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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA-UNB
FACULDADE DE EDUCAÇÃO-FE
MESTRADO EM EDUCAÇÃO
DESENVOLVIMENTO INFANTIL:
CONCEPÇÕES DE PROFESSORES E SUAS IMPLICAÇÕES
NA MANIFESTAÇÃO DO PRECONCEITO
DISSERTAÇÃO DE MESTRADO
Brasília – DF
Maio de 2005
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FACULDADE DE EDUCAÇÃO – FE
DESENVOLVIMENTO INFANTIL:
CONCEPÇÕES DE PROFESSORES E SUAS
Maio de 2005
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DESENVOLVIMENTO INFANTIL:
CONCEPÇÕES DE PROFESSORES E SUAS IMPLICAÇÕES NA
MANIFESTAÇÃO DO PRECONCEITO
Orientadora
Examinador
Examinadora
Suplente
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AGRADECIMENTOS
Ao Jair,
Meu amor, meu companheiro de vida, cuja presença torna mais suave meu caminhar. Por
seu amor, apoio e compreensão tão necessários tantas vezes.
A Beth,
Por seu compromisso e responsabilidade, pela seriedade de suas orientações, pelos
aprendizados valiosos, pela confiança, pela amizade e por me acolher com carinho. Você é,
sem dúvida, um presente de Deus.
A minha mãe,
Por seu amor e apoio sempre; pelas horas de preces dedicadas a meu favor.
Ao meu pai,
Pelo apoio a mim dedicado em vida e pelo grande exemplo deixado a despeito de sua curta
existência.
A minha família,
Pelo carinho e por compreender minhas ausências.
A Janine e Eric,
Pela leitura e revisão criteriosa de meus textos.
A Deus,
Autor de minha vida e para quem eu vivo, minha gratidão para sempre.
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RESUMO
ABSTRACT
The present work developed a study about the conceptions of teachers' development.
It looked for to investigate such conceptions would be implicated in the manifestation
of the prejudice driven elect people as deficient and if they would possess roots in
scientific theories of the psychology. The man's actions sit on conceptions that carry
specific manners of seeing the things and the people and of relating with them. The
teachers' educational practices are anchored also in conceptions that they can have
concerning the childish development. This can be become pregnant, at least, starting
from two head offices different from thought that implicate two basic axes in
agreement with which the development can be characterized: the axes hierarchy-
uniformity and no hierarchy-diversity. The thought head offices that hold those axes
are, respectively, the naturalistic head office and the historical-cultural, that they run
in two beds different from the psychology of the development. There is, among the
teachers that participated in our study, a predominance of the characteristics found
at the naturalistic head office of the development. There is also the tendency of
guiding the school education for the law of the smallest effort, as protected practice-
tutorship and assistencialism and in conceiving the education as mere application of
the technique. Those tendencies allow the manifestation of the prejudice in the school
atmosphere in relation to the people instituted as deficient. The prejudice can be
considered an important barrier for a true school inclusion. The school
contemporary, excluding from the beginning, it has been creating the possibility
conditions for the emergency and manifestation of the prejudice. Like this, so that
there is the possibility of practices of school education no excluding, we appeared for
the need of a radical reform in the school institution.
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SUMÁRIO
RESUMO...........................................................................................................................
ABSTRACT......................................................................................................................
CAPÍTULO I
A CRIANÇA E A INFÂNCIA: UMA IMPOSIÇÃO BIOLÓGICA OU UMA
CONSTRUÇÃO SOCIAL?...............................................................................................
1.1 – A criança, a infância e a escola..........................................................................
CAPÍTULO II
A PSICOLOGIA MODERNA: RAÍZES HISTÓRICAS.................................................
CAPÍTULO III
A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO................................................................
3.1– As matrizes naturalista e histórico-cultural..........................................................
CAPÍTULO IV
O MOMENTO EMPÍRCO................................................................................................
4.1 – A coleta de dados...............................................................................................
4.2 – Modo de análise: primeira parte – Tendências das práticas educativas..............
4.3 – Interpretação dos dados: primeira parte – Tendências das práticas educativas...
4.3.1– Educação orientada pela lei do menor esforço...................................................
4.3.2 – Educação como prática tutelada – tuteladora e assistencialista........................
4.3.3 – Educação como aplicação da técnica...............................................................
4.4 – Modo de análise: segunda parte – Manifestação do preconceito........................
4.5 – Interpretação dos dados Segunda parte - Manifestação do preconceito.............
4.6 – Modo de Análise: terceira parte – Concepções de desenvolvimento.................
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1
Documento consultado: Diretrizes educacionais sobre estimulação precoce: o portador de necessidades
educativas especiais / secretaria de Educação Especial – Brasília: MEC, SEESP, 1995. (Série Diretrizes; 3).
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desenvolvimento desses professores? Que convicções eles carregam? Será que essa falta de
investimento está relacionada com suas concepções de desenvolvimento? Como isso se
manifesta nas práticas de educação dirigidas às pessoas consideradas deficientes? Será que
o preconceito está relacionado com a concepção de desenvolvimento? Será que a educação
de crianças deficientes no ensino regular pode se tornar uma experiência de sucesso? Será
que há a possibilidade de uma inclusão escolar verdadeira?
No início dessa pesquisa, pensava em estudar as concepções dos professores sobre
desenvolvimento e os preconceitos relacionados a elas. Questionava-me se isso poderia
estar ligado à ausência de teorias cientificamente elaboradas que dessem suporte ao
trabalho do professor. Ao iniciar a leitura de Stephen Jay Gould (1999a) em seu livro ‘A
Falsa Medida do Homem’, foi possível encontrar indicações de que esses preconceitos
podem não estar pendurados nas nuvens, podem não ser evocados exatamente pela falta de
teoria, mas podem muito bem estar atrelados a teorias científicas. O autor discute como a
ciência acaba por se tornar cúmplice da cultura da classe dominante e da política ao se
darem as mãos num esforço violento para explicar e legitimar as desigualdades existentes e
permanentes. Isso é ciência. Eu que desconfiava que a falta de investimento dos
professores poderia estar ligada à ausência de teorias científicas, comecei a perceber que
poderia não ser bem assim. Começou a ficar claro que a ciência também pode inspirar
opressão e desigualdade, pode aprisionar seres humanos em tipos fixos, nos limites do que
uma teoria diz. É incrível pensar como a teoria do determinismo biológico encontra eco na
sociedade e como se acha ancorada na política.
Segundo a matriz do determinismo biológico, a sociedade é entendida como um
retrato da biologia. As relações sociais são um retrato da natureza. As pessoas, de acordo
com as classes, raças, sexos e condições de normalidade ou anormalidade, têm seu lugar
determinado pois suas diferenças e as conseqüentes situações de superioridade ou
inferioridade são biologicamente herdadas e inatas. Não são vistas como condições
construídas social e culturalmente; antes, são vistas como um dado da natureza. Gould
chama a atenção para o fato de que os cientistas que adotam essa visão não concebem a
ciência como um fenômeno social, portanto, um empreendimento humano carregado e
‘contaminado’ por tudo que é inerente à condição humana.
Quando uma teoria é cientificamente elaborada e nega a cultura de classe da qual
está a serviço, como é o caso do determinismo biológico, ela pode aprisionar as pessoas em
tipos fixos, ditados e limitados por suas descobertas e suas verdades. Não é possível negar
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o valor de verdade de que a ciência está revestida e o poder que as pessoas lhe atribuem,
pois vivemos numa sociedade em que o conhecimento científico se sobrepõe e até substitui
outros tipos de conhecimento. É evidente sua importância para a manutenção da ordem
social estabelecida.
Parece óbvio o fato de que, para a sociedade contemporânea, o escalonamento do
valor dos indivíduos encontre eco em algo tão neutro e confiável como teorias elaboradas
com o rigor que a racionalidade científica exige. Para tanto, essa sociedade evoca tanto a
teoria científica como exemplos da natureza para mostrar que cada coisa e, portanto, cada
pessoa tem seu lugar determinado. Então, é bom que cada um permaneça no seu lugar na
sociedade para não desmanchar a ordem natural. Nesse caso, torna-se explicável por que é
necessário que haja ricos e pobres, brancos e negros, normais e anormais, eficientes e
deficientes, inteligentes e ‘burros’; os primeiros sempre considerados superiores.
A ciência criou critérios para determinar o valor dos indivíduos. Por exemplo, os
indivíduos são medidos por sua intelectualidade, por sua inteligência, sendo essa tomada
como uma entidade isolada e inata. A inteligência ora se fundamenta na craniometria com
seus diferentes métodos de medição do tamanho e volume do cérebro, ora na medição de
corpos (elegendo características físicas comuns a grupos considerados inferiores como
sinal e justificativa de sua inferioridade), ou ainda na medida do QI (Quociente Intelectual)
com suas diferentes formas de encontrar seu valor. Em qualquer dos casos, traz subjacentes
idéias de eugenia, superioridade das raças nórdicas e inferioridade das demais, supondo-se
alguns ainda mais inferiores do que outros.
Segundo o determinismo biológico, as raças são classificadas de acordo com o
valor que lhes é atribuído. Sejam o referencial a craniometria, as características físicas ou o
QI hereditário, os resultados confirmam que o grau de inteligência está diretamente
relacionado com a cor da pele, com a raça, com as características físicas, com o país de
origem e com a classe social. Para tornar válida a teoria são evocados tanto a racionalidade
científica como exemplos da natureza e até os mistérios da divindade. Assim, considera-se
que os seres indesejados pela sociedade, como os criminosos, as prostitutas, os loucos, os
epiléticos, os deficientes são constituídos de material biológico intrinsecamente inferior, o
que legitima e torna aceitável seu controle e mesmo sua eliminação. Atrocidades e
arbitrariedades são cometidas, ora em nome de Deus, ora em nome da ciência, traduzidos
como conhecimentos hegemônicos e utilizados de modo espúrio.
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2
Pesquisa realizada com o tema: “A inclusão e a psicopedagogia: um olhar para a diversidade”. Disponível
na biblioteca do Centro Universitário Adventista de São Paulo – UNASP – Campus I, Engenheiro Coelho –
São Paulo.
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exame das forças contextuais no período de sua emergência. Essas raízes sustentam a
psicologia ainda hoje? E a seiva da qual se nutrem suas teorias ainda são as mesmas?
No terceiro capítulo, procuramos mostrar como de dentro do escopo da psicologia
geral emerge a psicologia do desenvolvimento. É destacada a participação da escola na
criação das condições necessárias para que as teorias do desenvolvimento encontrassem
seu lugar no leito principal da psicologia. Procuramos também destacar o trabalho de
alguns pioneiros por considerar que suas bases muito têm a nos dizer sobre a maneira
como concebemos o desenvolvimento infantil. Haveria matrizes teóricas e filosóficas
distintas que sustentam as teorias do desenvolvimento ou todas possuem as mesmas raízes?
No quarto capítulo, mostramos como foi realizada a pesquisa empírica que ajudou
a compor o nosso trabalho. Esclarecemos como procedemos na coleta dos dados e o modo
como os analisamos e interpretamos. Também apresentamos e discutimos os resultados
encontrados à luz do pensamento dos teóricos que elegemos para guiar nossa reflexão.
Finalmente, fazemos algumas considerações finais sobre este trabalho. Não
tivemos a intenção de esgotar a discussão em torno da questão de como as concepções de
professores acerca do desenvolvimento infantil imbricam-se no seu trabalho e na maneira
como se relacionam com seus alunos. No entanto, esperamos contribuir com reflexões que
possam surgir a respeito do tema abordado.
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CAPÍTULO I
Entre os gregos eram sempre análogas às seqüências cíclicas do que ocorre nas ciências
naturais e na física. Essas não eram somente noções científicas, também correspondiam ao
pensamento popular.
Já no século XII, as idades da vida tornam-se populares na iconografia profana,
mas é sobretudo no século XIV que essa iconografia fixa traços essenciais que
permanecem quase inalterados até o século XVIII. As idades da vida podem ser assim
descritas: a idade do brinquedo; em seguida, a idade da escola; depois, as idades do amor e
dos esportes; na seqüência, as idades da cavalaria e das guerras e, por fim, as idades
sedentárias. Na idade da escola, as aprendizagens e as escolas eram diferentes para gêneros
diferentes. Então, as idades da vida não correspondiam apenas a etapas biológicas mas
estavam sempre relacionadas também a funções sociais. Nas palavras de Ariès (1986, p.
39) “a periodização da vida tinha a mesma fixidez que o ciclo da natureza ou a organização
da sociedade”.
Nas idades da vida, a idéia de infância não aparecia ligada aos fenômenos
biológicos propriamente ditos. A idéia de infância estava ligada à idéia de dependência. Só
se saía da infância, saindo da dependência, ou pelo menos, dos graus mais baixos de
dependência, quer dizer, até que se pudesse falar, caminhar e se alimentar com
independência. Da mesma forma, as palavras ligadas à infância eram usadas para designar
os homens de baixa condição econômica que, embora adultos, continuavam numa situação
de dependência de seus patrões, seus senhores. Já no século XIX, o vocabulário usado para
designar apenas a infância vai sendo ampliado e torna-se popular o uso de diminutivos,
pois a essa altura o conceito de infância e de criança já se diferenciava do conceito de
adulto. Por exemplo, a palavra baby do inglês e bébé do francês, que designavam a criança
em idade escolar, passam a indicar a criança bem pequena, de poucos meses. Mas, como se
construiu o sentimento de infância? Como se deu a descoberta da infância?
Postman (1999) considera que, do ponto de vista biológico, o ser humano pequeno
existe como uma imposição, uma resposta à necessidade de reprodução. Apesar disso, o
ser criança e a idéia de infância só podem existir como uma construção social. Embora a
necessidade biológica de reprodução imponha a presença de seres pequenos entre os
humanos, uma vez que as pessoas, em diferentes culturas, não se esquecem de reproduzir,
somente a partir de sua percepção como um ser diferente do adulto com características e
necessidades próprias é que surge o ser criança e o sentimento de infância. Entretanto,
essas mesmas culturas, que se reproduzem e produzem sua descendência biologicamente,
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o ser socialmente criança define-se pela ambiência social que o adulto lhe
oferece, isto é, pelas práticas sociais de educação, historicamente e
culturalmente condicionadas, que o mundo adulto lhe impõe.
religiosa com referência ao menino Jesus. Estamos diante do segundo tipo de criança. A
iconografia religiosa começa a representar o nu infantil com formas infantis, que são
representações de anjinhos. O menino Jesus, raramente nu, e sua mãe começam a expandir
a idéia da infância sagrada. Até a alma humana passa a ser representada por uma criança.
Mas essas imagens, que remontam ao século XIV, demoram a se expandir para além da
iconografia religiosa. Da infância do menino Jesus passa-se à infância das crianças santas:
a virgem Maria, São João, São Tiago e os filhos das mulheres santas. Ariès (1986, p. 56)
observa que “dessa iconografia religiosa da infância, iria finalmente destacar-se uma
iconografia leiga nos séculos XV e XVI”. Nessas pinturas, a criança ainda não era
representada sozinha, mas já em destaque e com ar anedótico, o que é coincidente com o
sentimento de infância engraçadinha.
Outro indicativo de mudança do sentimento em relação à infância são as efígies
funerárias nas quais a criança começa a aparecer no século XVI. Até então, não era comum
o sentimento de perda da criança como uma lembrança que merecia ser guardada. As
condições demográficas e o alto índice de mortalidade infantil da época são tomados como
explicativos para essa percepção da infância. No início do século XVI, as efígies das
crianças apareciam nos túmulos de seus pais. Já no final deste mesmo século, começam a
aparecer as efígies de crianças sozinhas.
Em pinturas do século XVII, a criança viva já era representada sozinha e se
tornava um dos modelos favoritos. Tanto as famílias dos nobres como dos populares
queriam ter os retratos de seus filhos, mesmo quando ainda crianças. Esse costume teve seu
início no século XVII e perdura até hoje. Com o advento da fotografia no século XIX, as
pinturas foram então substituídas. O que mudou então? Foram as condições demográficas
ou o índice de mortalidade infantil? Nem as condições demográficas nem o índice de
mortalidade infantil mudaram muito do século XII ao XVII. No entanto, com a
cristianização crescente e a idéia de que a criança também possuía alma imortal, o
sentimento em relação à criança e à infância mudou bastante.
O século XVII foi sem dúvida importante como marco na evolução dos temas
relativos à infância, período em que os retratos de crianças sozinhas são mais numerosos.
Nos retratos de família, ela se organiza em torno da criança, que aparece no centro da
composição da pintura. As crianças ganham também lugar privilegiado nas cenas de
gênero com meninos e meninas brincando e desenhando. A nudez torna-se convenção nos
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Esses sinais, além da pintura, aparecem também em registros escritos sob a forma
de cartas e textos literários, expressando o sentimento de pais e de outros adultos em
relação à criança no fim do século XVII e durante o século XVIII.
A vida da criança confundia-se com a do adulto não somente no que dizia respeito
às vestimentas, às feições e ao vocabulário, mas também no que dizia respeito aos jogos. É
bastante significativo o que Ariès (1986) traz a esse respeito. Segundo o autor, até o início
do século XVII, “não existia uma separação tão rigorosa como hoje entre as brincadeiras e
os jogos reservados às crianças e aos adultos (p. 88)”. Assim, a especialização das
brincadeiras era reservada à primeira infância por volta do início do século XVII. Após
essa idade, as crianças brincavam com jogos reservados aos adultos, com os próprios
adultos ou com outras crianças. Esse assunto despertava sentimentos ambíguos: de um
lado, os jogos eram admitidos sem discriminação pela maioria. De outro lado, uma minoria
rica e poderosa considerava-os imorais. Essa ambigüidade persistiu durante os séculos
XVII e XVIII.
Até a Idade Média, o sentimento de infância não existia. Aquelas crianças que
conseguiam sobreviver aos primeiros anos eram logo introduzidas no mundo dos adultos.
O primeiro sentimento relacionado à infância ligava-a a uma idéia de fraqueza e, portanto,
de dependência. Então, um novo sentimento surge no fim do século XVI e ao longo do
século XVII: o sentimento de paparicação. A paparicação provocou um sentimento de
indignação entre os mais conservadores que se referiam às crianças como macaquinhas que
serviam para diversão dos adultos. Outro sentimento surge entre os educadores e moralistas
do século XVII. A infância começa a deixar de ser associada somente à idéia de fraqueza e
de dependência ou à idéia de paparicação que se exprimia por meio da distração dos
adultos. Do sentimento de paparicação surge um sentimento de preocupação e interesse
pelo desenvolvimento moral e psicológico da criança, advindo do sentimento de
moralização que influenciou grandemente as práticas de educação dirigidas às crianças.
No século XIII, não se ensinavam nos colégios, que por sua vez, serviam de asilos
para estudantes pobres, fundados e mantidos por doadores. A partir do século XV, os
colégios tornaram-se instituições de ensino, em princípio, para os clérigos e, aos poucos,
expandiram-se para os nobres, para a burguesia e para as classes populares.
Para Ariès (1986), na Idade Média, não havia um conceito de infância. A criança
era considerada um adulto em miniatura. Postman (1999) defende que não havia um
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conceito claro nem de adulto; portanto, não poderia haver um conceito de criança, nem um
sentimento de infância. Havia o que poderia ser denominado de um comportamento
infantilizado do adulto medieval. Num mundo onde predominava a oralidade, não havia a
necessidade dessa distinção, uma vez que existiam poucos segredos e a cultura não
precisava preocupar-se em instruir as crianças sobre eles. Dominando a linguagem oral, as
crianças dominavam o mundo dos adultos. Portanto, a partir do momento que podiam falar
e entender o que os adultos falavam passavam a ser consideradas como adultos, ainda que
em tamanho reduzido. Considerando que a competência lingüística encerrava-se na
linguagem oral, não havia necessidade de escolas que ensinassem a cultura letrada.
A ocorrência de alguns fatos sociais colaborou para que a idéia de infância se
construísse cultural e socialmente. Postman (1999) considera que a infância como estrutura
social e condição psicológica foi uma das grandes invenções do Período da Renascença.
Considera também que a escola contribuiu grandemente para a sua consolidação e
prolongamento.
necessidade da escola que na Grécia Antiga e na Roma Antiga já havia dado seu prenúncio,
demonstrando que também o sentimento de infância anunciava-se, ainda que de forma
embrionária. No entanto, a partir da queda do Império Romano, a aprendizagem da leitura
e da escrita deixa de ser socializada e passa ao domínio de uma pequena parcela da
população: a corporação dos escribas. Assim, há uma correlação entre o desaparecimento
da alfabetização socializada e o desaparecimento da infância, bastante sentida na cultura
medieval. De maneira análoga, o reaparecimento da escola foi também importante para o
estabelecimento do sentimento de infância e seu prolongamento. (Postman, 1999).
A infância foi prolongada por uma nova etapa: a etapa da escola que, então,
passava a ocupar o espaço na vida da criança antes de ser reconhecida como adulta. Para as
crianças que não tinham acesso à escola por razões de classe social ou de gênero, o colégio
não prolongava a infância e nada mudava. De um lado, existiam aqueles que tinham sua
infância prolongada: a população escolarizada. De outro lado, estavam aqueles que
entravam diretamente na vida adulta tão logo sua linguagem e seus passos fossem
considerados firmes.
Conforme diz Ariès (1986, p. 189), “se a escolarização no século XVII ainda não
era o monopólio de uma classe, era sem dúvida o monopólio de um sexo. As mulheres
eram excluídas”. Às meninas eram reservadas as aprendizagens domésticas e nenhuma
educação escolarizada. Somente no fim do século XVII, começou a surgir a preocupação
com o ensino das meninas.
Vale destacar que, nos primórdios da escola, quando ainda não havia tão
fortemente o sentimento de que as crianças formavam uma categoria diferente de pessoas,
como também as classes escolares não eram separadas por idades, o acesso à escola – forte
aliada do sentimento de infância – não era restrito às classes altas. O núcleo principal da
população escolar era composto por famílias burguesas, nobres, juristas e eclesiásticos. No
entanto, essas classes de pessoas não representavam a única formação da população escolar
e não eram tão evidentes as diferenças de condições sociais e econômicas. A partir do
século XVIII, a escola única foi substituída por um sistema duplo de ensino e cada sistema
não correspondia somente à idade, mas também à condição social. Ariès (1986, p. 194)
esclarece que “existe um notável sincronismo entre a classe de idade e a classe social.
Ambas nasceram ao mesmo tempo, no fim da Idade Média, e no mesmo meio, a
burguesia”.
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A separação por classe de idade tem sua emergência na escola. A escola começa a
se especializar e estabelecer-se como uma instituição que não mais se destinava a todas as
classes sociais, mas à burguesia. Vale destacar como a escola se encarrega de reproduzir e
perpetuar o sistema classista da sociedade desde sua emergência. Também a escola
encontrava-se entre as instituições sociais que começavam a solicitar da ciência produções
que pudessem balizar seu trabalho e prever os resultados no desenvolvimento daqueles que
estavam sob seus “cuidados”, com a tarefa de transformá-los em adultos. No momento
histórico da emergência da escola, ocorria também a migração do conhecimento
considerado verdadeiro da religião para a ciência. Portanto, a escola precisava validar a
forma de trabalhar, a maneira como havia organizado a vida das crianças e a estrutura do
desenvolvimento infantil que havia inventado.
Segundo Postman (1999, p. 29)
podemos dizer, então, com certeza que no mundo medieval não havia
nenhuma concepção de desenvolvimento infantil, nenhuma concepção de
pré–requisito, de aprendizagem seqüencial, nenhuma concepção de
escolarização como preparação para o mundo adulto.
infância não somente despertaram interesses como fizeram discípulos entre os teóricos da
infância e da psicologia infantil.
Assim, quando nos séculos XIX e XX a infância atravessa o oceano e ingressa no
novo continente – a América –, traz consigo as tendências intelectuais que a constituíam: a
concepção lockiana ou protestante e a concepção rousseauniana ou romântica. Embora
Locke e Rousseau tivessem divergências importantes sobre a criança, a infância e a
educação, também podem ser encontradas convergências entre eles. Por exemplo, ambos
demonstram preocupação com o futuro e ambos consideram importante a orientação do
adulto. A partir de meados do século XIX, a visão lockiana de que as crianças eram adultos
não formados continuava intacta, mas começaram a surgir questões sobre como formar
esse adulto sem prejudicar as virtudes infantis descritas por Rousseau. Ou seja, como
equilibrar as exigências da civilização com as exigências da natureza do desenvolvimento
infantil? Aqui as portas estavam sendo abertas e o palco estava sendo montado para que a
psicologia se estabelecesse como ciência.
As crianças passaram, então, a ser percebidas como pessoas diferentes que
aprendiam e pensavam de modo diferente dos adultos após terem sido separadas como uma
classe diferente de pessoas. Surge um novo tipo de aprendizagem. Uma aprendizagem que
aos poucos vai se ligando a um desenvolvimento seqüencial, graduado, hierarquizado e
que, por fim, liga-se definitivamente à idade cronológica. As variações desse
desenvolvimento, aquelas não previsíveis nesse modelo, ganham o estigma de patologias.
Essa noção do que a criança pode aprender e quando deve aprender atribui aos adultos, a
partir de então, o controle sobre o mundo simbólico dos mais jovens. Fato que resulta na
possibilidade de os mais velhos estabelecerem as condições necessárias para que as
crianças tornem-se adultas. (Tunes e col., 2004).
Quando a escola criou o conceito de hierarquia dos conhecimentos a serem
adquiridos por meio dos conteúdos escolares e das habilidades a serem desenvolvidas,
estava criando também a estrutura do desenvolvimento infantil. É nesse contexto que surge
a necessidade de uma ciência cujas pesquisas orientem a educação geral das crianças e a
educação escolar em particular: a psicologia do desenvolvimento infantil. Estamos no
século XIX.
De tudo o que foi dito até aqui é possível perceber a forte influência da escola
tanto na consolidação do sentimento de infância como no seu prolongamento. Mas o que
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e as crianças são vistos como sujeitos de falta e por isso mesmo precisam ser tutelados e
assistidos.
O conhecimento transformado em mercadoria agrega valor àquele que passou
mais tempo nos bancos escolares. Se aqueles que possuem mais conhecimento adquirido
na escola e por ela certificado valem mais no mercado, os que resistem submeter-se a essa
lógica de mercantilização do conhecimento são considerados fracassados e, portanto, seres
humanos de menor valor, ou seja, de segunda categoria. Também é na escola que
aprendemos não somente a ser tutelados, como também a ansiar pela tutela daqueles que
julgamos possuir mais das mercadorias valorizadas na sociedade escolarizada.
Para Illich (1976b), o cuidado e a assistência oferecidos pelo tutelador aos
tutelados torna-os progressivamente mais dependentes e mais incapazes de organizar e
gerenciar suas vidas. Ele considera que a tutela e o assistencialismo das instituições,
sobretudo aquelas aprendidas e vividas na escola, provocam o subdesenvolvimento da
autoconfiança e da confiança na comunidade e aumentam a confiança nos tecnocratas e
especialistas, uma vez que eles possuem os bens socialmente valorizados; dentre eles, o
conhecimento. Assim,
mesma, que também precisam da tutela de outros especialistas que possuem mais
conhecimento do que eles para balizar seu trabalho, dentre estes, os do campo da
psicologia.
Assim, para Illich (1976a), o conhecimento é uma ferramenta importante na
sociedade industrial escolarizada. O autor denuncia que tem havido uma inversão na
relação do homem com a ferramenta. Para ele, a ferramenta não tem servido ao homem,
mas ao contrário, o homem tem se colocado a seu serviço. Existem alguns tipos de
conhecimento que, da mesma forma que outras ferramentas sociais, tem escravizado o
homem. E o homem, uma vez escravizado pela ferramenta, torna-se presa fácil do
monopólio radical exercido por especialistas e, quando ele mesmo encontra-se na posição
de tutelador, torna-se algoz de outros seres humanos. Para Illich, a teoria, como qualquer
outra ferramenta, deve servir ao homem e não o contrário. As teorias que a escola utiliza
hegemonicamente prescrevem uma norma uniforme de desenvolvimento. Aqueles que não
se encaixam na norma estabelecida são relegados a um grupo de seres humanos de segunda
categoria; uma subespécie da raça humana. São mensurados e conceituados por meio de
atributos que os inferiorizam.
Não podemos negar a participação da escola na consolidação da infância e no
papel social destinado a ela. Também é marcante sua participação na emergência da
psicologia moderna, a psicologia científica. O espírito intelectual, filosófico e científico
encontrado na sociedade da época preparou o solo para a emergência dessa nova ciência.
34
CAPÍTULO II
O termo positivismo foi concebido pelo filósofo francês Augusto Comte, que
empreendeu um levantamento de todo o conhecimento científico e considerou científicos
somente aqueles inquestionáveis, encontrados por meio dos rigorosos métodos da ciência.
Assim, o positivismo faz referência a um modo de sistematizar o conhecimento com base
em fatos observáveis, quantificáveis, mensuráveis e, por isso, indiscutíveis e
inquestionáveis. Dessa forma, qualquer conhecimento advindo de outro lugar, como da
metafísica ou da teologia, que não pudesse ser cientificamente validado deveria ser
rejeitado como conhecimento verdadeiro. O único conhecimento válido seria aquele
produzido pela ciência, com seus rigorosos métodos e com a condição de produzir
conhecimentos generalizáveis e passíveis de serem testados e confirmados posteriormente.
Os naturalistas buscavam romper com o idealismo e provar que os fenômenos
psíquicos tinham bases materiais uma vez que as sensações eram consideradas produto dos
órgãos dos sentidos. Agradava aos fisiólogos naturalistas a crítica que o positivismo fazia
às especulações filosóficas, posto que a concepção positivista de ciência exigia que a
psicologia, candidata à ciência, se concentrasse em fatos exatos, obtidos com métodos
científicos rigorosos. Acreditavam que isso poria fim à doutrina da alma como um
princípio independente do corpo e à idéia de que a alma seria o objeto de investigação da
psicologia.
Ao aproximarem-se do positivismo, os naturalistas tentam romper com o
idealismo. No embate entre idealistas e naturalistas, estes venceram por escolherem o
estudo dos fenômenos psíquicos puros enraizados nas atividades, produtos e sensações dos
órgãos dos sentidos, que poderiam ser estudados por meio de métodos psicofísicos. No
entanto, não rompem com o essencial: a interpretação idealista do psíquico separado do
corpo físico e a concepção introspectiva de consciência, isto é, de que a consciência é algo
imediatamente dado ao homem sem nenhuma mediação do ambiente social.
Outras idéias do campo da filosofia, como o materialismo e o empirismo,
sustentavam o positivismo antimetafísico. O materialismo privilegia a descrição e a
compreensão dos fenômenos à luz das propriedades físicas da matéria e da energia. Ao
considerar os processos mentais, focaliza o aspecto físico, ou seja, o cérebro em suas
estruturas anatômicas e fisiológicas. Para o empirismo, todo conhecimento seria derivado
de experiências sensoriais, por isso, seus estudos voltam-se para o modo como a mente
adquire conhecimento por meio das experiências.
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o científico no estudo dos fenômenos psíquicos foi, sem dúvida, de extrema importância
para a formação dessa nova ciência: a psicologia.
Uma vez ocorridos os experimentos que revelaram a realidade psíquica, sobretudo
em laboratórios de fisiologia, o trabalho desses investigadores foi muito importante na
criação de estruturas próprias da nova ciência. Dentre elas, há destaque para a criação de
laboratórios de psicologia propriamente dito. O primeiro laboratório de psicologia
experimental foi criado em 1879, sob a direção de W. Wundt (1832-1920), em Leipzig,
Alemanha. Este é considerado um marco na história da psicologia. E alguns historiadores
consideram este feito o ato inaugural da psicologia científica. (Ver Schultz e Schultz,
1992). A exemplo do laboratório de Wundt, outros foram criados em universidades da
Alemanha, Estados Unidos, Rússia e outros países. Os laboratórios acabaram tornando-se o
principal meio de auto-afirmação da psicologia como uma disciplina independente. Outros
meios de auto-afirmação foram a publicação de periódicos 3, a criação de associações de
psicologia, a criação de cadeiras de psicologia nas universidades e a realização de
congressos.
Outros eventos que se sucederam a estes são considerados importantes no
estabelecimento da psicologia como uma disciplina que cada vez mais ganhava
características próprias e se fortalecia como a nova área da ciência. Em 1881, foi publicada
a revista Philosophische Studien, considerada a primeira revista de psicologia dedicada
primordialmente a relatos experimentais; em 1887, G. Stanley Hall fundou o American
Journal of Psychology, a primeira revista psicológica americana. Em 1888, James Mckeen
Cattel, um americano discípulo de Wundt, foi nomeado professor de psicologia pela
Universidade da Pensilvânia. Essa foi a primeira docência em psicologia do mundo, pois
até então os psicólogos trabalhavam em departamentos de filosofia. Em 1892, ocorre a
fundação da primeira organização científica e profissional de psicólogos: a Associação
Psicológica Americana, uma das associações de psicólogos mais importantes no mundo até
hoje. Enquanto um discípulo de Wundt foi nomeado para a cadeira de psicologia na
Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, o próprio Wundt foi nomeado para a
cadeira de psicologia na Universidade de Leipzig, na Alemanha.
Os fisiólogos naturalistas haviam feito um movimento que objetivava o
rompimento com a filosofia idealista e a aproximação com o positivismo. Apesar de
3
A publicação de periódicos já acontecia desde 1874, com a primeira edição da Revista Psicologia
Fisiológica. Seu conteúdo buscava demonstrar que a psicologia tinha o direito de ser uma disciplina
independente.
43
como qualquer outra ciência, ela não se situa num vácuo econômico-social, mas bem no
centro do desenvolvimento da sociedade. A participação dos fatores sociais no
desenvolvimento das ciências é de tal forma que consegue captar e separar o que pode e o
que não pode ser assimilado na estrutura do pensamento científico, de acordo com o
momento e com o contexto histórico-cultural no qual se desenvolve.
Schultz e Schultz (1994) destacam que, em seus primórdios, no início do século
XX, devido principalmente às condições de mercado, a psicologia americana mudou
significativamente. Entre o fim do século XIX e início do século XX, em todos os Estados
Unidos, havia três vezes mais psicólogos americanos do que o número de laboratórios de
pesquisa “pura”, que era a vocação inicial da psicologia. Para regular o mercado, a
psicologia americana passou a focar os problemas da vida real, aplicando o conhecimento e
as técnicas psicológicas na solução de tais problemas. As pesquisas “puras” em
laboratórios de universidades tiveram um crescimento tímido, pois como ciência mais nova
recebia menores verbas do que as ciências mais antigas e de maior prestígio.
Os psicólogos perceberam que, para receber mais atenção em termos de
orçamento e renda destinada à academia, deveriam mostrar o caráter utilitário de sua
ciência. Foi o que fizeram quando começaram a disseminar a utilidade que a psicologia
poderia ter na solução de problemas sociais, industriais e educacionais. Com o crescimento
do número de escolas públicas nos EUA, sobretudo devido à demanda decorrente da
imigração e das altas taxas de natalidade, muitos psicólogos aproveitaram para encontrar
formas de aplicar seus conhecimentos e seus métodos de pesquisa à educação.
CAPÍTULO III
A PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO
Em seu livro Mental Development in the Child and the Race (1895), Baldwin
admitiu o princípio biogenético, elaborando a hipótese de que o desenvolvimento mental,
desde a infância até a vida adulta, acontece em estágios, tanto no indivíduo como na
espécie. Começando “com reflexos ou processos fisiológicos, avançando para os estágios
sensório-motor e ideomotor, e progredindo para transformações simbólicas e ideacionais
(CAIRNS, 1983, p. 55)”. Baldwin inventou o conceito de reação circular, que permite
explicar como se dão as representações mentais de atividades ou dos esquemas cognitivos
ainda cedo, no estágio sensório-motor. Seu trabalho possibilitou um avanço na criação de
um sistema de psicologia do desenvolvimento. Seu modelo genético envolveu a cognição,
o eu e a ordem social. O mais irônico é que, não obstante todos os seus esforços para a
elaboração sistemática de uma teoria em psicologia, a incorporação de sua teoria à
psicologia deu-se a partir de outras áreas como a sociologia e a biologia.
Outra pessoa cuja teoria teve grande alcance social foi Sigmund Freud (1856-
1939). Segundo Cairns (1983), Freud mantém uma relação no mínimo curiosa com a
psicologia do desenvolvimento. Ele não publicou qualquer pesquisa empírica sobre o
desenvolvimento do comportamento. Observou algumas poucas crianças em ambiente
clínico com um modelo diferente do modelo experimental aceito na época. Ainda assim, a
psicanálise pode, seguramente, ser considerada uma das teorias mais influentes para o
desenvolvimento da psicologia no século XX. A aceitação rápida de seu trabalho deveu-se,
em parte, ao entusiasmo de Hall que publicou obras suas nos Estados Unidos no Journal of
Psychology em 1910.
Freud interessou-se pela neurologia e, por volta de 1885, foi trabalhar com
Charcot, em Salpêtrière, França. Em seu trabalho, Charcot dedicou-se às inter-relações
entre os sintomas físicos e a mente de suas pacientes com sintomas de histeria, tratando-as
com a técnica da hipnose. Posteriormente, em 1886, ao retornar para Viena, Freud
substituiu a hipnose pela livre associação e pela análise dos sonhos como forma de atingir
o inconsciente na remissão de sintomas físicos. No começo de sua carreira, interessou-se
por anatomia e ficou extremamente impressionado com o trabalho de Darwin e Haeckel e
pelas idéias do associacionista britânico J. S. Mill. Quando completou o curso de medicina,
dedicou-se a pesquisas em neurobiologia por muitos anos, sobretudo a análise ontogenética
e filogenética do cérebro fetal e o mapeamento dos tratos neurais e sensoriais.
Freud mesmo pontuou que a psicanálise, ao longo do tempo, passou a ter dois
significados. O primeiro deles considera que a psicanálise seria um método particular de
54
entanto, na depressão econômica, durante os anos 1930 e início de 1940, os recursos foram
retirados massivamente e, nesse tempo, as pesquisas sobre problemas de desenvolvimento
diminuíram.
Apesar disso, as influências sociais e políticas continuaram mostrando sua força, e
todo o impulso dado anteriormente às pesquisas não foi simplesmente esquecido. A partir
de então, a principal tarefa dos pesquisadores e teóricos da área foi encontrar meios de
traduzir suas idéias em pesquisas de psicologia social, cognitiva, em análise sensório-
motora, em estudo da linguagem, em desenvolvimento moral e em mudanças na
psicobiologia. A explosão das pesquisas nos anos vinte trouxe uma especialização
crescente a ponto de a psicologia da criança e a psicologia do desenvolvimento serem
separadas em subáreas, tópicos e teorias. Nos anos seguintes, houve esforços para colocá-
las juntas novamente com a publicação de manuais, mas estes acabaram tornando-se o
espaço em que as diversas subáreas publicavam seus resumos.
Em seu período de estabelecimento na América, a psicologia dedicou-se a
questões importantes, algumas delas relativas ao desenvolvimento intelectual, ao
desenvolvimento social, ao desenvolvimento e julgamento moral, aos problemas de
comportamento e desenvolvimento emocional, às relações entre maturação e crescimento
físico, à elaboração e aperfeiçoamento de testes mentais, pensamento, linguagem e
percepção. Para tanto, a psicologia assentou-se em estudos longitudinais desenvolvendo
métodos de pesquisa com crianças, adolescentes e adultos.
Os pesquisadores dessa época, assim como suas pesquisas, têm sido citados com
freqüência em trabalhos acadêmicos. Merecem destaque: Lewis M. Terman (1877-1956)
que levou para a América a escala Binet-Simon dando ênfase às diferenças individuais
herdadas geneticamente; Arnold Gesell (1880-1961), importante nas construções teóricas
sobre o maturacionismo; John B. Watson (1878-1958), considerado um porta-voz do
behaviorismo; Kurt Lewin (1890-1947), que elaborou a teoria do campo psicológico a
partir de estudos com antropóides; Jean Piaget (1896-1980) por sua teoria psicogenética
que alcançou grande popularidade, pelo menos nos países do ocidente capitalista; Lev S.
Vygotsky (1896-1934), um marco no estudo do desenvolvimento ao elaborar a teoria
histórico-cultural, para citar apenas alguns.
Algumas dessas teorias perderam força, outras permanecem ainda bastante
influentes. Novas formulações teóricas surgiram, assentando-se, de alguma forma, nas
mesmas bases daquelas formuladas anteriormente. Como essas teorias também têm sido
56
que ele mesmo não considerou a criança como um ser histórico-cultural, uma vez que sua
teoria não leva em conta os diferentes contextos e tempos históricos. Também entende que
a base da sua psicologia pressupõe leis puramente naturais e não históricas. (Ver Vygotsky,
1995 e Werner, 2001).
As teorias até aqui referidas têm em comum o enraizamento de seus pressupostos
em bases naturalistas do desenvolvimento. Muito embora a psicologia ocidental tenha
alcançado maior popularidade, ela não é a única e, portanto, não pode ser tomada como a
psicologia do mundo. A psicologia soviética representada pela corrente histórico-cultural
difere-se radicalmente da psicologia ocidental hegemônica no mundo atual. Vejamos o
exemplo de Vygotsky. Embora Vygotsky seja contemporâneo dos teóricos já mencionados,
cujos trabalhos ajudaram a consolidar e expandir a psicologia do desenvolvimento, até,
aproximadamente, a década de 1980, seus estudos não faziam parte do fluxo hegemônico
da história da psicologia, pois não apareciam nos manuais de história da psicologia. Na
década de noventa, começamos a encontrar referências a teóricos daquela vertente, sem, no
entanto, fazer distinção entre suas raízes e as da psicologia ocidental. É até mesmo comum
constatar articulações de idéias, feitas por mera justaposição, de Vygotsky e de outros
teóricos (Piaget, por exemplo), sem o necessário cuidado em apontar as peculiaridades das
suas formulações teóricas e de seus pressupostos filosóficos. (Tunes, 2005, comunicação
pessoal).
Vygotsky é considerado o principal representante da matriz histórico-cultural na
psicologia do desenvolvimento. Para ele, o homem é um ser social e seu desenvolvimento
psíquico acontece por meio das e nas relações sociais, no contexto histórico-cultural da
vida concretamente vivida. Assim, ele não afirma a universalidade do desenvolvimento,
sendo este um processo dotado de singularidade. Não olvida o fato de que algumas
regularidades podem ser encontradas, devido à semelhança das práticas sociais e históricas
de educação numa determinada cultura. As variações, entretanto, não podem, de nenhum
modo, ser consideradas patológicas. Seus pressupostos opõem-se radicalmente à
concepção de homem exclusivamente natural.
Conforme o que nos diz Cairns (1983), no período compreendido entre 1913 e
1946, aproximadamente, as forças sociais e econômicas alcançaram maior influência na
consolidação da psicologia como ciência do que propriamente os seus avanços científicos,
a psicologia do desenvolvimento também segue na esteira das forças sociais e econômicas.
Nesse período, foram criados centros de formação de pesquisadores, institutos de pesquisa
58
sobre a criança, agências e fundações estatais e privadas. Essa criação foi impulsionada por
movimentos de pais e professores que pareciam ansiar pela tutela da ciência, qualquer
ciência, para desempenhar sua tarefa de educar. Assim, exerciam pressão por mais
produções científicas que visassem atender às suas exigências. Talvez, encontre-se aqui
uma das condições que impuseram o exílio histórico às idéias de Vygotsky.
Percebe-se, até aqui, que a psicologia do desenvolvimento se evolve num campo
de fragmentação, esta entendida em dois sentidos. De um lado, ampla diversidade de
temas, de métodos e de formulações teóricas. De outro, uniformidade de tendência: a
hegemonia da concepção de criança como um ser fragmentado, passível de ser capturado,
analiticamente, em sua totalidade. Uma crítica nessa direção é apresentada por El’Konin
(1972). Ele esclarece que, de um modo geral, as teorias psicológicas encaram o
desenvolvimento intelectual e da personalidade como dois processos separados, sendo o
desenvolvimento da personalidade reduzido à esfera da necessidade-afeto ou necessidade-
motivação. Já entre os anos de 1920 e 1930, Vygotsky apontava para a necessidade de se
abandonar essa visão atomística e encarar o desenvolvimento do afeto e do intelecto não
como duas entidades separadas, mas como uma unidade dinâmica. (Ver Vygotsky, 2001).
El’ Konin (1972) afirma que as teorias que traduzem com maior nitidez essa
separação são as teorias de Jean Piaget e de Sigmund Freud e os neofreudianos. Nelas está
implícito um dualismo no desenvolvimento mental: a linha dos processos intelectuais e a
linha da esfera necessidade – afeto, como se o desenvolvimento da criança não acontecesse
de forma integral. Esse paralelismo traz subjacente a visão naturalista do desenvolvimento
mental da criança, a que nos dedicaremos mais adiante. Nessa abordagem, a criança é vista
como um indivíduo isolado da sociedade, que é entendida apenas como seu habitat
circundante, como a união de dois elementos primordiais, mas mutuamente desarticulados:
um mundo das coisas e um mundo das pessoas. O desenvolvimento mental seria,
fundamentalmente, o desenvolvimento de dois conjuntos distintos de mecanismos
adaptativos dentro de dois sistemas desarticulados: um para adaptar-se ao mundo das
coisas (sistema criança – coisas) e outro para adaptar-se ao mundo das pessoas (sistema
criança – outras pessoas). Por exemplo, para Piaget, o intelecto seria um mecanismo com
funções meramente adaptativas e seu desenvolvimento se daria por meio da adaptação da
criança ao mundo das coisas; para Freud e os neofreudianos, a substituição, a repressão e o
deslocamento seriam mecanismos de adaptação da criança ao mundo das pessoas. A
adaptação a esses dois mundos ocorreria, então, ao longo de duas linhas paralelas e
59
das exigências do meio (TUNES, 2002, p. 142)”. A atividade do organismo seria orientada
na direção da satisfação de sua necessidade de adaptação. Tal visão é atualizada, por
exemplo, na teoria de Jean Piaget.
Segundo Yarochevski (1983, p. 67), enquanto a psicologia “transformava-se em
ciência independente, produzia-se o trânsito da idéia do organismo como sistema
mecânico, para novas concepções biológicas evolucionistas”. Ou seja, passava-se da visão
mecânica do corpo à visão de máquina físico-química, baseada na lei da conservação da
energia. Adotou-se a teoria da homeostase para explicar como se produzem as trocas que
mantêm a constância do organismo, por meio da ação de reguladores especiais. A teoria
darwinista acrescentou novos elementos à psicologia mostrando como o organismo é capaz
de adaptar-se ao meio exterior para sua sobrevivência.
Yarochevski (1983) assinala que a filosofia marxista trouxe a possibilidade de
uma concepção qualitativamente nova. Em lugar do homem “referido só ao mundo da
mecânica e da biologia e, portanto, concebido como ser abstrato, apareceu o homem social,
produto e sujeito da história (p. 240-241)”. Depois de Marx, pela primeira vez, concebe-se
a consciência não como sendo imediatamente dada ao homem ou somente como produto
de sua atividade orgânica, mas mediada por sua atividade histórica, cultural e social.
Acontece a transformação das formas biológicas da atividade vital do homem em formas
qualitativamente distintas, ou seja, em formas sociais de conduta humana. Segundo
Yarochevski (1983), L. S. Vygotsky (1896-1934), apoiando-se nas idéias de Marx, foi o
grande teórico do que se denomina concepção histórico-cultural. Para o autor, “é difícil
subestimar os avanços que a concepção de Vygotsky realizara no acervo geral do
pensamento psicológico (p. 272)”, pois, ainda nas primeiras décadas do século vinte,
posicionava-se radicalmente contra a idéia de que o psiquismo humano seria determinado
biologicamente. Em sua obra, assegurou o princípio de que a atividade do homem é forjada
nas condições sociais, culturais e históricas concretamente vividas. A cultura seria a base
do desenvolvimento das funções psíquicas superiores, e esse processo não seria meramente
uma expansão, um incremento do que já estava pronto desde a vida embrionária. Não é
uma mudança quantitativa no sentido de simplesmente acrescentar, expandir ou melhorar o
que já existia. Assim, engatinhar e andar, balbuciar e falar seriam uma metamorfose, uma
transformação qualitativa de uma forma em outra. Não é uma forma mais-menos
complexa, mais-menos desenvolvida, melhor ou pior de uma mesma conduta. São formas
qualitativamente distintas de conduta.
62
Assim, é a vida social e cultural humana que cria condições para mudanças em
seu psiquismo. O desenvolvimento psicológico não está determinado desde o nascimento,
como quer a matriz naturalista, mas sua constituição acontece nas condições históricas e
sociais do homem.
Conforme a matriz naturalista, o curso do desenvolvimento da criança é
naturalmente dado pelas condições biológicas de sua espécie. As funções que já vêm
prontas ao nascimento seriam apenas expandidas pelas solicitações do ambiente social. O
desenvolvimento é previamente definido em etapas hierarquicamente seqüenciadas. Daí a
sua uniformidade. Das variações inevitáveis, contudo, surge o conceito de patologia, pois
não há outra forma de se explicar a diversidade. A uniformidade e a hierarquia são
fortemente associadas ao que é certo, enquanto a diversidade e a não-hierarquia são
associadas ao erro. Assim, a diversidade do desenvolvimento é tomada como uma
63
qualidade que inferioriza o ser, relacionada ao erro, aprisionando-o num atributo que o
torna um ser humano de segunda categoria.
Já para a matriz histórico-cultural, o desenvolvimento psicológico não admite a
hierarquia, a linearidade ou a progressão seqüenciada. Não há norma tomada como padrão
para o desenvolvimento. A variação é a regra. Segundo Tunes e col. (2004),
para o autor, o termo “evolução” foi desapropriado do seu real sentido, quer dizer, de uma
descrição da “descendência com modificação”, conforme descrita por Darwin.
Vygotsky (1995) advertiu seus leitores do perigo de conceber o desenvolvimento
pelo caminho do evolucionismo, com o sentido de progresso ou de preformismo. Para o
preformismo, o adulto, em todas as suas formas, já se encontra presente desde o ovo. Ou
seja, a idéia de que o embrião e, posteriormente, a criança são, na realidade, um adulto em
miniatura. Para ele, “nenhum tratado de psicologia infantil pode repetir agora abertamente
as verdades há tempo refutadas de que a criança é um adulto em miniatura, todavia,
semelhante concepção perdura, em forma oculta, em quase todas as investigações
psicológicas (p. 140)”. (Ver também Ariès, 1986 e Postman, 1999).
Essa concepção esconde-se naquelas teorias que explicam o desenvolvimento da
criança como um fenômeno puramente quantitativo, apenas como uma expansão do que já
se encontrava pré-formado. Esse preformismo não se restringe aos órgãos do corpo. Pode-
se falar também em preformismo psíquico. Quer dizer, todas as funções psíquicas já
estariam presentes desde o nascimento, apenas menos desenvolvidas. Seu desenvolvimento
alcançaria a plenitude desejada na vida adulta, quando, enfim, o ser seria considerado
completo.
Para Vygotsky (1995), o desenvolvimento não é uma simples evolução com o
usual sentido de melhoramento, aperfeiçoamento ou expansão. Cada novo comportamento
nega e supera, dialeticamente, o comportamento anterior, reiteradas vezes.
CAPÍTULO IV
O MOMENTO EMPÍRICO
A coleta de dados foi realizada em três escolas públicas de uma cidade satélite do
Distrito Federal, no período de maio a junho de 2004. Uma é um centro de ensino especial
– a que chamamos de escola A; outra é uma escola classe (de 1 a a 4a série) – a que
denominamos escola B; a terceira é um centro de educação infantil (turmas de 4, 5 e 6
anos) – a que denominamos escola C. Todas as participantes da pesquisa são do sexo
feminino, professoras nas escolas referidas. Elas foram convidadas a participar por meio de
contatos realizados por pessoas amigas da pesquisadora. O convite foi bem recebido e
imediatamente aceito pelas participantes e também pela coordenação e direção das três
escolas em questão. Não encontramos dificuldades ou entraves nas escolas que nos
receberam. As professoras demonstraram muita simpatia e disposição em colaborar. Para
escolher as pessoas que participariam, solicitamos que atendessem aos seguintes critérios:
ser professor da rede pública de ensino do Distrito Federal, ter disponibilidade em
participar das discussões e ter lecionado ou lecionar para alunos instituídos socialmente
como deficientes. Depois que encontramos as participantes, formamos três grupos de
discussão, um grupo em cada escola.
Antes do início da coleta de dados, informamos os objetivos do trabalho e
asseguramos a cada uma das participantes a ocultação de sua identidade, com o intuito de
garantir que as informações prestadas não fossem, em nenhum momento, relacionadas aos
seus nomes. Por isso, todos os nomes encontrados nessa pesquisa são fictícios. Também foi
solicitada autorização para gravação da discussão em vídeo e em fita cassete. Todas as
professoras consentiram a gravação. Informamos também que, após a gravação, as fitas
cassete seriam transcritas na íntegra pela pesquisadora e conferidas com a gravação em
vídeo, num momento posterior à reunião.
Para a coleta dos dados, adotamos o mesmo procedimento encontrando no
trabalho de Tunes e colaboradores (2004). Naquele trabalho, as pesquisadoras visavam
colher subsídios para orientar ações futuras na capacitação de líderes comunitários e
71
coordenadores que acompanham famílias assistidas pela Pastoral da Criança. Para tanto,
buscaram conhecer o impacto que as ações da Pastoral da Criança têm sobre a
compreensão de seus agentes comunitários e de sua população alvo a respeito dos temas:
criança, família, educação e desenvolvimento da criança.
Para alcançar esse objetivo, as pesquisadoras buscaram descrever as versões de
um grupo de mães de crianças assistidas pela Pastoral da Criança e também de um grupo
de líderes sobre questões que diziam respeito ao desenvolvimento infantil e outros
conceitos correlatos. Naquele trabalho, versão foi entendida como uma formulação verbal
sobre ações ou concepções que remetem ao contexto imediato em que ocorrem, não
podendo ser tomadas como uma imagem especular da realidade da qual foi extraída, uma
vez que está em constante movimento. Por referir-se a um momento, uma versão não
consegue descrever todo o movimento, mas como nos diz Tunes e col. (2004)
4
As informações foram retiradas da estratégia de matrícula da Secretaria de Estado de Educação 2004. A
estratégia de matrícula é o documento que define a composição das classes escolares da rede pública de
ensino do Distrito Federal.
74
Havia um roteiro de questões previstas para orientar a discussão. Mas ele foi
usado apenas como orientador das discussões para manter a atenção da pesquisadora. É
claro que no momento das reuniões, no diálogo com as professoras, muitas outras questões
apareceram e foram acrescentadas, enquanto outras foram omitidas, por entendermos que
já haviam sido contempladas. Podemos dizer, então, que o roteiro serviu apenas para que a
pesquisadora verificasse se as questões importantes estavam sendo debatidas com a clareza
necessária, nunca como uma camisa de força à qual se sentisse presa. O roteiro de questões
orientadoras que utilizamos foi o seguinte:
Tema desenvolvimento
Questão desencadeadora:
1. Em sua experiência de sala de aula vocês já tiveram ou têm algum aluno que vocês
perceberam que não estava se desenvolvendo bem? (Em caso de resposta negativa,
perguntar por que acham que nunca se depararam com um aluno assim).
Questões provocadoras:
Tema preconceito
Questão desencadeadora:
Questões provocadoras:
1. Por que vocês acham que existe preconceito em relação às pessoas deficientes?
2. Vocês acham que o preconceito em relação aos deficientes é diferente se
comparado aos preconceitos que atingem outras pessoas?
3. Se for diferente, por que razões é diferente?
4. Vocês acham que o preconceito em relação aos alunos deficientes é prejudicial a
eles?
5. Vocês acham que eles percebem o preconceito em relação a eles ou não?
6. O que é preconceito para vocês? Por que isso é preconceito?
7. Vocês acham que diagnosticar o aluno como tendo problema no desenvolvimento
ou como deficiente denota preconceito? (Perguntar por que sim, para os que
responderem afirmativamente e, por que não, para os que responderem com
negativa).
Transcritas as fitas, buscamos definir que recortes faríamos nas falas das
participantes, considerando o objetivo da nossa pesquisa, qual seja, identificar as
concepções de desenvolvimento implicadas nos preconceitos manifestos em práticas
sociais de educação dirigidas a pessoas instituídas como deficientes, buscando verificar se
possuíam raízes em teorias científicas da psicologia. Ou seja, tentamos verificar se
existiam relações entre as concepções de desenvolvimento das professoras e o preconceito
manifesto nas práticas sociais de educação dirigidas às pessoas instituídas como deficientes
e se teorias da psicologia do desenvolvimento encontravam-se nas bases dessas
concepções.
Para tanto, primeiramente, buscamos identificar as tendências das práticas de
educação com base em nosso referencial teórico. Na obra de Vygotsky (1997) encontramos
algumas referências às práticas de educação escolar dirigidas às pessoas com um tipo
77
biológico incomum. Para ele, nessas práticas, há uma tendência de seguir o caminho da
menor resistência e, muitas vezes, os professores são ‘contaminados’ por um sentimento de
comiseração que contribui para fazer com que a pessoa com defeito biológico ganhe o
status de deficiente.
Conforme vimos, nas obras de Ivan Illich (1976a e 1976b) percebemos que o
modo como as pessoas na sociedade escolarizada relacionam-se com o conhecimento
mostra como a técnica pode sobrepor-se ao valor da ética na relação com as pessoas.
Mostra também como o monopólio radical impõe a tutela de uma classe de especialistas a
quem entregamos o controle de nossas vidas.
Com base no pensamento desses autores, procuramos então identificar a presença
de indícios que nos permitissem caracterizar tendências nas formulações das participantes.
Examinamos a existência (ou não) de tendências a orientar as práticas educativas pela lei
do menor esforço, de modo tutelado – tutelador e assistencialista e de caráter técnico.
O que chamamos de educação orientada pela lei do menor esforço é a prática
de educação que exige o menor esforço do professor e do aluno. Essa prática caracteriza-se
por ser uma educação minimalista, que dizer, ensina-se o mínimo e exige-se o mínimo do
aluno. Ao ensinar e exigir o mínimo, o professor não cria expectativas de sucesso em
relação ao aluno ou à sua prática. Vygotsky (1997), já no início do século passado, fazia
referência à necessidade de se abandonar a linha da menor resistência nas escolas que
atendem crianças com um tipo biológico incomum, pois, segundo ele, essas práticas não
permitem lutar contra o defeito, mas tão somente acentuá-lo.
Podemos dizer que a educação como prática tutelada pode aparecer pelo menos
de duas maneiras. Primeiro, o professor como tutelado. Segundo, o professor como
tutelador.
a) O professor como tutelado
A educação como prática tutelada diz respeito à opção de delegar a especialistas
a responsabilidade sobre as ações educativas na escola. O professor solicita a tutela de
outros especialistas devido a um sentimento de incompetência para exercer sua profissão e,
por isso, precisa deles para dirigir sua vida. Ivan Illich, em seu livro Sociedade Sem
Escolas (1976), chama a atenção para o fato de que, quanto mais escolarizada uma
sociedade, mais sente-se a necessidade de um corpo de especialistas para gerir a vida das
pessoas. Assim, toda iniciativa pessoal, toda tentativa de realização independente é olhada
com desconfiança, pois tem-se a idéia de que somente os especialistas certificados pela
78
escola têm a competência de dirigir a nossa vida; assim instaura-se o monopólio radical,
tas pessoas se tornam cada vez mais dependentes, delegando a outros a responsabilidade
por suas vidas e, portanto, abrem mão de sua condição de seres livres e autônomos.
b) O professor como tutelador
Ao mesmo tempo em que busca tutela para si, o professor oferece tutela para o
aluno. Nesse caso, é o professor quem assume o papel do “especialista” e acha que deve
oferecer tutela ao aluno, podendo estender-se também à sua família, procurando deixar
ambos dependentes de si, de seu conhecimento e de outras coisas que ele tenha e julgue
que o aluno também necessita ter.
A tutela ao aluno pode se manifestar por meio do caráter assistencialista que,
muitas vezes, assume a educação especial. A visão assistencialista da educação é marcada
pela característica de ajuda humanitária com o sentido de dar assistência aos menos
afortunados. Essa é uma herança filantrópico-religiosa para a qual basta prestar cuidados e
dar abrigo aos deficientes, que também são ‘portadores de alma’, embora desafortunados.
Acredita-se que fazer a caridade de acolher os deficientes torna a pessoa um ser humano
melhor, permitindo-lhe sentir-se bem consigo e em paz com sua consciência; afinal faz
bem ajudar as infelizes criaturas de Deus. O tutelador pensa que os deficientes são infelizes
porque não têm o que os normais têm, faltando-lhes a condição necessária para ser feliz,
como, por exemplo, um tipo biológico considerado perfeito, inteligência e capacidade. O
deficiente é, portanto, considerado um sujeito a quem faltam competências e atributos.
Vygotsky (1997) faz severas críticas ao caráter assistencialista de que está
impregnada a educação de pessoas instituídas como deficientes. Para ele, é necessário à
educação libertar-se de qualquer resquício herdado das obras assistenciais filantrópico-
religiosas sob pena de fazer com que a pessoa com defeito torne-se realmente um
deficiente. A tutela instituída pelo assistencialismo cria uma condição de dependência do
tutelado em relação ao seu tutelador.
A educação como técnica revela o caráter instrumental do qual está impregnada a
educação. Na educação vista unicamente como resultado da aplicação de um conjunto de
técnicas, há uma inversão na relação do homem com a ferramenta. Para Ivan Illich (1976),
o conhecimento, uma poderosa ferramenta da sociedade escolarizada, escraviza o homem
colocando-o a seu serviço. Todavia, para ele, existe a possibilidade de o homem colocar a
ferramenta a seu serviço em lugar de tornar-se escravo dela. A tirania da ferramenta faz
com que a técnica, um dos produtos do conhecimento, torne-se indispensável para que haja
79
4.3 – Interpretação dos dados: primeira parte – Tendências das práticas educativas
que a referência que fazem às práticas de educação dirigidas a pessoas instituídas como
deficientes apresentam indícios das tendências a que nos referimos.
Márcia: Porque como eu tenho... o caso agora, da aluna, que o único momento que ela
manifesta algum tipo de reação, é quando eu proponho algum tipo de atividade. [...]
Agora, ela fica ali só. Ela fica ali, se eu deixar as cinco horas, ela fica as cinco horas.
Ela nem se movimenta, ela nem sai do lugar. [...] Então, quando cê fala de
desenvolvimento, eu não posso de maneira nenhuma chamar de desenvolvimento. Até
porque, é uma aluna que eu conheço há seis anos, e há seis anos ela é exatamente desse
jeito. [...]
Lílian: Será que não é porque, durante esses seis anos, ela foi tratada da mesma forma?
Márcia: Sem chance nenhuma. Porque ela já passou por tudo quanto é tipo de mudança
que tem acontecido na escola.
Lílian: É. Eu falo em relação ao professor.
Márcia: Como assim?
81
Lílian: Por exemplo, você pode estar preocupada com isso, e tá querendo mudar. Mas
será que o professor que pegou ela...
Márcia: Não, não, não, não acredito não!!!!
Lílian: Márcia..... pegou ela e falou assim “ah! É só ficar com ela sentada ali cinco
horas”. Eu vejo isso!!
Márcia: Pois eu acredito que não....
Lílian: Eu vejo isso aqui. “Ah, é só ficar com ele cinco horas”?
Keila: “Pois muito bem. Que maravilhoso! É esse que eu quero. Esse ano, e o outro ano, e
o outro ano”.
[...]
Lílian: Tem professor aqui, que quer aluno que fique parado o tempo inteiro.[...] Essa é
minha crítica.[...] Mas, muitas vezes até, não é nem às vezes, o aluno fica 5, 6 anos de
uma única forma, porque não teve ninguém pra fazer outra coisa com ele. Nós estamos
tendo um caso igual a esse. O aluno tá há 4 anos na escola. Chegou pra gente. O primeiro
relatório dele, é cópia fiel de tudo do primeiro relatório. Não, o último, é cópia do
primeiro.
Nesse episódio, fica claro que a denúncia das professoras ampara-se justamente na
observação que alguns colegas escolhem a linha do menor esforço porque não querem ter
trabalho. E quando se propõem a ensinar alguma coisa, ensinam o mínimo e exigem o
mínimo do aluno. Aliás, Keila admite com todas as letras que no ensino especial é
diferente, porque aqui a gente não enfatiza aquele, aquele ganho acadêmico. Aquela...
desenvolvimento cognitivo, de... tá... desenvolvendo aquele conteúdo.... aquelas.... é.. o
currículo em si... somar... Parece que a educação, sobretudo no(s) centro(s) de ensino
especial, tem significado que o professor tem pouco ou nada a ensinar para alunos que
acreditam que também têm pouco ou nada a aprender. O professor mesmo, como nos disse
Márcia, não se atreve a criar expectativas de sucesso em relação aos alunos, definindo
‘por baixo’ seu desempenho. Essa falta de expectativa positiva em relação ao aluno é
denunciada pelas colegas que, trabalhando no ensino especial, vêem que muitas vezes o
professor nem propõe outras atividades diferentes com a intenção de criar a possibilidade
que o aluno mude, ao contrário, as atividades são sempre as mesmas e os alunos são
tratados sempre da mesma forma, por isso acreditam que o aluno não apresenta nenhuma
mudança.
82
Em outro momento, como aparece no trecho a seguir, Keila relata uma ocasião em
que ela não acreditava na possibilidade de sucesso de uma atividade que se viu ‘obrigada’ a
fazer com seus alunos como tarefa da faculdade. Por não acreditar, não criou expectativa
de sucesso em relação não só à atividade, mas também aos alunos e mostrou-se surpresa
diante do resultado que ela mesma considerou positivo. Por isso, admitimos a hipótese de
que, muitas vezes, alimentar a expectativa de insucesso em relação aos alunos e ao
trabalho, talvez seja um desdobramento da educação guiada pela lei do menor esforço.
Keila: [...] Eu tava trabalhando o Chico Bento e tal, tal, tal... aí a gente criou uma
história.... fui contar essa história... fui ilustrar... só que gente, eu fiz tudo isso sem
acreditar que ia dar certo. Eu não acreditava... (Lílian: eu vi a atividade.) Eu não tenho
vergonha de dizer isso, porque eu não acreditava. Bom. Mas, eu fiz tudinho, né? [...]
fotografei e fui ansiosamente buscar a revelação. [...] É... quando eu revelei as fotos eu
fiquei muito surpresa. No dia de contar, de socializar essa atividade na faculdade, eu
chorei porque eu não acreditei que os meus alunos iam gostar daquela atividade. É,
visivelmente, eles estão na foto prestando atenção, sorrindo... [...] Foi lá... gente, foi
maravilhoso. Eu chorei nesse dia porq.. pelo meu arrependimento de não ter acreditado. E
a partir desse dia, eu falei assim “bom, então, dá certo mesmo”. Então, se tiver que me
vestir de palhaça; eu vou. Se tiver que rolar no chão; eu vou. Se tiver que... sei lá...
deixa transparecer que não se pode exigir do aluno integrado o mesmo que dos outros
alunos. Ou seja, aqui, a lei do menor esforço não diz respeito ao menor esforço do
professor, mas do aluno. Vygotsky (1997) a definiu como a escolha de seguir a linha da
menor resistência. Não exigir o mesmo pode significar não criar expectativa de que o
aluno integrado aprenda as mesmas coisas que seus coetâneos normais, com a mesma
qualidade, ou ainda, que as suas possibilidades de desenvolvimento fiquem limitadas e
determinadas pelo defeito. Fica evidente que se está minimizando a educação do aluno
instituído como deficiente.
Estela: Olha que eu atendi deficientes físicos. Eles só tinham problemas físicos mesmo.
Dificuldade, claro motora devido a essa deficiência. Eles tinham dificuldade em registrar.
Mas eles absorviam totalmente o que era passado pra eles e rendiam dentro das
limitações deles. Que é uma coisa que a gente tem que aprender a respeitar muito: as
limitações. Que você tem um aluno integrado, você jamais pode querer exigir dele a
mesma coisa que o outro. Por quê? Porque tem as limitações. Você sabe que ele é
possível mas dentro das limitações dele. Ele tem rendimento e você tem que respeitar isso.
Numa educação minimalista, que segue a linha da menor resistência, parece que o
professor escolhe ser guiado pelas limitações e não pelas possibilidades de
desenvolvimento que o aluno apresenta. Ao deixar-se guiar pelas limitações, o professor
vê o aluno como um sujeito de falta e muitas vezes pode ocorrer de reduzi-lo a uma ou
mais características marcantes de seu diagnóstico, podendo abrir diante de si um leque de
impossibilidades. Mesmo que não se possa exigir de um cego que veja, por exemplo, é
necessário ensiná-lo a ler, ainda que de forma diferente dos demais, com o Braille, por
exemplo. Mesmo que uma criança com deficiência física não possa registrar por escrito
suas produções acadêmicas, devem ser criadas as condições que lhe possibilitem organizar
textos para que outras pessoas leiam. Isentá-lo dessa tarefa pode criar barreiras que
dificultem sua compreensão da sintaxe da língua escrita, exacerbando sua situação de
exclusão e deixando-o em desvantagem frente àqueles que podem escrever. Ao professor
caberia buscar modos alternativos de fazê-lo chegar a essa compreensão.
Surge também o questionamento: será que o fato de seguir a linha da menor
resistência do aluno não significa também um menor esforço do professor? Criar condições
para que uma mesma tarefa escolar seja executada de maneira diferente não exigiria um
84
maior empenho do professor? É possível que para o professor seja mais fácil deixar-se
guiar pelas limitações do aluno e operar na linha da menor resistência do que buscar
conhecer suas possibilidades porque isso exigiria dele maior esforço.
Vygotsky (1997) critica a postura adotada pela educação especial de escolher a
linha da menor resistência. Para ele, as diferenças no desenvolvimento precisam sim ser
consideradas, mas ao mesmo tempo é necessário guiar-se pelas regularidades encontradas
tanto no desenvolvimento da criança com um tipo biológico comum como naquela com um
tipo incomum. A escola deve buscar as mesmas metas pedagógicas para seus alunos com a
flexibilidade de serem cumpridas de maneira diferente. A educação que não busca
encontrar esses caminhos alternativos torna-se minimalista por se guiar pela lei do menor
esforço, deixando de criar as possibilidades de superação do defeito e, ao invés disso,
acentuando-o. Diante disso ele questiona:
Com efeito, acaso a escola deve seguir a linha da menor resistência? Não
deve, ao contrário, lutar contra o atraso, orientar o trabalho segundo a
linha da maior resistência, quer dizer, para a superação das dificuldades
criadas pelo defeito no desenvolvimento? [...] o objetivo da escola, no
fim das contas, não consiste em adaptar-se ao defeito senão em superá-lo.
(p. 150-151)
Ao reconhecer que a criança com defeito não deve ser privada da educação que é
dirigida a seus coetâneos normais, Vygotsky responde com um retumbante não à lei do
menor esforço do professor bem como a de menor resistência do aluno como guia para a
prática educativa. Pode ser que, ao seguir a linha da menor resistência, o professor seja
sustentado pela visão de que as dificuldades que a criança encontra estejam localizadas
nela, e não perceba que tais dificuldades sejam apenas as conseqüências sociais do defeito.
Por esse prisma, se o defeito localiza-se na criança, pouco ou nada pode ser feito para sua
superação. No entanto, se a sociedade foi forjada para um tipo comum de homem, as
dificuldades enfrentadas por aqueles que têm algum aspecto atípico em sua biologia não
decorrem do defeito em si, mas das barreiras sociais encontradas como conseqüência desse
defeito. Remover a localização do defeito da pessoa e entender que a barreira criada está na
sua relação com o meio social, que privilegia um tipo comum de homem, é condição
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Flávia:[...] Nós já fizemos projetos da, de uma equipe multidisciplinar. E hoje.. hoje, eu
sinto que ela é mais necessária do que nunca. Se nós queremos uma educação de
86
primeira, e valorização do ser humano, do potencial humano, nós temos que investir numa
equipe multidisciplinar. Porque só a didática num resolve as dificuldades de
aprendizagem. Há necessidade de outra especialidade dentro desse convívio. [...] E isto é
função só da didática? Não. É função de um outro especialista que vai trabalhar todas
essas questões do emocional. O professor consegue? Sim. Mas, se ele precisa de estar
lendo constantemente, ele precisa de ter um apoio de um psicólogo, de um
psicopedagogo, até de um..... antropólogo, né, um sociólogo. Porque ele tem que saber o
espaço que essa criança tem lá fora, pra que você tenha uma linguagem que chegue até
ele. [...]
Renata: [...] Igual o caso dos meninos. Tem dois encaminhados. [...] Porque eu acho que,
ainda mais agora, aqui na educação infantil... eu sempre comento com as meninas. A hora
de dar... assim, destino à vida dele... eu digo assim, porque quando chega na escola classe
é diferente. Eu vejo por esse lado. Que a gente vê que lá é mais complicado. E aqui não.
Como a gente tem a equipe esse ano aqui na escola fica muito mais fácil. Então, eu
sempre falo: “gente, na dúvida, é melhor a gente não carregar essa dúvida. Na dúvida,
encaminha pra pessoa que tem mais conhecimento, pra que essa criança seja avaliada”.
Já pensou daqui a dois, três anos a gente tem notícia da confirmação da nossa dúvida?
E o peso na consciência? Eu penso assim. Eu, na dúvida, eu procuro mesmo.
Nessa fala, a professora revela que se ela desconfiar de um diagnóstico e não tiver
sua confirmação por parte de um especialista, porque ela ‘não fez sua parte’ para detectar a
deficiência ainda cedo, não conseguirá ficar em paz com sua consciência. Por isso, na
dúvida, encaminha pra pessoa que tem mais conhecimento. Essa submissão e escravidão
voluntária ao conhecimento do especialista indica que a subserviência é algo que o
professor busca. Encontramos na pesquisa de Mundim Neto (2003), um quadro semelhante
ao que se apresenta em nossa pesquisa. Ao analisar as relações que se estabelecem dentro
da escola, verificou que a opressão e a tutela fazem parte da cultura da escola, não é
simplesmente um imposição do sistema. Segundo a autora, o professor anseia pela tutela
das pessoas das instâncias superiores na hierarquia escolar. De maneira análoga, nossa
pesquisa revela que o professor anseia também pela tutela de especialistas, que (ainda) nem
fazem parte da instituição escolar.
Na escola A, as professoras discutiam sobre a ingerência de outros especialistas na
escola para diagnosticar problemas no desenvolvimento dos bebês. Embora Keila e Márcia
questionem o poder atribuído ao médico, por exemplo, acham que não se pode questionar
o que eles dizem porque é, na verdade, a ciência que está dizendo. E, segundo elas, o que a
ciência diz não dá para questionar.
Márcia: [...] E, pra mim, o que leva alguém dizer que uma criança precisa da estimulação
precoce, é porque tá faltando alguma coisa, né? Foi detectado na hora, “olha”... porque o
que é a estimulação... de repente a estimulação precoce, na escola, existe por quê? Porque
tem profissionais que são especializados, que estudam, que sabem como lidar com a
situação. E nós sabemos que, na nossa realidade, a grande maioria dos pais, né, se você
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está, não tem esse domínio. Não tem. [...] Então a estimulação precoce... a criança... na
hora que diagnostica, quem determina é porque verdadeiramente, o médico falou:
“olha, não é”.... às vezes não é nem um defeito de fábrica, tão grande... (risos) (Keila:
mas é defeito de fábrica.) vai lá e dá uma regulagem... (Keila: pois é, mas precisa da
oficina pra regular) uma regulagem ali, e tal... (Lílian: se ela não apresentou os
comportamentos....) Então, quando ela não apresenta o tal do comportamento padrão que
a gente espera, aí o médico encaminha. [...] Já houve caso em que uma criança veio pra
estimulação, e a estimulação achou que ela não tinha necessidade de estar na
estimulação?
[...]
Elke: A gente acha... não. Se ela tá ali é porque alguma coisa a gente pode tá...
Márcia: Não. Se já houve algum caso (Elke: eu nunca vi.) de a criança chegar, e a própria
equipe da estimulação perceber que... não, não é bem isso... (Elke: não, eu nunca vi isso.)
Nunca aconteceu?
Elen: Porque lá, vem respaldado pelo médico, né?
Elke: Agora esse...
Márcia: E pelo conhecimento de causa da equipe. De chegar e falar assim, não, aquela
não é...
Keila: Será que o médico é também o detentor de todo poder? (Márcia: de todo saber?)
De toda sabedoria? (Márcia: Ele não pode se equivocar?).
[...]
Elke: Mas aí a gente já entra na ciência.
Keila: É. Sim. Aí é complicado. Ai. Num quero nem falar.
Pesquisadora: E da ciência, dá pra falar?
Keila: Num sei...
Márcia: Dá não, porque ao homem compete... (risos) (Faz sinal com o corpo se
curvando.)
Ao mesmo tempo em que Márcia questiona, junto com Keila, se o médico, como
especialista, é detentor de todo saber e não pode se equivocar, ela entende que ao homem
comum, àquele que não possui o certificado da escola para respaldar ou legitimar sua
desconfiança, resta curvar-se diante dos representantes da ciência.
89
Márcia: Eu vejo a inclusão da seguinte forma, porque ela... a gente ouve cogitar, que tem
que acontecer. Tem coisa mais perfeita do que se isso acontecesse? A inclusão mesmo.
Agora, como fazer essa inclusão? Não adianta um belo dia é, dormirmos e acordarmos
assim, “nós moramos num país onde a educação é inclusiva, onde alunos assim e assados,
secos e molhados, pretos e brancos, azuis e amarelos, estudam todos em harmonia,
juntos”. Tem que haver todo um, mas todo um preparo. Todo. E não estou falando assim,
só do aluno, não. É da própria professora. Que nós que trabalhamos num centro de
ensino especial, eu acho que o ensino especial foi a melhor coisa já inventada... tudo
bem que tem muita coisa pra se melhorar, tem muita coisa pra ser feita. Mas, num tem
nada mais perfeito que o centro de ensino especial. [...] Porque se você for analisar,
pessoas de outras comunidades escolares, elas não têm esse tato, elas não têm essa
convivência natural com os alunos do centro, de forma nenhuma. [...] Então, perfeito uma
inclusão, se realmente for feito um trabalho sério, sabe? De preparação. Um trabalho com
alunos, com professores, com diretores, com todos, sabe? O trabalho tem que ser muito
maior. É muito mais complexo do que a gente imagina. O que não dá é pra ficar incluindo
e desincluindo. Na verdade a questão do integrar, né? Integra e desintegra. Quantas vezes
nós vimos alunos da gente sair daqui, a mãe com um sorriso aqui, um ano depois nosso
aluno aqui de volta. Então, o que é mais frustrante? Sabe?
Lílian: Então, é melhor ele ficar aqui, do que num tá em lugar nenhum. Porque antes,
qual foi a luta de criar o centro de ensino especial daqui? Foi porque tinha aluno que
nem estudar não estudava, ficava dentro de casa, porque não tinha escola pra ele.
Keila: E bem ou mal, ele tá aqui.
Lílian : Pois é. Ele tá aqui.
Vygotsky (1997) afirma que segregar as crianças, tirando-as do convívio com seus
coetâneos normais agrava ainda mais sua situação. Para ele, “o desenvolvimento
incompleto deriva de um fato que podemos chamar de desterro (exílio) da criança anormal
da coletividade (p. 223, grifo acrescentado)”. Não podemos, de modo nenhum, justificar o
desterro ou o exílio da pessoa com deficiência. Mesmo que a justificativa para deixá-los na
condição de exilados seja uma tentativa de protegê-los do sofrimento que poderão
enfrentar, porque as pessoas fora do centro de ensino especial não têm tato para lidar com
eles. Negar o caráter dramático da educação seria o mesmo que negá-la como espaço de
criação, afirmando-a como mera mimese. Vygotsky (2003) admite que a “educação e a
criação são sempre trágicas, porque sempre partem do ‘desconforto’ e do infortúnio, da
falta de harmonia (p. 303)”. O que aparentemente seria uma forma de proteger do
sofrimento é, na realidade, uma forma de negação da vida como criação. Como bem nos
diz Tunes e Bartholo (2005),
A tutela, como já dissemos, estende-se também aos pais. Diana, que trabalha na
escola C, fala da necessidade de orientar os pais quanto às necessidades dos filhos. Por
isso, tem procurado fazer esse trabalho de orientação com os pais, pois, muitas vezes,
falta-lhes o conhecimento necessário. Quando o professor sente-se o especialista, a tutela
que se estende à família do aluno parece justificar-se pela falta de conhecimento dos pais.
O que nos parece ainda mais problemático é que o professor sequer espera a solicitação
dessa ajuda por parte dos pais. Ele chama os pais à escola e impõe sua ajuda. Se eles
recusam-se a aceitá-la, são considerados relapsos e desinteressados pela vida de seus
filhos.
O assistencialismo assume várias facetas. Uma delas chega a ser extremamente
invasiva na vida das crianças. Ainda mais invasiva do que impor ajuda aos pais na escola.
Keila, da escola A, acredita ser necessário conhecer tudo sobre o aluno e sua família para
poder atendê-lo e Lílian concorda com ela. Advoga a necessidade de conhecer o domicílio
da criança para orientar a mãe como educar seu filho e também para detectar a causa de
92
seu problema. Quando questionada sobre o que fazer com a informação que consegue na
casa da criança, responde que não pode dar jeito no que considera que está errado, mas que
pode detectar o problema e que isso a ajuda a ajudar. A tutela não conhece limites.
Keila: Há muito tempo atrás, eu tinha sugerido.... eu tinha comentado com relação à
visitação. Pelo menos... nós deveríamos, pelo menos uma vez durante o ano, visitar a casa
do aluno. Por quê? Lá você vai observar é... é claro que se for a uma casa e disser “mãe,
eu vou lá tal dia”. Ah, ela vai fazer limpeza, vai preparar cafezinho, lanchinho. Mas, você
olhando onde a criança vive, é... o local onde ela... você consegue. Eu fiz isso uma vez, e
foi maravilhoso.
Pesquisadora: E com o objetivo de quê?
Keila: Que eu fiz? Eu queria saber como aquela criança vivia. Se ela ficava presa na
cama, se ele ficava no chão, se ficava na cadeira.... como é que ele fazia pra ir ver o sol....
com quem que ele brincava.... quantas pessoas viviam na casa... e isso é muito importante.
Por exemplo, hoje que eu estou com um aluno, que chegou, que eu ganhei de presente,
maravilhoso, meu aluno. Ele mora em um cômodo só! Lá é quarto, sala, cozinha,
banheiro, cama. Vive o pai e a mãe, que gosta de... que é alcoólatra. E aí, isso é bom por
quê? Porque eu sei porquê ele traz um certo tipo de comportamento pra sala. (Lílian:
ajuda você a detectar o problema.). Ajuda. E ajuda eu ajudar. Ajuda você trabalhar.
Pesquisadora: E a partir do momento que você detecta, o que você faz com essa
informação?
Ra: A gente... bom... eu não vou fazer uma casa de vários cômodos pra mãe. Mas, alguma
orientação eu vou ter que dar pra mãe. Ah, quem dera se eu pudesse dar. Mas eu não
posso. Orientações eu vou dar. Orientações básicas.... “bom, mãe, é assim, assim e
assim”. Meu trabalho é esse. Posso ajudar...
A visão assistencialista pode tornar a prática tão invasiva que não se espera que o
outro solicite a ajuda que deseja ou que necessita. O tutelador impõe a existência de uma
necessidade auto-referida. Nem que para isso tenha que ir à casa do aluno com a finalidade
de detectar a causa de sua infelicidade ou verificar aquilo de que ele teria falta, mesmo que
não tenha condições de suprir o que acredita que seja uma necessidade. O que é problema
para o professor, o que para ele seria uma fonte de infelicidade, pode não ser para o aluno,
mas como qualquer tutelador, o professor não consegue ver isso, uma vez que se vê como
93
referência para o outro e imagina que o outro tem que valorizar aquilo que ele próprio
valoriza. Não concebe a existência de pessoas diferentes dele como sendo algo normal.
A tutela do professor sob a forma de assistencialismo também aparece entre as
professoras da escola B. A professora Flávia, que era constantemente citada pelas colegas
durante a discussão, buscando a confirmação de suas falas, parece ser, na realidade, uma
catalisadora de opinião entre o grupo. Em seu discurso, começa falando da dificuldade de
ensinar a pescar pois é mais fácil dar o peixe. O que em princípio parece uma visão
contrária ao assistencialismo acaba revelando sua outra face. Flávia diz que se consulta em
lugar de seus alunos, pois graças a Deus ela tem plano de saúde, coisa que falta para seus
alunos. Parece que Flávia chega a ‘assumir-se’ como se fosse o aluno para providenciar
para ele o que ele não tem. Ela recebe a confirmação de admiração de suas colegas por isso
também, como é demonstrado no trecho a seguir.
Flávia: Eu vejo... A dificuldade maior que eu sinto.. é muito mais fácil você dar o peixe do
que você ensinar a pescar. Construir o saber, gente, é muito difícil. Então, uma mãe, ela
vai lá limpa, enfia a comida na boca. Se... do quê ele sujar, ele segurar, ela explicar.
Porque ela vai gastar tempo, ela vai gastar saliva, que ela vai ter que explicar, ele vai ter
que ter paciência.[...] Então, isso dificulta a construção do saber. Não é porque elas são
preguiçosas, não é porque elas não têm conhecimento. E tem nesse sentido, assim, a
dificuldade que nós temos de acesso também a informações com outro especialista.
Porque são coisas, igual eu já citei antes, que não é... didática. Mas, às vezes é
neurológico, às vezes, é... outra parte que necessita de uma... de uma intervenção, e você
não tem como... como fazer. Então, essa parte eu tenho, graças a Deus, eu tenho o
privilégio de... precisar, eu marco uma consulta pra mim, por causa do meu convênio. E
vou lá e, “você tá consultando pra quem”? Falo assim “pro aluno”.
Dora: Ainda bem, né, Flávia?
Flávia: Eu tenho esse privilégio de ter isso, sabe? De vez em quando, ele ri tanto de mim.
O médico diz “Flávia, mas você não tem jeito não”! Porque eu vou, eu marco com
Psicólogo, eu marco com o neuro, e tudo... eu começo contando, e tudo.
tutelador não vê como necessário relacionar-se diretamente com o outro, nem ouvi-lo para
prestar atenção em suas necessidades reais. Ele, de antemão, supõe que já sabe do que o
outro necessita para ser feliz. Aquele que se acha na condição de tutelar e se faz referência
para o outro, não se dispõe a aceitar que, a despeito da diferença, o outro pode ser visto
como um ser humano inteiro e não como um sujeito de falta. No entanto, não é qualquer
diferença que a pessoa guiada pela primazia de si não aceita, mas somente aquela que ela
acha que desvaloriza a pessoa que a possui. Ao se colocar como referência ou como padrão
para o outro e não aceitá-lo, por ser diferente, nega-se a diversidade.
A tutela, de uma forma ou de outra, isto é, tendo o professor como tutelado ou
como tutelador, institui a dependência de uma pessoa em relação à outra. Na realidade,
instaura-se uma cadeia de dependência em que, quanto mais na ponta fica o ‘elo’ tutelado,
mais fraco e dependente é considerado. Assim, o professor busca a tutela de especialistas e
deles sente-se dependente. Ao mesmo tempo, busca tutelar o aluno e sua família, fazendo-
os depender de si.
O assistencialismo está enraizado em regras morais e não na ética que implica
primordialmente o compromisso com o outro. Para aquele que pratica o assistencialismo,
há diferentes graus de “humanidade” entre quem acolhe os deficientes e quem educa
aqueles que não têm defeito, separando-os em tipos humanos distintos. São consideradas
pessoas mais humanas aquelas que acolhem e abrigam esses menos afortunados. Assim,
abrigar e assistir aos deficientes faz com que a pessoa sinta-se melhor consigo mesma e em
paz com sua consciência, uma vez que está cuidando das desafortunadas criaturas de Deus.
Uma vez mais encontramos na obra de Vygotsky (1997, p. 55) uma severa crítica
à educação de crianças com defeito com tendência ao assistencialismo. Para o autor, a
educação especial tem sido “debilitada pelas tendências à comiseração e à filantropia,
envenenada pela morbidez e debilidade”. Para ele, uma das tarefas que se delineiam
perante a pedagogia é a de libertar a escola especial de todo e qualquer vestígio da
educação filantrópico-religiosa. A comiseração e o sentido religioso de ajuda humanitária
da qual está impregnada a educação especial, para a qual basta prestar cuidado e abrigo aos
deficientes, ainda que segregando-os, apaga sua condição de seres humanos inteiros,
diversos e com condição de relacionarem-se de maneira direta e autêntica com qualquer
pessoa que esteja diante deles.
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Em nossa análise, depreendemos da fala das professoras que elas possuem uma
visão da educação como aplicação da técnica. Essa concepção põe em descoberto a visão
instrumental da educação. Em diversos momentos, as professoras das três escolas referem-
se à falta de preparo técnico prévio como um fator que dificulta e até impossibilita o
trabalho com pessoas instituídas como deficientes tanto nos centros de ensino especial
como nas escolas regulares. Essa ausência de preparo técnico prévio é, muitas vezes,
apontada como um motivo pelo qual a inclusão escolar não dá certo. Enquanto aguardam o
preparo, não há referência a fatos que nos indiquem uma busca de conhecer o aluno por ele
mesmo.
Assim como o preparo técnico prévio é condição essencial para se relacionar com
o deficiente em sala, o diagnóstico também tem um papel fundamental, pois se acredita que
não se pode criar condições para o aluno aprender e se desenvolver sem saber qual o seu
diagnóstico. As professoras relatam que necessitam conhecer as patologias e os
diagnósticos para sentirem-se seguras em seu trabalho, como se ao conhecerem a
patologia, automaticamente, conhecessem a pessoa. Segundo Vygotsky (1997), o
diagnóstico, uma herança da escola burguesa de massa, é comumente distinguido com base
em critérios totalmente negativos e coloca sua ênfase naquilo que falta, supondo uma
padronização no interior da patologia. Esse enfoque clínico herdado pela escola especial
acaba orientando a prática educativa pelo que falta no aluno, isto é, pelos seus limites.
Yarochevski (1983) denuncia o caráter preditivo do psicodiagnóstico que fornece também
os meios de comprovação do que foi previsto. Além disso, “separar a patologia da norma
foi sempre uma tarefa importantíssima do diagnóstico (p. 132)” e não vai além disso.
Como se o diagnóstico tivesse um fim em si mesmo.
A ausência de um diagnóstico pode fazer com que o professor interrompa sua ação
enquanto aguarda a confirmação da patologia. Como se, a partir do momento que se
conhece o diagnóstico, pudesse trabalhar. Se não, não se sente competente para realizar o
seu ato educativo. Essa necessidade de conhecer o diagnóstico como se ele tivesse um fim
em si mesmo aparece, de modo geral, nas três escolas pesquisadas. Entretanto, achamos
que a fala de Flávia, da escola B, ilustra bem essa visão.
96
Assim, o mais importante é conhecer a criança e não o seu diagnóstico porque o professor
irá relacionar-se com a criança e não com a deficiência.
A busca em conhecer tudo sobre a deficiência, suas causas e seus sintomas como
condição essencial para a prática da educação revela a tentativa de encontrar técnicas para
a abordagem de um tipo de deficiência, pressupondo uma homogeneidade no interior de
cada tipo. Não há o entendimento que a educação de qualquer pessoa, deficiente ou não,
não é resultante de uma técnica. As condições para que a educação aconteça estão dadas na
vida social do indivíduo e não nas técnicas. É por meio das relações sociais que se torna
possível oferecer condições de possibilidade para a educação da pessoa. Por isso,
afirmamos que as condições necessárias para a educação de qualquer pessoa emergem das
relações sociais que se estabelecem tanto dentro da escola como fora dela. Assim, a
utilização de uma técnica não cria, mas pode destruir as condições de possibilidade para
que o desenvolvimento aconteça, pois artificializa ainda mais a realidade criada pela
escola. Ao ser elaborada e aplicada a um grupo de alunos, o professor cria a técnica para
um aluno fictício e não um real. Uma pessoa real não pode ser apreendida por intermédio
de uma técnica.
Illich (1976a e 1976b) denuncia o papel escravizante das ferramentas da sociedade
escolarizada. O conhecimento prescritivo, travestido de técnica, escraviza o homem,
colocando-o a seu serviço. A supervalorização do conhecimento toma proporções absurdas
na ação educativa, substituindo o valor ético pelo valor da técnica. Assim, a ação educativa
passa a ser determinada e vista como possível somente por meio do conhecimento técnico,
ao invés de ser guiada pelas possibilidades que poderiam emergir na relação com o outro.
Conforme vimos, nas ações educativas dirigidas a pessoas instituídas como
deficientes, no caso das professoras participantes desse estudo, puderam ser encontrados
indícios que nos permitiram perceber a existência de tendências a orientar as práticas
educativas pela lei do menor esforço, de modo tutelado – tutelador e assistencialista e com
caráter técnico. Após encontrar essas características nas práticas educativas, interessa-nos
saber se elas revelam preconceito.
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sujeito de falta. O preconceito encerra o indivíduo nos limites do estigma, mesmo que este
seja uma prisão sem grades. Esse encarceramento acaba banindo o outro para o exílio
relacional. É, pois, uma barreira que impede o acolhimento do outro em sua inteireza e o
relacionamento com ele. O não acolhimento do outro promove o desencontro mediado.
Esse desencontro pode ser justificado pela alegação da ausência de preparo técnico ou
pode ser mediado pelo próprio diagnóstico, usado como blindagem que impede a relação
direta com o outro.
Em seu estudo, Cavalcante (2004) demonstrou que, do ponto de vista da ética, o
preconceito pode ser compreendido à luz de seus elementos constitutivos: a redução do
outro, o descompromisso, o exílio relacional, a negação da diversidade, a afirmação
do sujeito de falta e o desencontro mediado.
A redução do outro “ocorre quando o outro é reduzido a um atributo, a um
funcionamento deficitário, a um rótulo (p. 77)”. Nesse caso, não é visto como uma pessoa,
sendo identificado com a própria deficiência ou com o que ela representa.
A afirmação do sujeito de falta associa-se à idéia de déficit que marca a pessoa
pelo que ela não tem. “A pessoa rotulada como deficiente é vista como incompleta, inferior
e deficitária em relação a todas as outras pessoas (p. 77)”. A pessoa com um tipo biológico
incomum, por exemplo, é tomada como uma forma diminuída das demais, o que a torna
um sujeito menos em vários aspectos em relação àquelas que têm um tipo biológico
comum.
A negação da diversidade ocorre quando “existe uma comparação com o padrão,
a pessoa com defeito perde o direito de ser diferente, aquele que não possui um
determinado atributo passa a ser comparado com aquele que possui (p. 77)”. Com isso, as
pessoas são categorizadas em normais e deficientes, explicando-se e se negando, ao mesmo
tempo, a diversidade, buscando-se uma homogeneidade presumida.
O desencontro mediado acontece quando “o Eu recorre ao preparo técnico como
requisito indispensável para tentar conhecer esse outro que é despersonalizado, ou seja, o
deficiente (p. 78)”. Sendo assim, não há necessidade de relacionar-se com a pessoa para
conhecê-la, pois já se sabe exatamente como e quem ela é. O diagnóstico, o conceito, a
técnica, o método dizem tudo a seu respeito e, portanto, passam a mediar o desencontro.
O descompromisso ocorre quando a pessoa que é guiada pelo primado do Eu tem
diante de si uma pessoa que não corresponde às suas expectativas e às suas referências por
apresentar “uma característica que incomoda ao Eu, que vai de encontro aos padrões
100
aceitos, por exemplo, um defeito, então, justifica-se o descompromisso com esse outro
rotulado como deficiente (p. 78)”.
O exílio relacional acontece porque “na medida em que o outro é rotulado, visto
como um conceito, como um isso, não há condições de possibilidade para o encontro
verdadeiro com o outro, desembocando em uma situação de exílio relacional (p. 78)”.
Quando o Eu não se dispõe a relacionar-se com o outro por causa da sua diferença que, na
sua opinião, torna-o inferior, ele encaminha-o ao exílio relacional e se sente justificado por
seu ato que estabelece o exílio.
a maioria das professoras tem em si mesmas a referência para o aluno, sendo suas práticas
auto-referidas.
No rol das respostas auto-referidas, existe outro ponto que chama a atenção. As
professoras da escola A e B, quando questionadas sobre o que facilitava e o que dificultava
o desenvolvimento do aluno, responderam sobre o que facilitava ou dificultava o seu
trabalho. Mesmo quando repetimos a pergunta, elas continuaram a responder dessa forma.
Na realidade, não responderam a pergunta que claramente dizia respeito ao
desenvolvimento do aluno. Falaram das condições precárias de trabalho, das que seriam
ideais, da falta de valorização do professor, da falta de apoio da direção por não promover
a coordenação adequadamente e da falta de apoio dos órgãos gestores por não enviarem
outros profissionais que seriam necessários para subsidiar o trabalho do professor. Diante
da nossa insistência em perguntar como isso se relacionava ao desenvolvimento do aluno,
respondiam com evasivas como ah, é bom demais, ou isso seria muito bom.
Os dados da escola C chamaram a nossa atenção. Encontramos respostas cujo
conteúdo é de outra ordem. As professoras referiram gostar do trabalho por sentirem-se
desafiadas e porque aprendiam com as crianças que as surpreendiam e nem sempre
respondiam conforme o que esperavam. Também quando questionadas sobre os fatores que
facilitam ou dificultam o desenvolvimento de uma criança, suas respostas indicaram que a
pergunta fora entendida e apontaram respostas referentes ao aluno. Diversificar as
oportunidades de vivências dos alunos e o convívio com o grupo fora do centro de ensino
especial apareceram como fatores facilitadores. Afirmaram ainda que quanto mais isolada
for a criança, quanto mais restrita a convivência, mais difícil o seu desenvolvimento. Elis
reconhece que um fator que dificulta bastante o desenvolvimento da criança é a expectativa
do professor de que ela não vai se desenvolver mais. Para ela, é a pior coisa, dando a
entender que, acreditar que o aluno possa se desenvolver é condição essencial para que o
professor invista em seu desenvolvimento.
Elis: Eu acho que tem uma coisa que dificulta sim. Quando você taxa a criança que ela
não tem mais capacidade de aprender. E a pior coisa é isso. “Ah, aquela criança...
bom... Chegou até ali, dali ela não passa”. Eu acho que quando você rotula uma criança
também, vai dificultar. Não que ela não vai desenvolver. Ela tá desenvolvendo. Mas, você
já dificultou, já tá dificultando ao taxar, rotular, ao dizer que ela não tem... capacidade de
desenvolver.
102
exílio relacional. É isso que o preconceito faz; afasta o outro e o exila relacionalmente. A
maioria das professoras da escola A, que é um centro de ensino especial, entende que, uma
vez que o aluno tem algum problema que o levou ao ensino especial, é lá que deve ficar.
Para evitar que ele sofra com o preconceito e que o professor da escola regular tenha que
lidar com ele sem preparo prévio, ninguém deve ir para a escola comum.
Vygotsky (1997, p. 141) afirma que agrupar crianças com atraso mental, levando
em conta o fato de se encontrarem no mesmo nível de desenvolvimento, é um ideal
pedagógico falso. Para o autor,
“todo defeito cria os estímulos para elaborar uma compensação (p. 14)”. A lei da
compensação é aplicável tanto ao desenvolvimento normal como ao desenvolvimento
agravado por um defeito. Na criança com defeito, este pode ser justamente o ponto de
partida e principal força motriz do desenvolvimento psíquico e da personalidade.
Vygotsky compara o defeito a um dique que se coloca como obstáculo no leito de
um rio. Isso faz com que se produza uma inundação. A força dessa inundação cria novos
caminhos de desvio, novos processos que podem ter direções totalmente diferentes
daquelas indicadas pelo percurso inicial do rio. Assim, junto com o defeito orgânico estão
dadas também as condições para superá-lo. Contudo, a compensação não parte de um
ímpeto interior. Os processos de compensação não fluem livremente, mas são orientados.
Se a criança não for desafiada ou solicitada pelas condições de sua vida concretamente
vivida, se não sentir necessidade, não serão criadas as condições que tornarão possível o
seu aparecimento. Sem necessidade não há desenvolvimento. O desenvolvimento é
condicionado socialmente; a necessidade também. Segundo Vygotsky (1997, p. 137),
Assim, manter a cadeia de isolamento social não permite que sejam criadas as
condições que tornam possíveis o surgimento dos processos compensatórios capazes de
criar caminhos de desvios ou caminhos isotrópicos para o desenvolvimento das pessoas em
geral e das pessoas com defeito em particular. O mesmo autor afirma que
Assim, a lei do menor esforço muitas vezes adotada nas escolas especiais acaba
nivelando por baixo e impedindo que apareçam outras possibilidades de desenvolvimento
que não aquelas consideradas normais, ou as mais comuns. Dessa forma, fica evidente o
pensamento equivocado de algumas professoras da escola A, um centro de ensino especial,
106
imprevisível. Mais difícil ainda é admitir que, embora a técnica não possa criar os
processos compensatórios, ela pode destruí-los.
Em muitos casos, o preconceito promove o desencontro mediado pelo
especialista. O professor relaciona-se com o aluno por meio do especialista. Se um
especialista, que sequer conhece o aluno, disser que ele deve ser tratado de um certo modo,
é assim que ele deverá ser tratado. Isso elimina a necessidade de relacionar-se diretamente
com o aluno, ouvi-lo, conhecê-lo, pois o que o especialista diz é tudo que o aluno precisa.
A intermediação do especialista na relação com o aluno concretiza-se em abundância no
diagnóstico que elabora.
Apesar de considerarmos que a ênfase no diagnóstico é indício da manifestação do
preconceito, de um modo geral, as professoras consideram que diagnosticar um aluno
como deficiente ou como tendo problema no desenvolvimento não denota preconceito.
Para ilustrar isso, tomamos um trecho da discussão das professoras da escola C.
Pesquisadora: Gente, eu gostaria que vocês me dissessem o seguinte: vocês acham que
diagnosticar um aluno como tendo problema no desenvolvimento, ou como deficiente,
denota preconceito?
Renata: Eu acho que não. Porque a partir do momento que... se fez um estudo de caso,
tem um relatório médico, tenha exames que comprovam que a criança tem algum distúrbio
em alguma área, né? Tem um distúrbio, que seja uma coisa realmente documentada, que
tenha sido feito exame, testes, tudo assim, de maneira correta, eu acho que num... pelo
contrário, né? Vai tá facilitando pra que o aluno seja trabalhado da man-, devido...
conforme suas necessidades, conforme as suas limitações.
[...]
Lucy: Não. Mesmo porque, se não... é... se não tivesse como ser feito esse... esse
diagnóstico, a criança ia ficar como, né? Se não tivesse... digamos, pegar uma criança
que tem dificuldades, ou que tem deficiência física, é... hoje a gente já tem abertura nas
escolas. Anteriormente, a gente sabe que num tinha. Graças a esse diagnóstico, é que vai
fazer com que possibilite uma aprendizagem pra essas crianças. Então, não é um
preconceito. Muito pelo contrário. Acho que é uma maneira de tá tentando tirá-los... lá
do, do, do... do mundo do... sempre foi muito es-, sempre foi muito esquecido, e colocá-lo
no meio da sociedade. Então, se vai fazer com que ele conviva com todo mundo, não pode
ser considerado um preconceito. Muito pelo contrário, né? É um conceito bom de que ele
108
é capaz. Só que pra isso, é necessário que se saiba exatamente qual é a deficiência. É o
que...
5
CNBB – Confederação Nacional dos Bispos do Brasil.
110
Sendo assim, não é necessário esperar quando, num futuro, a criança se torne
capaz de fazer algo sozinha para se considerar que o desenvolvimento ocorreu. Para a
matriz histórico-cultural, aquilo que a criança consegue fazer hoje, com ajuda, é indicativo
de desenvolvimento. O desenvolvimento não é, pois, orientado teleologicamente, mas
vincula-se ao tempo em que se vive.
6
A respeito da importância do conceito de zona proximal de desenvolvimento nas formulações de Vygotsky
ver Tunes e Bartholo, 2004.
113
Pesquisadora: Bom, gente ... eu gostaria de saber: pra vocês, o que é desenvolvimento?
(silêncio)
Keila: Crescimento, maturidade....
(...)
Elke: Acho que o desenvolvimento é o.... a.... a pessoa superar suas expectativas mesmo,
né? No crescimento, no progresso....
(...)
Lílian: É, assim, além do crescimento, o progresso, né? Que ele... vai adquirindo.
Estela: [...] O quê que é desenvolvimento? Você... é, ver que a criança está progredindo,
tá aprendendo novas coisas. Não só aprendendo a ler e aprendendo a escrever. É
aprendendo novas coisas do dia-a-dia. Todos os dias, ela tem uma aprendizagem nova.
Aprende a trocar, aprende a se relacionar, ela muda o modo de falar. Isso, pra gente, é
aprendizagem. Saber ler, escrever, pintar, fazer continhas de matemática.
se desse numa linha contínua e numa única direção, admitindo que umas pessoas podem
ser mais desenvolvidas e outras menos, dependendo do lugar em que se encontrem nessa
linha, ou do degrau que estão nessa hierarquia. Para ilustrar essa concepção tomamos as
falas de Elis e Lucy.
Lílian: É que se você percebe que a mudança de comportamento dele foi pra ruim, foi
pra menos do ele tinha, ou uma coisa negativa, então, o desenvolvimento dele tá caindo.
Então, num tá bem. Agora, se você percebe que ele tá progredindo no comportamento
dele... porque, mais o que a gente avalia, é o comportamento mesmo. [...] Aí, você percebe
que ele tá se desenvolvendo bem, né? Por exemplo, esse ano eu já constatei. As minhas
alunas estão diferentes de quando eu peguei.. já estão diferentes. E assim, eu não sei se
pra bom ou pra ruim. Porque as mães delas estão reclamando que elas estão mais levadas
em casa... mas elas estão mais ativas. É melhor elas estarem mais ativas, do que estarem
paradonas. Aí, eu não sei se a mãe delas faz elogio... ou se não faz... mas é uma mudança
de comportamento.
116
Ane: [...] Então, mas, assim... agora, né, com essas alunas adultas que eu estou. Eu acho
que o aluno adulto ainda é mais difícil. Porque quando o aluno é criança, ce ainda tem
toda aquela expectativa, (Márcia: perfeito.) que você vai conseguir... e tudo. Mas o
aluno é adulto...... (balançou a cabeça negativamente) [...] É em relação ao
117
desenvolvimento. Que parece que... a impressão que a gente tem... até pela escola também.
Que os dias de aula reduz, o pai também não dá muita atenção mais.
Keila: Não tem mais expectativa.
(...)
Ane: Mas, a minha questão é assim. Quando a minha aluna, por exemplo, que tá com 32
anos, que é uma deficiente mental severa, que já foi reduzido os dias, e que a gente vê
que... que a gente propõe atividade, a gente propõe, e num anda, né? É a questão da
terminalidade. Falando assim, sobre o nosso... a nossa (Márcia: realidade.) realidade,
aqui, né? Então, eu acho que também tem um dia que tem que se medir essa
aprendizagem, tem que se medir esse desenvolvimento. Pra ver até como (Márcia: como
que perceber e avaliar esse desenvolvimento, né, Ane?) que vai lidar, né? Como continuar
o trabalho. (Márcia: que é a questão..). Que é a questão da inclusão, né, que nós duas
tivemos um aluno que ele tá na 5ª série. Mas faz só três matérias, né? Mas aí, vai indo, vai
indo... e tem um dia que tem que se medir. Tem de dar uma finalidade nisso tudo, né? Que
são questões assim, muito complexas. Que eu nem sei se tô preparada pra falar. Mas acho
que entra aí, como uma interrogação, também. São coisas também que mexem com a
gente.
(...)
Lílian: Eu acho que essa questão de, de... [...] É... assim, eu acho muito sério também, a
questão da terminalidade, né? A gente discutiu isso outra vez, né? É muito sério a gente
dizer “olha o desenvolvimento desse aluno acabou, ele não vai mais desenvolver em
nada”. Porque a gente sabe que existem frases até de sábios, né, que falam assim: “até a
morte a gente tá aprendendo”.
Márcia: Pois eu sou totalmente a favor de diagnosticar a terminalidade.[...] Estávamos
no CEUB, uma faixa de 15 professores que trabalham no ensino especial. E, por
coincidência, a gente foi se juntando, cada uma de uma turma, tal. E acabamos nos
conhecendo, e já somos assim, uma.... um grupo de 15, 16 professores. E eu posso te dizer
de cadeira, que é unânime nesse grupo, essa discussão de que a terminalidade tem que
existir, no centro. Agora, é a terminalidade, no centro. (Keila: de quê? Que terminalidade
é essa?) É a terminalidade, enquanto centro de ensino especial. Num é a terminalizar e
exterminar o menino e colocá-lo numa jaula... (Keila: ah.... bom....) e esperar que a morte
venha. (Lílian: você não foi clara...) Então, a terminalidade... (Lílian: ah... eu enquanto
profissional, num posso fazer mais nada.) a terminalidade, a terminalidade no sentido es-
118
co-la. (Lílian: ah! Sim! Eu, enquanto profissional, não posso fazer mais nada.). Até
porque... (Keila: agora... sim..) enquanto temos alunos de 30, 35 empacando uma vaga,
nós temos milhares com 10, 8, 4, 5....
De acordo com o que aparece nas falas das professoras da escola A, o fim do
desenvolvimento não é necessariamente quando a pessoa aprende a se comportar como um
adulto comum da nossa sociedade. Pode ser também que o fato de se ter chegado à idade
adulta indique que já se chegou ao fim da linha. Curiosamente, nessa mesma escola,
mesmo considerando que o aluno já está no fim de seu desenvolvimento, porque ele já
chegou à idade adulta, acontece uma infantilização dos alunos com deficiência. Por vezes,
as professoras referem-se a eles como crianças de 19, 20, 21 anos. Mesmo que não tenham
alcançado o nível esperado e que não adotem os modos de vida que se espera de um adulto
da nossa sociedade, abrindo espaço para que sejam tratados como crianças, seu
desenvolvimento já indica uma terminalidade porque, em sua faixa etária, ele já é um
adulto. Para elas, parece não haver problemas em admitir uma terminalidade para o
desenvolvimento dos alunos deficientes. Para nós, isso é uma indicação que, a partir de
então, não há grandes progressos a serem feitos e vistos. Por isso, pode-se falar em
terminalidade sem grandes conflitos.
Na escola C, aparece tanto a idéia de finalidade no desenvolvimento como a de
que a pessoa está sempre se desenvolvendo. Diante da pergunta sobre quais seriam os
fatores dificultadores para o desenvolvimento, a professora Suse respondeu não haver
dificultador. Todos se desenvolvem; qualquer um se desenvolve. Até mesmo as crianças
com necessidades especiais. Nessa fala, há indícios de que o desenvolvimento da criança
com necessidades especiais surpreende de certa forma. Há também na fala de Renata a
idéia de que o desenvolvimento é o resultado direto de um estímulo específico e que se
esse não ocorrer chega um tempo em que o desenvolvimento estaciona.
Suse: [...] Então, sempre vai haver desenvolvimento. Alguém sempre vai crescer em
algum aspecto. Sempre vai ter alguma coisa. Agora, o que eu coloco aqui é o seguinte: é
que esse desenvolvimento, ele pode ser mais amplo, ele pode ser mais acelerado, ele pode
ser mais completo, se forem oferecidas outras oportunidades. Mas, qualquer um
desenvolve. Mesmo as crianças especiais. Mesmo as que ficam em casa, que não têm
119
contato com ninguém, que às vezes, só têm contato com a família, eles têm ganho, né? É
do ser humano crescer.
(...)
Renata: [...] Toda criança, todo ser, precisa de estímulo, né, pra que possa desenvolver
mais. E todo ser desenvolve também. Com ou sem estímulo, né? Chega... só que chega um
determinado ponto, se ele não tiver estímulo, se ele não tiver oportunidade, ele vai
estacionar ali, né? E podendo ser ampliado esse conhecimento, esse desenvolvimento, né?
Desde que ele tenha é... as condições necessárias pra isso. Tenha o comprometimento da
família... se for o caso de uma criança que freqüenta a escola, tenha o comprometimento
da escola, do professor regente e da própria escola. (...)
Pelo que pudemos depreender das falas das professoras da escola B, percebemos
que percebemos que a utilização da expressão o aluno está conseguindo agora é
importante a fim de se entender sua noção de desenvolvimento, como é o caso da fala da
professora Ruth, tomada como ilustrativa dessa idéia.
Ruth: Eu assim, às vezes, me angustia muito porque... “Ave-Maria! Esse menino não está
se desenvolvendo da maneira que eu gostaria”. Mas assim, eu cheguei a uma conclusão
que eu não devo pensar no que ele não conseguiu e sim no que ele já conseguiu. E agora,
falo que a partir de agora eu vou olhar no que ele tá conseguindo, e não naquilo que ele
não conseguiu pra poder trabalhar melhor com ele.
Sim, mas ele tem o biológico dele. Aquele programinha que foi dito pra ele, tá
programado. Olha você vai... é… falar, vai fazer isso com tal tempo. Ele vai independente
de ter ou não ter. Claro que aquele que tenha mais estímulos ele, né, vai acelerar um
pouquinho mais. Mas, aquele que não, que tem pouco, ou que não tem nenhum ou que nem
percebe o estímulo, o biológico dele vai fazer aquele negócio que a Ane falou,
desabrochar. Porque é nato do ser vivo. [...]
Pesquisadora: E o desenvolvimento psicológico?
Keila: Também tá programado. O ser vivo é programado, entendeu? É...e..eu queria
achar uma palavra que não fosse tão, né? Assim, mas, eu não consegui encontrar. Então,
na minha visão, o psicológico também é programado. E aí o quê que acontece? Os
atropelos, os percalços da vida, faz com que aquele programa se desarranje(...)
Helen: Porque no caso do centro, essa questão do desenvolvimento, ele tem a ver, o
diagnóstico que eles apresentam. (Márcia: lógico.) (...) Crianças que.... eu acho que
qualquer tipo de diagnóstico, ele afeta o desenvolvimento. No caso do centro, que são
crianças que vêm pra cá, porque... é.. têm um dia-, têm uma saúde mais prejudicada, ela
vai apresentar problema no desenvolvimento. (...) Mas, eu concordo com a Márcia, na
questão do desenvolvimento cognitivo. Esse realmente aqui é muito prejudicado. (...) Não
só pelas questões externas, mas pelas próprias questões internas, entendeu? Do próprio
aluno, né?
[...]
Lílian: Porque eu acho, assim, por se tratar de um centro de ensino especial, e por se
tratar de crianças com necessidades educativas especiais, são crianças com
comprometimento no desenvolvimento! Não tem nem... assim... o que ser perguntado, e o
que questionar a respeito disso.
122
Dora: Nessas questões bem sociais, assim, deles juntos, é que... é naqueles momentos que
eles se sentem iguais aos outros, né? Porque se você tiver só na, cobrando dele só a
questão da escrita, da linguagem, ele não vai se sentir igual, porque ele num...
dificilmente ele tem o nível do outro na questão de escrever, de ler. Então, ele vai sentir
inferior. Mas, nas brincadeiras eles se tornam iguais. Então, são momentos assim, bem
importantes pro desenvolvimento de aluno, né?[...] Então, o objetivo principal para se
desenvolver é fazer com ele se sinta igual ao outro. Que ele tá ali pra ser igual. Então,
eu acho que um dos fundamentos, assim, mais importantes, que eu acho, na questão de
integração inversa é essa coisa dele se sentir igual ao outro. E daí, só dele tá igual, no
meio, ele já começa a (Estela: desenvolver.) desenvolver, muito mais da do que se ele
tivesse numa turma especial.
Suse e Diana, da escola C, parecem também se movimentar como Dora. Para elas,
a socialização, a diversificação das oportunidades e vivências dos alunos são fatores que
facilitam o desenvolvimento. Embora o plano social também seja levado em consideração,
ele aparece apenas como facilitador e não como gênese do desenvolvimento, como é
entendido na matriz histórico-cultural.
Suse: Do meu ponto de vista, é a socialização. Quanto mais oportunidades você oferecer
pra... pra pessoa, né? Diversificar as oportunidades dela, as vivências e o convívio com o
grupo, facilita bastante a aprendizagem. Quanto mais isolado, quanto mais limitado,
mais restrito, mais difícil a aprendizagem.
Diana: Bom, eu acho assim, que a convivência, né? Pelo tempo que eu já tenho assim de
experiência no ensino especial, é que muitas pessoas pensam, né, que tem que tá...
segregando a criança do ensino especial. Na verdade, a gente tá aí comprovando cada
dia, cada momento, que ela tem que estar é no meio de outras crianças. Pra que ela
tenha um desenvolvimento o mais normal possível, né? Só na convivência, é que ela vai...
poder aprender.
Assim, ele afirma que uma criança com defeito não tem de ser, necessariamente,
uma criança deficiente, uma vez que todo o processo de desenvolvimento da criança está
condicionado socialmente e não biologicamente. A dificuldade não está localizada na
criança, mas na sua relação com a cultura que não está adaptada para ela. Então, o conceito
de deficiência e o status de deficiente são impostos à criança com defeito porque o meio
social é inadequado para ela e não o contrário. É o impacto social do defeito que cria o
conceito de deficiência. O autor afirma que está em nossas mãos fazer com que “a criança
cega, surda ou deficiente mental, não sejam deficientes. Então, desaparecerá também este
conceito, signo inequívoco do nosso próprio defeito (p. 82)”. Ao invés de continuarmos
usando o termo e o conceito de deficiente, propõe que digamos que um cego é cego, que
um surdo é surdo e nada mais.
Ao propor o abandono do conceito e do termo deficiente, Vygotsky está, na
realidade, defendendo o rompimento da cadeia de exclusões em que temos aprisionado a
pessoa com defeito. A exclusão instaura-se primeiramente pela palavra. Chamar uma
pessoa de deficiente já a encaminha para uma situação de exílio; é colocar sobre ela toda a
carga de preconceito que essa palavra encerra. É impingir-lhe uma inferioridade numa
hierarquia socialmente estabelecida para a qual existem seres que valem mais e outros
menos. Semelhantemente, Tunes e Bartholo (2005) afirmam que o preconceito
pode ser entendido como uma atitude diante do outro, o que conduz seu
exame para o plano ético da vida concretamente vivida e não o da
racionalidade científica. Sendo assim, são preconceituosas as afirmações
e atitudes que, a despeito de cientificamente válidas, admitem a
redutibilidade do outro a um atributo e, em conseqüência, a sua
despersonificação, impondo-lhe o cárcere da tutela sem fim. (...) O
preconceito é, assim, um dos sentidos-atos da palavra deficiência. (p. 14)
No exame dos dados foi possível perceber que, entre as professoras da escola A, a
idéia de universalidade no desenvolvimento está muito presente. Durante a discussão, elas
chegaram a anunciar que realmente existe a necessidade de um padrão para medir e avaliar
o desenvolvimento dos alunos. É importante o padrão para saber se o desenvolvimento está
“atrasado” ou não.
Ane: Mas... agora eu me lembrei aqui. Que é há anos... assim de novo da minha sala que
eu tô vivendo esse ano. Que escolarmente falando, né, da nossa instituição, que tem
um... chega um dia que a gente tem que medir, né, esse desenvolvimento. É... como fazer
uma prova, como passar pra 5ª série (Keila: aí tem que tomar a forma padrão de
alguém.). É. Aí tem que pegar o padrão, né, que a instituição já... através de anos, né? De
séculos, já vem trabalhando em cima disso. Esse currículo, né?
Helen: [...] Porque o trabalho com a estimulação precoce... qual o parâmetro? O
parâmetro é o quê? É uma criança normal. O desenvolvimento normal pra você poder
ter base. Não, a partir daqui ela deve começar a ser trabalhada.
Num outro momento da discussão, as professoras seguem deixando cada vez mais
evidente a necessidade de um padrão. Além disso, manifesta-se a fé na ciência, a fé na
razão. Se foi descoberto pela ciência, vira dogma, não pode ser questionado. Chama nossa
atenção o movimento que a professora Keila faz. Algo incomoda-a quanto ao padrão que
leva à comparação. Discorda em princípio, mas, no fim, acaba concordando que, de fato, é
necessário um padrão. Vejamos os relatos.
Lílian: [...] Agora, em relação a isso, eu acho assim, que mesmo sendo um padrão, é
uma coisa assim que é inteligente, é necessária, (Keila: sim.) é importante, é uma coisa
assim, certa. É um padrão correto, né? Que já foi pesquisado que num... que num...
Keila: Não concordo tanto com esse padrão correto.
Lílian: Cê acha que não é um padrão correto?
Keila: Não. Num acho não. Porque aí fica... ai, meu Deus! Porque aí todo aquele que não
faz com aquela idade, “ah, tá com defeito”, ó o dedão. Fugiu da regra. Quer dizer, saiu
com defeito de fábrica.
127
Na fala da professora Lílian, fica claro que a comparação com o padrão associa a
uniformidade ao certo e a diversidade ao erro, conforme já havíamos discutido. Essa visão
é totalmente coerente com as teorias enraizadas no naturalismo nas quais a comparação
128
Flávia: Olha, nós temos as fases, né? Eu acho que é uma das coisas mais importantes que
nós educadores devemos conhecer, são as fases do desenvolvimento da criança. Não
adianta eu só querer na parte... ter um amadurecimento neurológico, no seu
desenvolvimento, se a fase dele ainda não está. Então, eu tenho de... fazer com ele tenha
o seu desenvolvimento através das suas etapas. Eu tenho que respeitar isso. E tem, e
aquela que ele está atrasado, eu tenho que estimular pra que ele avance e chegue ao
nível necessário, porque o físico acompanha.
Ruth: Eu...o que a Flávia falou encaixa justamente no aluno que eu tenho. Porque, assim,
a parte motora dele tem que ser toda desenvolvida, todo trabalhado, né? Então ele não
consegue realizar as mesmas atividades que os outros alunos, por quê? Porque ele
ainda não passou por essa fase, né? Essa parte motora ele ainda não foi desenvolvida
suficiente. O quê que acontece? Então ele fica, né, totalmente aquém com relação aos
outros alunos nessa parte, né? Que muitas atividades que os outros alunos é... realizam
em sala, ele não é capaz de realizar, porque esta parte não foi desenvolvida.
Estela: Esta questão, é... nos professores temos que muita sensibilidade pra perceber a
fase do aluno. Porque é um grande erro quando você começa assim “ah, mas você tá na 2ª
série, você tem que saber isso. Você tá na primeira série você tem que saber isso.” Então,
cabe ao professor ter a sensibilidade pra perceber em que fase o aluno se encontra pra
ajudar a avançar, né? Porque se não, ao invés de você ajudar a avançar, a se
129
Suse: No caso desse garotinho que eu mencionei, não é que ele não tenha se desenvolvido,
é que ele não apresentou o desenvolvimento esperado pra uma criança de integração,
né?
(...)
Elis: Mas eu tenho outra também, né? Ela tem déficit de atenção. Ela tava na rodinha e eu
comecei a perceber. [...] e.. realmente ela está com certa dificuldade. Pela idade dela, que
ela tem 5 anos, ela tá um pouco aquém do esperado pra faixa etária dela.
(...)
Renata: É. Mais lento ele é. Mas ele tem ganhos também. Inclusive assim, se eu for
comparar... que ele não tem diagnóstico fechado. Tá em estudo de caso ainda. Se for
compará-lo às crianças ditas normais, né, que não tem nenhum diagnóstico, que... ele
tem um nível de aprendizagem bom. Inclusive, tem hora que eu fico assim meia que...
que em pânico. Porque ele me responde bem. Aí, tem o outro lado, a dificuldade. Porque
ele teve uma paralisia cerebral com dois anos e meio, né? [...] Então, ele tem dificuldade
motora sim. Ele participa das atividades numa boa. Só que se eu... a gente faz um
130
determinado comando, ele tenta, mas ele não consegue o movimento correto. [...] Agora,
assim, cognitivamente mesmo, ele... é um aluno bom, né?
necessário para determinar tudo isso. No entanto, Keila põe-se a questionar a necessidade
de comparar a criança com algo externo a ela. Diz que a criança só pode ser comparada a
ela mesma e que precisa somente ser respeitada. Após algum tempo de discussão, Lílian
apresenta para ela o seguinte argumento: muita gente fala que o padrão é besteira, mas
não é assim, que realmente o padrão é necessário para saber se está tudo normal e, se não
acontece como o normal, é porque algo está errado, porque existe o que é normal e o que
não é normal e isso não dá pra negar. Então, Keila rende-se e concorda com as colegas
dizendo que a criança realmente necessita desse padrão.
Na escola B, assim como nas demais, as professoras dizem necessitar do
diagnóstico para realizar seu trabalho. Dora, que é professora na escola B, disse-nos que os
alunos que ela tem numa turma de integração já chegaram com o diagnóstico de deficiente
mental, mas um eu não vejo que ele tenha nenhuma deficiência, apenas visual. Mesmo
assim, ela e as colegas seguem acreditando que o diagnóstico feito pelo especialista é
imprescindível e tem a função de orientar e facilitar o trabalho em sala de aula.
Quando discutimos a respeito dos fatores que facilitam ou que dificultam o
desenvolvimento do aluno, nas escolas B e A, as respostas são auto-referidas e se prendem
mais ao que facilita ou ao que dificulta o trabalho das próprias professoras. Já na escola C,
as respostas dizem respeito ao desenvolvimento do aluno. Pela primeira vez, durante a
coleta de dados, aparece o plano social como sendo importante para o desenvolvimento do
aluno. Suse diz que a socialização e a diversificação das oportunidades da pessoa são
fatores que facilitam o desenvolvimento. Diana reafirma a opinião de Suse e acrescenta
que conviver, estar no meio de outras crianças e não segregar são fatores que facilitam o
desenvolvimento da criança. Na seqüência de sua fala, porém, diz que esses fatores devem
ser observados para que a criança tenha um desenvolvimento o mais normal possível. A
busca de normalização da criança revela que a professora admite um padrão de
normalidade. Indica que a professora entende que o ambiente social é importante para
expandir o desenvolvimento sem, no entanto, considerar a gênese histórico-cultural do
desenvolvimento psicológico.
Foi também na escola C que não encontramos indícios de uma educação guiada
pela lei do menor esforço do professor nem do aluno. Esse é um dado interessante. Ao
contrário das escolas A e B, as professoras não falam em se guiar pela limitação do aluno
nem se referem a colegas que escolhem os alunos porque dão menos trabalho, porque
ficam parados o tempo todo. Ao invés disso, indicam que não seguem modismos da
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educação e utilizam estratégias que podem não ter dado certo com um aluno, mas podem
dar certo com outro; que tentam tudo que conhecem; continuam tentando e parece que se
sentem constrangidas em pedir ajuda somente aos colegas de trabalho. Por isso, mesmo
que já tenham se decepcionado com o parecer dos especialistas da equipe de
psicodiagnóstico, porque além da demora, quando chega é pra dizer que é isso mesmo e
que não tem jeito pra dar, como nos disse Suse, não dão indicações de que poderiam abrir
mão da tutela dos especialistas e encontrar as possibilidades na relação com o próprio
aluno.
Quanto ao compromisso das professoras, fica claro que elas buscam se
comprometer com os alunos. Elas mesmas afirmam ter interesse por seus alunos. No
entanto, o que percebemos é que suas concepções sobre desenvolvimento não lhes
permitem trabalhar na incerteza; buscam, assim, a previsibilidade. Em alguns casos,
movimentam-se entre a crença na possibilidade do aluno continuar se desenvolvendo e a
admissão que sequer ousam criar expectativas. A ausência da expectativa de resultados
previsíveis em decorrência de sua ação torna-se impeditivo do investimento efetivo do
professor. Também percebemos a disposição e a vontade das professoras em estar com seus
alunos. Tanto que, do universo de catorze professoras participantes da pesquisa, somente
uma afirmou gostar mais ou menos do seu trabalho. Contudo, mesmo entre aquelas que
disseram gostar, há indícios de que não acreditam que, com seu trabalho, possam criar
condições de possibilidade de desenvolvimento do aluno.
Como vimos, algumas particularidades indicam que as professoras movimentam-
se na concepção naturalista e, por vezes, aproximam-se ainda que timidamente da
perspectiva histórico-cultural. Mesmo assim, percebemos que não saem do domínio da
concepção naturalista.
Nossa escolha por um centro de ensino especial e por duas escolas comuns que
trabalham com crianças consideradas deficientes foi deliberada, conforme já dissemos.
Tínhamos a intenção de verificar se o fato de as professoras terem conhecimento sobre as
deficiências e de conviverem com alunos considerados deficientes afastariam o preconceito
de suas práticas. Interessava-nos saber também se o conhecimento, qualquer que seja,
interfere para diminuir o preconceito ou não. Interessava-nos ainda analisar se o
preconceito dirigido à pessoa considerada deficiente estaria articulado a teorias
psicológicas do desenvolvimento e não necessariamente à ausência de um conhecimento
cientificamente elaborado. Curiosamente, os dados nos mostraram que a escola em que o
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para exemplificar essa possibilidade, vamos nos reportar aos nossos dados, à fala
da professora Renata da escola C. Ela nos relatou que um de seus alunos fora encaminhado
para a avaliação da equipe de psicodiagnóstico porque o menino chegou à escola sem
diagnóstico. Segundo disse, essa ausência era devida à dificuldade da família em aceitar
que ele tinha algum problema decorrente de uma paralisia cerebral que apresentara aos
dois anos de idade. Contou-nos também que o menino, às vezes, deixava-a atônita porque
era bom demais para quem tinha uma paralisia. Ou seja, a criança desenvolvia-se muito
bem no seio da família que, provavelmente, por isso, não procurou diagnosticar um
problema que não via. Todavia, precisou ir para a escola para lá receber o diagnóstico de
PC (Paralisia Cerebral). Nessa instituição, desempenhava-se bem, a ponto de deixar a
professora atônita ao saber do diagnóstico de paralisia cerebral. Somente depois que soube
da lesão é que a professora começou a desconfiar da deficiência da criança. A família não
buscou um diagnóstico porque não sentiu essa necessidade. Mas sendo a escola uma das
instituições em que emerge a deficiência por conter as condições em que ela se forja, lá a
criança recebeu o rótulo e tudo que ele traz consigo. Por isso, concordamos com a
afirmação de Vygotsky (1997) de que, em nossas escolas, podemos fabricar deficientes.
Esse é um caso que ilustra a maneira como a instituição escolar consegue forjar e difundir
o conceito e a própria deficiência. Isso ocorre porque, ao naturalizar o padrão que forja, a
escola difunde a idéia de desvio como patologia. Ou seja, a afirmação do desenvolvimento
humano como um processo natural associa-se de modo fundamental à idéia de deficiência
que, por sua vez, corresponde à manifestação do preconceito.
Sendo a matriz naturalista geneticamente ligada à instituição escolar, é de se
pensar que a força da escola é a sua própria força. De fato, dados de outro trabalho
corroboram essa afirmação. Tunes e colaboradores (2004) realizaram um estudo com
vários grupos de mães e líderes da Pastoral da Criança – CNBB, de diferentes localidades
do Distrito Federal e do Rio de Janeiro. Os dados daquela pesquisa mostraram que, as
comunidades em que a escola tem maior força como orientadora de sua conduta em relação
à promoção do desenvolvimento de seus filhos são as que mais se aproximam da visão
naturalizada de desenvolvimento. Nas comunidades em que a vida não é pautada pela
busca da escolarização das crianças, como é o caso das mães de Acari, no Rio de Janeiro, a
visão predominante é bastante próxima da perspectiva histórico-cultural.
Vimos que o surgimento da escola, a consolidação do sentimento de infância e do
conceito de criança como adulto em formação bem como a emergência da psicologia do
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que não pode ser apreendida por um conceito. Ao se aproximar da pessoa e estar disposto a
se surpreender com ela, ocorre o afastamento da falta ou da deficiência. Com isso, “busca-
se compreender a pessoa e enxergar suas possibilidades de desenvolvimento, a despeito da
anomalia que apresenta (p. 13)”. Não se trata apenas de advogar a entrada e permanência
da pessoa na escola ou no fluxo da normalidade, “mas de mudança, de conversão de
mentalidade, de instituição de novas relações com as pessoas deficientes (p. 13)”. Os
autores afirmam que a inclusão verdadeira só pode ser levada a efeito se a deficiência
deixar de ser vista como uma propriedade individual e passar a ser entendida como um fato
da relação social. Essa visão social do fenômeno pede uma educação com base na
comunicação coletiva, na cooperação e nas relações sociais que se estabelecem entre as
pessoas consideradas deficientes e as demais.
Para que exista a possibilidade dessa inclusão verdadeira, a escola contemporânea
requer uma reforma estrutural profunda. Certamente podem existir outros caminhos, mas
recorremos ao que Illich (1976a) nos aponta: o que se ancora na convivencialidade,
entendida como uma inversão da relação homem-ferramenta. A escola convivencial deixa
de ser um instrumento a dominar o homem, propicia condições para que as pessoas
participem na criação da vida social.
Uma das características da escola convivencial seria o seu enraizamento na vida
concreta das crianças a que ela se destina. Também deveria ser considerada a criança real e
não a fictícia para que possam ser criadas as possibilidades de atender às suas reais
necessidades. As crianças vivem em agrupamentos sociais; logo suas necessidades aí se
enraízam. A escola convivencial permitiria reencontrar a confiança das pessoas na vida em
comunidade para que assumam a condução de suas próprias vidas. Isso significa que cada
comunidade poderia pensar e criar a escola que atenda às necessidades de suas crianças
sem desenraizá-las ou seqüestrá-las da sua vida concreta, sem levá-las ao exílio. (Illich,
1976b).
Uma escola pensada e criada a partir da realidade de cada comunidade seria
aquela em que se afirmasse a primazia da criança em lugar da lógica do mercado. Haveria,
necessariamente, uma diversificação no currículo que seria elaborado para cada realidade
em que se vivesse. Implicaria também a valorização de outras formas de conhecimento e
não somente aqueles conhecimentos escolares validados pela ciência. Parafraseando Illich
(1976a), numa escola convivencial, as pessoas dominariam o saber escolar e não seriam
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infantil encontradas em cada uma das matrizes teóricas, não pretendemos rechaçar o
modelo naturalista para, em seu lugar, prescrever a teoria histórico-cultural como uma
panacéia. Se a tornamos prescritiva fazemos dela uma ferramenta anticonvivencial na
medida em que nos tornamos reféns de seus pressupostos. Além disso, temos a clareza que
alguém poderia facilmente apoderar-se do discurso do respeito à diversidade para, por
exemplo, justificar a desigualdade. Sabemos também das possibilidades de um
conhecimento produzido de maneira comprometida com a ética ser utilizado de modo
espúrio. Contudo, é forçoso admitir que se um conhecimento tomado como pano de fundo
para as práticas educativas permite criar, abrigar e alimentar o preconceito, embora seja
cientificamente válida, do nosso ponto de vista, não é eticamente verdadeiro.
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