar por seus atos ou
compreender a política de uma forma mais ampla. A questão para Schumpeter é
que isso não seria um problema superável, por exemplo, via educação. As pessoas
são assim e se tornaram mais fortemente assim em uma sociedade de massas.
4. Pluralismos Competitivos:
a Democracia como Expressão da Pluralidade
Dito isso, reconhecemos, contudo, que elas não são teorias muito articuladas
como um modelo mais amplo. A aproximação proposta em torno da ideia de plura-
lismo competitivo é meramente didática, já que essas teorias apontam em direções
muito diferentes e baseadas em premissas teóricas distintas. Nosso esforço por
apresentá-las didaticamente apenas reconhece essa aposta no pluralismo como
definidor da democracia.
O primeiro autor a ser abordado é Anthony Downs (1930-), que propõe uma
Teoria econômica da democracia, em obra lançada em 1957. Downs é um econo-
mista americano e sua visão da democracia parte do princípio de que governos
representativos são formados a partir de escolhas individuais que são agregadas
por meio dos votos nas eleições. Sua proposição visa explicar o que leva esses
indivíduos a realizarem suas escolhas. Para isso, parte da premissa de que os indi-
víduos são racionais e que buscam realizar um cálculo de utilidade para alcançar
benefícios para si e/ou para os grupos a que pertencem. Nessa busca, avaliam os
custos da participação e os evitam (ou transferem) sempre que possível. É o que
explica, por exemplo, o fato de muitos cidadãos não se informarem para tomar
sua decisão de voto. Na medida em que tais cidadãos ou já têm uma preferência,
ou são indiferentes ao resultado ou têm consciência do pouco peso de seu voto,
faz sentido que optem por não se informar e que se apoiem em outros indivíduos
nos quais confiam para tomar suas decisões.
Stuart Mill entendia que a democracia era o regime político que possibilitaria
o autodesenvolvimento moral dos indivíduos, por propiciar o envolvimento ativo
de cada um na determinação das condições que recaem sobre sua existência.
Esse desenvolvimento das capacidades de cada indivíduo dependia fortemente do
encontro com o outro e do choque público de interesses. A democracia, efetivada
por meio de governos representativos, teria um papel fundamental em assegurar
esses choques de perspectivas, reafirmando tanto a pluralidade humana quanto
a possibilidade de sua expressão política. Ademais, ela asseguraria a limitação do
Como já dito, Stuart Mill foi um forte defensor das liberdades que hoje são
associadas com os governos democráticos: de expressão, de imprensa, de associa-
ção. Considerava que as desigualdades sociais e econômicas existentes poderiam
dificultar ou mesmo impedir que os trabalhadores se desenvolvessem plenamente
e vivessem humanamente, preocupando-se com as condições que sustentariam
a democracia representativa. Além disso, ele apontava para o papel pedagógico
da participação política, defendendo uma ampliação do sufrágio na Inglaterra de
meados do século XIX. Ainda assim, ele não defendia a igualdade política plena,
mas um sistema plural de votação, que atribuiria maior peso aos votos dos cida-
dãos mais educados. Um médico ou uma pessoa graduada em uma universidade
deveriam ter um voto com peso pelo menos seis vezes superior ao de um traba-
lhador sem qualificações.
em uma disputa justa e plural por poder político. Com base nessas dimensões,
ele propõe o conceito de poliarquia para definir “regimes que foram substancial-
mente popularizados e liberalizados, isto é, fortemente inclusivos e amplamente
abertos à contestação pública” (DAHL, 2005, p. 31). Para o autor, a existência de
um regime plenamente democrático é muito difícil, e a variação nessas duas
dimensões indica o grau de democratização do regime. As poliarquias, portanto,
podem ser entendidas como as democracias existentes, ainda que incompletas se
comparadas a todos os requisitos democráticos.
A capacidade reflexiva dos indivíduos, tão destacada pelo autor, e o seu desen-
volvimento a partir das interações humanas são a base da crítica feita por Dewey
aos elitistas de sua época, como Walter Lippmann. Dewey foi um crítico da confi-
guração da democracia como forma de governo, mas recusava-se a enfraquecer a
ideia de democracia. Ele acreditava nos seres humanos e na capacidade de refle-
tirem sobre o mundo em que se inserem.
Essas ideias têm semelhanças importantes com aquelas que seriam desenvol-
vidas, anos depois, pelo pensador que é considerado como a pedra fundamental
da teoria deliberativa da democracia, o filósofo alemão Jürgen Habermas (1929-).
Na década de 1960, Habermas discute o conceito de esfera pública e propõe que
o cerne da prática política seja o debate público entre pares. Nos anos de 1980, ele
sistematiza insights teóricos trabalhados por 20 anos em uma teoria da ação comu-
nicativa, onde propõe duas formas de racionalidade humana – a estratégica, orien-
tada para o sucesso, e a comunicativa, orientada para o entendimento mútuo.
Esta última é considerada a base da reflexividade humana e da emancipação, por
possibilitar a revisão coletiva do mundo em que nos inserimos. É justamente essa
reflexividade coletiva engendrada pelo intercâmbio comunicativo que relaciona a
abordagem com a política: na troca de discursos, os sujeitos podem afetar as relações
de poder estabelecidas e os rumos assumidos por uma coletividade.
Nas duas primeiras décadas do século XXI, verificam-se dois importantes movi-
mentos nesse campo: a construção de procedimentos metodológicos de modo a
atritar o modelo normativo com as práticas políticas existentes; e a criação, por
pesquisadores e realizadores, de vários experimentos destinados a promover a
deliberação em práticas políticas. O esforço é para compreender o funcionamento
da deliberação em contextos concretos e, a partir disso, desenhar arenas e fóruns
mais propícios à promoção da deliberação pública. Justamente, por isso, vários
autores têm proposto a estruturação de inovações democráticas chamadas minipú-
blicos, que tentam criar espaços indutores de processos de deliberação. Archon Fung
(2004, p. 174) destaca a existência de, pelo menos, três razões para prestar muita
atenção a esses experimentos:
Embora pequenos, eles estão entre os atuais esforços construtivos mais promis-
sores para o engajamento cívico e a deliberação pública na política contem-
porânea. Em segundo lugar, dada a fragmentação da vida cultural e política,
reformas efetivas de larga escala na esfera pública podem consistir em grande
medida na proliferação de melhores minipúblicos ao invés de um melhora-
mento do único grande público. Por último, mesmo aqueles que subscrevem
concepções de aperfeiçoamento tectônico, macroscópico, precisarão saber algo
sobre os detalhes do desenho institucional para a deliberação pública efetiva
(FUNG, 2004, p. 174).
Isso não significa que a deliberação só possa ocorrer nesses espaços planeja-
dos. Os defensores do modelo deliberacionista de democracia têm realizado um
esforço considerável para conceituar o processo de debate público de maneira
bastante ampla, salientando que ele não se localiza em uma única arena ou
conversa. A noção de sistemas deliberativos, inicialmente proposta por Jane Mans-
bridge (2006), ressalta exatamente como o processo de discussão pública depende
de várias arenas distintas que se conectam, incluindo desde conversações infor-
mais cotidianas até as arenas decisórias do sistema político, passando por ambien-
tes como a mídia e a internet. Para os defensores dessa visão, a institucionalização
da democracia deliberativa requeria compreender de que maneira diferentes
arenas e instituições podem promover elementos essenciais à deliberação.
7. Considerações Finais
Nota-se, assim, que decisões coletivas democráticas podem ser pensadas por
uma miríade de perspectivas, com suas vantagens e desvantagens. Mais do que
defender a democracia na atualidade, é preciso deixar claro de qual democra-
cia estamos falando, seja para decidir os rumos do país, seja para preparar um
simples cafezinho.
Para pensar…
1. Como podemos definir a democracia?
2. Quais as principais teorias que buscam compreender a democracia?
3. Como essas teorias compreendem os indivíduos, a sociedade e a participação política?
4. É possível associar a formulação dessas teorias aos contextos sociais, políticos e
culturais nos quais foram geradas. Faça este exercício de associação.
5. Quais as principais críticas a essas teorias?
Referências