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Desenvolvimento e
aprendizagem na Infância
Psicologia
Desenvolvimento e aprendizagem na infância
Licenciatura em Pedagogia
–Modalidade a Distância –
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA
LICENCIATURA EM PEDAGOGIA – MODALIDADE A DISTÂNCIA
Ministro da Educação
José Mendonça Bezerra Filho
Reitora da UFMT
Myriam Thereza de Moura Serra
Vice-Reitor da UFMT
Evandro Aparecido Soares da Silva
Pró-Reitor Administrativo
Bruno Cesar Souza Moraes
Pró-Reitora de Planejamento
Tereza Mertens Aguiar Veloso
Pró-Reitor de Pesquisa
Germano Guarim Neto
Secretário da SETEC/UFMT
Coordenador da UAB/UFMT
Alexandre Martins dos Anjos
Psicologia
Desenvolvimento e aprendizagem na infância
Licenciatura em Pedagogia
–Modalidade a Distância –
CONSELHO EDITORIAL
M838p
Andrade, Daniela Barros da Silva Freire.
Psicologia./ Daniela Barros da Silva Freire Andrade. -- Cuiabá:
Central de Texto: EdUFMT, 2010.
ISBN 978-85-88696-79-2
CDU 159-9 : 37
Central de Texto
Editora Maria Teresa Carrión Carracedo
Produção Ricardo Miguel Carrión Carracedo
Projeto gráfico do miolo Helton Bastos
Paginação Maike Vanni
Revisão para publicação Henriette Marcey Zanini
DESENVOLVIMENTO
E APRENDIZAGEM NA INFÂNCIA
CONTEXTUALIZAÇÃO 9
INTRODUÇÃO 11
CONSIDERAÇÕES 85
REFERÊNCIAS 87
Olá!
Embora meu último sobrenome seja Andrade, meus alunos me conhecem como
Daniela Freire. Sou psicóloga, com mestrado em Psicologia Social e doutorado em
Psicologia da educação.
Tenho certeza que esse reencontro renderá muitas inspirações para o bem de
todos nós.
Abraço!
CONTEXTUALIZAÇÃO
A Parte II do fascículo de Psicologia se destina à discussão em torno das
contribuições desta ciência para a compreensão dos processos de desenvolvimento
e aprendizagem em crianças. o que está em jogo nesta leitura é a compreensão de
como nos tornamos seres diferenciados.
Por isso, tomaremos as noções de indiferenciação e diferenciação, apontadas
pelos teóricos aqui abordados, como uma espécie de orientação para a organização
do raciocínio relativo ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor.
Além disso, esta parte deve ser compreendida em seu potencial de diálogo com
as Partes I e III. Isto porque, se na Parte I desvenda-se os principais conceitos da
Psicologia, auxiliando a compreensão dos apresentados na Parte II, na III propõe-se
ao leitor, com base na Psicologia Social, discussão sobre a produção da subjetividade
social articulada com a subjetividade individual, em um exercício de ir-e-vir entre o
individual e o social que começa a ser introduzido agora.
A especificidade desta Parte II se refere à discussão acerca das contribuições
interacionista e sociointeracionista à Educação e, por isso, ressalta-se a importância
da interação social articulando tais fenômenos com o processo representacional.
Este fascículo também objetiva incentivar o estudante a uma aproximação
orientada ao desenvolvimento de sua capacidade de análise do comportamento
infantil, bem como dos aspectos apontados pela teoria, que estão retratados nas mais
variadas narrativas dedicadas ao público infantil.
Outro objetivo a ser destacado se refere à possibilidade de autorreflexão do
estudante associando à sua trajetória de vida desde sua condição de infante, passando
pelo processo de construção de sua subjetividade, até chegar à sua atuação como
educador.
Dessa forma, está presente nestes escritos um desejo de que o estudante,
ao analisar os indicadores do processo de desenvolvimento e aprendizagem das
crianças, supere a dicotomia do eu e do outro. Isto implica dizer que a criança da qual
os textos tratarão é, ao mesmo tempo, aquela com a qual se trabalha e aquela que se
transformou em adulto, o próprio educador.
10 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
INTRODUÇÃO
Ao explorar os escritos desta Parte II, uma expressão, comumente utilizada
na Educação das crianças, será desenvolvida a partir do olhar da Psicologia do
Desenvolvimento e Aprendizagem. Ei-la: Educar cuidando1.
Essa expressão foi cunhada com base na constatação de que o trabalho educacional
com crianças de até dois anos de idade, em geral, é pouco reconhecido. Especialmente
os bebês são considerados dentro de uma prática de cuidados rotineiros dissociados
de sua função educativa.
Um dos fatores que contribuem para tal dissociação se refere à separação entre a
definição de creche e pré-escola fundamentada na idade da criança2,que parece
ser apropriada pela comunidade em geral, tomando por base a dicotomia presente
entre o cuidar e o educar. Nesse particular, pré-escola se aproxima das práticas
alfabetizadoras, como que em um arremedo da prática escolar, e a creche se define a
partir do referencial do cuidado materno. Em outras palavras, quanto mais próximo
ao modelo escolar adulto, maior é o status do profissional e do trabalho em si. Essa
lógica se aplica tanto para a relação entre creche e pré-escola quanto para a relação
entre ensino fundamental e ensino médio, e entre ensino médio e superior.
Uma das consequências perversas dessa dicotomia se traduz na falta de
reconhecimento do profissional, neste caso do profissional de creche, mas não só
ele, como educador. Concomitantemente, da desvalorização de seu saber e de sua
prática. Esse movimento perverso de negar a função educacional da creche contribui
para que muitas delas se constituam como lugar de guarda, uma espécie de depósito
de crianças.
A expressão educação na infância,de certa forma, intenta a superação da dicotomia
entre creche e pré-escola, entre o cuidar e o educar, concebendo que o cuidado
à criança é inerente à ação de educar. Mesmo assim, a invisibilidade do trabalho
educativo com crianças de até dois anos permanece. Essa cristalização do senso
comum sugere uma investida em outro tipo de argumentação, dessa vez voltada para
aanálise do processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças.
Ao conhecer os referenciais teóricos que têm sustentado o trabalho da educação com
crianças,na perspectiva interacionista e sociointeracionista, o leitor poderá responder à
seguinte pergunta: De que forma pode se dar o trabalho educativo com elas?3
Para responder a esse questionamento, é preciso sublinhar os indicadores do
desenvolvimento e da aprendizagem, evidenciando a dinâmica da construção da
consciência que se dá ao longo dos primeiros anos de vida.
Em termos práticos, é preciso visitar Piaget, Wallon e Vygotsky e percorrer as
trilhas do processo de desenvolvimento e da aprendizagem por eles identificadas.
14 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A Psicologia do Desenvolvimento se dedica à descrição e à exploração das
mudanças psicológicas que o ser humano sofre ao longo do tempo.
A busca implica descrever e compreender as transformações sofridas pelo ser
humano, sobretudo na infância, período em que se estruturam as bases da vida
psíquica. Em atenção à importância da infância na constituição do psiquismo, muitas
vezes nos valemos da Psicologia Infantil ou da Criança como sinônimo de Psicologia
do Desenvolvimento.
Como toda ciência, a Psicologia do Desenvolvimento deve ser compreendida
como invenção ou construção cultural.
Autores como Kessen (1978) e White (1986) acreditam que, por conta de fatores
históricos, culturais e sociais importantes, a Psicologia Infantil se desenvolveu a partir
do conceito de criança, sobretudo da criança americana, sem atentar aos outros
conceitos de infância e organização familiar e social.
White (1986) enfatiza o processo dialético entre o conceito de sociedade e de
Psicologia da Criança e, por que não dizer, de infância6. Isso enseja que qualquer
discussão sobre desenvolvimento e práticas educacionais está vinculada a valores
partilhados culturalmente.
A princípio, com os trabalhos de Gesell (USA) e Binet (França), preocupou-se
em organizar extensas escalas de desenvolvimento passíveis de seremutilizadas na
avaliação psicológica de crianças de diferentes culturas e em diferentes condições
sociais. Os estudiosos objetivavam medir e comparar o desenvolvimento da criança
tomando em conta a escala de desenvolvimento padrão. As crianças cujos resultados
coincidissem com o esperado seriam consideradas “normais”.
A concepção de normalidade e de patologia do desenvolvimento infantil passou
a ser utilizada como referência importante para o trabalho educacional, sendo,
posteriormente, desencorajada pela perspectiva crítica que influenciou a Pedagogia
e a própria Psicologia7.
Ao invés de medir e comparar o desenvolvimento infantil, a Psicologia do
Desenvolvimento, na atualidade, preocupa-se em:
6 Sobre esta relação observar a contribuição de Philippe Áries em História Social da Criança e da
Família.
7 Sobre a relação da Psicologia com a Pedagogia ler: FREITAS, M. T. A. de. Vygotsky & Bakhtin.
Psicologia e educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1995
16 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Medir e comparar são termos que possuem uma conotação de desenvolvimento
como produto quantificável. Descrever e explicar, por sua vez, são termos associados
a uma conotação qualitativa e processual.
Na primeira, tem-se o objetivo de universalizar os padrões do desenvolvimento
segundo a faixa etária. Na segunda, mesmo prevendo estágios de desenvolvimento,
o que importa é a ordem com que estes se dão, e não necessariamente a idade em
que eles se manifestam na criança. Com isso, surge uma faceta da Psicologia do
Desenvolvimento mais preocupada com as contextualizações históricas, culturais e
sociais da criança e de seu desenvolvimento8.
Pesquisadores que observam o comportamento infantil em países de terceiro
mundo, afirmam que existem vários fatores biológicos e psicológicos que
influenciam o desenvolvimento infantil diferindo-o do das crianças de países mais
ricos. Entre esses fatores estão as características de gênero, idade gestacional, peso
de nascimento, ordem de nascimento, saúde, condições nutricionais pré e pós-natal,
bem assim fatores de ordem biológica diversos.
Existem, também, características da estrutura doméstica, como o grau de
satisfação do bebê, a razão adulto/criança, a mistura de crianças de várias idades, a
presença ou ausência de múltiplos agentes de cuidado infantil, entre outros.
Ao analisar esses fatores, Werner (1984) chegou à conclusão de que, pelo
mundo todo, o cuidado exclusivo das crianças por suas mães não constitui regra.
Tradicionalmente, famílias dos países orientais dividem o cuidado dos bebês com as
mães, assistidas pelo irmão mais velho, avós e outros parentes cujo tempo não seja
intensamente valorizado.
Mudanças contemporâneas no ocidente industrializado têm levado a um aumento
da divisão do cuidado à criança por mulheres trabalhadoras nos EUA e na Europa,
porém os agentes substitutos tendem a variar, de acordo com a classe social.
A densidade demográfica, assim como a estratificação econômica, afeta o
contexto do cuidado com a criança. Sob condições de alta fertilidade e mortalidade
infantil, prevalecentes nos países de terceiro mundo, crianças crescem com grande
número de irmãos mais velhos e primos. Suas babás, usualmente, são as irmãs mais
velhas, designadas a dar assistência aos irmãos mais novos, em detrimento de suas
características e necessidades infantis e, não raro, de seu processo de escolarização.
Diante dessas considerações, pode-se concluir que, sendo a Psicologia do
Desenvolvimento considerada construção cultural, assim como as teorias que produz,
o fenômeno por ela estudado deve ser analisado segundo as mesmas prerrogativas.
13 Para leite (1994), conflito sociocognitivo ocorre em situações sociais nas quais as previsões e
antecipações das crianças são contestadas ou anuladas pelas observações que elas próprias realizam
em seguida. Nesse sentido, tem-se que, para a perspectiva piagetiana, as interações sociais não são
geradoras de novos sistemas ou formas de conhecimento,mas suscitam certas situações de conflito
que podem propiciar novas estruturações cognitivas.
14 Para saber mais sobre o método de pesquisa adotado por Piaget, ver sobre provas piagetianas.
As opções de referência são variadas. Uma delas é: RAPPAPORT, C.R et al. A idade escolar e a
adolescência. v.4. São Paulo:EPU, 1982.
22 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Como tendência geral, pode-se adiantar que a inteligência e o conhecimento
serão tomados como resultado da mútua relação entre os fatores determinantes
do desenvolvimento, bem assim de sucessivos processos de estruturação das ações
mentais. Para a compreensão deste último, torna-se necessário o entendimento de
conceitos como inteligência, conhecimento, determinantes do desenvolvimento,
hereditariedade, esquema, estrutura, adaptação, equilibração, assimilação,
acomodação, centração e descentração, reversibilidade e irreversibilidade, e estágios
do desenvolvimento.
❶ Inteligência
❷ Conhecimento
❸ Determinantes do desenvolvimento
►► o ambiente físico;
►► a influência social; e
►► a equilibração.
❹ Hereditariedade15
❻ Estrutura
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 25
Uma estrutura é um sistema de transformação que comporta leis
enquanto sistema (por oposição às propriedades dos elementos) e que
se conserva ou se enriquece pelo próprio jogo de suas transformações,
sem que estas conduzam para fora de suas fronteiras ou façam apelo
a elementos exteriores. Em resumo, uma estrutura compreende os
caracteres de totalidade, de transformação e de autorregulação.
(PIAGET, 1970, apud GOULART, 2000, p.18)
Processo que se torna necessário toda vez que o ambiente físico e social coloca o
sujeito diante das questões para as quais ele não tem resposta, rompendo com seu
estado de equilíbrio.
O sujeito, perante uma situação problema, busca comportamentos mais
adaptativos e, nesse processo, constrói conhecimento. Na perspectiva piagetiana, o
processo de adaptação à realidade externa depende da construção do conhecimento
que se processa a partir da equilibração majorante, o que proporciona uma adaptação
cada vez mais completa e eficiente.
A compreensão do conceito de equilibração majorante passa pelo entendimento
de que a noção de equilíbrio, na teoria piagetiana, está associada ao equilíbrio
progressivo ou majorante que não atinge jamais seu estado final de equilíbrio,
dando a entender que a noção de desenvolvimento é vista como infinita em sua
construção de novas estruturas.
O equilíbrio é apresentado como tendência inerente ao organismo, que luta
para estabelecer um equilíbrio de forças constantemente móvel e estável dentro do
organismo e da psique.
26 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Além disso, é preciso lembrar que a noção de equilibração está estreitamente atada
à noção de reversibilidade16,que rege os processos mentais e intelectuais superiores.
Mais especificamente, o processo de equilibração, responsável pela capacidade
adaptativa do sujeito, é motivado por situações novas que, ao mobilizarem uma
resolução, se utilizam de estruturas mentais já construídas ou, se necessário,
modificam-nas. Para tanto, é preciso a ação de dois processos complementares:
assimilação e acomodação. Ambos os processos são presentes ao longo de toda a
vida do sujeito.
16 Uma criança que apresenta fortes características egocêntricas não consegue, relativizar, isto é,
conduzir uma operação mental de trás para frente e de frente para trás,como por exemplo: se 4 = 2
+ 2; então, 2 + 2 = 4. Quando isso acontece,diz-se que a criança apresenta uma irreversibilidade no
pensamento. Contrário disso, diz-se que o pensamento é reversível.
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 27
Assimilação se dá quando a tentativa de resolução de uma situação é
realizada com base em estrutura mental já formada. Neste caso, a nova
situação ou o novo elemento é incorporado e assimilado a um sistema já
pronto. (RAPPAPORT, 1981, p.57)
❽ Centração e descentração
❾ Irreversibilidade e reversibilidade
17 No egocentrismo, a criança entende o mundo a partir do seu ponto de vista, somente. O egocentrismo
se manifesta no desenvolvimento cognitivo da linguagem e na socialização, e entra em declínio após
o período pré-operatório.
28 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
❿ Estágios do desenvolvimento
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 29
Os estágios do desenvolvimento cognitivo anunciados por Piaget são assim
caracterizados:
Fonte: Quadro elaborado a partir das informações encontradas em PIAGET, J.; INHLEDER, B. A psicologia da criança.São Paulo:
Bertrand Brasil, 1989;e RAPPAPORT, C. R. Teorias do desenvolvimento: conceitos fundamentais. v. 1. São Paulo:EPU, 1981.
30 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Analisando a caracterização dos estágios, pode-se pensar em um esquema figurativo
sobre a orientação do desenvolvimento e aprendizagem assim sistematizado:
Sobre a capacidade de imitar, a obra piagetiana, esclarece que esta tem sua gênese
no começo da vida. Nos quatro primeiros meses, ela é primitiva, desencadeada em
22 Reações circulares se estruturamquando resultados obtidos por acaso são conservados por
repetição. Rappaport (1981), baseando-se em Piaget (1975), a caracteriza como exercício funcional
adquirido que prolonga o exercício reflexo e alimenta e fortifica um conjunto sensório-motor
com novos resultados. As reações circulares possibilitam a incorporação cada vez maior dos dados do
ambiente, atuando, em nível crescente de complexidade, no processo de adaptação da criança com
o meio. Diz-se reação circular primária porque o conteúdo dos comportamentos está relacionado
com o próprio corpo do bebê e estritamente relacionado com os mecanismos hereditários. A reação
circular secundária ocorre quando a ação da criança está voltada para o meio, com o objetivo de
repetir resultados interessantes; terciária,quando a criança apresenta a conduta de suporte, isto é,
utiliza um objetivo como suporte para conseguir atingir outro.
34 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
uma espécie de contágio23. Aos cinco meses, a imitação passa a ser controlada pela
intenção e se torna comportamento sistemático ainda com sérias limitações, uma vez
que o bebê imita apenas o que já sabe fazer. Nesta etapa, ele não copia modelos novos
e não consegue imitar gestos que correspondem a partes invisíveis de seu corpo.
No início do segundo ano de vida, muitas limitações da capacidade imitativa são
superadas e, aos 18 meses, a criança já consegue imitar modelos ausentes, e tem-se a
emergência da imitação diferida.
A imitação diferida revela a entrada da criança no mundo simbólico, dado
que se sustenta na formação de imagens mentais, preparando a capacidade de
representação.
Por sua vez, o jogo simbólico,ou faz de conta,se desenvolve paralelamente ao
desenvolvimento da capacidade imitativa, e aflora juntamente com a imitação diferida
aos 18 meses. La Taille (2002) chama a atenção para a capacidade de a criança, nesta
idade, já se reconhecer no espelho, indicando a emergência da consciência de si como
objeto perceptível no mundo.
A convergência desses indicadores do desenvolvimento assinala a constituição do
objeto permanente situado no tempo e no espaço, e na relação de causa e efeito. De
maneira geral, pode-se dizer que os primeiros pré-conceitos – esquemas verbais –
nascem dos esquemas sensórios-motores e representam a gênese da capacidade de
a criança situar-se no universo.
Com a diminuição do egocentrismo, a criança é capaz de organizar o real, de
forma a descobrir-se e situar-se como uma coisa entre as coisas, um acontecimento
entre os acontecimentos (PIAGET, 2002).
23 Em berçários, é muito comum ocorrer o choro por contágio, o que leva várias crianças a chorar
ao mesmo tempo. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 35
O repertório comportamental e a organização da vida mental da criança
préoperatória se baseiam inicialmente nos esquemas sensórios-motores e nas
estruturas cognitivas em formação, que sustentam a emergência da função simbólica24.
A função simbólica reforça a interiorização das ações. Tal fato possibilita a
reconstrução de situações passadas através da imagem mental. Dessa forma, pode-
se dizer que o pensamento representativo que emerge no período pré-operacional
possui um aspecto figurativo e outro operativo. O aspecto figurativo se sustenta pela
percepção e pela imagem mental, e o aspecto operativo se refere à ação cognitiva.
Assim, a criança, gradativamente, torna-se pré-operatória, apresentando forte
tendência lúdica e uma despreocupação com a possibilidade de comprovação empírica
de seus julgamentos sobre a natureza, sobre as relações de causalidade, entre outros.
A criança pré-operatória também está despreocupada com a aceitação social de
suas explicações, quase sempre mágicas. Essa dinâmica do pensamento infantil se
caracteriza como egocêntrica.
No pensamento egocêntrico predomina uma visão de mundo construída a partir
do referencial do próprio eu, mesmo que ainda inconsciente de si mesmo. A criança
préoperatória vive seu pensamento, mas não pensa sobre seu pensamento, daí sua
despreocupação com sua veracidade. Em sua concepção, a criança experimenta um tipo
de isolamento de ideias, porque se fundamenta na mágica, na fantasia e na imaginação.
No pensamento egocêntrico, as ideias não são socializadas, não são confrontadas
com as ideias de outras pessoas.
O egocentrismo do pensamento faz com que a criança apresente uma tendência
a pensar que cada um de seus pensamentos é comum a todas as pessoas e, por isso,
pode ser compreendido. Além disso, o egocentrismo se caracteriza pela falta de
recursos cognitivos da criança para considerar, diferenciando e integrando os estados
das coisas, bem como suas transformações.
25 O egocentrismo intelectual diminui quando a criança consegue expor seu ponto de vista como um,
apenas, no conjunto de todos os pontos de vista possíveis. Ou quando consegue tomar conhecimento
de si própria como sujeito e desligar o sujeito do objeto, de maneira a não mais atribuir aos últimos
as características do primeiro. Ou ainda quando deixa de considerar seu próprio ponto de vista como
único possível e consegue coordená-lo com o conjunto dos outros (RAPPAPORT, 1981, p. 47-48).
26 Se se pedir a umacriança que organize vários objetos, por exemplo carrinhos e aviõezinhos, ela
não irá separá-los em duas categorias, mas, sim, organizá-los em uma fila interminável,que pode
atravessar uma pequena saleta. Não há noção de classes ou categorias porque ainda não se constituiu
a relação de inclusão. A criança trabalha com pré-conceitos.
27 Essa característica explica porque uma criança pode querer tomar banho e vestir uma determinada
roupa, porque associa esse ritual com a chegada do pai, independentemente de ter percebido a
dimensão temporal desse episódio.
28 Provavelmente por essa característica, é difícil para a criança admitir que uma história possa
ter mais de um jeito de ser contada, fazendo com que ela apresente certa intolerância a qualquer
modificação do enredo, como se esta fosse descaracterizar a história em foco, transformando-a em
outra história.
29 Provavelmente por essa característica, é difícil para a criança admitir que uma história possa
ter mais de um jeito de ser contada, fazendo com que ela apresente certa intolerância a qualquer
modificação do enredo, como se esta fosse descaracterizar a história em foco, transformando-a em
outra história.
30 É comum a criança desenhar uma casa com vista externa e frontal, com detalhes de luz e
mobiliários e até escadarias, como se a parede frontal da casa fosse transparente e permitisse ao
observador ter visão de raios-X como o super-homem. Esse fenômeno indica que a criança: “desenha
conforme entende a situação,e não conforme a vê” (RAPPAPORT, 1981, p. 47).
31 Uma criança,ao ganhar um coelhinho de chocolate na Páscoa, apronta-se para serrar seus
bracinhos. Um adulto ingênuo ou maldoso, a seu lado exclama, com voz de bichinho mimoso: – Ai,
meu bracinho, está doendo!. A criança imediatamente recua e põe-se a chorar, com remorso.
32 Para a criança são os homens, e de preferência o pai, que fizeram os rios, as montanhas, etc...
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 37
A socialização da criança egocêntrica, embora restrita, inclui os familiares e alguns
adultos e crianças. o relacionamento estabelecido é autocentralizado, isso porque
ainda permanece certa indiferenciação entre o “eu” e o “outro”.
O contato estabelecido entre crianças, por exemplo, prioriza um estar junto,e não
um fazer coisas juntas de modo complementar. A esse padrão de relacionamento
em situações lúdicas diz-se jogo paralelo. O jogo paralelo não é uma brincadeira
cooperativa, sendo comum a emergência de situações de confronto, disputa e
conflitos. Não há troca nem ajuda mútua.
Com a diminuição do egocentrismo,ao longo do período pré-operacional, a
cooperação aparecerá e a brincadeira evoluirá para os jogos simbólicos, de imitação
ou de faz de conta. Tanto no jogo paralelo quanto no simbólico observa-se uma
projeção dos esquemas simbólicos e dos esquemas de imitação nos objetos novos,
e, ainda, em um estágio mais elaborado, é possível identificar que a criança realiza
combinações simples de várias representações para compor cenas, bem como
combinações compensatórias que substituam situações proibidas a ela e combinações
liquidantes com o objetivo de lidar melhor com suas emoções, superando seus medos,
por exemplo.
Até os sete anos, o brincar da criança pré-operatória tende a ordenar-se segundo
uma imitação exata da realidade. Além disso, a criança já consegue sustentar um
simbolismo coletivo, isto é, brincar em conjunto com papéis definidos para cada
participante. O simbolismo coletivo, de certa forma, anuncia a emergência do jogo de
regras que irá emergir no período das operações concretas.
A linguagem também se manifesta de forma egocêntrica e, por isso mesmo,
criativa. Esse aspecto da linguagem egocêntrica, associado ao egocentrismo
intelectual, é responsável pelo reconhecimento do período pré-operatório como o
mais inventivo dentre todos. Além de a criança referir-se a si mesma usando a terceira
pessoa do singular, é capaz de criar diferentes palavras para denominar objetos
corriqueiros ou mesmo emoções próprias.
Um bom exemplo de linguagem egocêntrica está no
livro infantil intitulado: Marcelo, marmelo, martelo, de
Ruth Rocha, também em CD, com músicas relacionadas
com as temáticas da história. Veja, igualmente, o livro
infantil O fazedor de amanhecer,
de Manoel de Barros, com
ilustração de Ziraldo. O Reizinho
Mandão,de Ruth Rocha; Suriléia-
mãe-monstrinha, de Lia Zatz;
Quando mamãe virou um monstro,
de Harrison, J. Trata-se de bom
material para discutir a socialização
egocêntrica.
38 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A linguagem da criança egocêntrica se aproxima da linguagem dos poetas,
reiventando os sentidos, como se pode perceber em O fazedor de amanhecer, de
Manoel de Barros (2001, p. 8-9):
40 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Classificação, seriação, correspondência termo a termo são exemplos de
agrupamentos operatórios. Constituem encadeamentos progressivos até atingirem
mobilidade inteiramente reversível, consequentemente possibilidade de dedução
coerente.
Sobre as dimensões social e moral, Piaget e Inhledre (1989) aludem à capacidade
de coordenação de pontos de vista e de cooperação nas ações e nas informações que
possibilitam a socialização do eu. Nas operações concretas, a afetividade se amplia
para além das relações familiares, e os sentimentos morais, inicialmente marcados
por uma obediência relativa à autoridade sagrada, ganham contornos de respeito
mútuo e reciprocidade, noções de justiça.
Nesse contexto, tem-se a emergência da cooperação. Realizar operações conjuntas
é cooperar, porém nem toda ação conjunta corresponde à cooperação. Cooperação
requer ação conjunta, motivada por atingir um objetivo, e se constitui por meio da
realização de operações lógicas coordenadas e conjuntas.
A capacidade de cooperação de um sujeito está diretamente associada com
sua capacidade operatória, ações interiorizadas, reversíveis, que se coordenem em
estruturas totais formando sistemas.
Desta forma, tem-se o sujeito que, embora ainda não prescinda da experiência
concreta para operar deduções, apresenta como característica marcante a
descentração cognitiva, social e moral.
Notas finais
Ao finalizar a apresentação das noções básicas pertinentes à teoria piagetiana, é
preciso destacar, mais uma vez,que a compreensão dos processos de desenvolvimento
e aprendizagem, característicos de cada estágio do desenvolvimento, passa
pela preservação dos conceitos estruturais da teoria. Com isso se quer dizer que a
caracterização dos estágios não se apresenta como produto simplesmente. Estes,
antes de tudo, são processos que se sustentam pela ação dos determinantes do
desenvolvimento que garantem o contínuo processo de equilibração e de constituição
de esquemas e estruturas cognitivas. Assim, pode-se compreender que, no contexto
da Educação Infantil, merecem destaque o estágio sensório-motor, em especial
a questão do objeto permanente, e o estágio pré-operatório, que opera a partir da
capacidade representativa e da função simbólica.
O egocentrismo surge como eixo condutor da análise do desenvolvimento que se
manifesta, inicialmente, no sensório-motor, na forma de um egocentrismo radical e
inconsciente, e se estende ao pré-operacional como egocentrismo intelectual, social
e da linguagem.
A diluição do egocentrismo se dá em função da emergência de esquemas sensoriais
e cognitivos que, paulatinamente, se formam e propiciam uma equilibração cada vez
mais próxima das exigências da realidade, tal qual está formalmente constituída.
Ao compreender estas noções, o leitor poderá se perceber como agente social
capaz de propor situações cujo potencial de estimulação desafie a ação da criança
na direção da reconstrução do conhecimento. E, ainda, ao trabalhar as questões
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 41
indicadas nas notas de rodapé deste texto, o leitor poderá se postar como sujeito
ativo na construção de seu conhecimento, à medida que se apropria do exercício entre
teoria e prática, reinventando sua maneira de aprender e aplicar seus conhecimentos.
Atividade ❶
Como exercício para compreensão da dinâmica do desenvolvimento, procure
identificar as superações e as limitações de desenvolvimento da criança presentes em
cada estágio. Como sugestão, você pode utilizar o quadro assim configurado:
Pré- Operações
Sensório-motor
operatório concretas
Superação 1ª etapa 2ª etapa 3ª etapa 4ª etapa 5ª etapa 6ª etapa
Limites
Atividade ❷
É comum ocorrer de crianças egocêntricas não comunicarem suas intenções e
serem mal interpretadas. Imagine a seguinte cena: um menino de três anos, vestido
de guerreiro com uma espada na mão, oferece outra espada para sua mãe. A mãe,
distraída, conversando com outro adulto, é surpreendida com violento golpe de
espada na cabeça. Converse com seus colegas e interprete a cena à luz do conceito de
egocentrismo. Se você fosse o adulto envolvido nesta interação social, de que modo
agiria com a criança?
REFERÊNCIAS
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 43
44 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A diferenciação pode ser compreendida como a capacidade de nos distinguirmos
de outra pessoa, de nos reconhecermos distintos do outro.
Dito em termos genéricos, até parece que o fato de sabermos nosso nome,e
que não somos a mesma pessoa que nossa mãe ou quem nos materna, já é
o suficiente. Ledo engano. A diferenciação é um processo complexo que concorre
para a construção de nossa identidade e se dá na articulação das dimensões sociais,
cognitivas e afetivas. Pensemos na simples pergunta: quem sou eu?, pois é isso que
está em jogo em Faca sem ponta, galinha sem pé, outra obra de Ruth Rocha. Desta vez,
a pergunta se aplica às questões de gênero, mas também podia referir-se
às questões raciais, mesmo religiosas, classe social e todas as diferenças
que marcam o ser humano e, em seu nome, recebem um significado.
Diante disso, sabe-se que a humanidade tem problemas em
compreender a experiência da diferença como valor humano positivo.
Diante do diferente ou desconhecido, o ser humano é regido pela negação
desse outro que lhe é estranho, em nome da supervalorização, da necessida
de do incremento da autoimagem do eu. Nesse movimento, o outro
é manipulado, ganha valor meramente instrumental e, quando não
se põe a serviço do eu, ele é prontamente descartado.
O que se destaca com isso é que a construção de nossa identidade
se dá em um contínuo, que começa quando nascemos e não tem hora
Imagem do livro Faca
sem ponta, galinha sem
para acabar, está em constante retroalimentação com a cultura e com o processo
pé, de Ruth Rocha. histórico.
Ilustração de Mariana Massarani.
Editora Ática Será que ser menino ou ser menina, hoje, abarca os mesmos significados
que há cinquenta anos atrás? Que outros significados surgiram na cena social que
envolvem a construção de nossa identidade sexual e de gênero? Então, vejamos o que
nos diz Wallon sobre a diferenciação.
33 Para acompanhar a leitura feita por Wallon, é indispensável um esforço para escapar de um
raciocínio dicotômico, que fragmenta a pessoa (ou motor ou afetivo; ou afetivo ou cognitivo), na
direção de um raciocínio que apreenda a pessoa como resultado da integração dessas dimensões
(motor-afetiva-cognitiva). Essas dimensões estão vinculadas entre si e se encontram em interações
em constante movimento; a cada configuração resultante, temos uma totalidade que se expressa na
pessoa (MAHONEY;ALMEIDA,2000).
46 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A obra de Wallon vem sendo requisitada na instância da Educação,
sobretudo da Educação Infantil, e tem fundamentado importantes
pesquisas em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem.
Zazzo (1968, p. 10), ao escrever o prefácio do livro A evolução
psicológica da infância, de Wallon, caracteriza o autor como aquele
que fez ”um eterno esforço para nos arrancar a preguiça das palavras
e dos pensamentos habituais”, um observador, um clínico, um homem
de intuição, tanto ou mais que um experimentador, mas também um
filósofo. Para o próprio Wallon, um psicólogo no sentido mais completo
do termo.
Este texto busca explorar as noções introdutórias da teoria, com
ênfase nos pressupostos básicos e em sua forma de articulação. Uma
vez compreendida a estrutura básica do pensamento walloniano, o
leitor poderá recorrer a outras leituras mais minuciosas sobre a teoria,
sustentando um olhar mais próximo daquele postulado por Wallon.
Neste sentido, o texto inicialmente analisa a concepção de Wallon Henri Wallon
acercado desenvolvimento humano e sua relação com o método de
pesquisa utilizado. Em um segundo momento, enfatiza a regulação
recíproca entre maturação neurológica, motricidade e emoção no
contexto do desenvolvimento humano.
As sínteses apresentadas ao longo do texto procuram retratar, ao menos
minimamente, a articulação teórica em sua complexidade e, neste contexto.
caracteriza os estágios de desenvolvimento, demarcando o processo de construção
da diferenciação da personalidade bem como do pensamento simbólico.
34 A sobrevivência humana seria impossível sem os cuidados constantes de outros atores sociais ao
longo de vários anos. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 47
Dito de outra forma, tem-se que os fatores orgânicos são responsáveis pela
sequência fixa do desenvolvimento, no entanto podem sofrer as influências das
circunstâncias sociais e mesmos individuais nas quais se insere cada sujeito.
Este raciocínio sugere que a duração dos estágios de desenvolvimento possui
caráter relativo e variável, sendo mais determinado biologicamente no início,que,
progressivamente, vai cedendo espaço para a determinação social, para a influência
da cultura e da linguagem na construção da inteligência simbólica.35
A concepção walloniana de desenvolvimento humano também se reflete em
seu método inspirado no materialismo dialético voltado para o estudo das condições
materiais do desenvolvimento da criança, condições estas orgânicas e sociais,a
ponto de analisar como elasedificam o psiquismo, a personalidade. Esta forma de
compreender o ser humano, na perspectiva da psicologia genética36, caracteriza-se
pela “busca do sentido dos fenômenos em sua origem e transformações conservando
sempre sua unidade”. (MAHONEY; ALMEIDA,2000, p 10). Na articulação entre a
Dialética, a Psicologia Comparada37 e a Psicologia genética, Wallon propôs seu próprio
método: a análise genética comparativa multidimensional, e elegeu a observação38 seu
principal instrumento.
Mahoney & Almeida (2000) explicam que o método de análise genética
comparativa multidimensional consiste em fazer uma série de comparações entre
crianças patológicas39 e crianças normais, de crianças normais com adultos normais,
de adultos normais da atualidade com os de civilizações primitivas, de crianças
normais da mesma idade com crianças de diferentes idades, da criança com o animal,
a depender das necessidades da investigação. Essas comparações se sustentam pela
noção de que “[...] o fenômeno é um conjunto de variáveis e só pode ser compreendido
pela comparação com outros conjuntos do mesmo tipo ou semelhantes” (MAHONEY,
ALMEIDA, 2000, p. 16).
Além disso, as autoras acrescentam que as proposições wallonianas consideram que o
desenvolvimento humano é determinado por vários campos funcionais e, daí decorrente,
é multidimensional, o que envolve elementos orgânicos, neurofisiológicos, sociais e
as relações entre eles. Alertam ainda que o estudo do desenvolvimento humano deve
levar em conta a criança contextualizada, em suas relações com o meio. O contexto do
desenvolvimento envolve os recursos do meio ambiente desde o aspecto físico do espaço
até as pessoas próximas, a linguagem e os conhecimentos próprios de cada cultura.
35 Este raciocínio coincide com o processo de maturação neurológica que se inicia com respostas
reflexas e involuntárias para, paulatinamente, com o amadurecimento do córtex cerebral, dar lugar a
funções de maior complexidade, como a linguagem e o pensamento.
36 Psicologia genética – estuda as origens, a gênese dos processos psíquicos.
37 Refere-se à necessidade de o pesquisador buscar comparar seus dados com os dados provenientes
de outras áreas doconhecimento. No caso de Wallon, a Antropologia, a Neurologia, a Psicopatologia
e a Psicologia animal foram os campos de comparação privilegiados.
38 Sobre a observação, o autor acrescentou ser indicado um esforço de objetividade por parte do
observador, possível quando este se esforça por explicitar os referenciais prévios que influenciam
seus olhar e sua reflexão. Caso contrário, os dados de observação não passam de ilusão impregnada
de expectativas do observador.
39 A patologia era considerada uma espécie de lente de aumento que permite enxergar, de forma
acentuada, fenômenos também presentes no indivíduo normal (GALVÃO, 1996,p.33).
48 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Galvão (1996) complementa que, conforme a disponibilidade da idade, a criança
interage mais fortemente com um ou outro aspecto do contexto. essa afirmação
resulta na conclusão de que o meio não é uma entidade estática e homogênea, mas
está, juntamente como a criança, em contínua transformação.
Sobre o ritmo do desenvolvimento para a teoria walloniana, entende-se que este se
dá de forma descontínua, marcado por rupturas, retrocessos e reviravoltas. A passagem
de um estágio para o outro provoca crise em seu processo de transição. Na sequência,
observa-se uma reformulação do comportamento da criança. Para a prática do
docente, é extremamente importante que o professor considere esta possibilidade e
compreenda que as condutas aparentemente desajustadas de seus alunos podem não
passar de períodos de transição do processo de desenvolvimento. O sentido de crise
pode ser exemplificado nas modificações corporais do adolescente, ou mesmo aquelas
sofridas na gravidez. Nestas condições, fica evidente a forma desengonçada, pouco
adaptada e até mesmo desajustada das pessoas. Na gravidez, esse processo se dá em
uma velocidade maior, explícita nos relatos de gestantes do tipo: – “Quando estavam
se acostumando com o trimestre, ele já mudou”. O “estar se acostumando” refere-se
a estar se adaptando às novas condições. O mal-estar causado pelas transformações
se instala em função do desequilíbrio imposto pela nova fase. Se o professor conseguir
ler o comportamento infantil deste ponto de vista, poderá construir um diagnóstico de
seu grupo de alunos mais apurado. Por isso é importante marcar o sentido de crise ou
conflito, que podem ser provocados por fatores exógenos – relativos aos desencontros
das ações da criança com o ambiente exterior – ou por fatores endógenos, quando
gerados pelo efeito da maturação neurológica.
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 49
O desenvolvimento dos estágios ou fases é orientado por três princípios
convergentes, a saber:
►► 1) predominância funcional;
►► 2) alternância funcional; e
►► 3) integração funcional.
Esses estágios são marcados por uma predominância funcional que oscila entre
momentos de predomínio afetivo, relacionado com o subjetivo e com o acúmulo de
energia, e de predomínio cognitivo, correspondente ao objetivo e ao dispêndio de
energia. O caráter intelectual predomina em etapas em que a ênfase da criança está
na elaboração do real e no conhecimento do mundo físico. O caráter afetivo e das
relações com o mundo humano se relacionam com as etapas dedicadas à construção
do eu, a personalidade.
Outro princípio que rege o desenvolvimento é o da alternância funcional, que
se manifesta na sucessão dos estágios quando uma nova fase inverte a orientação
das atividades e do interesse da criança. Assim, tem-se uma orientação do eu
para o mundo, das pessoas para as coisas, altera-se a dominância da afetividade e
da cognição sem, no entanto, estas se manterem como funções exteriores uma da
outra. Elas, segundo Galvão (1996), ao reaparecerem como atividades predominantes
em dado estágio, incorporam as conquistas realizadas pela outra, no estágio
anterior, construindo-se reciprocamente, num permanente processo de integração e
diferenciação graças à ação do princípio da integração funcional.
No princípio da integração funcional, as funções mais evoluídas e de
amadurecimento recente não suprimem as funções mais arcaicas, mas exercem
sobre elas um controle. Esse aspecto da maturação neurológica se repete na dinâmica
psicológica. Desta forma, as novas possibilidades das funções psíquicas, que surgem
em cada estágio do desenvolvimento, não suprimem as capacidades anteriores, mas
integram-nas. Enquanto a integração não se dá, as funções ficam sujeitas às aparições
intermitentes ou, até mesmo, surgem de forma desajustada de objetivos exteriores
em um exercício de si mesmas – os exercícios de uma capacidade recém-adquirida
são repetidos inúmeras vezes sem uma finalidade aparente. A esse fenômeno se
denomina jogo funcional.40 Por fim, a integração funcional não se dá de maneira
definitiva, uma vez que, com o fluxo contínuo de desenvolvimento, os centros de
controles das atividades psíquicas podem ser desintegrados.
Em termos técnicos, desenvolvimento é sinônimo de diferenciação. já em termos
práticos, é preciso se despojar de certa sensibilidade para perceber quando ocorrem
os pequenos saltos do desenvolvimento rumo à autonomia, portanto a diferenciação
se dá. Senão veja:
40 Jogo funcional é considerado o tipo de atividade mais primitivo de atividade lúdica (GALVÃO,
1996)
50 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Senti meu filho, parede-e-meia, às minhas costas.
Sentia-o nesse afeto-rural-menino, na cintura. Igual, sim, sinto-
me como sentia o corpo de meu pai chumbado no meu peito.
Garupa do meu cavalo no equilíbrio de Murillo.
Garupa de meu pai – seu cavalo café - no meio-enleio-cavaleiro que eu era...
Eis quando:
– Paiê, vou acordar primeiro da noite voltar
– Vou passear de cavalo, à bessa, mesmo.
– De cavalo, não, meu filho, à cavalo, viu!
– Olha, paiê, nem de nem a, no cavalo, tá!
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 51
E esse frio que escorrega nos meus sentidos
vai se esconder no quentinho em que Murillo
os recobriu de aperto e abraço, engarupados.
Seu coração de tic-tac ficou tamborilhando
emoçãozinha dentro de mim.
Na garupa, hoje,
carrego a tatuagem de seu corpo verdoengo
empedrada da trama-entranha do meu poema.
(SILVA FREIRE, 1991, p. 252-253)
41 A emoção da qual fala Wallon não deve ser confundida com afetividade. A emoção é reação
fisiológica,que apresenta alteração orgânica tal como o aumento do batimento cardíaco, a sudorese
e a descarga de adrenalina, e pode ser apresentada como reação postural na exteriorização da
afetividade. Afetividade é um conjunto de processos psíquicos que acompanham as manifestações
orgânicas da emoção, canalizando-a para dentro do próprio indivíduo.
A emoção carrega a possibilidade da articulação do biológico com o social,à medida que promove
a interação da criança com o meio ambiente, com o processo de maturação neurológica e o
desenvolvimento psicológico. A imitação surge como mecanismo propiciador da transferência entre
o biológico e o social.
42 Mal-estar está associado à fome, cólica ou desconforto postural, que provocam espasmos,
contrações e gritos. Bem-estar refere-se à saciedade, sabor do leite, contato com o seio materno,que
provocam movimentos menos tensos e mais harmoniosos. Os olhos se abrem bem, os lábios
esboçam um sorriso e, ainda, quando a satisfação é intensa, as pernas se mexem como se estivessem
pedalando no vazio. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 53
As emoções são a exteriorização da afetividade e provocam transformações
que se orientam em direção ao desenvolvimento da atividade intelectual que, uma
vez instalada, tenderá para o controle da potência totalizadora e contagiosa das
atitudes emocionais43. Isso ocorre porque a criança consegue tornar os significados
das emoções mais precisos e autônomos, passíveis de ocorrer por meio do controle
estabelecido no nível intelectual, por volta dos três anos.
Embora a emoção seja fato fisiológico em seus componentes humorais, é também
comportamento social, à medida que estabelece uma comunicação rudimentar com
o ambiente a partir da expressividade dos primeiros sinais orientadores para o mundo
humano, como a manifestação de alegria, fúria, sorriso, por exemplo. Neste sentido,
pode-se entender a emoção como uma linguagem antes da linguagem (ZAZZO,apud
WALLON, 1968, p. 14).
No primeiro ano de vida, a emoção é comportamento primordial na relação da
criança com o meio social. Aliás, a emoção se nutre do efeito que causa no outro,
das reações que as emoções suscitam no ambiente,que funciona como uma espécie
de combustível para sua manifestação. Neste sentido, pode-se dizer que a emoção
possui um poder de contágio que a retroalimenta. Quando as emoções se diluem nas
relações interindividuais, sendo indiscriminadamente compartilhadas pelos atores
sociais, fala-se de contágio emocional.44 Diante do contágio emocional,a noção de
individualidade se dilui em meio à partilha coletiva da emoção, o que estabelece uma
sintonia afetiva e uma comunhão de sensibilidade.
As emoções também são compreendidas como a primeira forma de adaptação da
criança ao meio, e propiciam, antes da emergência da linguagem, o acesso da criança
ao universo simbólico da cultura, uma vez que é o mecanismo inicial que assegura as
relações sociais.
Ao longo do desenvolvimento, a emoção rebusca cada vez mais seus meios
de expressão, utilizando-os como instrumento de socialidade cada vez mais
especializados.
43 Ataque de choro, birras, surtos de alegria, ciúmes frenéticos, ligações afetivas exclusivas,
ambições mais ou menos vagas ou exigentes, por exemplo.
44 Bastante comum na relação mãe-bebê,mas também nos rituais religiosos, em eventos
musicais e comícios.
54 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Para a perspectiva walloniana, o desenvolvimento humano é motivado pela ação
das emoções, que se expressa através da motricidade, nos contextos das relações
sociais. Este processo recebe importante infl uência do processo de maturação
neurológica, que se orienta inicialmente pela maturação no nível medular, seguida
do nível mesobulbar até o nível cortical. Essas observações podem ser reconhecidas
como a sequência psicogenética de aparecimento dos diferentes tipos de movimento
(DANTAS, 1992),e podem ser assim resumidas:
56 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
B Desenvolvimento cognitivo (pensamento)
►► Condição inicial – sincretismo subjetivo
(percepção e pensamento indiferenciados, confusos e globais dos objetos)
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 57
C Desenvolvimento afetivo (personalidade)
►► Condição inicial – indiferenciação
3. Imitação
necessidade de auto-substituir
os outros, passando a compor
papéis e personagens em
um exercício de se tornar
preferido ou desejado. Ao
mesmo tempo, possibilita
ampliação e enriquecimento
das possibilidades da pessoa.
Reprodução enriquecida da
pessoa-modelo.
58 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
1.3 | INDICADORES DO DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO NA
PERSPECTIVA WALLONIANA
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 59
❷ Olhar, preensão e marcha
❸ Imitação45
❹ Esquema corporal
❺ Simulação
Notas finais
Este texto procurou sistematizar as principais contribuições de Henri Wallon no
que se refere ao entendimento do desenvolvimento psicológico. Para tanto, destaca
a concepção de desenvolvimento e sua articulação com o método de estudo do
autor, com o objetivo de reconstituir minimamente as bases iniciais do pensamento
walloniano.
Foi preciso destacar a íntima relação entre emoção e motricidade, além da
articulação destas com o processo de maturação neurológica, em um exercício de
entendimento coordenado das diferentes forças propulsoras do desenvolvimento.
Os estágios de desenvolvimento, segundo a proposição de Wallon, foram
apresentados intentando assegurar suas relações com a maturação neurológica e
retratar as diferentes possibilidades de explicar o desenvolvimento humano, seja pelo
recorte da motricidade, da cognição, da afetividade, seja pela articulação entre elas.
Finalmente, optou-se por evidenciar alguns marcos do desenvolvimento humano,
presentes nas proposições wallonianas, de grande interesse para a Educação Infantil,
com especial destaque para a imitação, ferramenta psicológica útil para a emergência
das representações.
De forma figurada, pode-se dizer que a ponta do iceberg da Teoria da Pessoa
Completa foi delineada com o objetivo de contribuir para que o leitor se sinta
encorajado a se lançar em direção a um maior aprofundamento da teoria.
62 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
PROPOSTAS DE ATIVIDADES E LEITURA
Atividade ❶
Escreva livremente sobre como, no seu entender, dá-se o desenvolvimento de um ser
humano.
Após a leitura de Wallon, volte ao que você escreveu e procure identificar o enfoque
dado no seu texto. Estabeleça um paralelo entre a sua tentativa e a de Wallon. Assim
você poderá compreender o desafio a que ele se propôs ao estudar a pessoa completa.
Atividade ❷
Construa um quadro-síntese com os seguintes cruzamentos: amadurecimento
neurológico e emergência de competências do desenvolvimento.
Competências
REFERÊNCIAS
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 63
64 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
As funções psíquicas não se desenvolvem como se
fossem esferas independentes do contexto social e histórico.
Aliás, antes mesmo de seu nascimento, o ser humano
já existe, e muitas coisas operam a favor da construção
de sua identidade. Tem sempre alguém esperando por
ele, falando sobre o que o aguarda, conferindo suas
características, significados herdados de outras gerações,
sem que tenhamos consciência do que está sendo dito
a nosso respeito. Após o nascimento, serão os adultos
que guiarão as ações do pequeno para que, só depois, o
filhote de homem, já operando pelo pensamento verbal,
consiga atuar segundo sua capacidade de planejamento,
simbolização e significação. Este é um longo processo, cuja
Imagem do livro O menino
e seu amigo, de Ziraldo. explicação Vygotsky tomou como desafio.
Editora Melhoramentos (2003)
Como companhia na travessia, destaquei o sensível e emocionante livro de Ziraldo,
intitulado O menino e seu amigo,em homenagem a nossos avós.
Uma possível resposta para essa pergunta pode ser identificada em Freitas
(1994,1995) e se refere à releitura possível acerca da Psicologia, mediante seu
potencial interdisciplinar,que permite a superação da dicotomia individual e coletiva,e
mediante diálogo estabelecido entre o indivíduo, a cultura e a sociedade. Além disso,
66 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Vygotsky construiu uma abordagem que colocou a educação como atividade humana
fundamental, articulada com uma teoria do desenvolvimento psicológico.
Neste texto, o leitor poderá encontrar breve explicação sobre alguns dos conceitos
vygotskyanos, buscando articulá-los com preocupações educacionais típicas da
Educação Infantil. Além da interlocução teórica desenvolvida, também será possível
uma aproximação mais interativa com o leitor que consegue extrapolar a leitura e
interpretação do texto. Para isso, será preciso que o leitor acompanhe as notas
de rodapé, quando poderá entrar em contato com notas reflexivas, propostas de
exercícios práticos pensados com o objetivo de potencializar a compreensão e
contribuir para o processo de formação do docente.
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 69
1.2 | PRINCIPAIS CONCEITOS
Símbolo – palavra ou imagem que designa outro objeto ou qualidade, por ter com estes uma relação
de semelhança; alegoria, comparação, metáfora.
54 Essa situação retrata um momento de elaboração de significado em torno da representação de
creche. configura-se em uma negociação rica de conteúdos simbólicos, alguns deles internalizados
ou em via de internalização. é possível perceber como a criança pode evocar episódios de
interações sociais já internalizadas para se assegurar da atribuição do significado.
Procure identificar situações como essas no seu cotidiano, registre-as e analise-as à luz da teoria.
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 71
Ana – Quéche!(gritando)
Luís – Creche!
Pedro – É escolinha.
Ana – Não é escolinha... é quéche (corpo ereto, olhar bravo.)
Luís – Creche!
Minha mãe falou que é escolinha...
Pedro – um dia minha mãe falou que aqui é escolinha!
Ana – Não falou!
Pedro – Falou!
Ana – Mentira! (gritando)
Educadora – Pedro, oh Pedro! Creche é escolinha? Creche é escola?
Ana – Não é creche!
Educadora – Pedro, é escolinha e creche, não é?
Pedro – Não! é Escola!
55 Na literatura brasileira você irá encontrar a grafia de Vygotsky com y e com i. O uso de y refere-se
a influência dos textos originais do autor traduzidos pelo inglês, e o uso de i indica a influência das
traduções em espanhol.
74 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
• 2º estágio: psicologia ingênua – revela a experiência da criança com propriedades
físicas do próprio corpo e dos objetos à sua volta, além da aplicação desses
instrumentos. Este estágio circunscreve o primeiro exercício de inteligência prática
da criança e as primeiras manifestações corretas das formas e estruturas gramaticais
antes que a criança tenha entendido as operações lógicas que representam.
• 3º estágio: signos exteriores, operações externas– que são usadas como auxiliares
na solução de problemas internos. Neste estágio, a criança conta com os dedos, faz
uso de recursos auxiliares para se lembrar das coisas ou eventos, o que corresponde à
função da fala egocêntrica.
56 Neste ponto, é oportuno retomar o debate acerca da construção da imagem social do tubarão,
ou da creche, ambos apresentados neste texto.
57 “Com isto quero dizer que o indivíduo não se encontra simplesmente “parado” diante de uma
certa “vitrine” de significações que nela se expõem, entre as quais lhe resta somente fazer uma eleição.
Estas significações – representações, ideias, conceitos – não estão esperando pacientemente para
serem eleitas em sua sorte, penetram nas relações pessoais que configuram o círculo da esfera de
comunicações reais. Se o indivíduo se vê impulsionado a escolher ante determinadas condições de
vida, sua escolha não se dá entre as significações, mas entre posições sociais em conflito, que se
manifestam e conscientizam através destas significações. Na esfera das representações ideológicas,
este processo é inevitável e de caráter geral somente dentro de uma sociedade de classes. Mas,
também se mantém ainda nas condições das sociedades socialistas e comunistas, à medida que se
manifestam as particularidades da vida individual dos homens, as particularidades de suas relações
pessoais no conflito, sua forma de comunicação com as demais pessoas e relações cotidianas vitais.
Se mantem também este processo, nesse ínterim, suas particularidades como essência corpórea y
as condições externas concretas são condições sui generis, não podendo ser idênticas para todos.
(Tradução da autora).
76 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
à questão semiótica58, enfocando a mente formada por meio de um diálogo de vozes,
atinente à produção de representações e ideologias. Neste contexto, o ser humano
assimila a narrativa de sua cultura, que supõe uma diversidade de diálogos, incluindo
conformidade, contradição e discordância.
Narrativa manifesta-se em histórias contadas por autores formais ou pessoas
comuns. As narrativas desenvolvidas não são simples acontecimentos, carregam
implicitamente a capacidade humana de elaborar os significados encontrados ao
longo da vida.
O exercício de análise de narrativas contemporâneas, tais como as produções de
desenhos animados, livros e músicas dirigidas ao público infantil, é recomendado ao
educador infantil.
Particularmente destaco o trabalho da cantora Adriana Calcanhoto, no CD Adriana
Partimpim e no livro O Poeta aprendiz, que acompanha o CD, além do trabalho musical
do Palavra Cantada, de Toquinho em No mundo da criança. Na parceria com Vinícius
de Moraes em: A arca de Noé e A casa de brinquedos e do CD Tutu, o menino índio,
de Tony Brandão. Os filmes da Disney como Rei Leão I, Lilo & Stitch, Toy Story I,
Procurando Nemo, Dinossauro são narrativas que merecem ser revisitadas com olhar
analítico para o conteúdo socioafetivo subjacente a seus enredos. Ainda falando de
filmes, também merece distinção Spirit: o corcel indomável,da Dreamworks Pictures.
Na literatura infanto-juvenil contemporânea podem-se encontrar narrativas que
estabelecem um diálogo com a criança, buscando a superação de pensamentos
estereotipados a partir de temáticas polêmicas, como é o caso de Menina Bonita
do Laço de Fita, Dani e O menino Nito, que abordam as questões relativas à etnia.
Miguel e O menino maluquinho falam da criança incompreendida pelos adultos,
classificadas como endiabradas em uma visão maniqueísta que as condena ou a anjo
ou a diabo, negando a dialética de amor e ódio presente em todo ser humano. Uma
família parecida com a da gente busca relativizar o conceito de família. Suriléa, a mãe-
mostrinho, Quando mamãe virou monstro, As muitas mães de Ariel focalizam a relação
da criança com a mãe dentro de um contexto de superação da visão linear que defende
que somente o adulto tem razão. Mostram diferentes pontos de vista que revelam
que cada um possui sua razão. Boneca de Pano discute a relação da menina com a
boneca e a representação do amadurecimento e da relação do adulto com sua razão
em detrimento de sua emoção. Faca sem ponta, galinha sem pé trabalha as questões
de gênero, buscando superar os preconceitos socialmente colocados, apostando no
reconhecimento do outro como diferente e, ao mesmo tempo, complementar. Isso
sem esquecer de autores clássicos,como Monteiro Lobato. Você já pensou sobre
o rico potencial de elaboração dos significados da identidade sexual infantil
presente em Reinações de Narizinho, por exemplo?
58 No Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, semiótica se refere ao estudo dos fenômenos
culturais considerados como sistemas de significação, tenham ou não a natureza de sistemas de
comunicação (inclui, assim, práticas sociais, comportamentos etc.); semiologia. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 77
Outro exercício bastante produtivo de análise de publicações, já citadas neste
fascículo, que revisitaram os contos clássicos como Chapeuzinho Amarelo, de Chico
Buarque, e A verdadeira história dos três porquinhos,de Jon Scieszka.
59 O menino e seu amigo, de Ziraldo, aborda com muita sensibilidade a relação adulto-criança no
contexto temporal, demarcando o processo de educação que atravessa gerações.
78 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Essa dinâmica da ação comunicativa pode ser mais bem compreendida,no
contexto das discussões sobre zona de desenvolvimento proximal, quando associada
à noção de imitação.
Sobre isso, Vygotsky (1987, p. 89) acrescenta:
60 Contagem da diferença.
61 Com relação à idade mental, vasconcellos (1995) salienta que a escola obtém o nível da idade
mental ideal, isto é, o que pode ser esperado a partir de uma visão de desempenho por estágios
universais. Sendo assim, se a idade mental atual e a idade mental ideal diferirem muito, a criança terá
poucas possibilidades de desfrutar dos ensinamentos escolares.
62 Nível atual ou real de desenvolvimento – é o resultado do ciclo de desenvolvimento já
completado. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 79
A distância entre o desenvolvimento atual e o potencial é o que se denomina
de desenvolvimento proximal, isto é, aquilo que está entre os dois estágios de
desenvolvimento, um já realizado e o outro em potencial. Entre um e o outro se
desenvolve o que está próximo, as estruturas que estão em via de amadurecer, em
processo de estruturação.63
Outro elemento subjacente ao conceito de zona de desenvolvimento proximal
se refere aos aspectos qualitativos64 da capacidade de resolução de problemas que
estariam mais otimizadas no contexto de trocas sociais com pares mais competentes,
se comparado à atuação solitária da criança. Estes aspectos sustentam a afirmação
da escola como lugar privilegiado, no sentido de oferecer diferentes situações em
que o desenvolvimento potencial da criança se realiza pela via da imitação e da
orientação do par mais competente. Por meio do mecanismo da internalização, o
desenvolvimento proximal paulatinamente se transforma em atual.
Essas funções poderiam ser chamadas de” brotos “ou” flores “do
desenvolvimento, ao invés de “frutos”do desenvolvimento. O nível
de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental
retrospectivo, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza
o desenvolvimento mental prospectivamente.(VYGOTSKY, 1984, p.97)
65 Sobre este assunto, vale ler o texto intitulado Considerações acerca do espaço: alguns subsídios
para se pensar a organização espacial dos ambientes escolares, apresentado neste mesmo fascículo.
66 Para análise complementar sobre a relação estabelecida entre a teoria vygotskyana e a
brincadeira, consultar o texto Por que se afirma que, na educação infantil, brincadeira é coisa séria?,
também presente neste fascículo. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 81
De forma geral, Vasconcellos (1995) salienta que o conceito de zona de
desenvolvimento proximal foi proposto por Vygotsky (1989) com o objetivo de chamar
a atenção dos educadores para a importância do processo de construção da estrutura
futura das funções psicológicas superiores, as protofunções67. Estas, por sua vez,
quando observadas e trabalhadas pedagogicamente, revelam o desenvolvimento em
sua forma plena68.
Notas finais
O questionamento inicial deste trabalho convida o leitor a descobrir a relevância
das contribuições de Vygotsky para a Psicologia e para a Educação. Para tanto,
focalizaram-se as contribuições deste autor no que se refere à Psicologia do
Desenvolvimento e alguns elementos convergentes à Psicologia Social, atuais aos
interesses da Psicologia Educacional.
O foco principal que o leitor é levado a analisar persegue o fenômeno da construção
ontogenética do pensamento representacional e da construção do plano interno de
atividade mental, com a emergência das funções mentais superiores.
Dentre vários apontamentos, destacam-se os conceitos de internalização, atividade
mediada, sentido pessoal, pensamento verbal e zona de desenvolvimento proximal. Tais
conceitos, articulados com o caráter discursivo-ideológico da linguagem, oferecem
subsídios para o entendimento de como se dá a construção da subjetividade na
qualidade de produto e de processo.
A discussão em torno do conceito de imitação propicia ao leitor o desvelamento da
abstração teórica, indicando as possibilidades concretas de teoria viva nas interações
entre crianças e entre adulto-criança.
A imitação, neste sentido, parece ser elemento esclarecedor da teoria, ainda mais
fortalecido quando se compreende sua articulação com a ação comunicativa, a zona
de desenvolvimento proximal, a internalização e a construção de representações,
sustentados por uma matriz histórico-social e ideológica que se expressa por recursos
socioculturais tais como eventos, linguagem, brinquedos, organizações espaciais e a
construção das narrativas.
Por fim, vale ressaltar o convite ao leitor para o exercício de análise dos processos
de significação subjacentes às narrativas contemporâneas dirigidas às crianças
e sua relação com a construção das subjetividades, atividade imprescindível para o
educador no exercício de conhecer e dese comunicar com o universo infantil.
Atividade ❶
Diferencie a concepção acerca do egocentrismo, presente na teoria piagetiana,
daquela proposta por Vygotsky. Neste exercício, considere a situação abaixo
caracterizada.
Atividade ❷
Explore o conceito de zona de desenvolvimento proximal, identificando as três
proposições possíveis no entendimento do conceito. Neste exercício, busque analisar
o papel da relação adulto-criança, criança-criança e criança-linguagem midiática no
processo de desenvolvimento e aprendizagem.
REFERÊNCIAS
84 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Para encerrar esta parte, algumas palavras
Ao finalizar a apresentação das principais contribuições da Psicologia à
educação infantil é possível constatar que desenvolver e aprender significa tornar-se
diferenciado, em outras palavras autônomo, seja no plano intelectual, no social ou no
afetivo.
A autonomia deve ser compreendida como a capacidade de autorregulação,
governar-se por si mesmo, levando em consideração seu ponto de vista e o ponto
de vista do outro, pronunciando-se contra ou a favor aos dados da realidade,
compreendendo as razões implícitas que os geram e aderindo, ou não, a elas.
Na construção da autonomia o sujeito está em constante exercício de análise,
entendimento e convencimento.
De outra forma, diz-se que autonomia remete ao sentido de diferenciação, de
superação da dependência total do meio, de uma percepção centrada no eu para
uma consciência da relação eu-outro que se amplia em direção à constituição do eu
inserido no grupo, como sujeito social, cidadão.
No entanto, é preciso ressaltar que desenvolver-se autonomamente não é a
direção natural do curso do desenvolvimento, até porque, de acordo com os autores
estudados neste fascículo, o desenvolvimento não se dá aprioristicamente, mas,
sim, no entrecruzamento das dimensões biológicas, sociais e culturais. Isso implica
dizer que nem todo processo educacional se orienta pelos objetivos da emancipação
do sujeito. Ao contrário, acabam reproduzindo relações heterônomas, nas quais a
criança simplesmente aceita as regras ou o conhecimento em si como algo pronto,
submetendo-se a eles.
Deste ponto de vista, a problemática, a educação para a autonomia ainda enfeixa
outra reflexão: o mesmo que se reivindica para a criança também deve ser reivindicado
para seus professores.
Antes que o leitor pense que a chave para esse dilema se encontra muito longe
do que foi exposto neste fascículo, é preciso lembrar que os ensinamentos de Piaget,
Wallon e Vygotsky explicitam o processo de desenvolvimento e aprendizagem do
ser humano e, como tal, devem ser reconhecidos. Isso implica dizer que, ao refletir
sobre os conceitos apresentados neste fascículo, o leitor deverá ampliar o foco de sua
análise para além da criança, na qualidade de aluno. Neste sentido, deverá analisar a
si mesmo como ser em desenvolvimento, como aluno que foi e que é.
Eis as perguntas que seguem: Como vejo meu processo de desenvolvimento e
de aprendizagem? Em que medida posso dizer que minha formação foi ou é pautada
pela autonomia? Quais são minhas limitações e minhas possibilidades? Na condição
de profissional de Educador da Infância, como sou influenciado pelos significados desta
profissão?
Como me posto diante disso? como se pode notar, as reflexões sobre
desenvolvimento e aprendizagem, tendo na diferenciação e na autonomia suas
questões de fundo, requerem elementos que extrapolam os limites deste fascículo,
ao mesmo tempo em que remetem o leitor à leitura de outros, cuja temática aborda
a questão identitária do educador da infância, por exemplo.
Boa caminhada!
86 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
REFERÊNCIAS
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88 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO
COORDENAÇÃO DE
APERFEIÇOAMENTO DE
PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR -
CAPES
UNIVERSIDADE
ABERTA DO BRASIL - UAB UNIVERSIDADE
UAB ABERTA DO BRASIL