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UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO


INSTITUTO DE EDUCAÇÃO
LICENCIATURA EM PEDAGOGIA

Desenvolvimento e
aprendizagem na Infância

DANIELA BARROS DA SILVA FREIRE ANDRADE


Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Psicologia
Desenvolvimento e aprendizagem na infância

Licenciatura em Pedagogia
–Modalidade a Distância –
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO
UNIVERSIDADE ABERTA DO BRASIL
NÚCLEO DE EDUCAÇÃO ABERTA E A DISTÂNCIA
LICENCIATURA EM PEDAGOGIA – MODALIDADE A DISTÂNCIA

Ministro da Educação
José Mendonça Bezerra Filho

Diretor da Educação a Distância UAB/CAPES


Carlos Cezar Mordenel Lenuzza

Reitora da UFMT
Myriam Thereza de Moura Serra

Vice-Reitor da UFMT
Evandro Aparecido Soares da Silva

Pró-Reitor Administrativo
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Pró-Reitora de Planejamento
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Pró-Reitor de Cultura, Extensão e Vivência


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Pró-Reitor de Pesquisa
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Secretário da SETEC/UFMT
Coordenador da UAB/UFMT
Alexandre Martins dos Anjos

Diretor do Instituto de Educação


Silas Borges Monteiro

Coordenadora do Núcleo de Educação Aberta e a Distância (NEAD)


Terezinha Fernandes

Coordenadora do Curso de Licenciatura em Pedagogia UAB/UFMT


Maria Aparecida Rezende
Daniela Barros da Silva Freire Andrade

Psicologia
Desenvolvimento e aprendizagem na infância

Licenciatura em Pedagogia
–Modalidade a Distância –
CONSELHO EDITORIAL

Profª Drª Kátia Morosov Alonso - UFMT


Prof. Me Oreste Preti - UFMT
Profª Me Sandra Regina Geiss Lorensini - UFMT
Profª Me Roseméry Celeste Petter - UFMT
Profª Drª Terezinha Fernandes - UFMT
Profª Drª Michelle Tatiane Jaber da Silva - UFMT
Profª Me Mirian Toshiko Sewo - UFMT
Profª Drª Glauce Viana de Souza Torres - UFMT
Profª Me Cássia Fabiane dos Santos Souza - UFMT
Prof. Me Abner Alves Borges Faria - UFMT
Prof. Me Maelison Silva Neves – UFMT

M838p
Andrade, Daniela Barros da Silva Freire.
Psicologia./ Daniela Barros da Silva Freire Andrade. -- Cuiabá:
Central de Texto: EdUFMT, 2010.

ISBN 978-85-88696-79-2

1. Psicologia. 2.Educação. 3. Psicologia do Desenvolvimento.


4. Psicologia Social. I. Título.

CDU 159-9 : 37

Central de Texto
Editora Maria Teresa Carrión Carracedo
Produção Ricardo Miguel Carrión Carracedo
Projeto gráfico do miolo Helton Bastos
Paginação Maike Vanni
Revisão para publicação Henriette Marcey Zanini
DESENVOLVIMENTO
E APRENDIZAGEM NA INFÂNCIA

CONTEXTUALIZAÇÃO 9

INTRODUÇÃO 11

1 - NOTAS SOBRE A PSICOLOGIA DO


DESENVOLVIMENTO 15

2 - A METÁFORA DO REIZINHO MANDÃO NO DIÁLOGO


COM A TEORIA DE PIAGET: A DIFERENCIAÇÃO DIANTE DO
EGOCENTRISMO 19

3 - FACA SEM PONTA, GALINHA SEM PÉ: A NOÇÃO DE


DIFERENCIAÇÃO NA ARTICULAÇÃO COM A TEORIA DE
WALLON 45

4- DE COMO NOS TORNAMOS SUJEITOS SOCIAIS E


AUTORREGULADOS, SEGUNDO VYGOTSKY 65

CONSIDERAÇÕES 85

REFERÊNCIAS 87
Olá!

O começo de toda conversa entre professor e aluno, seja em uma relação


presencial, seja a distância, tem início numa apresentação.

Enfim, o tradicional quem sou eu!

Embora meu último sobrenome seja Andrade, meus alunos me conhecem como
Daniela Freire. Sou psicóloga, com mestrado em Psicologia Social e doutorado em
Psicologia da educação.

Atuo na formação de professores há 16 anos, especialmente nas disciplinas sobre


desenvolvimento e aprendizagem humana, muitas vezes com ênfase na Educação
Infantil.

No Núcleo de Educação Aberta e a Distância (NEAD), da Universidade Federal de


Mato grosso (UFMT), participo como especialista da área de Psicologia no curso de
Licenciatura em Pedagogia para a Educação Infantil.

No Programa de Pós-Graduação em Educação,da Universidade Federal de Mato


Grosso, integro o grupo de pesquisa Educação e Psicologia,que desenvolve pesquisas
coletivas sobre representações sociais acerca do trabalho docente.

É um prazer poder acompanhar a formação de vocês, ainda mais ao lado


da Ana Rosa, companheira tão querida de antigas caminhadas. Bem como de
Miriam,professora que atua no NEAD.

Tenho certeza que esse reencontro renderá muitas inspirações para o bem de
todos nós.

Abraço!
CONTEXTUALIZAÇÃO
A Parte II do fascículo de Psicologia se destina à discussão em torno das
contribuições desta ciência para a compreensão dos processos de desenvolvimento
e aprendizagem em crianças. o que está em jogo nesta leitura é a compreensão de
como nos tornamos seres diferenciados.
Por isso, tomaremos as noções de indiferenciação e diferenciação, apontadas
pelos teóricos aqui abordados, como uma espécie de orientação para a organização
do raciocínio relativo ao desenvolvimento cognitivo, afetivo e motor.
Além disso, esta parte deve ser compreendida em seu potencial de diálogo com
as Partes I e III. Isto porque, se na Parte I desvenda-se os principais conceitos da
Psicologia, auxiliando a compreensão dos apresentados na Parte II, na III propõe-se
ao leitor, com base na Psicologia Social, discussão sobre a produção da subjetividade
social articulada com a subjetividade individual, em um exercício de ir-e-vir entre o
individual e o social que começa a ser introduzido agora.
A especificidade desta Parte II se refere à discussão acerca das contribuições
interacionista e sociointeracionista à Educação e, por isso, ressalta-se a importância
da interação social articulando tais fenômenos com o processo representacional.
Este fascículo também objetiva incentivar o estudante a uma aproximação
orientada ao desenvolvimento de sua capacidade de análise do comportamento
infantil, bem como dos aspectos apontados pela teoria, que estão retratados nas mais
variadas narrativas dedicadas ao público infantil.
Outro objetivo a ser destacado se refere à possibilidade de autorreflexão do
estudante associando à sua trajetória de vida desde sua condição de infante, passando
pelo processo de construção de sua subjetividade, até chegar à sua atuação como
educador.
Dessa forma, está presente nestes escritos um desejo de que o estudante,
ao analisar os indicadores do processo de desenvolvimento e aprendizagem das
crianças, supere a dicotomia do eu e do outro. Isto implica dizer que a criança da qual
os textos tratarão é, ao mesmo tempo, aquela com a qual se trabalha e aquela que se
transformou em adulto, o próprio educador.

10 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
INTRODUÇÃO
Ao explorar os escritos desta Parte II, uma expressão, comumente utilizada
na Educação das crianças, será desenvolvida a partir do olhar da Psicologia do
Desenvolvimento e Aprendizagem. Ei-la: Educar cuidando1.
Essa expressão foi cunhada com base na constatação de que o trabalho educacional
com crianças de até dois anos de idade, em geral, é pouco reconhecido. Especialmente
os bebês são considerados dentro de uma prática de cuidados rotineiros dissociados
de sua função educativa.
Um dos fatores que contribuem para tal dissociação se refere à separação entre a
definição de creche e pré-escola fundamentada na idade da criança2,que parece
ser apropriada pela comunidade em geral, tomando por base a dicotomia presente
entre o cuidar e o educar. Nesse particular, pré-escola se aproxima das práticas
alfabetizadoras, como que em um arremedo da prática escolar, e a creche se define a
partir do referencial do cuidado materno. Em outras palavras, quanto mais próximo
ao modelo escolar adulto, maior é o status do profissional e do trabalho em si. Essa
lógica se aplica tanto para a relação entre creche e pré-escola quanto para a relação
entre ensino fundamental e ensino médio, e entre ensino médio e superior.
Uma das consequências perversas dessa dicotomia se traduz na falta de
reconhecimento do profissional, neste caso do profissional de creche, mas não só
ele, como educador. Concomitantemente, da desvalorização de seu saber e de sua
prática. Esse movimento perverso de negar a função educacional da creche contribui
para que muitas delas se constituam como lugar de guarda, uma espécie de depósito
de crianças.
A expressão educação na infância,de certa forma, intenta a superação da dicotomia
entre creche e pré-escola, entre o cuidar e o educar, concebendo que o cuidado
à criança é inerente à ação de educar. Mesmo assim, a invisibilidade do trabalho
educativo com crianças de até dois anos permanece. Essa cristalização do senso
comum sugere uma investida em outro tipo de argumentação, dessa vez voltada para
aanálise do processo de desenvolvimento e aprendizagem das crianças.
Ao conhecer os referenciais teóricos que têm sustentado o trabalho da educação com
crianças,na perspectiva interacionista e sociointeracionista, o leitor poderá responder à
seguinte pergunta: De que forma pode se dar o trabalho educativo com elas?3
Para responder a esse questionamento, é preciso sublinhar os indicadores do
desenvolvimento e da aprendizagem, evidenciando a dinâmica da construção da
consciência que se dá ao longo dos primeiros anos de vida.
Em termos práticos, é preciso visitar Piaget, Wallon e Vygotsky e percorrer as
trilhas do processo de desenvolvimento e da aprendizagem por eles identificadas.

1 Para maior aprofundamento sobre essa temática, consultar: MONTENEGRO, T. O cuidado e a


formação moral na educação infantil. São Paulo:Educ, 2001.
2 Creche - atende crianças até 3 anos.
Pré-escola - atende crianças de 4 a 5 anos.
3 A expressão criança pequena se refere à noção de primeira infância, cobrindo o intervalo de idade
que vai de 2 a 6 anos.
12 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Nesse exercício, espera-se que o leitor reflita, do ponto de vista psicológico,
a profundidade teórica do educar crianças, tomando a prática educativa como
um dos elementos facilitadores da emergência da consciência e do pensamento
representativo, sem os quais se torna tortuoso o trabalho nos demais níveis escolares.
Com isso não se quer dizer que a função da educação das crianças seja a de prepará-
la para os anos finais do ensino fundamental e médio, embora isso seja um fato.
O reconhecimento da importância do trabalho educativo com crianças se dá, antes
de tudo, pelo reconhecimento de seus direitos e pelas possibilidades que se abrem a
seus familiares de elas se desenvolverem em condições que assegurem sua cidadania
no tempo presente.
Tomando como base a importância do entendimento dos principais conceitos
propostos pela teoria,e a relevância de focalizar o processo de desenvolvimento e
de aprendizagem nos primeiros anos de vida, este fascículo foi organizado de modo
a ressaltar as contribuições de Piaget, Wallon e Vygotsky. Oferece ao leitor notas
sobre a contextualização, a concepção de desenvolvimento e de aprendizagem e
os principais conceitos presentes nos trabalhos conhecidos como Epistemologia
Genética ou Teoria da Equilibração, Psicologia da Pessoa Completa e Formação
Social da Mente.
Ao longo dos textos apresentados, o leitor poderá identificar alguns dos indicadores
do desenvolvimento e da aprendizagem da criança.
As informações desfiladas partem de duas noções importantes: a primeira se refere
ao reconhecimento da condição histórico-social da infância e de toda a construção
teórica que se deu em torno dela4.
A segunda noção diz respeito à indissociabilidade entre desenvolvimento e
aprendizagem5, mais claramente defendida por Piaget (apud MORO, 2000) e
Vygotsky (1989). Ao argumentar que educar é adaptar o indivíduo ao meio, a
perspectiva piagetiana mostra que o processo de adaptação e equilibração são, em si,
um processo de aprendizagem, em seu sentido amplo. Por meio do conceito de zona
de desenvolvimento proximal,e a noção de que a boa aprendizagem é aquela que
antecede o desenvolvimento, Vygotsky (1989) indica a relação de regulação recíproca
entre desenvolvimento e aprendizagem.
Bassedas, Huguet & Sole (1999, p.23) sintetizam a relação desenvolvimento
e aprendizagem afirmando: “[...] para que possa haver desenvolvimento, é
necessário que se produza uma série de aprendizagens, as quais, de certo modo, são
uma condição prévia”
Assim, o fascículo procurou organizar três capítulos dedicados às contribuições de
Piaget, Wallon e Vygotsky, no que toca à Educação.
Como proposta de expansão deste fascículo, é indicado que o leitor se apoie
nos indicadores do desenvolvimento e organize fichas de observação orientando o

4 Sobre esta noção, observar as reflexões sobre a Psicologia do desenvolvimento, no próximo


capítulo.
5 A aprendizagem neste ponto da apresentação deve ser entendida,em seu sentido amplo, como
ação social que envolve a aquisição de resposta particular, aprendida em função da experiência e do
processo de ação mental do ser que aprende Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 13
processo de avaliação qualitativa. Ou, ainda, tais indicadores podem ser utilizados para
inspirar a proposição de projetos pedagógicos em diferentes processos educativos.
De outro modo, o leitor poderá acompanhar os comentários sobre algumas
narrativas voltadas para o público infantil e realizar as sugestões de atividades
encontradas, bem como explorar as várias indicações de livros, filmes e produções
musicais à luz das reflexões teóricas desenvolvidas.

Quadro síntese dos principais aspectos tratados nesta parte ▼

Abaixo, os principais aspectos tratados nesta parte, organizados segundo os seus


autores proponentes:

PIAGET WALLON VYGOTSKY

• Conhecimento; • Motricidade, emoção e • Plano interno de atividade


diferenciação no processo mental;
• Inteligência; de desenvolvimento e
aprendizagem; • Internalização;
• Determinantes do
desenvolvimento e aprendizagem; • Sublinhando • Atividade mediada ou
alguns indicadores mediação simbólica;
• Esquema;
do desenvolvimento • Interação social;
• Estrutura; psicológico na perspectiva
walloniana; • Lei genética do
• Processo de adaptação ou desenvolvimento cultural;
equilibração majorante; • Gestos de mímicas e
apelos; • Operações mentais
• Assimilação; inferiores e superiores;
• Acomodação; • Olhar, preensão e
marcha; • Zona do desenvolvimento
• Estágios do desenvolvimento; proximal;
• Imitação;
• Desenvolvimento e aprendizagem • Pensamento verbal;
em bebês e crianças pequenas • Esquema corporal;
• Representações mentais;
pontuações teóricas úteis para o • Simulacro;
trabalho no berçário; • Desenvolvimento da fala;
• Linguagem;
• Um olhar mais de perto para a • Sentido pessoal.
criança pré-operatória; • Crise de oposição ou
negativismo e sedução.

14 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A Psicologia do Desenvolvimento se dedica à descrição e à exploração das
mudanças psicológicas que o ser humano sofre ao longo do tempo.
A busca implica descrever e compreender as transformações sofridas pelo ser
humano, sobretudo na infância, período em que se estruturam as bases da vida
psíquica. Em atenção à importância da infância na constituição do psiquismo, muitas
vezes nos valemos da Psicologia Infantil ou da Criança como sinônimo de Psicologia
do Desenvolvimento.
Como toda ciência, a Psicologia do Desenvolvimento deve ser compreendida
como invenção ou construção cultural.
Autores como Kessen (1978) e White (1986) acreditam que, por conta de fatores
históricos, culturais e sociais importantes, a Psicologia Infantil se desenvolveu a partir
do conceito de criança, sobretudo da criança americana, sem atentar aos outros
conceitos de infância e organização familiar e social.
White (1986) enfatiza o processo dialético entre o conceito de sociedade e de
Psicologia da Criança e, por que não dizer, de infância6. Isso enseja que qualquer
discussão sobre desenvolvimento e práticas educacionais está vinculada a valores
partilhados culturalmente.
A princípio, com os trabalhos de Gesell (USA) e Binet (França), preocupou-se
em organizar extensas escalas de desenvolvimento passíveis de seremutilizadas na
avaliação psicológica de crianças de diferentes culturas e em diferentes condições
sociais. Os estudiosos objetivavam medir e comparar o desenvolvimento da criança
tomando em conta a escala de desenvolvimento padrão. As crianças cujos resultados
coincidissem com o esperado seriam consideradas “normais”.
A concepção de normalidade e de patologia do desenvolvimento infantil passou
a ser utilizada como referência importante para o trabalho educacional, sendo,
posteriormente, desencorajada pela perspectiva crítica que influenciou a Pedagogia
e a própria Psicologia7.
Ao invés de medir e comparar o desenvolvimento infantil, a Psicologia do
Desenvolvimento, na atualidade, preocupa-se em:

[...] descrever e explicar os eventos ocorridos no decorrer do tempo que


levam a determinados comportamentos emergentes durante a infância,
adolescência ou a idade adulta. Pretende, pois, explicar como é que, a
partir de um equipamento inicial (inato), o sujeito vai sofrendo uma série
de transformações decorrentes de sua própria maturação (fisiológica,
neurológica e psicológica) que, em contato com as exigências e respostas
do meio (físico e social), levam à emergência desses comportamentos.
(RAPPAPORT, 1981, p. 3)

6 Sobre esta relação observar a contribuição de Philippe Áries em História Social da Criança e da
Família.
7 Sobre a relação da Psicologia com a Pedagogia ler: FREITAS, M. T. A. de. Vygotsky & Bakhtin.
Psicologia e educação: um intertexto. São Paulo: Ática, 1995
16 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Medir e comparar são termos que possuem uma conotação de desenvolvimento
como produto quantificável. Descrever e explicar, por sua vez, são termos associados
a uma conotação qualitativa e processual.
Na primeira, tem-se o objetivo de universalizar os padrões do desenvolvimento
segundo a faixa etária. Na segunda, mesmo prevendo estágios de desenvolvimento,
o que importa é a ordem com que estes se dão, e não necessariamente a idade em
que eles se manifestam na criança. Com isso, surge uma faceta da Psicologia do
Desenvolvimento mais preocupada com as contextualizações históricas, culturais e
sociais da criança e de seu desenvolvimento8.
Pesquisadores que observam o comportamento infantil em países de terceiro
mundo, afirmam que existem vários fatores biológicos e psicológicos que
influenciam o desenvolvimento infantil diferindo-o do das crianças de países mais
ricos. Entre esses fatores estão as características de gênero, idade gestacional, peso
de nascimento, ordem de nascimento, saúde, condições nutricionais pré e pós-natal,
bem assim fatores de ordem biológica diversos.
Existem, também, características da estrutura doméstica, como o grau de
satisfação do bebê, a razão adulto/criança, a mistura de crianças de várias idades, a
presença ou ausência de múltiplos agentes de cuidado infantil, entre outros.
Ao analisar esses fatores, Werner (1984) chegou à conclusão de que, pelo
mundo todo, o cuidado exclusivo das crianças por suas mães não constitui regra.
Tradicionalmente, famílias dos países orientais dividem o cuidado dos bebês com as
mães, assistidas pelo irmão mais velho, avós e outros parentes cujo tempo não seja
intensamente valorizado.
Mudanças contemporâneas no ocidente industrializado têm levado a um aumento
da divisão do cuidado à criança por mulheres trabalhadoras nos EUA e na Europa,
porém os agentes substitutos tendem a variar, de acordo com a classe social.
A densidade demográfica, assim como a estratificação econômica, afeta o
contexto do cuidado com a criança. Sob condições de alta fertilidade e mortalidade
infantil, prevalecentes nos países de terceiro mundo, crianças crescem com grande
número de irmãos mais velhos e primos. Suas babás, usualmente, são as irmãs mais
velhas, designadas a dar assistência aos irmãos mais novos, em detrimento de suas
características e necessidades infantis e, não raro, de seu processo de escolarização.
Diante dessas considerações, pode-se concluir que, sendo a Psicologia do
Desenvolvimento considerada construção cultural, assim como as teorias que produz,
o fenômeno por ela estudado deve ser analisado segundo as mesmas prerrogativas.

8 Importante notar o surgimento da Psicologia Transculturalque investiga padrões específicos


da conduta enquanto expressivos da intervenção de fatores culturais distribuídos em uma faixa
transversal do espaço. Seu objetivo compreende estudar os fenômenos quanto a sua simultaneidade
em várias culturas. A Psicologia Transculturalassume uma proposta relativista e tenta avaliar a validade
de teorias psicológicas desenvolvidas a partir da população de uma determinada cultura quando esta
se propõe explicar fatos que ocorrem em uma outra. oque se postula é a subordinação da Psicologia
à realidade socioeconômicae cultural. Um dos maiores objetivos da Psicologia Transculturalé ajudar
aestabelecer princípios psicológicos universais que governem o comportamento humano, apesar de
algumas leis psicológicas básicas dependerem da cultura ou ainda da subcultura(FREIRE, 1992, p.23) Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 17
18 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Ruth Rocha, em seu livro Reizinho Mandão, retrata a criança egocêntrica e nos dá,
por meio da linguagem literária, a dimensão das possibilidades e limitações de uma
criança de aproximadamente três anos de idade.
O famoso reizinho consegue expressar-se corporal e verbalmente, mas interpreta
a realidade de forma rígida, centrada em sua própria perspectiva. O reizinho mandão
caracteriza, portanto, a eterna criança egocêntrica que não se insere no mundo
socializado dos jogos de regras.
Para saber como se desenvolve uma criança tida como egocêntrica, e de que forma
ela supera essa condição, vejamos o que diz a teoria piagetiana.

1 | A Teoria da Equilibração de Jean Piaget


Indiscutivelmente, a teoria piagetiana constitui, em grande parte, a base da
formação de professores no Brasil. Ela está presente nos currículos dos cursos de
Pedagogia e de Licenciatura desde a década de 60, juntamente com a disseminação
das publicações do autor.
A apropriação da obra piagetiana por gerações de professores ao longo desses anos,
incentivada pela visita de Piaget ao Brasil9 e pela solidificação de grupos de estudo
e pesquisa fundamentados na teoria piagetiana, contribui, decididamente, para a
solidificação da formação do docente. Por outro lado, como consequência de sua ampla
divulgação e da tendência à simplificação e condensação do conteúdo presente no
processo de comunicação, criou-se uma espécie de cultura pedagógica reducionista.
Esta circula no meio acadêmico e escolar a ponto de produzir determinados códigos de
comunicação e até mesmo jargões, tais como o aluno é o sujeito da ação, o aluno como
construtor de sua aprendizagem, o professor como mediador da aprendizagem do aluno,
entre outros. Tal fato se dá em função da superficialidade das interpretações da obra e,
sobretudo, pela negligência a seu caráter dialético, o que transforma erroneamente a
teoria em uma proposição linear e rígida. Nenhuma obra está livre desse movimento de
apropriação, familiarização e, ao mesmo tempo, simplificação de seus pressupostos,
notadamente se ela está suficientemente enraizada no tecido cultural a ponto de não
provocar uma espécie de estranhamento.
Este texto constitui a interface entre aquilo que já se conhece da obra piagetiana
e o cuidado em não banalizá-la, buscando, por igual, priorizar as noções básicas da
teoria e a reflexão sobre o desenvolvimento da criança pré-operatória.
Inicialmente, é preciso situar a contribuição de Piaget e sublinhar sua importância
para a Psicologia e para a Educação. Nessa direção, tem-se que o foco delineado nas
pesquisas de Piaget se assenta em seu interesse pelo desenvolvimento da inteligência
e pela construção do pensamento racional. Daí dizer que o sujeito que Piaget estudou

9 Em 1949, na Universidade Federal do Rio de Janeiro


20 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
é o sujeito epistêmico10. Ele procurou relacionar a teoria biológica e epistemológica
por meio da teoria do desenvolvimento operatório da inteligência. Moro (2000)
caracteriza a teoria de Piagetcomo teoria epistemológica que traz, em seu núcleo,
uma teoria do desenvolvimento da lógica humana.
Sobre o desenvolvimento cognitivo, a teoria piagetiana destacou o papel da
ação como o elemento que irá assegurar a continuidade entre as formas biológicas
e as formas de pensamento constituídas na interação entre o sujeito e o objeto do
conhecimento.
As ações que inicialmente emergem como formas puras de exploração do mundo
– atividade reflexa – gradativamente se integram em esquemas psíquicos11 mais
complexos elaborados pela criança. Tal processo indica a tendência do sujeito a
uma adaptação progressiva ao meio físico e social em uma estruturação contínua,
partindo, inicialmente, de uma indiferenciação caótica entre o sujeito e o objeto. Ou
Jean Piaget
seja, o indivíduo constrói e reconstrói continuamente as estruturas que o tornam cada
vez mais apto ao equilíbrio. Essas construções seguem um padrão denominado de
estágios,que se relacionam às idades mais ou menos determinadas12.

1.1 | CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E MÉTODO


DE ESTUDO

A teoria piagetiana adotou uma visão interacionista do desenvolvimento e da


aprendizagem à medida que concorda que esses se efetuam a partir de interações
entre o biológico e o social. As características biológicas preparam a criança para agir
sobre o social e modificá-lo, mas essa ação termina por influenciar na construção
das próprias características biológicas da criança. O interacionismo defende a
reciprocidade de influências também entre o indivíduo e o meio. A experiência da
criança em determinado ambiente é ativa: ao mesmo tempo em que o modifica, é
modificada por ele.
Essa dinâmica parte de uma indiferenciação caótica entre o sujeito e o mundo e se
constitui como um processo de sucessivas mudanças qualitativas e quantitativas das
estruturas mentais, e cada estrutura deriva de outras precedentes. As transformações
são motivadas pela orientação geral do organismo voltada para a autorregulação e
para a adaptação à realidade.
Em outras palavras, pode-se dizer que a concepção de desenvolvimento de
Piaget está fundamentada na noção de equilibração progressiva, ou majorante, que
pressupõe uma estruturação contínua de ações que, inicialmente, emergem como

10 Epistêmico – puramente intelectual ou cognitivo. Diz-se sujeito epistêmico para caracterizar


um sujeito ideal, universal, que não corresponde a ninguém em particular, embora sintetize as
possibilidades de cada um e de todas as pessoas ao mesmo tempo (GOULART, 1995, p. 18).
Epistemologia – relativo à teoria do conhecimento.
11 Mais explicações sobre o esquema psíquico serão apresentadas oportunamente.
12 Para a teoria piagetiana,a ordem dos estágios é o indicador mais importante do desenvolvimento
e não a idade de aparição das habilidades. Para que uma criança atinja o estágio das operações
formais, é preciso que antes tenha apresentado características egocêntricas. Essa sequência pode
variar e, conforme as condições de vida, pode até mesmo atrasar, mas não é possível alterá-la. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 21
atividade reflexa e, gradativamente, integram-se a esquemas psíquicos em um
interjogo entre fatores intrínsecos e experienciais.
Sobre a relação desenvolvimento e aprendizagem na teoria piagetiana, Severino
(1994) explica que a aprendizagem está intimamente ligada ao desenvolvimento
porque ela é um processo de conhecimento elaborado operacionalmente, provocado
por forças externas desequilibradoras. A aprendizagem ocorre na direção do
restabelecimento do equilíbrio adaptativo que, por sua vez, se configura conforme os
esquemas endógenos característicos de cada estágio de desenvolvimento.
Os postulados de Piaget refletem sua concepção de desenvolvimento e
aprendizagem interacionista à medida que considera a apropriação e a elaboração
mental como um processo que se dá em condições em que se instaura um conflito
sociocognitivo13 entre o sujeito e a realidade, remetendo-o a um desequilíbrio.
Dessa forma, Piaget optou pelo estudo do pensamento racional, através de uma
abordagem experimental e clínica. Os procedimentos de pesquisa adotados se
estruturavam em três etapas bem definidas:
►► 1) O contato inicial da criança com o material, e suas explorações e respostas
iniciais;

►► 2) Observação do comportamento infantil ante os conflitos ou obstáculos


enfrentados na manipulação do material; e

►► 3) Análise do desempenho da criança a partir da introdução de vários


estímulos, questionamentos, com o objetivo de apreender a constância e a
amplitude da produção da criança14.

1.2 | PRINCIPAIS CONCEITOS

Os conceitos básicos presentes na teoria piagetiana serão apresentados neste


texto sem preocupação em numerá-los segundo uma ordem de importância, isso
porque, em um sistema teórico constituído a partir da lógica dialética, esse raciocínio
não se aplica.
Nesta etapa da leitura, é preciso alertar que o entendimento da base conceitual deve
ser atrelado à imagem de uma rede ou teia,com vista a enfatizar a interdependência
dos conceitos propostos, bem como o suporte que um estabelece para o outro.

13 Para leite (1994), conflito sociocognitivo ocorre em situações sociais nas quais as previsões e
antecipações das crianças são contestadas ou anuladas pelas observações que elas próprias realizam
em seguida. Nesse sentido, tem-se que, para a perspectiva piagetiana, as interações sociais não são
geradoras de novos sistemas ou formas de conhecimento,mas suscitam certas situações de conflito
que podem propiciar novas estruturações cognitivas.
14 Para saber mais sobre o método de pesquisa adotado por Piaget, ver sobre provas piagetianas.
As opções de referência são variadas. Uma delas é: RAPPAPORT, C.R et al. A idade escolar e a
adolescência. v.4. São Paulo:EPU, 1982.
22 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Como tendência geral, pode-se adiantar que a inteligência e o conhecimento
serão tomados como resultado da mútua relação entre os fatores determinantes
do desenvolvimento, bem assim de sucessivos processos de estruturação das ações
mentais. Para a compreensão deste último, torna-se necessário o entendimento de
conceitos como inteligência, conhecimento, determinantes do desenvolvimento,
hereditariedade, esquema, estrutura, adaptação, equilibração, assimilação,
acomodação, centração e descentração, reversibilidade e irreversibilidade, e estágios
do desenvolvimento.

❶ Inteligência

Os apontamentos piagetianos indicam que a inteligência se caracteriza pela


capacidade de o sujeito resolver problemas. Essa, por sua vez, desenvolve-se ao
longo do processo de adaptação à realidade tornando-se cada vez mais complexa
e eficiente. Portanto, é recorrente a conclusão de que inteligência não é um dom, não
é algo herdado.
Inicialmente, parte-se de um pensamento prático que, gradativamente, atinge o
pensamento pré-operatório, o operatório concreto e o operatório formal. Nos dois
primeiros, tem-se o pensamento marcado pela irreversibilidade;nos dois últimos, pela
reversibilidade.

❷ Conhecimento

Segundo Becker (1994), na perspectiva piagetiana conhecer implica transformar o


objeto e, ao mesmo tempo, transformar a si mesmo.
O ato de conhecer acarreta a ação do sujeito que conhece. Daí a expressão
conhecimento como construção do sujeito.
Lajonquière (1997) sugere que o sujeito, na verdade, reconstróio conhecimento,
primeiro porque ele constrói sobre uma construção anterior realizada por outros,
e, segundo, porque os objetos existem dentro de uma realidade intelectualizada,
pensada, que se apresenta para o sujeito no contexto das interações sociais.
Daí se conclui que

[...] aquilo a ser reconstruídonão é conhecimento enquanto


cópia pré-constituída nem a própria coisa, enquanto realidade
heterogênea à inteligência, mas um conjunto de interações
responsáveis pela existência intelectual dos objetos de conhecimento.
(LAJONQUIÈRE,1997, p. 6)

A construção do conhecimento depende das possibilidades genéticas do sujeito,


bem como da interação deste com o objeto do conhecimento, tal qual ele é concebido
pelo meio ambiente físico e social.
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 23
O conhecimento possui três fontes diferenciadas, porém cooperantes. São elas:
fonte exterior, interior e social.
Por fonte exterior entende-se o conhecimento do mundo físico. Nesse caso, a
elaboração do sujeito irá depender da articulação entre maturação neuromuscular e a
experimentação do material – ação da criança sobre os objetos.
A fonte interna do conhecimento se refere ao estabelecimento de relações entre
os objetos e a elaboração mais complexa das estruturas mentais, o conhecimento
lógico-matemático. Sobre esse tipo de fonte do conhecimento, vale ressaltar que ele
não se encontra no objeto, mas é construído pelo sujeito através da reflexão sobre a
experimentação – abstração reflexiva ou refletidora.
O conhecimento social emerge como uma terceira forma de conhecimento e
se caracteriza pelos valores, normas, leis e tradições culturais progressivamente
incorporados pelo sujeito por meio da interação social.
De forma geral, as três fontes de conhecimento operam no ato racional. No entanto,
a elaboração do conhecimento das fontes exterior e social prescindem do referencial
lógico-matemático que atua tendente a operar a construção do conhecimento.

❸ Determinantes do desenvolvimento

Ao longo da exposição sobre os conceitos, o leitor terá identificado alguns


determinantes do desenvolvimento. De forma mais sistematizada, pode-se dizer que
existem fatores de ordem interna e externa ao sujeito que interferem diretamente no
processo de construção da inteligência. São eles:
►► a hereditariedade, sobretudo o processo de maturação neurológica;

►► o ambiente físico;

►► a influência social; e

►► a equilibração.

❹ Hereditariedade15

Estruturas biológicas sensoriais e neurológicas herdadas que sustentam o


surgimento de certas estruturas mentais.
Rappaport (1981) elucida que o sujeito herda um organismo que amadurece
quando em contato com o meio físico e social. Da interação do organismo com o meio
ambiente resultam estruturas cognitivas que irão funcionar, de modo semelhante,
durante toda a vida do sujeito.

15 No Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, hereditariedade se refere a um conjunto de processos


biológicos que resultam na transmissão de caracteres de uma geração às outras por meio de genes.
24 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
❺ Esquema

Goulart (2000) caracteriza esquema como padrão de comportamento ou ação que


se desenvolve com certa organização, consistente num modo de abordar a realidade
e conhecê-la.
Rappaport (1981), por sua vez, descreve-o como uma unidade estrutural básica de
pensamento ou de ação que corresponde à estrutura biológica que muda e se adapta.
Um esquema é uma estrutura mental, um padrão de ação ou pensamento
estabelecido como um traço mnemônico que o indivíduo adquire mediante a prática
de movimentos provocados pelos mecanismos reflexos. Em seguida, esses padrões
são aplicados em situações similares àquela em que foram adquiridos.
De forma geral, pode-se dizer que todo esquema nasce da ação reflexa
e que, a partir de sucessivas repetições, se submete ao processo de adaptação,
tornando-se padrão de comportamento. Este, de seu lado, possibilitará novas formas
de exploração da realidade, alimentando outras adaptações.
Uma vez constituído, um esquema pode ser generalizado: de sua origem reflexo-
esquema-reflexo passa a ser utilizado voluntariamente como conteúdo psíquico
aparente, tornando-se um esquema propriamente dito.
Como unidade estrutural da mente, o esquema se caracteriza como elemento
dinâmico e variado em seu conteúdo, são móveis e ao se adaptarem, enriquecem o
repertório comportamental do sujeito.
Os esquemas podem ser simples, a exemplo do reflexo de sucção, e complexos,
como as operações lógicas voltadas para a resolução de problemas. Os esquemas
simples vão se organizando e integrando a outros, de modo a formarem esquemas
complexos.
Nessa esteira, pode-se dizer que o esquema serve como chave de ligação na
expansão do desenvolvimento cognitivo, à medida que a integração de vários
esquemas dão suporte para a emergência de estruturas psicológicas.

❻ Estrutura

As estruturas psicológicas, elementos constitutivos das funções mentais,


processam as respostas a determinados estímulos segundo suas peculiaridades,que
são identificadas como qualitativamente diferentes de pessoa para pessoa e nos mais
variados momentos do desenvolvimento intelectual. Goulart (2000, p. 19) salienta:
“[...] em cada momento do desenvolvimento intelectual uma estrutura é responsável
por uma forma particular de se abordar o meio e emitir uma resposta. Essa estrutura
está pronta e determina a qualidade da resposta”.
A autora acrescenta que, em cada idade, há um modo típico de se relacionar com o
meio, derivado de uma estrutura característica determinante de uma forma particular
de raciocínio.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 25
Uma estrutura é um sistema de transformação que comporta leis
enquanto sistema (por oposição às propriedades dos elementos) e que
se conserva ou se enriquece pelo próprio jogo de suas transformações,
sem que estas conduzam para fora de suas fronteiras ou façam apelo
a elementos exteriores. Em resumo, uma estrutura compreende os
caracteres de totalidade, de transformação e de autorregulação.
(PIAGET, 1970, apud GOULART, 2000, p.18)

As estruturas não são formas vazias ou abstratas. Elas se realizam em conteúdo


diverso de informações e, por isso, podem ser chamadas de estruturas de conhecimento
e de linguagem.
Até seis anos de idade, a criança constrói estruturas genéricas relacionadas com
o conhecimento especializado, tais como a operação mental classificatória,que
mais tarde,se torna umaestrutura de base para a compreensão da Matemática, do
Português e das Ciências, por exemplo.
Amorim (1987), oportunamente, indica que a criança brinca de descobrir relações
que estruturam o modo de pensar e agir pela linguagem e pela lógica, no tempo e
no espaço, em um campo social no contexto de relações socioafetivas. Assim, a
autora propõe que, no trabalho com a criança pequena, se priorizem as estruturas de
pensamento e ação relacionadas com a linguagem, com a lógica, com o espaço e o
tempo, com a psicomotricidade e com o socioafetivo.

❼ Processo de adaptação ou equilibração majorante

Processo que se torna necessário toda vez que o ambiente físico e social coloca o
sujeito diante das questões para as quais ele não tem resposta, rompendo com seu
estado de equilíbrio.
O sujeito, perante uma situação problema, busca comportamentos mais
adaptativos e, nesse processo, constrói conhecimento. Na perspectiva piagetiana, o
processo de adaptação à realidade externa depende da construção do conhecimento
que se processa a partir da equilibração majorante, o que proporciona uma adaptação
cada vez mais completa e eficiente.
A compreensão do conceito de equilibração majorante passa pelo entendimento
de que a noção de equilíbrio, na teoria piagetiana, está associada ao equilíbrio
progressivo ou majorante que não atinge jamais seu estado final de equilíbrio,
dando a entender que a noção de desenvolvimento é vista como infinita em sua
construção de novas estruturas.
O equilíbrio é apresentado como tendência inerente ao organismo, que luta
para estabelecer um equilíbrio de forças constantemente móvel e estável dentro do
organismo e da psique.

26 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Além disso, é preciso lembrar que a noção de equilibração está estreitamente atada
à noção de reversibilidade16,que rege os processos mentais e intelectuais superiores.
Mais especificamente, o processo de equilibração, responsável pela capacidade
adaptativa do sujeito, é motivado por situações novas que, ao mobilizarem uma
resolução, se utilizam de estruturas mentais já construídas ou, se necessário,
modificam-nas. Para tanto, é preciso a ação de dois processos complementares:
assimilação e acomodação. Ambos os processos são presentes ao longo de toda a
vida do sujeito.

Assimilação e acomodação não são duas funções separadas,e sim


dois polos funcionais, dispostos em oposição um ao outro, em forma
de adaptação. Assim, somente por abstração é que se pode falar
puramente de assimilação... mas devemos lembrar sempre que não pode
haver assimilação de nada no organismo ou seu funcionamento sem uma
acomodação correspondente.
(PIAGET, 1971, apud VASCONCELLOS, 1998, p. 51)

Assimilação e acomodação são mecanismos psíquicos instrumentais na


modificação e desenvolvimento da psique. Mas são veículos de aprendizagem e
servem para o sujeito dominar o ambiente que o cerca, constituindo-seinstrumentais
na mobilização de recursos, tais como esquemas, adquiridos em outro momento, que
moldam novos padrões onde e quando necessários.
Rappaport (1981) ressalta que o processo de equilibração se dá sucessivamente
em direção à aquisição do pensamento operacional formal. Até atingir esse tipo de
organização mental, o sujeito sofrerá modificações a ponto de atingir o padrão
intelectual que persistirá durante a idade adulta, quando não mais haverá aquisição de
novos modos de funcionamento mental, somente ampliação de conhecimentos, tanto
em extensão quanto em profundidade. O fato do adulto ter atingido as operações
mentais formais não significa que ele não experimentará desequilíbrios cognitivos,
significa apenas que, diante de um desequilíbrio, o adulto recorrerá ao mesmo tipo
de estrutura e ao mesmo tipo de funcionamento das já existentes. O mesmo não
ocorre com as crianças, que poderão recorrer à organização cognitiva já existente e
desenvolver novos processos de funcionamento mental.
Assimilação e acomodação– Assimilação se caracteriza por ser um dos processos
constitutivos da capacidade adaptativa, definido pela incorporação de novo objeto ou
ideia aos esquemas e estruturas já construídos.

16 Uma criança que apresenta fortes características egocêntricas não consegue, relativizar, isto é,
conduzir uma operação mental de trás para frente e de frente para trás,como por exemplo: se 4 = 2
+ 2; então, 2 + 2 = 4. Quando isso acontece,diz-se que a criança apresenta uma irreversibilidade no
pensamento. Contrário disso, diz-se que o pensamento é reversível.
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 27
Assimilação se dá quando a tentativa de resolução de uma situação é
realizada com base em estrutura mental já formada. Neste caso, a nova
situação ou o novo elemento é incorporado e assimilado a um sistema já
pronto. (RAPPAPORT, 1981, p.57)

Acomodação ocorre quando os esquemas e estruturas construídos não são


suficientes para resolver o problema em questão porque a situação externa se
apresenta de forma inédita, fato que desencadeia uma transformação, ou porque a
criança, devido à maturação neurológica, supera a utilidade do esquema que não lhe
serve mais, recorrendo às estruturas mais complexas.
A acomodação se diferencia da assimilação porque, nesse processo, se torna
necessário um ajustamento das estruturas antigas. Este tipo de ação cognitiva se
opera em função da não eficiência da assimilação na resolução de algumas situações
problema.

❽ Centração e descentração

A centração se caracteriza pela fixação da atenção em um só aspecto da realidade,


objeto ou situação. Suas transformações não são levadas em conta, privilegiando-se
seus aspectos finais.
Já a descentração permite coordenar internamente as relações que surgem de
pontos de vista diferentes, isto porque os conceitos conservam seus sentidos e suas
definições.

❾ Irreversibilidade e reversibilidade

Tais características do pensamento, revelam a incapacidade ou a capacidade das


ações e operações mentais, e de examinarem determinado problema por dois ou
mais pontos de vista.
A irreversibilidade do pensamento anuncia uma dinâmica psicológica egocêntrica17,que
marca as associações mentais tornando-as inadequadas do ponto de vista da lógica
formal. Caracteriza-se pela incapacidade de retroceder uma operação a seu ponto inicial.
O pensamento se torna reversível com a emergência da capacidade de inverter uma
operação na mente ou na ação. O equilíbrio que a criança atinge com o pensamento
reversível é altamente flexível e móvel. A criança pode distribuir suas forças, dirigi-las,
regulá-las para determinado propósito, sendo capaz de calcular sua ação, coordenar
meios e fins. Sua ação se torna racional, em vez de impulsiva, e a criança passa a
considerar simultaneamente uma ação e sua inversa ou sua equivalente, ou mesmo
uma ação realizada e uma não realizada, mas possível.

17 No egocentrismo, a criança entende o mundo a partir do seu ponto de vista, somente. O egocentrismo
se manifesta no desenvolvimento cognitivo da linguagem e na socialização, e entra em declínio após
o período pré-operatório.
28 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
❿ Estágios do desenvolvimento

Segundo a teoria piagetiana, na criança existe uma ordem rigorosa e invariável


na aquisição de novas capacidades. A essa ordem se dá o nome de “estágios do
desenvolvimento”. Eles se expressam por:
►► a) características dominantes, que são interdependentes e formam uma
totalidade, um todo estrutural;

►► b) rupturas no desenvolvimento da psique. Há uma aquisição súbita em


seu início, cujo ganho é consolidado e integrado a aquisições anteriores. Mais
tarde, prepara-se nova aquisição. Consequentemente, a passagem de um estágio
inferior para um superior é uma integração. Daí a noção de que o crescimento
psíquico é tanto contínuo como descontínuo;

►► c) aquisição de faculdades, habilidades e mecanismos psíquicos,


característicos de determinado estágio, variando consideravelmente de população
para população e, dentro da população, de indivíduo para indivíduo. Essa variação
é determinada tanto por um conjunto de fatores externos e intrínsecos quanto
pela experiência de vida anterior do indivíduo. Tais circunstâncias podem adiantar,
retardar, ou impedir as aquisições;

►► d) ordem serial das aquisições constante e universal.

Para Rappaport (1981, p. 63):

[...] o desenvolvimento consiste em uma passagem constante de um


estado de equilíbrio para um estado de desequilíbrio – para um equilíbrio
superior no sentido de que a criança terá desenvolvido uma maneira
mais eficiente (poderíamos até dizer, mais inteligente) de lidar com seu
ambiente”.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 29
Os estágios do desenvolvimento cognitivo anunciados por Piaget são assim
caracterizados:

Sensório-motor – Pré-operatório – Operações concretas – Operações formais –


até 2 anos de 2 a 7 anos de 7 a 12 ano de 12 anos em diante
• Indiferenciação entre o eu e o • Inteligência prática estruturada • Período de grandes aquisições • Formação de esquemas
mundo externo. decorrente dos esquemas intelectuais. conceituais abstratos e realização
sensoriais-motores e manifestação de operações mentais que
• Indissociação primitiva entre de egocentrismo no pensamento, • Declínio do egocentrismo seguem os princípios da lógica
mundo interno e mundo externo. linguagem e socialização. intelectual e crescente incremento formal.
do pensamento lógico.
• A consciência começa por um • Ausência de esquemas conceituais • Capacidade para criticar o
egocentrismo inconsciente e e de lógica, o pensamento se • Formação de esquemas sistema social e proposição de
integral (egocentrismo radical). caracteriza por uma tendência lúdica conceituais. novos códigos de conduta.
• Organização de esquemas que mistura realidade com fantasia, • Realidade estruturada pela
levando a uma percepção distorcida • Sucessão de hipóteses e testes
sensoriais-motores a partir dos razão e não mais pela assimilação
da realidade. delas na busca de generalização –
reflexos hereditários – inteligência egocêntrica. a aplicabilidade de leis gerais.
prática. • Surgimento da linguagem e dos • Conhecimento do real correto e • Consciência do próprio
• Organização inicial dos estímulos esquemas simbólicos juntamente adequado.
com a capacidade de representação. pensamento, oferecendo
ambientais.
Confusão entre objetos e pessoas • As ações físicas são justificações lógicas para seus
• Organização psicológica básica – atribuição de pensamentos e internalizadas e passam a ocorrer julgamentos.
dos aspectos perceptivo, motor, sentimentos aos objetos (animismo) mentalmente. O problema é • Busca de identidade e
intelectual, afetivo e social. e atribuição de causas humanas aos resolvido mentalmente,sem a autonomia pessoal.
fenômenos naturais (artificialismo). necessidade de experimentação
• Exploração do próprio corpo empírica. • Possibilidade de compreender
e desenvolvimento da base • Desenvolvimento de préconceitos doutrinas filosóficas e teorias
do autoconceito alicerçado no – noções a respeito de objetos. • Atitude crítica:a criança científicas.
esquema corporal (ideia que a Julgamento dependente de não aceita contradição no
criança forma acerca de seu próprio percepção imediata e sujeito a vários seu pensamento ou entre o • Forma final de equilíbrio.
corpo). erros. pensamento e a ação.
• Organização da realidade • Interesse por crianças da mesma • Necessidade de explicar
pela conquista da permanência idade em situações de brincadeira logicamente suas ideias e ações.
substancial dos quadros sensoriais paralela – fazer coisas juntos, porém
(noção de permanência dos objetos • Ações físicas internalizadas
sem uma interação efetiva. ocorrendo mentalmente.
– 9 meses).
• Dificuldade de considerar o outro • Operações mentais reversíveis e
• Primeiras noções de objeto, como pessoa diferenciada – extensão
tempo, espaço e causalidade. aquisição da noção de conservação
de si mesmo para os demais. e invariância.
• Estruturação de uma inteligência • Da linguagem egocêntrica à
prática, explícita ou sensório- • Julgamento se torna conceitual.
socializada – treino dos esquemas
motora. verbais recém-adquiridos • Esquemas conceituais regulados
obedecendo à tendência a maior por leis responsáveis pela coerência
socialização. do pensamento.
• Passagem gradual do ensamento • Linguagem socializada.
explícito ou motor para o
• Interação social descentralizada
pensamento interiorizado.
de si e aceitação das regras.
• Compreensão lógica e adequada
da realidade com a percepção
diferenciada de si.

Fonte: Quadro elaborado a partir das informações encontradas em PIAGET, J.; INHLEDER, B. A psicologia da criança.São Paulo:
Bertrand Brasil, 1989;e RAPPAPORT, C. R. Teorias do desenvolvimento: conceitos fundamentais. v. 1. São Paulo:EPU, 1981.

30 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Analisando a caracterização dos estágios, pode-se pensar em um esquema figurativo
sobre a orientação do desenvolvimento e aprendizagem assim sistematizado:

1.3 | O EGOCENTRISMO RADICAL DOS BEBÊS: PONTUAÇÕES TEÓRICAS


ÚTEIS AO TRABALHO NO BERÇÁRIO

A análise dos processos de desenvolvimento e aprendizagem em bebês e crianças


de até dois anos de idade se baseia, sobretudo, nos escritos piagetianos sobre o
período sensório-motor, destinado à construção do real na criança.
Piaget (2002) pontua que o mundo, para o recém-nascido, se organiza de forma
caótica, cujos objetos desaparecem continuamente quando fora do campo perceptual
da criança. O mundo é percebido de forma fragmentada18, onipotente e egocêntrica,
isto porque a existência de determinados objetos prescinde que este seja percebido
pela criança. Caso contrário, o objeto não existe, diz-se que não há permanência do
objeto ou o objeto não é permanente e constante.
Nesse particular, é importante ressaltar que a criança não concebe a permanência
de qualquer objeto, e isso inclui a permanência da mãe e das pessoas significativas
para ela. Esse aspecto da organização mental explica porque a criança chora,
copiosamente, quando sua mãe ou a berçarista com quem é mais apegada sai do seu
campo visual, e porque se acalma ao ouvir suas vozes ou sentir seu cheiro. O choro,
nesse caso, revela forte sensação de estar só, sem seu objeto de amor. Portanto
deve ser levado a sério e nunca ignorado; deve ser compreendido não como um
problema, mas como manifestação da emergência da inteligência da criança, forma
de comunicação que deve ser retribuída para que se estruturem ou reestruturem os
esquemas mentais.
Ao responder ao choro da criança, o adulto estará proporcionando a ela uma
experiência relacionada, entre outras, com a noção de causalidade. O estabelecimento
da noção de causalidade se estabelece em uma relação de causa e efeito. Nesse caso, o
choro é a causa e a resposta do adulto é o efeito, que não precisa ser necessariamente
a oferta de colo, mas deve ser algum tipo de resposta tal como um simples: – Estou
aqui, bem pertinho de você!

18 Em quadros, como slides sem conexão entre si. Desenvolvimento e aprendizagem


na infância 31
Logicamente, o tipo de resposta do adulto dependerá do conteúdo emocional do
choro do bebê, mas não deve ser nunca o silêncio e a indiferença ao choro da criança.
Nessa dinâmica, inicia-se o desenvolvimento da competência social infantil que variará
para outros comportamentos,como gestos quando o bebê arrebita o corpo para ser
pego no colo ou quando estende os braços para um adulto, com a clara intenção de
ser carregado por ele.
Como proposição desta reflexão, pode-se identificar que um dos pontos centrais
da construção do real na criança é a noção de objeto permanente ou conservação do
objeto, que se dá quando a criança concebe que o objeto continua existindo mesmo
sem ser percebido por ela. Isso implica a emergência da estruturação da noção de
tempo, espaço e causalidade.
Lajonquière (1997) alerta para a necessidade de compreensão do conceito
de objeto como um fragmento da cultura a ser reconstruído pela criança em sua
interação com o objeto. Portanto, objeto não é um ente físico, algo externo ao sujeito
que, passivamente, o incorpora, isso porque a criança não assimila algo puro, mas
sim situações nas quais os objetos cumprem determinadas funções definidas pela
cultura. Daí, o objeto está inferido no contexto de uma realidade intelectual, isto é, o
objeto é situado ou intelectualizado por outras inteligências.
A clássica brincadeira de colocar uma fralda na cabeça, escondendo-se da
criança, para logo em seguida aparecer, pode ser tomada como exemplo de uma
boa experiência que auxilia a estruturação de esquemas mentais relacionados com a
construção da permanência do objeto, da noção de tempo, do espaço e da causalidade
na criança. A análise detalhada desta brincadeira demonstra a existência de uma
articulação entre estar dentro ou fora da área coberta pela fralda em determinado
período de tempo,e, ainda, ao puxar a fralda, o objeto reaparece, estabelecendo
assim uma relação de causa e efeito, a causalidade.
Piaget (2002) relata, minuciosamente, suas observações de crianças no período
sensório-motor na busca de brinquedos escondidos com deslocamento visível e invisível.
Quando a criança reconhece a interdependência da existência do objeto
nas dimensões de tempo, espaço e causa e efeito começa a atribuir causa de
transformações dos objetos independentemente de sua ação. A partir deste ponto ela
descobre o universo e se situa na realidade de maneira cada vez menos egocêntrica.
Segundo Piaget (2002), os primeiros objetos permanentes são pessoas porque
são objetos muito presentes, ativos e afetivamente significativos na vida da criança,
especialmente a figura materna19. Os objetos-pessoas passam a ser vistos pela criança
como fontes autônomas de ação.
A construção do objeto permanente inclui, ainda, a conquista da consciência
da própria perceptibilidade,que possibilita à criança se reconhecer como objeto da
percepção do outro. A criança compreende que o outro é um ser que percebe e que,
em interação social, é vista e ouvida pelo outro.

19  Essa constatação colabora para a afirmação de que a cognição e a afetividade caminham


juntas: a segunda impulsiona a primeira, e a primeira explica como a segunda se torna possível. (LA
TAILLE, 2002, in PIAGET, 2002).
32 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Esse processo de tomada de consciência foi assim resumido por Piaget (2002, p.
20-21)

É quando o sujeito está mais centrado sobre si mesmo que ele se


conhece menos, e é à medida que se descobre que se situa em um
universo e o constitui. Em outros termos, o egocentrismo significa ao
mesmo tempo ausência de consciência de si e ausência de objetividade,
ao passo que a construção do objeto enquanto tal caminha junto à
tomada de consciência de si.

Piaget (2002) identificou seis etapas do período sensório-motor,assim


caracterizadas:

Etapas Conceito de objeto20

1ª) Etapa dos reflexos (até 1 mês).


2ª) Etapa dos primeiros hábitos ou primeiras adaptações Não existência da noção de objeto permanente, presença de
adquiridas e a reação circular primária (1 a 4 meses). coordenações entre vários esquemas (preensão/visão, preensão/audição)
– início da aquisição da noção de um único mundo externo.
O bebê olha para o que ouve – primeiro passo na constituição do objeto
permanente.
3ª) Etapa das reações circulares secundárias e os Diante do desaparecimento do objeto, o bebê apresenta um
processos destinados a fazer durar os espetáculos comportamento restrito de busca, limitando-se a acompanhar a trajetória
interessantes (4 a 8 meses). do objeto. Não ocorre a busca ativa do objeto que não esteja dentro de
seu campo perceptivo.
4ª) Etapa da aplicação dos meios conhecidos às novas A criança apresenta comportamento de busca ativa dos objetos que são
situações ou coordenação dos esquemas secundários e retirados de seu campo perceptivo. A busca não se limita à trajetória
sua aplicação às novas situações (8 a 12 meses). percorrida pelo objeto antes de sumir. A criança age como se pensasse
da seguinte forma: o objeto continua a existir, mesmo que não esteja
acessível aos meus sentidos, e poderá ser encontrado no local onde
desapareceu pela primeira vez. Com isso, a criança revela sua limitação
que corresponde à impossibilidade de prever deslocamentos sucessivos
do objeto.
5ª) Etapa da procura ativa do objeto desaparecido, A criança já leva em conta os deslocamentos sucessivos dos objetos.
porém sem considerar a sucessão dos deslocamentos Isso quer dizer que a criança percebe que os deslocamentos se dão
visíveis ou a reação circular terciária e a descoberta de em uma continuidade de tempo e de espaço, superando a percepção
novos meios por experimentação ativa (12 a 18 meses). fragmentada das etapas anteriores. A criança nesta etapa não é capaz de
fazer inferências e não prevê a possibilidade de movimentos invisíveis do
objeto.21
6ª) Etapa da consideração dos deslocamentos O objeto desaparecido continua a existir para a criança
sucessivos e invisíveis do objeto ou a invenção de novos independentemente de sua percepção. O comportamento de busca é
meios por combinação mental (18 a 24 meses). adequado e a criança consegue considerar os deslocamentos invisíveis.
Este fato revela a capacidade de a criança representar mentalmente os
eventos, isto é, ela imagina o deslocamento e o leva em conta quando sai
à procura do objeto.

20 Síntese elaborada a partir de Rappaport (1981).  


21 Conforme proposição de atividade, utilize a brincadeira curro-curro para observar a capacidade de
a criança buscar o objeto escondido   Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 33
Na primeira e na segunda etapas, a realidade se apresenta à criança como quadros
suscetíveis de reconhecimento, porém sem permanência ou organização espacial.
Não se observa nenhuma conduta especial relativa aos objetos desaparecidos.
Na terceira etapa, observa-se o início de permanência do objeto que se confere às
coisas em prolongamento dos movimentos de acomodação – as reações circulares
secundárias22. Nenhuma procura sistemática para reencontrar os objetos ausentes é
observada.
Em etapa posterior, surge a aplicação de meios conhecidos às novas situações com
a apresentação de comportamento de busca de objetos desaparecidos. No entanto, a
criança não consegue, ainda, considerar seus deslocamentos.
A quinta etapa se caracteriza pela busca ativa do objeto desaparecido, sem
considerar a sucessão de deslocamentos visíveis. Já na sexta etapa, a criança
leva em conta os deslocamentos sucessivos e invisíveis do objeto, isso porque há
representação dos objetos ausentes e de seus deslocamentos.
Aos poucos, a criança estabelece uma organização mínima para o jogo de
escondeesconde, obviamente sem se submeter às regras complexas, porque esta
capacidade é típica de crianças mais velhas. Observe como é extremamente excitante
e prazeroso para a criança descobrir o objeto-pessoa que se esconde embaixo de uma
fralda, depois do travesseiro, atrás da porta, e assim por diante, chegando ao ponto
de a criança procurar em vários lugares, até descobrir o que procura.
O desenvolvimento do período sensório-motor se orienta em direção ao
pensamento representativo e, neste âmbito, decorrem os estudos sobre a imitação
e o jogo simbólico.

[...] o que marca a passagem do estágio sensório-motor para o seguinte


(pré-operatório) é a emergência da função simbólica ou semiótica,
ou seja, a capacidade de trabalhar com representações.
(LA TAILLE, 1996, p. 8)

Sobre a capacidade de imitar, a obra piagetiana, esclarece que esta tem sua gênese
no começo da vida. Nos quatro primeiros meses, ela é primitiva, desencadeada em

22 Reações circulares se estruturamquando resultados obtidos por acaso são conservados por
repetição. Rappaport (1981), baseando-se em Piaget (1975), a caracteriza como exercício funcional
adquirido que prolonga o exercício reflexo e alimenta e fortifica um conjunto sensório-motor
com novos resultados. As reações circulares possibilitam a incorporação cada vez maior dos dados do
ambiente, atuando, em nível crescente de complexidade, no processo de adaptação da criança com
o meio. Diz-se reação circular primária porque o conteúdo dos comportamentos está relacionado
com o próprio corpo do bebê e estritamente relacionado com os mecanismos hereditários. A reação
circular secundária ocorre quando a ação da criança está voltada para o meio, com o objetivo de
repetir resultados interessantes; terciária,quando a criança apresenta a conduta de suporte, isto é,
utiliza um objetivo como suporte para conseguir atingir outro.
34 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
uma espécie de contágio23. Aos cinco meses, a imitação passa a ser controlada pela
intenção e se torna comportamento sistemático ainda com sérias limitações, uma vez
que o bebê imita apenas o que já sabe fazer. Nesta etapa, ele não copia modelos novos
e não consegue imitar gestos que correspondem a partes invisíveis de seu corpo.
No início do segundo ano de vida, muitas limitações da capacidade imitativa são
superadas e, aos 18 meses, a criança já consegue imitar modelos ausentes, e tem-se a
emergência da imitação diferida.
A imitação diferida revela a entrada da criança no mundo simbólico, dado
que se sustenta na formação de imagens mentais, preparando a capacidade de
representação.
Por sua vez, o jogo simbólico,ou faz de conta,se desenvolve paralelamente ao
desenvolvimento da capacidade imitativa, e aflora juntamente com a imitação diferida
aos 18 meses. La Taille (2002) chama a atenção para a capacidade de a criança, nesta
idade, já se reconhecer no espelho, indicando a emergência da consciência de si como
objeto perceptível no mundo.
A convergência desses indicadores do desenvolvimento assinala a constituição do
objeto permanente situado no tempo e no espaço, e na relação de causa e efeito. De
maneira geral, pode-se dizer que os primeiros pré-conceitos – esquemas verbais –
nascem dos esquemas sensórios-motores e representam a gênese da capacidade de
a criança situar-se no universo.
Com a diminuição do egocentrismo, a criança é capaz de organizar o real, de
forma a descobrir-se e situar-se como uma coisa entre as coisas, um acontecimento
entre os acontecimentos (PIAGET, 2002).

1.4 | UM OLHAR MAIS DE PERTO PARA A CRIANÇA EGOCÊNTRICA E PRÉ-


OPERATÓRIA

A construção do real na criança pré-operatória ganha outros contornos derivados


daqueles explicitados no período sensório-motor. A busca da criança continua sendo
pela adaptação e equilibração, condições constantemente ameaçadas pelos desafios
próprios do contato da criança com o meio e pelo desenrolar da maturação neurológica.

23  Em berçários, é muito comum ocorrer o choro por contágio, o que leva várias crianças a chorar
ao mesmo tempo. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 35
O repertório comportamental e a organização da vida mental da criança
préoperatória se baseiam inicialmente nos esquemas sensórios-motores e nas
estruturas cognitivas em formação, que sustentam a emergência da função simbólica24.
A função simbólica reforça a interiorização das ações. Tal fato possibilita a
reconstrução de situações passadas através da imagem mental. Dessa forma, pode-
se dizer que o pensamento representativo que emerge no período pré-operacional
possui um aspecto figurativo e outro operativo. O aspecto figurativo se sustenta pela
percepção e pela imagem mental, e o aspecto operativo se refere à ação cognitiva.
Assim, a criança, gradativamente, torna-se pré-operatória, apresentando forte
tendência lúdica e uma despreocupação com a possibilidade de comprovação empírica
de seus julgamentos sobre a natureza, sobre as relações de causalidade, entre outros.
A criança pré-operatória também está despreocupada com a aceitação social de
suas explicações, quase sempre mágicas. Essa dinâmica do pensamento infantil se
caracteriza como egocêntrica.
No pensamento egocêntrico predomina uma visão de mundo construída a partir
do referencial do próprio eu, mesmo que ainda inconsciente de si mesmo. A criança
préoperatória vive seu pensamento, mas não pensa sobre seu pensamento, daí sua
despreocupação com sua veracidade. Em sua concepção, a criança experimenta um tipo
de isolamento de ideias, porque se fundamenta na mágica, na fantasia e na imaginação.
No pensamento egocêntrico, as ideias não são socializadas, não são confrontadas
com as ideias de outras pessoas.
O egocentrismo do pensamento faz com que a criança apresente uma tendência
a pensar que cada um de seus pensamentos é comum a todas as pessoas e, por isso,
pode ser compreendido. Além disso, o egocentrismo se caracteriza pela falta de
recursos cognitivos da criança para considerar, diferenciando e integrando os estados
das coisas, bem como suas transformações.

[...] são egocêntricas porque ignoram a natureza do seu próprio


pensamento (e também do pensamento dos outros), ou simplesmente
porque falam e pensam para si mesmas, estendendo o seu próprio
conteúdo a todos os outros seres vivos, humanos ou não, bem
como a objetos inanimados.
(RAPPAPORT, 1981, p. 43).

24 Função simbólica – consiste na representação de alguma coisa (objeto, acontecimento, esquema


conceitual e significado) por meio de um significante diferenciado exclusivo da representação em
questão. A função simbólica se expressa na linguagem, na imagem mental, nos gestos simbólicos,
entre outros. A função simbólica pode ser corretamente substituída por função semiótica para se referir
aos funcionamentos fundados no conjunto dos significantes (símbolos, sinais) diferenciados. “o que
caracteriza a função simbólica é uma diferenciação entre o significante e o significado. Os símbolos
e sinais (significantes),quando diferenciados de suas significações (significados),vão permitir evocar
objetos e situações, o que constitui o começo da representação” (PIAGET& INHELDER, 1988,p. 47-
48). Para esses autores, a função semiótica aparece simultaneamente com cinco outras condutas
apresentadas na ordem de complexidade crescente: 1º)imitação diferida; 2º)jogo simbólico; 3º)
desenho ou imagem gráfica; 4º)imagem mental;5º)evocação verbal de acontecimentos não atuais.
36 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
O egocentrismo intelectual pode se manifestar de várias formas, assim previstas:

Tipos de manifestações do egocentrismo intelectual25


1) equilíbrio a criança apresenta certo equilíbrio com relação às suas ações e um equilíbrio instável do pensamento.
Há um predomínio da assimilação sobre a acomodação.
2) justaposição, transdução o pensamento não consegue organizar seus elementos em sistemas coerentes. As informações são
e sincretismo justapostas, colocadas lado a lado26 por semelhanças ou diferenças.
A transdução se caracteriza por uma agregação, uma junção dos elementos que podem ou não
manter relações lógicas entre si. A ligação é feita de maneira arbitrária. A criança estabelece
conexões sincréticas entre atos ou fatos que não estão logicamente conectados, fazendo com
isso generalizações indevidas27. Ela liga tudo com tudo a partir de uma percepção global que não
discrimina detalhes e não faz análise detalhada.
3) irreversibilidade a criança não adquiriu a noção de invariância (que os objetos têm identidade própria mesmo que
sua aparência mude). Isto somado à ausência do pensamento conceitual provoca distorções e
deformações de julgamentos e impede que a criança apresente um pensamento reversível.28
No período pré-operatório o pensamento apresenta-se como semirreversível.
4) centralização pensamento centralizado é o mesmo de pensamento rígido e inflexível, em função da
impossibilidade da criança levar em conta várias relações ao mesmo tempo.29
5) realismo intelectual confusão de palavras com coisas, pensamentos com objetos do pensamento. A criança toma como
verdade uma percepção momentânea.30
6) animismo e artificialismo animismo – a criança atribui alma humana a objetos inanimados;31 artificialismo – atribui causas
humanas aos fenômenos naturais.32

25 O egocentrismo intelectual diminui quando a criança consegue expor seu ponto de vista como um,
apenas, no conjunto de todos os pontos de vista possíveis. Ou quando consegue tomar conhecimento
de si própria como sujeito e desligar o sujeito do objeto, de maneira a não mais atribuir aos últimos
as características do primeiro. Ou ainda quando deixa de considerar seu próprio ponto de vista como
único possível e consegue coordená-lo com o conjunto dos outros (RAPPAPORT, 1981, p. 47-48).
26 Se se pedir a umacriança que organize vários objetos, por exemplo carrinhos e aviõezinhos, ela
não irá separá-los em duas categorias, mas, sim, organizá-los em uma fila interminável,que pode
atravessar uma pequena saleta. Não há noção de classes ou categorias porque ainda não se constituiu
a relação de inclusão. A criança trabalha com pré-conceitos.  
27 Essa característica explica porque uma criança pode querer tomar banho e vestir uma determinada
roupa, porque associa esse ritual com a chegada do pai, independentemente de ter percebido a
dimensão temporal desse episódio.  
28 Provavelmente por essa característica, é difícil para a criança admitir que uma história possa
ter mais de um jeito de ser contada, fazendo com que ela apresente certa intolerância a qualquer
modificação do enredo, como se esta fosse descaracterizar a história em foco, transformando-a em
outra história.  
29 Provavelmente por essa característica, é difícil para a criança admitir que uma história possa
ter mais de um jeito de ser contada, fazendo com que ela apresente certa intolerância a qualquer
modificação do enredo, como se esta fosse descaracterizar a história em foco, transformando-a em
outra história.  
30 É comum a criança desenhar uma casa com vista externa e frontal, com detalhes de luz e
mobiliários e até escadarias, como se a parede frontal da casa fosse transparente e permitisse ao
observador ter visão de raios-X como o super-homem. Esse fenômeno indica que a criança: “desenha
conforme entende a situação,e não conforme a vê” (RAPPAPORT, 1981, p. 47).  
31 Uma criança,ao ganhar um coelhinho de chocolate na Páscoa, apronta-se para serrar seus
bracinhos. Um adulto ingênuo ou maldoso, a seu lado exclama, com voz de bichinho mimoso: – Ai,
meu bracinho, está doendo!. A criança imediatamente recua e põe-se a chorar, com remorso. 
32 Para a criança são os homens, e de preferência o pai, que fizeram os rios, as montanhas, etc...
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 37
A socialização da criança egocêntrica, embora restrita, inclui os familiares e alguns
adultos e crianças. o relacionamento estabelecido é autocentralizado, isso porque
ainda permanece certa indiferenciação entre o “eu” e o “outro”.
O contato estabelecido entre crianças, por exemplo, prioriza um estar junto,e não
um fazer coisas juntas de modo complementar. A esse padrão de relacionamento
em situações lúdicas diz-se jogo paralelo. O jogo paralelo não é uma brincadeira
cooperativa, sendo comum a emergência de situações de confronto, disputa e
conflitos. Não há troca nem ajuda mútua.
Com a diminuição do egocentrismo,ao longo do período pré-operacional, a
cooperação aparecerá e a brincadeira evoluirá para os jogos simbólicos, de imitação
ou de faz de conta. Tanto no jogo paralelo quanto no simbólico observa-se uma
projeção dos esquemas simbólicos e dos esquemas de imitação nos objetos novos,
e, ainda, em um estágio mais elaborado, é possível identificar que a criança realiza
combinações simples de várias representações para compor cenas, bem como
combinações compensatórias que substituam situações proibidas a ela e combinações
liquidantes com o objetivo de lidar melhor com suas emoções, superando seus medos,
por exemplo.
Até os sete anos, o brincar da criança pré-operatória tende a ordenar-se segundo
uma imitação exata da realidade. Além disso, a criança já consegue sustentar um
simbolismo coletivo, isto é, brincar em conjunto com papéis definidos para cada
participante. O simbolismo coletivo, de certa forma, anuncia a emergência do jogo de
regras que irá emergir no período das operações concretas.
A linguagem também se manifesta de forma egocêntrica e, por isso mesmo,
criativa. Esse aspecto da linguagem egocêntrica, associado ao egocentrismo
intelectual, é responsável pelo reconhecimento do período pré-operatório como o
mais inventivo dentre todos. Além de a criança referir-se a si mesma usando a terceira
pessoa do singular, é capaz de criar diferentes palavras para denominar objetos
corriqueiros ou mesmo emoções próprias.

Um bom exemplo de linguagem egocêntrica está no
livro infantil intitulado: Marcelo, marmelo, martelo, de
Ruth Rocha, também em CD, com músicas relacionadas
com as temáticas da história. Veja, igualmente, o livro
infantil O fazedor de amanhecer,
de Manoel de Barros, com
ilustração de Ziraldo. O Reizinho
Mandão,de Ruth Rocha; Suriléia-
mãe-monstrinha, de Lia Zatz;
Quando mamãe virou um monstro,
de Harrison, J. Trata-se de bom
material para discutir a socialização
egocêntrica.

38 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A linguagem da criança egocêntrica se aproxima da linguagem dos poetas,
reiventando os sentidos, como se pode perceber em O fazedor de amanhecer, de
Manoel de Barros (2001, p. 8-9):

Sou leso em tratagens com máquina.


Tenho desapetite para inventar coisas prestáveis.
Em toda minha vida só engenhei 3 máquinas.
Como sejam:
Uma pequena manivela para pegar no sono
Um fazedor de amanhecer
Para usamentos de poetas
E um platinado de mandioca para o fordeco de meu irmão.
Cheguei de ganhar um prêmio das indústrias
automobilísticas
pelo platinado de Mandioca .
Fui aclamado de idiota pela maioria das autoridades na
entrega do prêmio.
Pelo que fiquei um tanto soberbo.
E a glória entronizou-se para sempre em minha existência.

O egocentrismo se apresenta na criança como uma limitação do desenvolvimento


que pode ser superada a partir do desenrolar do processo de adaptação. Cabe ao
adulto propiciar situações que possam, ao mesmo tempo, desequilibrar a criança que
faz um juízo parcial da realidade, por meio da vivência de um conflito sociocognitivo,
em direção a uma dinâmica o mais próxima possível do pensamento socializado,
fundado na aplicação da lógica formal.
Por isso, o estágio pré-operatório é considerado uma fase de transição entre a ação
e a operação, e prepara a criança para o estágio das operações concretas através da
capacidade interativa mediada por imagens, lembranças, imitações diferidas, jogos
simbólicos, evocações verbais, desenhos, dramatizações. Macedo (2002) sugere
que, no estágio pré-operatório, a criança pode representar e, ao mesmo tempo,
simular situações sofisticando sua atividade sensório-motora rumo à construção do
pensamento formal que será desenvolvido no estágio das operações concretas.
Para Macedo (2002), um dos principais objetivos da educação da criança no
estágio pré-operatório é o de ensinar a observar os fatos, principalmente aqueles que
provocam desequilíbrio com relação ao julgamento egocêntrico. Além disso, a criança
deve ser instigada a perguntar, interpretar e registrar. Estas conquistas devem ocorrer
no contexto de atividades em grupos de crianças, coordenadas ou não pelo professor.
Macedo (2002) sublinha que, preferencialmente, o adulto deve interferir pouco
em situações em que as crianças estejam trabalhando em equipe, isto é, brincando,
falando, discutindo, resolvendo problemas práticos. Isso porque a passagem da ação
à operação mental exige a capacidade de a criança reconstruir suas ações no plano
da representação, superando, com isso, o egocentrismo intelectual,e, para tanto, Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 39
é importante que a criança enfrente o julgamento, a aceitação e a cooperação do
grupo. A intenção é levar a criança a falar sobre suas ações, reconstruindo-as por via
narrativa, aprendendo a descrevê-las em palavras e desenhos.

1.5 | QUANDO OCORRE A DILUIÇÃO DO EGOCENTRISMO: A EMERGÊNCIA


DAS OPERAÇÕES CONCRETAS

Piaget e Inhledre (1989) indicaram três níveis de passagem da ação à operação,


relativos aos estágios sensório-motor e pré-operatório até chegar às operações
concretas. Os três níveis são marcados pela emergência e pelo desenvolvimento da
capacidade representacional.
O primeiro nível destaca a necessidade da reconstrução, no plano da representação,
do que já fora adquirido no plano da ação; osegundo nível sublinha a descentração
no plano da representação;e o último nível se caracteriza pela inclusão de pessoas,
exteriores e análogas ao eu, no universo da representação. Com a diferenciação
e a coordenação de perspectivas distintas e múltiplas, propiciadas pela noção do
outro, tem-se, além da descentração no universo físico, a descentração no universo
interindividual ou social.

[...] o aspecto cooperativo constitui condição sine qua non da


objetividade da coerência interna (equilíbrio) e da universalidade das
estruturas operatórias.
[...] as construções e a descentração cognitivas, necessárias à elaboração
das operações, são inseparáveis de construções e da descentração
afetivas e sociais. (PIAGET; INHLEDRE, 1989, P.83)

A característica das operações concretas perfila na emergência da descentração


cognitiva, social e moral. A relação com o real se dá mediante ações internalizadas e
reversíveis, capazes de reverter ou compensar aquilo que foi feito inicialmente. Esta
capacidade reversível permite que o pensamento seja adaptado, que não deforme a
realidade.
Assim, no período das operações concretas as crianças, ainda precisam de uma
situação concreta como referência para pensar. A abstração somente será possível no
estágio seguinte, com a emergência das operações formais.
Quanto à dimensão cognitiva, tem-se que a lógica do pensamento operatório
consiste em operar, agir sobre as coisas e/ou sobre as pessoas, empregando
agrupamentos ou estruturas por meio de ações reversíveis.
Agrupamentos operatórios se caracterizam por serem estruturas cognitivas
concretas elaboradas pelo indivíduo entre os 7, 11 e 12 anos de idade. Sua função
essencial consiste em organizar os diversos domínios da experiência (noções de peso,
volume, área, etc.), mas sem que haja ainda completa diferenciação entre o conteúdo
e a forma, uma vez que isto ocorre apenas no estágio das operações formais.

40 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Classificação, seriação, correspondência termo a termo são exemplos de
agrupamentos operatórios. Constituem encadeamentos progressivos até atingirem
mobilidade inteiramente reversível, consequentemente possibilidade de dedução
coerente.
Sobre as dimensões social e moral, Piaget e Inhledre (1989) aludem à capacidade
de coordenação de pontos de vista e de cooperação nas ações e nas informações que
possibilitam a socialização do eu. Nas operações concretas, a afetividade se amplia
para além das relações familiares, e os sentimentos morais, inicialmente marcados
por uma obediência relativa à autoridade sagrada, ganham contornos de respeito
mútuo e reciprocidade, noções de justiça.
Nesse contexto, tem-se a emergência da cooperação. Realizar operações conjuntas
é cooperar, porém nem toda ação conjunta corresponde à cooperação. Cooperação
requer ação conjunta, motivada por atingir um objetivo, e se constitui por meio da
realização de operações lógicas coordenadas e conjuntas.
A capacidade de cooperação de um sujeito está diretamente associada com
sua capacidade operatória, ações interiorizadas, reversíveis, que se coordenem em
estruturas totais formando sistemas.
Desta forma, tem-se o sujeito que, embora ainda não prescinda da experiência
concreta para operar deduções, apresenta como característica marcante a
descentração cognitiva, social e moral.

Notas finais
Ao finalizar a apresentação das noções básicas pertinentes à teoria piagetiana, é
preciso destacar, mais uma vez,que a compreensão dos processos de desenvolvimento
e aprendizagem, característicos de cada estágio do desenvolvimento, passa
pela preservação dos conceitos estruturais da teoria. Com isso se quer dizer que a
caracterização dos estágios não se apresenta como produto simplesmente. Estes,
antes de tudo, são processos que se sustentam pela ação dos determinantes do
desenvolvimento que garantem o contínuo processo de equilibração e de constituição
de esquemas e estruturas cognitivas. Assim, pode-se compreender que, no contexto
da Educação Infantil, merecem destaque o estágio sensório-motor, em especial
a questão do objeto permanente, e o estágio pré-operatório, que opera a partir da
capacidade representativa e da função simbólica.
O egocentrismo surge como eixo condutor da análise do desenvolvimento que se
manifesta, inicialmente, no sensório-motor, na forma de um egocentrismo radical e
inconsciente, e se estende ao pré-operacional como egocentrismo intelectual, social
e da linguagem.
A diluição do egocentrismo se dá em função da emergência de esquemas sensoriais
e cognitivos que, paulatinamente, se formam e propiciam uma equilibração cada vez
mais próxima das exigências da realidade, tal qual está formalmente constituída.
Ao compreender estas noções, o leitor poderá se perceber como agente social
capaz de propor situações cujo potencial de estimulação desafie a ação da criança
na direção da reconstrução do conhecimento. E, ainda, ao trabalhar as questões
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 41
indicadas nas notas de rodapé deste texto, o leitor poderá se postar como sujeito
ativo na construção de seu conhecimento, à medida que se apropria do exercício entre
teoria e prática, reinventando sua maneira de aprender e aplicar seus conhecimentos.

SUGESTÕES DE ATIVIDADES E LEITURA

Atividade ❶
Como exercício para compreensão da dinâmica do desenvolvimento, procure
identificar as superações e as limitações de desenvolvimento da criança presentes em
cada estágio. Como sugestão, você pode utilizar o quadro assim configurado:

Pré- Operações
Sensório-motor
operatório concretas
Superação 1ª etapa 2ª etapa 3ª etapa 4ª etapa 5ª etapa 6ª etapa

Limites

Atividade ❷
É comum ocorrer de crianças egocêntricas não comunicarem suas intenções e
serem mal interpretadas. Imagine a seguinte cena: um menino de três anos, vestido
de guerreiro com uma espada na mão, oferece outra espada para sua mãe. A mãe,
distraída, conversando com outro adulto, é surpreendida com violento golpe de
espada na cabeça. Converse com seus colegas e interprete a cena à luz do conceito de
egocentrismo. Se você fosse o adulto envolvido nesta interação social, de que modo
agiria com a criança?

REFERÊNCIAS

AMORIM, M. Atirei o pau no gato: a pré-escola em serviço. São Paulo:Brasiliense,


1987.
BECKER, F. O que é construtivismo. In: ALVES, M. L. (org.). Construtivismo em
revista. Série Ideias, 20. São Paulo: [s.n.], 1994. p.87-94.
DE LATAILLE, Y.;OLIVEIRA, M.;DANTAS, H. Piaget, Vygotsky e Wallon: teorias
psicogenéticas em discussão. São Paulo:Summus, 1992.
42 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
GOULART, I. B. (org.) A educação na perspectiva construtivista: reflexões de uma
equipe interdisciplinar. Petrópolis, RJ:Vozes, 1995.
LANJONQUIÈRE, L. de. Piaget: notas para uma teoria construtivista da inteligência.
In: Psicologia USP. v.8, nº 1. São Paulo, 1997, disponível em: <http://www.scielo.br/
scielo.php?pid=S010365641997000100008&script=sci_arttext&tlng=pt>. Acesso em:
10 maio 2005.
MACEDO, L. A perspectiva de jean Piaget. In: Série Ideias, nº 2. São Paulo:FDE,
1994.p. 47-51. Disponível em: <http://www.crmariocovas.sp.gov.br/pdf/ideias_02_
p047-051_c.pdf>. Acesso em: 10 maio 2005.
PIAGET, J. A construção do real na criança. São Paulo: Ática, 2002. (1. ed. 1967).
PIAGET, J.; INHLEDER, B. A psicologia da criança.São Paulo, Bertrand Brasil, 1989.
RAPPAPORT, C. R.; FIORI, W. R. da.; DAVIS, C. Teorias do desenvolvimento.v. 1, 2,
3 e 4. São Paulo:EPU, 1981.
SEVERINO, A. J. relações entre Epistemologia, Psicologia e Educação. In: ALVES, M.
L. (org.). Construtivismo em revista.Série Ideias, 20. São Paulo: [s.n.], 1994. p. 15-22.
VASCONCELLOS, V. Co-construtivismo na Psicologia. Tese apresentada para
concurso de titular na Universidade Federal Fluminense.Niterói, 1996.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 43
44 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A diferenciação pode ser compreendida como a capacidade de nos distinguirmos
de outra pessoa, de nos reconhecermos distintos do outro.
Dito em termos genéricos, até parece que o fato de sabermos nosso nome,e
que não somos a mesma pessoa que nossa mãe ou quem nos materna, já é
o suficiente. Ledo engano. A diferenciação é um processo complexo que concorre
para a construção de nossa identidade e se dá na articulação das dimensões sociais,
cognitivas e afetivas. Pensemos na simples pergunta: quem sou eu?, pois é isso que
está em jogo em Faca sem ponta, galinha sem pé, outra obra de Ruth Rocha. Desta vez,
a pergunta se aplica às questões de gênero, mas também podia referir-se
às questões raciais, mesmo religiosas, classe social e todas as diferenças
que marcam o ser humano e, em seu nome, recebem um significado.
Diante disso, sabe-se que a humanidade tem problemas em
compreender a experiência da diferença como valor humano positivo.
Diante do diferente ou desconhecido, o ser humano é regido pela negação
desse outro que lhe é estranho, em nome da supervalorização, da necessida
de do incremento da autoimagem do eu. Nesse movimento, o outro
é manipulado, ganha valor meramente instrumental e, quando não
se põe a serviço do eu, ele é prontamente descartado.
O que se destaca com isso é que a construção de nossa identidade
se dá em um contínuo, que começa quando nascemos e não tem hora
Imagem do livro Faca
sem ponta, galinha sem
para acabar, está em constante retroalimentação com a cultura e com o processo
pé, de Ruth Rocha. histórico.
Ilustração de Mariana Massarani.
Editora Ática Será que ser menino ou ser menina, hoje, abarca os mesmos significados
que há cinquenta anos atrás? Que outros significados surgiram na cena social que
envolvem a construção de nossa identidade sexual e de gênero? Então, vejamos o que
nos diz Wallon sobre a diferenciação.

1 | A Psicologia da pessoa completa de Henri


Wallon
A contribuição de Henri Wallon para a Psicologia sinaliza para a possibilidade
de compreender o desenvolvimento humano em sua complexidade. Isto quer dizer
que Wallon buscou uma Psicologia da Pessoa Completa33,comprometida com o
entendimento do humano nas suas dimensões afetiva, cognitiva, social e motora,
concomitantemente.
Este é o desafio proposto pelo autor: entender o desenvolvimento humano na
convergência de suas forças e das suas possibilidades.

33 Para acompanhar a leitura feita por Wallon, é indispensável um esforço para escapar de um
raciocínio dicotômico, que fragmenta a pessoa (ou motor ou afetivo; ou afetivo ou cognitivo), na
direção de um raciocínio que apreenda a pessoa como resultado da integração dessas dimensões
(motor-afetiva-cognitiva). Essas dimensões estão vinculadas entre si e se encontram em interações
em constante movimento; a cada configuração resultante, temos uma totalidade que se expressa na
pessoa (MAHONEY;ALMEIDA,2000).  
46 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
A obra de Wallon vem sendo requisitada na instância da Educação,
sobretudo da Educação Infantil, e tem fundamentado importantes
pesquisas em Psicologia do Desenvolvimento e da Aprendizagem.
Zazzo (1968, p. 10), ao escrever o prefácio do livro A evolução
psicológica da infância, de Wallon, caracteriza o autor como aquele
que fez ”um eterno esforço para nos arrancar a preguiça das palavras
e dos pensamentos habituais”, um observador, um clínico, um homem
de intuição, tanto ou mais que um experimentador, mas também um
filósofo. Para o próprio Wallon, um psicólogo no sentido mais completo
do termo.
Este texto busca explorar as noções introdutórias da teoria, com
ênfase nos pressupostos básicos e em sua forma de articulação. Uma
vez compreendida a estrutura básica do pensamento walloniano, o
leitor poderá recorrer a outras leituras mais minuciosas sobre a teoria,
sustentando um olhar mais próximo daquele postulado por Wallon.
Neste sentido, o texto inicialmente analisa a concepção de Wallon Henri Wallon
acercado desenvolvimento humano e sua relação com o método de
pesquisa utilizado. Em um segundo momento, enfatiza a regulação
recíproca entre maturação neurológica, motricidade e emoção no
contexto do desenvolvimento humano.
As sínteses apresentadas ao longo do texto procuram retratar, ao menos
minimamente, a articulação teórica em sua complexidade e, neste contexto.
caracteriza os estágios de desenvolvimento, demarcando o processo de construção
da diferenciação da personalidade bem como do pensamento simbólico.

1.1 | CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E MÉTODO


DE ESTUDO, DO PONTO DE VISTA DEHENRI WALLON

No cerne do trabalho de Wallon encontra-se uma afirmação: O ser humano é social


geneticamente34 (ZAZZO, 1968, p. 17). A explicação deste pressuposto repousa na
noção de uma complexa relação de determinação recíproca entre o equipamento
orgânico e a dimensão social.
Galvão (1996) explica que, para Wallon, o ser humano é determinado fisiológica
e socialmente a partir de uma dupla história que envolve as disposições internas e as
situações exteriores que o ser humano encontra ao longo de sua vida.
Desenvolvimento biológico e desenvolvimento social são, na criança, condições
um do outro e estabelecem entre si relações recíprocas.
As capacidades biológicas são as condições da vida em sociedade – mas o meio
social é a condição do desenvolvimento destas capacidades (ZAZZO, 1968, p. 14).

34 A sobrevivência humana seria impossível sem os cuidados constantes de outros atores sociais ao
longo de vários anos. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 47
Dito de outra forma, tem-se que os fatores orgânicos são responsáveis pela
sequência fixa do desenvolvimento, no entanto podem sofrer as influências das
circunstâncias sociais e mesmos individuais nas quais se insere cada sujeito.
Este raciocínio sugere que a duração dos estágios de desenvolvimento possui
caráter relativo e variável, sendo mais determinado biologicamente no início,que,
progressivamente, vai cedendo espaço para a determinação social, para a influência
da cultura e da linguagem na construção da inteligência simbólica.35
A concepção walloniana de desenvolvimento humano também se reflete em
seu método inspirado no materialismo dialético voltado para o estudo das condições
materiais do desenvolvimento da criança, condições estas orgânicas e sociais,a
ponto de analisar como elasedificam o psiquismo, a personalidade. Esta forma de
compreender o ser humano, na perspectiva da psicologia genética36, caracteriza-se
pela “busca do sentido dos fenômenos em sua origem e transformações conservando
sempre sua unidade”. (MAHONEY; ALMEIDA,2000, p 10). Na articulação entre a
Dialética, a Psicologia Comparada37 e a Psicologia genética, Wallon propôs seu próprio
método: a análise genética comparativa multidimensional, e elegeu a observação38 seu
principal instrumento.
Mahoney & Almeida (2000) explicam que o método de análise genética
comparativa multidimensional consiste em fazer uma série de comparações entre
crianças patológicas39 e crianças normais, de crianças normais com adultos normais,
de adultos normais da atualidade com os de civilizações primitivas, de crianças
normais da mesma idade com crianças de diferentes idades, da criança com o animal,
a depender das necessidades da investigação. Essas comparações se sustentam pela
noção de que “[...] o fenômeno é um conjunto de variáveis e só pode ser compreendido
pela comparação com outros conjuntos do mesmo tipo ou semelhantes” (MAHONEY,
ALMEIDA, 2000, p. 16).
Além disso, as autoras acrescentam que as proposições wallonianas consideram que o
desenvolvimento humano é determinado por vários campos funcionais e, daí decorrente,
é multidimensional, o que envolve elementos orgânicos, neurofisiológicos, sociais e
as relações entre eles. Alertam ainda que o estudo do desenvolvimento humano deve
levar em conta a criança contextualizada, em suas relações com o meio. O contexto do
desenvolvimento envolve os recursos do meio ambiente desde o aspecto físico do espaço
até as pessoas próximas, a linguagem e os conhecimentos próprios de cada cultura.

35 Este raciocínio coincide com o processo de maturação neurológica que se inicia com respostas
reflexas e involuntárias para, paulatinamente, com o amadurecimento do córtex cerebral, dar lugar a
funções de maior complexidade, como a linguagem e o pensamento.
36 Psicologia genética – estuda as origens, a gênese dos processos psíquicos.
37 Refere-se à necessidade de o pesquisador buscar comparar seus dados com os dados provenientes
de outras áreas doconhecimento. No caso de Wallon, a Antropologia, a Neurologia, a Psicopatologia
e a Psicologia animal foram os campos de comparação privilegiados.
38 Sobre a observação, o autor acrescentou ser indicado um esforço de objetividade por parte do
observador, possível quando este se esforça por explicitar os referenciais prévios que influenciam
seus olhar e sua reflexão. Caso contrário, os dados de observação não passam de ilusão impregnada
de expectativas do observador. 
39 A patologia era considerada uma espécie de lente de aumento que permite enxergar, de forma
acentuada, fenômenos também presentes no indivíduo normal (GALVÃO, 1996,p.33).
48 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Galvão (1996) complementa que, conforme a disponibilidade da idade, a criança
interage mais fortemente com um ou outro aspecto do contexto. essa afirmação
resulta na conclusão de que o meio não é uma entidade estática e homogênea, mas
está, juntamente como a criança, em contínua transformação.
Sobre o ritmo do desenvolvimento para a teoria walloniana, entende-se que este se
dá de forma descontínua, marcado por rupturas, retrocessos e reviravoltas. A passagem
de um estágio para o outro provoca crise em seu processo de transição. Na sequência,
observa-se uma reformulação do comportamento da criança. Para a prática do
docente, é extremamente importante que o professor considere esta possibilidade e
compreenda que as condutas aparentemente desajustadas de seus alunos podem não
passar de períodos de transição do processo de desenvolvimento. O sentido de crise
pode ser exemplificado nas modificações corporais do adolescente, ou mesmo aquelas
sofridas na gravidez. Nestas condições, fica evidente a forma desengonçada, pouco
adaptada e até mesmo desajustada das pessoas. Na gravidez, esse processo se dá em
uma velocidade maior, explícita nos relatos de gestantes do tipo: – “Quando estavam
se acostumando com o trimestre, ele já mudou”. O “estar se acostumando” refere-se
a estar se adaptando às novas condições. O mal-estar causado pelas transformações
se instala em função do desequilíbrio imposto pela nova fase. Se o professor conseguir
ler o comportamento infantil deste ponto de vista, poderá construir um diagnóstico de
seu grupo de alunos mais apurado. Por isso é importante marcar o sentido de crise ou
conflito, que podem ser provocados por fatores exógenos – relativos aos desencontros
das ações da criança com o ambiente exterior – ou por fatores endógenos, quando
gerados pelo efeito da maturação neurológica.

Até que se integrem aos centros responsáveis por seu controle, as


funções recentes ficam sujeitas a aparecimentos intermitentes e
entregues a exercícios de si mesmas, em atividades desajustadas das
circunstâncias exteriores. Isso desorganiza, conturba, as formas de
conduta que já tinham atingido certa estabilidade na relação com o
meio. (GALVÃO, 1996, p. 42)

Os conflitos são reconhecidos como propulsores do desenvolvimento, fatores


dinamogênicos.
Resumidamente, Wallon entende assim o desenvolvimento da pessoa:

[...] uma construção progressiva em que se sucedem fases com


predominância alternadamente afetiva e cognitiva. Cada fase tem um
colorido próprio, uma unidade solidária, que é dada pelo predomínio
de um tipo de atividade. As atividades predominantes correspondem
aos recursos que a criança dispõe, no momento, para interagir com o
ambiente. (GALVÃO, 1996, p. 43)

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 49
O desenvolvimento dos estágios ou fases é orientado por três princípios
convergentes, a saber:
►► 1) predominância funcional;

►► 2) alternância funcional; e

►► 3) integração funcional.

Esses estágios são marcados por uma predominância funcional que oscila entre
momentos de predomínio afetivo, relacionado com o subjetivo e com o acúmulo de
energia, e de predomínio cognitivo, correspondente ao objetivo e ao dispêndio de
energia. O caráter intelectual predomina em etapas em que a ênfase da criança está
na elaboração do real e no conhecimento do mundo físico. O caráter afetivo e das
relações com o mundo humano se relacionam com as etapas dedicadas à construção
do eu, a personalidade.
Outro princípio que rege o desenvolvimento é o da alternância funcional, que
se manifesta na sucessão dos estágios quando uma nova fase inverte a orientação
das atividades e do interesse da criança. Assim, tem-se uma orientação do eu
para o mundo, das pessoas para as coisas, altera-se a dominância da afetividade e
da cognição sem, no entanto, estas se manterem como funções exteriores uma da
outra. Elas, segundo Galvão (1996), ao reaparecerem como atividades predominantes
em dado estágio, incorporam as conquistas realizadas pela outra, no estágio
anterior, construindo-se reciprocamente, num permanente processo de integração e
diferenciação graças à ação do princípio da integração funcional.
No princípio da integração funcional, as funções mais evoluídas e de
amadurecimento recente não suprimem as funções mais arcaicas, mas exercem
sobre elas um controle. Esse aspecto da maturação neurológica se repete na dinâmica
psicológica. Desta forma, as novas possibilidades das funções psíquicas, que surgem
em cada estágio do desenvolvimento, não suprimem as capacidades anteriores, mas
integram-nas. Enquanto a integração não se dá, as funções ficam sujeitas às aparições
intermitentes ou, até mesmo, surgem de forma desajustada de objetivos exteriores
em um exercício de si mesmas – os exercícios de uma capacidade recém-adquirida
são repetidos inúmeras vezes sem uma finalidade aparente. A esse fenômeno se
denomina jogo funcional.40 Por fim, a integração funcional não se dá de maneira
definitiva, uma vez que, com o fluxo contínuo de desenvolvimento, os centros de
controles das atividades psíquicas podem ser desintegrados.
Em termos técnicos, desenvolvimento é sinônimo de diferenciação. já em termos
práticos, é preciso se despojar de certa sensibilidade para perceber quando ocorrem
os pequenos saltos do desenvolvimento rumo à autonomia, portanto a diferenciação
se dá. Senão veja:

40 Jogo funcional é considerado o tipo de atividade mais primitivo de atividade lúdica (GALVÃO,
1996) 
50 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Senti meu filho, parede-e-meia, às minhas costas.
Sentia-o nesse afeto-rural-menino, na cintura. Igual, sim, sinto-
me como sentia o corpo de meu pai chumbado no meu peito.
Garupa do meu cavalo no equilíbrio de Murillo.
Garupa de meu pai – seu cavalo café - no meio-enleio-cavaleiro que eu era...

Ontem, porém, meu filho se deu de inventação e alumbramento;


– trotar sozinho, comandando rédea
– largação de homem escriturando o mando
– furacão criança arregaçando o vento
– bundinha de vampt-vampt
– saltitando sela, e a trama da vontade na mansa dignidade do animal.

Virou espinho a despedida da dependência, e me


ficou cosquinhas de respingos d’água-de-corixos por
onde zanzávamos, parede-e-meia, unidos.
Que lucidez de afago e proteção de amigos!
(zanzávamos lendo a natureza)
Tão raro e vasto menino
no seco da garupeira,
e minhas pernas pesando o exargo das águas de
visitação...
(pesa que pinga pernas d’água)
A galope, agora, vai o fim fininho de seu medo e susto.
Ah, gurizinho, incluindo-se na paisagem adquirida, a
muque!

Eis quando:
– Paiê, vou acordar primeiro da noite voltar
– Vou passear de cavalo, à bessa, mesmo.
– De cavalo, não, meu filho, à cavalo, viu!
– Olha, paiê, nem de nem a, no cavalo, tá!

Depois, adiante da manhã seguinte:


– Vai, paiê, primeiro; aí eu vô na sujeira de sua água.
– Vai, eu já sei ir..., não caio no poço escondido...
A boa sorte, desde então,
sai correndo atrás, vigiando seu equilíbrio.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 51
E esse frio que escorrega nos meus sentidos
vai se esconder no quentinho em que Murillo
os recobriu de aperto e abraço, engarupados.
Seu coração de tic-tac ficou tamborilhando
emoçãozinha dentro de mim.

Sim, eu sei, ainda o vejo no estirão:


lá vai o velhaquinho,
riso-risco-de-gente na terra inventada,
empinando meu orgulho leve, triste e livre...

Meus olhos, soltos de pássaro,


sobrevoam adiante da liberdade conquistada,
Mas, um pedaço de vazio inteiro incha-se, aqui,
na caixa do peito.
Enquanto o novo hominho desata
– os ritmos do chão
– balanço do ponto equilíbrio
– o fino crivo do olho
– conteúdo desses miúdos prazeres
– colheita dos cheiros silvestres,
e se alfabetiza de mato, veredas, corixos e socavões...

Na garupa, hoje,
carrego a tatuagem de seu corpo verdoengo
empedrada da trama-entranha do meu poema.
(SILVA FREIRE, 1991, p. 252-253)

Livros infantis que abordam a questão da diferenciação: Chapeuzinho Amarelo,de


Chico Buarque; Ana e Ana,de Godoy, C.; Faca sem ponta, galinha sem pé,de Ruth
Rocha; e Boneca de pano, de Ziraldo. Na mesma proposta do livro Boneca de Pano, o
CD Canções Curiosas da Palavra Cantada traz duas músicas particularmente especiais
para a discussão do processo de diferenciação. Trata-se da música Antigamente, cuja
letra fala da queixa de uma boneca de estimação que foi abandonada por sua dona.
Na música seguinte, a menina responde à boneca desolada.
Como se pode notar, desenvolvimento, na perspectiva walloniana, ocorre à
medida que emerge no ser humano a consciência de si e a consciência do mundo em
uma relação recíproca entre emoção e cognição. O desenvolvimento se dá em um
processo de ação educativa que se baseia na transmissão do patrimônio cultural e no
papel do educador. Mesmo enfatizando a questão da transmissão do conhecimento,
52 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
o autor também ressalta a necessidade de a escola assumir o compromisso de atender
ao sujeito em seus aspectos afetivos e psicomotores (GALVÃO, 1994).
O posicionamento de Wallon acerca do desenvolvimento e da aprendizagem se
ancora no sociointeracionismo, que o define como um empreendimento conjunto,
e não individual; que se constrói por meio da interação social, em especial daquelas
afetivamente significativas.
A ação compartilhada é influenciada por características dos parceiros, e a
contribuição da criança dependerá de seu nível de desenvolvimento, este que, por
sua vez, irá influenciar as respostas do interlocutor.
Nesta perspectiva, o adulto exerce a função de mediador na relação da criança
com seu meio, e as expectativas com relação ao desenvolvimento da criança irão
orientar suas ações e escolhas metodológicas.

1.2 | MOTRICIDADE, EMOÇÃO E O DESENVOLVIMENTO HUMANO

Na teoria walloniana, movimento e emoção41 estabelecem uma relação de


reciprocidade que sustentam todo o processo de desenvolvimento humano.
A função motora recebe um sentido humano quando relacionada com a emoção.
Para compreender este pilar da perspectiva walloniana, é preciso partir do pressuposto
de que existem duas funções motoras interdependentes: 1. atividade clônica ou
cinética, associada ao movimento propriamente dito, que regula o estiramento e
encurtamento das fibras musculares; e 2. atividade tônica,estabelecida pelo tônus
muscular – estado de tensão variável entre o músculo. Mais ainda. O tônus muscular
se relaciona com postura e atitude, que são moduladas pelos adultos quando
apresentadas pela criança. As atitudes42 se estruturam em função dos estados de bem-
estar, indisposição e necessidade, e se mostram como uma espécie de infraestrutura
das emoções, sendo reconhecidas pela postura de prazer-relaxamento e desprazer-
contração.
A emoção está na origem da consciência e das manifestações da vida afetiva,
e opera na passagem do mundo orgânico para o social, do plano fisiológico para
o psíquico. A organização das reações emocionais fica a cargo do sistema nervoso
central, especificamente da região subcortical.

41 A emoção da qual fala Wallon não deve ser confundida com afetividade. A emoção é reação
fisiológica,que apresenta alteração orgânica tal como o aumento do batimento cardíaco, a sudorese
e a descarga de adrenalina, e pode ser apresentada como reação postural na exteriorização da
afetividade. Afetividade é um conjunto de processos psíquicos que acompanham as manifestações
orgânicas da emoção, canalizando-a para dentro do próprio indivíduo.
A emoção carrega a possibilidade da articulação do biológico com o social,à medida que promove
a interação da criança com o meio ambiente, com o processo de maturação neurológica e o
desenvolvimento psicológico. A imitação surge como mecanismo propiciador da transferência entre
o biológico e o social.
42 Mal-estar está associado à fome, cólica ou desconforto postural, que provocam espasmos,
contrações e gritos. Bem-estar refere-se à saciedade, sabor do leite, contato com o seio materno,que
provocam movimentos menos tensos e mais harmoniosos. Os olhos se abrem bem, os lábios
esboçam um sorriso e, ainda, quando a satisfação é intensa, as pernas se mexem como se estivessem
pedalando no vazio.  Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 53
As emoções são a exteriorização da afetividade e provocam transformações
que se orientam em direção ao desenvolvimento da atividade intelectual que, uma
vez instalada, tenderá para o controle da potência totalizadora e contagiosa das
atitudes emocionais43. Isso ocorre porque a criança consegue tornar os significados
das emoções mais precisos e autônomos, passíveis de ocorrer por meio do controle
estabelecido no nível intelectual, por volta dos três anos.
Embora a emoção seja fato fisiológico em seus componentes humorais, é também
comportamento social, à medida que estabelece uma comunicação rudimentar com
o ambiente a partir da expressividade dos primeiros sinais orientadores para o mundo
humano, como a manifestação de alegria, fúria, sorriso, por exemplo. Neste sentido,
pode-se entender a emoção como uma linguagem antes da linguagem (ZAZZO,apud
WALLON, 1968, p. 14).
No primeiro ano de vida, a emoção é comportamento primordial na relação da
criança com o meio social. Aliás, a emoção se nutre do efeito que causa no outro,
das reações que as emoções suscitam no ambiente,que funciona como uma espécie
de combustível para sua manifestação. Neste sentido, pode-se dizer que a emoção
possui um poder de contágio que a retroalimenta. Quando as emoções se diluem nas
relações interindividuais, sendo indiscriminadamente compartilhadas pelos atores
sociais, fala-se de contágio emocional.44 Diante do contágio emocional,a noção de
individualidade se dilui em meio à partilha coletiva da emoção, o que estabelece uma
sintonia afetiva e uma comunhão de sensibilidade.
As emoções também são compreendidas como a primeira forma de adaptação da
criança ao meio, e propiciam, antes da emergência da linguagem, o acesso da criança
ao universo simbólico da cultura, uma vez que é o mecanismo inicial que assegura as
relações sociais.
Ao longo do desenvolvimento, a emoção rebusca cada vez mais seus meios
de expressão, utilizando-os como instrumento de socialidade cada vez mais
especializados.

43  Ataque de choro, birras, surtos de alegria, ciúmes frenéticos, ligações afetivas exclusivas,
ambições mais ou menos vagas ou exigentes, por exemplo.
44  Bastante comum na relação mãe-bebê,mas também nos rituais religiosos, em eventos
musicais e comícios.
54 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Para a perspectiva walloniana, o desenvolvimento humano é motivado pela ação
das emoções, que se expressa através da motricidade, nos contextos das relações
sociais. Este processo recebe importante infl uência do processo de maturação
neurológica, que se orienta inicialmente pela maturação no nível medular, seguida
do nível mesobulbar até o nível cortical. Essas observações podem ser reconhecidas
como a sequência psicogenética de aparecimento dos diferentes tipos de movimento
(DANTAS, 1992),e podem ser assim resumidas:

Quadros síntese dos estágios de desenvolvimento segundo a Teoria Walloniana,


analisado sob o ponto de vista do desenvolvimento psicomotor, cognitivo e afetivo.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 55
A Desenvolvimento psicomotor (movimento)
►► Condição inicial – atividade motora reflexa

►► Condição final – movimento ideomotor

Estágios do desenvolvimento – motricidade▼


Estágio impulsivo emocional Estágio sensório-motor e Personalismo Categorial
Até 1 ano projetivo 3 a 6 anos 6 a 11 anos
Impulsivo (até 3 meses) 1 a 3 anos
Emocional (3 a 12 meses)
• Movimentos impulsivos e • Manifestações gradativamente • Exuberância motora. • Inibição da atividade motora e
incoordenados. intencionais. aumento da concentração.
• Execução de movimentos com
• Atividade motora reflexa. • Etapa dominantemente práxica perfeição e interesse na ocasião • Gestos mais precisos
da motricidade. e pretexto exterior que motiva o e localizados, de forma a
• Movimentos expressivos, gestos movimento. selecionar o gesto adequado à
dirigidos às pessoas – apelos. • Gestos instrumentais, práxias ação que deseja .
(andar, pegar, investigação ocular,
• Primeiros atos voluntários etc). • Planejamento mental do
começam a despontar (ex. a criança movimento e previsão de
descobre sua mão – atividade • Exploração direta da realidade. etapas e consequências do
circular, possível pela coordenação deslocamento.
dos campos perceptivo e motor) • Ação estimuladora do ato mental.
• Exploração objetiva dos objetos • Maior desenvoltura na
partes do corpo. exploração do ambiente e nas
atividades de conquista do
• Repetição dos movimentos em mundo objetivo.
cadeia circular (coordenação mútua
dos campos sensoriais e motores
– ajustamento dos gestos a seu
efeito).
• Organização dos gestos úteis.

56 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
B Desenvolvimento cognitivo (pensamento)
►► Condição inicial – sincretismo subjetivo
(percepção e pensamento indiferenciados, confusos e globais dos objetos)

►► Condição final – pensamento simbólico

Estágios do desenvolvimento – pensamento ▼

Estágio impulsivo emocional Estágio sensório-motor e Personalismo Categorial


Até 1 ano projetivo 3 a 6 anos 6 a 11 anos
Impulsivo (até 3 meses) 1 a 3 anos
Emocional (3 a 12 meses)
• Estado embrionário da dominância • Inteligência se dedica à • Distinção entre fantasia e • Duas etapas: a pré-ategorial,
do movimento e do gesto motivados construção da realidade – realidade. por volta dos 9 anos, quando
pela emoção. Inteligência prática ou das o pensamento ainda está
situações. Surgimento da palavra • Imagem mental. marcado pelo sincretismo e o
• Inaptidão para agir diretamente e de maior capacidade de pensamento categorial entre
sobre a realidade exterior. • Maior distinção eu-outro
deslocamento – marcha. expressa na linguagem a os 9 e 10 anos,quando ocorrem
• Associação entre o ato e seu partir do uso dos pronomes condições estáveis para a
• Descoberta dos objetos exploração mental do mundo
efeito, tende a repetir o ato cujo possessivos (meu, teu) e da
efeito tenha sido desejável. • Atividade simbólica – capacidade identificação de si pelo pronome físico, mediante atividades
de dar a um objeto uma pessoal na primeira pessoal (eu, de agrupamento, seriação,
• Associações de respostas ao representação. mim). classificação, categorização
atendimento de necessidades, o que em vários níveis de abstração,
transforma as explosões impulsivas • Conhecer mediante a ação sobre • Diminuição do sincretismo. até chegar ao pensamento
orgânicas em formas de ação sobre o o objeto. categorial.
meio externo.
• Pensamento projetado para o • Emergência da inteligência
• Transformação das descargas exterior por meio dos movimentos discursiva.
motoras em meio de expressão e que o exprimem – gestos.
comunicação. • Superação do sincretismo do
• Pensamentos projetivos em pensamento.
• Linguagem primitiva constituída gestos.
de emotividade pura.
• Inteligência prática e emergência
• Primeiros sinais da cognição. da inteligência simbólica.
• Imitação diferida. Refere-se a
si mesma na terceira pessoa do
singular.
• Linguagem nomeia os objetos
e estimula a inteligência prática,
possibilitando a distinção,
comparação e agrupamento deles.
• A atividade representacional
emerge com o desenvolvimento
da linguagem, dos gestos e do
simulacro (exercício ideomotor,
pensamento apoiado em gestos – o
gesto é capaz de torn. Pelo gesto,
a criança simula uma situação de
utilização de objeto sem tê-lo de
fato presente.
• Capacidade de encontrar para um
objeto uma representação e para
esta representação, um signo.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 57
C Desenvolvimento afetivo (personalidade)
►► Condição inicial – indiferenciação

►► Condição final – diferenciação

Estágios do desenvolvimento – personalidade ▼

Estágio impulsivo emocional Estágio sensório-motor e Personalismo Categorial


Até 1 ano projetivo 3 a 6 anos 6 a 11 anos
Impulsivo (até 3 meses) 1 a 3 anos
Emocional (3 a 12 meses)
• Primeiros sinais orientadores para • Início da constituição do eu • Consciência corporal • Diferenciação nítida entre o eu
o mundo humano (alegria, angústia, corporal – individualização e adquirida gradualmente oferece e o outro.
sorriso, cólera). Diálogo tônico. diferenciação das partes do corpo. condições para a emergência
da imagem corporal e da • Melhor compreensão de si.
• Predomínio da emoção, a • Diferenciação entre aquilo que capacidade de reconhecer a
afetividade orienta as primeiras pertence ao mundo exterior e aquilo imagem diferenciada do próprio • Exercício de diferentes papéis
reações do bebê às pessoas. que pertence ao próprio corpo. com solicitações diferentes.
corpo.
• Simbiose afetiva com o meio em • Eu diferenciado corporalmente, • Percepção maior de um eu em
• Imagem das partes do corpo relação com os outros, em um
função das necessidades. mas não do ponto de vista psíquico. unificada em uma totalidade
processo permeado por conflitos
• A criança partilha das emoções • Eu psíquico continua capaz de representar o eu. e cooperação com os demais.
daqueles que a rodeiam. indiferenciado, sincrético. • Prelúdio da consciência de si.
• Primeiro esboço do psiquismo. • Diálogos consigo mesmo e com • Representação de si ainda
um interlocutor imaginário. débil.
• Primeira forma de sociabilidade,
cujas trocas são essencialmente
afetivas e inicialmente sem relação
2 anos e ½ a 3 anos:
• Três fases:
intelectual.
1. Fase da recusa ou
• Afetividade e inteligência estão
reivindicação:
sincreticamente misturadas.
Negativismo – crise de oposição.

2. Fase da gratidão – idade da


graça.
Formação da personalidade.

3. Imitação
necessidade de auto-substituir
os outros, passando a compor
papéis e personagens em
um exercício de se tornar
preferido ou desejado. Ao
mesmo tempo, possibilita
ampliação e enriquecimento
das possibilidades da pessoa.
Reprodução enriquecida da
pessoa-modelo.

58 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
1.3 | INDICADORES DO DESENVOLVIMENTO PSICOLÓGICO NA
PERSPECTIVA WALLONIANA

Os indicadores que surgem ao longo do desenvolvimento humano podem ser


tomados como sintomas que anunciam a organização psíquica em andamento. São
esses os referenciais que devem ser levados em conta na avaliação da criança e, por
isso, são considerados fatores orientadores na elaboração da proposta de avaliação
na Educação Infantil. Em se tratando de Educação Infantil, esta prática se torna
fundamental, visto que propicia a abordagem processual do desenvolvimento.
A utilização dos referenciais propostos por Wallon deve se reportar aos principais
pressupostos da teoria, sobretudo à concepção de desenvolvimento humano
explicitada pelo autor. A simples adoção dos marcos aqui destacados, sem a devida
contextualização teórica, se constituirá em um grande equívoco acadêmico. Como
exemplo de possíveis equívocos na avaliação da criança pequena, destacam-se
as recorrentes queixas de uma suposta hiperatividade infantil, apressadamente
diagnosticada pela observação de uma explosão psicomotora na fase sensório-
motora projetiva, quando a emoção é cada vez mais expressa por meio do movimento.
Também é comum a presença de queixas referentes aos distúrbios de comportamento
em crianças que estão apresentando sintomas de negativismo, já previsto por Wallon
como típico do personalismo.
Sendo assim, alguns indicadores do desenvolvimento psicológico na perspectiva
walloniana podem ser sublinhados, sem, contudo, secorrer o risco de esgotá-los.

❶ Gestos de mímicas e apelos

A expressividade, presente na função tônica, propicia a emergência de gestos da


mímica e apelos que recebem uma significação do meio social e, gradativamente,
evoluem de um diálogo tônico para a especialização dos gestos e para a imitação.
O gesto precede a palavra e a representação, e pode ser reconhecido como o
elemento da expressividade com forte poder de contágio emocional, que tende a se
interiorizar à medida que é inibido pelo pensamento, fato que provoca uma espécie
de especialização do gesto. Segundo Dantas (1992), a especialização do gesto se
caracteriza pela utilização dos grupos musculares diretamente envolvidos nas tarefas,
mantendo imóveis os que não participam delas. A especialização garante a economia
do esforço e a independência do resto do corpo, abrindo possibilidades para ações
complementares simultâneas. Além disso, os gestos podem ser simbolizados, isto é,
ser providos de significado, e recebendo o nome de movimento ideomotor.
Ainda com relação ao gesto, Dantas (1992) chamou a atenção para o desenho
entendido como gesto cuja expressão inicial é desprovida de intencionalidade, sendo
sua forma adquirida sem um projeto específico. Somente com o desenvolvimento do
processo pensante, a ideia prévia orientará a busca e a escolha do gesto. O mesmo
ocorre com a palavra como meio de expressão.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 59
❷ Olhar, preensão e marcha

Concomitantemente ao desenvolvimento dos gestos, ocorrem, nos primeiros


meses de vida, quatro importantes marcos para o desenvolvimento infantil relativos
à maturação das possibilidades sensoriais e motoras: 1º) acompanhamento de uma
trajetória simples, horizontal com o olhar (metade do segundo semestre de vida);
2º) preensão mais eficiente (movimento de pinça – opõe o polegar ao indicador)
superando a preensão palmar (final do primeiro ano); 3º) complementaridade na
atuação das duas mãos com definição da mão diretora e da mão auxiliar na atividade;
4º) aquisição da marcha. Olhar, preensão, coordenação mão-cérebro-atividade e
marcha completam as competências necessárias para o início da fase de atividade
exploratória imoderada da realidade externa.

❸ Imitação45

Ferramenta psicológica que se estrutura a partir dos gestos dos outros e se


caracteriza como ato espontâneo. Inicialmente se dá em contexto cuja experiência
com o modelo seja imediata e fragmentária, e em condições de indiferenciação entre a
criança e o modelo. Neste estágio se tem um mimetismo46, uma forma prefigurada de
imitação mais próxima a um diálogo tônico. Posteriormente, no estágio sensório-motor
e projetivo, a imitação passa a emergir sob a forma de similaridade e simultaneidade
de ações ou mesmo de um tipo de troca social denominada de pseudoimitação
ou imitação espontânea. Vasconcellos (1996, p. 88) explica que “[...] neste caso, a
compreensão que a criança faz de si e dos outros nada mais é que uma assimilação”.
Depois da segunda metade do segundo ano, no personalismo, surge a imitação
real ou imitação inteligente,que apresenta maior potencial de diferenciação. Em
Vasconcellos (1996, p. 90): “nesta etapa, a criança já é capaz de ter e perceber seus
próprios motivos para agir, e a referência dada pelas ações do outro não é mais a única
alternativa.”

45 A imitação é um processo de aprendizagem que propicia a associação entre a percepção e o


movimento, que, por sua vez, é adquirido de forma criativa e cada vez se torna mais complexo. Na
imitação, o foco está na função do gesto que revela o significado extrínseco do movimento a ser
imitado e que se aperfeiçoa constituindo a base da comunicação do final do segundo ano e ao longo
do terceiro ano de vida.
Além de auxiliar na constituição das representações, a imitação está presente no processo de
construção da identidade pessoal da criança, em um exercício contraditório de se colocar ora como
imitador, ora como modelo, em uma alternância de ações que obedece ao movimento ativo-passivo.
Neste exercício, a criança toma consciência de suas percepções e de si mesma.
46 No Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, mimetismo se refere à adaptação na qual um
organismo possui características que o confundem com um indivíduo de outra espécie. Em
Psicologia,utiliza-se o termo para caracterizar a indiferenciação entre o eu e o outro, estágio inicial
da organização psíquica humana. 
60 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Uma vez conquistada a diferenciação eu-outro, a imitação se amplia para a
imitação de cenas e eventos, transformando-se em instrumento de representação47.
A capacidade imitativa pressupõe o início do pensamento simbólico e das
representações, e se solidifica com o aparecimento da imitação diferida que se
caracteriza pela ausência do modelo. A imitação só é possível a partir dos 2 (dois)
anos, e possibilita a capacidade de discriminação e seleção dos gestos para copiar o
modelo e distribuí-lo no tempo e no espaço.

❹ Esquema corporal

O processo de diferenciação, bem como a estruturação do pensamento simbólico,


também se estrutura a partir do esquema corporal que se inicia com a emergência do
eu corporal48, se solidifica com a construção do objeto representado mentalmente e
se encerra com a constituição do eu psíquico49.

❺ Simulação

Outro marco importante para a definição do pensamento simbólico e da


representação dos objetos e de si mesmo é o simulacro. Este é caracterizado como ato
sem o objeto real, atividade que envolve movimento e representação, ou como gesto
simbólico, servindo de apoio à narrativa da criança. Por meio do simulacro, a criança
desenvolve o faz de conta e pode lidar com a ficção e com os desejos de invenção
e criação. O faz de conta implica a descoberta e o exercício do desdobramento da
realidade, pressupondo o início da representação, fazendo notar uma organização
psíquica mais organizada, estável e diferenciada.

47 Para a perspectiva walloniana,a representação, entendida como expressão mediante imagens e


símbolos, origina-se da imitação e, gradativamente, minimiza os efeitos desta última para emergir
como verdadeira representação. Essa passagem só é possível porque, ao longo da atividade
imitativa, a criança realiza uma transição da inteligência prática ou sensório-motora para a
inteligência verbal,que prescinde da presença do modelo, dado que opera por meio de símbolos e
representações.
48 Sobre o trabalho com bebês e a formação do esquema corporal, destaca-se o contato com
o corpo da criança como forma de o adulto delimitar, para a criança, o limite entre seu corpo e o
mundo, haja vista sua condição de indiferenciação, isto é, a criança não discrimina seu corpo do outro
e, muito menos, do mundo que a circunda. Neste particular, tem sido indicadaa prática de massagens
para bebês nos berçários. No entanto, esta prática só é válida se o adulto se propuser a uma relação
afetiva e prazerosa com a criança. Uma das referências sobre o assunto é: LEBOYER, F. Shantala:
uma arte tradicional:massagem para bebês. São Paulo: Editora Ground, 1986.
49 Uma sugestão de filme que retrata de maneira bem-humorada a questão do esquema corporal é a
comédia Ligado em você. Este filme conta a história de dois irmãos siameses, ligados pelo tronco, que
decidem separar-se na vida adulta. Após a separação dos corpos, surge a dificuldade de adaptação
de noções básicas como a locomoção do corpo no tempo e no espaço, além da reelaboração da
identidade de cada um. Vale a dica a respeito das imagens que passam ao longo da ficha técnica,que
mostram flashes da infância dos meninos. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 61
❻ Linguagem

A linguagem surge como marco decisivo no desenvolvimento do psiquismo, o


que garantirá a continuação do desenvolvimento da abstração e do pensamento
categorial, também conhecido como pensamento discursivo. Ao substituir a coisa, a
linguagem oferece à representação mental o meio de evocar os objetos ausentes e
de confrontá-los entre si. Os objetos e situações concretas passam a ter equivalentes
em imagens e símbolos, e são operados no plano mental de forma cada vez mais
desvinculada da experiência pessoal e imediata.

❼ Crise de oposição ou negativismo e sedução

A crise de oposição ou negativismo, típica do estágio do personalismo, faz notar


um importante movimento de diferenciação do eu à medida que indica a capacidade
cognitiva de a criança representar a si mesma e, desta forma, atuar em um movimento
típico de autoafirmação. A crise de oposição é seguida de um movimento de sedução,
também conhecido como idade da graça, relativa à necessidade da criança em se
mostrar e ser admirada pelo que é. Na sequência, inicia-se uma busca da criança por
novos referenciais, que ela procura nos modelos mais significativos, contexto onde se
instalam ricas situações de imitação. Esta dinâmica revela um movimento ambíguo
em que a criança nega o outro para se perceber como pessoa diferenciada, tendente
a, em um momento mais adiante, se identificar com esse outro.

Notas finais
Este texto procurou sistematizar as principais contribuições de Henri Wallon no
que se refere ao entendimento do desenvolvimento psicológico. Para tanto, destaca
a concepção de desenvolvimento e sua articulação com o método de estudo do
autor, com o objetivo de reconstituir minimamente as bases iniciais do pensamento
walloniano.
Foi preciso destacar a íntima relação entre emoção e motricidade, além da
articulação destas com o processo de maturação neurológica, em um exercício de
entendimento coordenado das diferentes forças propulsoras do desenvolvimento.
Os estágios de desenvolvimento, segundo a proposição de Wallon, foram
apresentados intentando assegurar suas relações com a maturação neurológica e
retratar as diferentes possibilidades de explicar o desenvolvimento humano, seja pelo
recorte da motricidade, da cognição, da afetividade, seja pela articulação entre elas.
Finalmente, optou-se por evidenciar alguns marcos do desenvolvimento humano,
presentes nas proposições wallonianas, de grande interesse para a Educação Infantil,
com especial destaque para a imitação, ferramenta psicológica útil para a emergência
das representações.
De forma figurada, pode-se dizer que a ponta do iceberg da Teoria da Pessoa
Completa foi delineada com o objetivo de contribuir para que o leitor se sinta
encorajado a se lançar em direção a um maior aprofundamento da teoria.
62 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
PROPOSTAS DE ATIVIDADES E LEITURA

Atividade ❶
Escreva livremente sobre como, no seu entender, dá-se o desenvolvimento de um ser
humano.
Após a leitura de Wallon, volte ao que você escreveu e procure identificar o enfoque
dado no seu texto. Estabeleça um paralelo entre a sua tentativa e a de Wallon. Assim
você poderá compreender o desafio a que ele se propôs ao estudar a pessoa completa.

Atividade ❷
Construa um quadro-síntese com os seguintes cruzamentos: amadurecimento
neurológico e emergência de competências do desenvolvimento.

Medular Subcortical Cortical

Competências

Você pode encontrar mais informações em LA TAILLE, Y; OLIVEIRA, M. K.;


DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas em discussão. São
Paulo: Summus Editorial, 1992.

REFERÊNCIAS

AJURIAGUERRA, J. de. Manual de Psiquiatria infantil. Paris: Masson Éditeur, 1974.


DANTAS, H. Do ato motor ao ato mental: a gênese da inteligência. in: LA TAILLE,
Y.;OLIVEIRA, M.K.;DANTAS, H. Piaget, Vygotsky, Wallon: teorias psicogenéticas
em discussão. São Paulo: Summus Editorial, 1992.
DANTAS, P. da S. Para conhecer Wallon. São Paulo: Editora Brasiliense, 1983.
GALVÃO, I. Henri Wallon. Petrópolis, RJ: Vozes, 1996.
MAHONEY, A. A; ALMEIDA, L. R. (orgs.). Henri Wallon. São Paulo: Edições Loyola,
2000.
FREIRE, S. Presença na ausência do tempo. Cuiabá: Edições UFMT, 1991.
VASCONCELLOS, V. Co-construtivismo na Psicologia. Tese apresentada para
concurso de titular na Universidade Federal Fluminense. Niterói, RJ, 1996.
WALLON, H. A evolução psicológica da criança. Lisboa, Portugal: Persona, 1968.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 63
64 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
As funções psíquicas não se desenvolvem como se
fossem esferas independentes do contexto social e histórico.
Aliás, antes mesmo de seu nascimento, o ser humano
já existe, e muitas coisas operam a favor da construção
de sua identidade. Tem sempre alguém esperando por
ele, falando sobre o que o aguarda, conferindo suas
características, significados herdados de outras gerações,
sem que tenhamos consciência do que está sendo dito
a nosso respeito. Após o nascimento, serão os adultos
que guiarão as ações do pequeno para que, só depois, o
filhote de homem, já operando pelo pensamento verbal,
consiga atuar segundo sua capacidade de planejamento,
simbolização e significação. Este é um longo processo, cuja
Imagem do livro O menino
e seu amigo, de Ziraldo. explicação Vygotsky tomou como desafio.
Editora Melhoramentos (2003)
Como companhia na travessia, destaquei o sensível e emocionante livro de Ziraldo,
intitulado O menino e seu amigo,em homenagem a nossos avós.

1 | Pressupostos básicos da teoria da


formação social da mente
Nos últimos anos, o interesse de educadores pela obra de Lev Semenovich
Vygotsky (1896-1934) tem se tornado cada vez maior, indicando que o costumeiro
modismo que assolou as propostas construtivistas no período de 1970 a 1990, neste
caso, não se confirma.
As experiências em sala de aula, nos cursos de graduação e pós-graduação lato
sensu, revelam que, em seu primeiro contato com a obra de Vygotsky, o acadêmico,
inicialmente, age como se precisasse identificar, nas propostas vygotskyanas, algo
próximo das teorias de orientação maturacionista, que entendem o desenvolvimento
humano com base na noção de estágios, em conformidade com a faixa etária. Um
misto de satisfação e decepção passeia no semblante dos alunos.
Ao descobrirem a possibilidade de compreender o desenvolvimento humano de
uma forma menos linear, enfrentam a insegurança causada, naturalmente, por uma
proposta diferenciada que resiste em ancorar na idade cronológica a sustentação de
seus pressupostos.

O que explica, então, o insistente interesse pela abordagem


vygotskyana, já que, em um primeiro momento, tal proposta se
apresenta ao estudante de forma tão desconfortável?

Uma possível resposta para essa pergunta pode ser identificada em Freitas
(1994,1995) e se refere à releitura possível acerca da Psicologia, mediante seu
potencial interdisciplinar,que permite a superação da dicotomia individual e coletiva,e
mediante diálogo estabelecido entre o indivíduo, a cultura e a sociedade. Além disso,
66 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Vygotsky construiu uma abordagem que colocou a educação como atividade humana
fundamental, articulada com uma teoria do desenvolvimento psicológico.
Neste texto, o leitor poderá encontrar breve explicação sobre alguns dos conceitos
vygotskyanos, buscando articulá-los com preocupações educacionais típicas da
Educação Infantil. Além da interlocução teórica desenvolvida, também será possível
uma aproximação mais interativa com o leitor que consegue extrapolar a leitura e
interpretação do texto. Para isso, será preciso que o leitor acompanhe as notas
de rodapé, quando poderá entrar em contato com notas reflexivas, propostas de
exercícios práticos pensados com o objetivo de potencializar a compreensão e
contribuir para o processo de formação do docente.

1.1 | CONCEPÇÃO DE DESENVOLVIMENTO, APRENDIZAGEM E MÉTODO


DE ESTUDO, DO PONTO DE VISTA DE VYGOTSKY

A teoria proposta porVygotsky, também conhecida comoTeoria da Formação Social


da Mente, aponta, já em sua estrutura, para uma concepção de desenvolvimento
humano em processo, cujas realizações são abordadas com base no ponto de
vista qualitativo, dentro de uma rede de significações atravessadas pela história
da humanidade, o que inclui o aspecto biológico, entendido desde sua dimensão
filogenética até a ontogenética50.
De outra forma, poder-se-ia dizer que o autor criticou a ênfase descritiva das Lev Semenovich Vygotsky
teorias sobre o desenvolvimento humano, uma vez que estas estariam centradas em
características e manifestações atuais, delineando um produto.
Em sua proposta, focalizou a perspectiva genética que privilegia
a explicação do lugar que um fenômeno psicológico ocupa no
desenvolvimento humano. Esta proposição se preocupa com a
descoberta da gênese, da origem e das bases dinâmicas causais de
determinado fenômeno psicológico. Esta forma de compreender o
desenvolvimento humano caracteriza o método de análise genética.
Vygotsky não só estudou os processos evolutivos, tais como eles
se apresentam, mas acrescentou a investigação sobre os efeitos das
interrupções e das intervenções sobre eles. Esta perspectiva, derivada
da análise genética, também conhecida como análise genético-
comparativa, estudava, por exemplo, de que modo a interrupção
de uma das forças do desenvolvimento, como a surdez, afetava
a evolução da atividade prática e intelectual do ser humano. Esta
dimensão da investigação vygotskyana vem contribuindo para as
discussões da educação especial, principalmente no que se refere ao
debate sobre a educação inclusiva.

50  Filogênese se circunscreve à origem e evolução do ser humano ao longo de milhões e milhões


de anos. Ontogênese abarca o desenvolvimento do ser humano, de seu nascimento até amorte.
Sobre a filogênese, o filme Guerra do Fogo é bastante ilustrativo. No tocante à ontogênese, o filme
Olhe quem está falando 1 pode ser uma experiência bem-humorada e esclarecedora. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 67
Outra variação do método de análise genética, utilizada por Vygotsky, refere-se ao
método de análise experimental-evolutivo, que implica a intervenção do experimentador
em um processo evolutivo para observar sua variação, visando reconstruí-lo em seus
estágios iniciais.
Esse método pode ser considerado uma das estruturas que reorganizou o
pensamento psicológico de nossa época, remetendo a Psicologia à sua dimensão
social, não apenas biológica.
Os pressupostos da Teoria da Formação Social da Mente estão pautados no
materialismo histórico-dialético, que revela a interdependência da história, da cultura
e do social, manifestada no processo de desenvolvimento humano, determinando-o
e sendo determinada por ele.
Vasconcellos (1995), identificando a influência marxista nas proposições
vygotskyanas, comenta que a ênfase histórica pode ser observada quando a teoria
aponta para a capacidade de o ser humano mudar o contexto social e, ao fazê-lo,
transformar-se a si mesmo. As modificações, por sua vez, só podem ser observadas
na dimensão histórica da sociedade.
O materialismo é revelado quando o autor concebe a natureza como uma realidade
independente da consciência humana. No entanto, a partir da dimensão dialética
da teoria, pode-se entender que a natureza é o resultado de múltiplas formas de
interação.
A concepção de desenvolvimento psicológico em Vygotsky (1989) revela tais
influências à medida que é compreendida como saltos revolucionários fundamentais,
experimentados a partir da mediação e que devem ser explicados pela análise dos
domínios genéticos de diversos tipos de desenvolvimento, incluindo os constituídos
na ontogênese, na filogênese e no processo histórico-social.
Esse entendimento sobre o desenvolvimento humano pode ser identificado
como método evolutivo, visto que focaliza as complexas transformações, tais como
a apropriação e transformação da cultura herdada, em uma convergência com
os processos maturacionais51 e culturais. Nesta trama, o sistema psicológico do
ser humano se constitui no exato momento em que as adaptações biológicas se
transformam em relações sociais.
Em Vygotsky (1989), os processos biológicos e culturais compõem uma unidade
dialética regida pela lei da interdependência. Inicialmente, o desenvolvimento é
comandado por um estado de indiferenciação, orientado pelas bases biológicas, de
maneira preponderante. A partir de certo momento, o peso da explicação sobre o
desenvolvimento passa dos fatores biológicos para os sociais.
Nesta nova organização, as forças biológicas perdem sua primazia como vetor
principal das mudanças e o desenvolvimento começa a se definir a partir de interações
simbólicas básicas, com outros sujeitos sociais mais desenvolvidos.
O ser em desenvolvimento, na perspectiva vygotskyana, ao mesmo tempo em
que é abordado pelo social, por meio da fala externa, interage e constrói sua própria
subjetividade, introduzindo-se nas relações sociais. Esse processo se revela marcado

51 Processos maturacionais – relativos ao crescimento biológico.


68 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
por crises, conflitos e contradições de forma descontínua. Subjetividade “é o conteúdo
que está dentro de nós, atravessado por milhões de relações que estabelecemos”
Guareschi (1999, p. 54).
Rey (2001) caracteriza a subjetividade como um macroconceito que estabelece
a origem sócio-histórica da psique em uma relação indivisível entre o indivíduo
e a sociedade à medida que regula os processos permanentes de significação e
sentidos. Daí Rey (2001) fala de subjetividade social e subjetividade individual
como mutuamente constituídas e constituintes. Trocando em miúdos: o indivíduo
internaliza o significado social presente na sociedade e, ao mesmo tempo, o elabora
de forma particular e original para aplicá-lo, ou mesmo reavaliá-lo. Assim, a partir de
sua originalidade, devolve para a sociedade os conteúdos processados, contribuindo
para a transformação da subjetividade social.
Um exemplo lúdico: o filme O tubarão, de Steven Spielberg, foi tão impactante
na vida de várias gerações que elas passaram a apresentar comportamentos hostis
para com o animal e mesmo estados fóbicos variados, quando em contato com água,
seja do mar, da piscina ou seja do rio. Pois bem, na contramão deste significado há
uma intensa luta de grupos de ambientalistas que se esforçam para desmitificar
o estereótipo do tubarão associado ao alto poder de ataque e destruição. Esse
movimento de ressignificar o sentido atribuído ao tubarão, na cultura da atualidade,
pode ser percebido, por exemplo, no filme Caça tubarões, coestrelado por um tubarão
que não gostava de se alimentar de peixe e, por isso, vivia uma crise de identidade.
Ou ainda, em Procurando Nemo pode-se assistir a um trio de tubarões que frequenta
uma espécie de grupo de autoajuda do tipo “alcoólicos anônimos”, com o objetivo de
se recuperar da compulsão por comer peixes.

Como se vê, a subjetividade, tanto em seu aspecto social quanto indi-


vidual, está em contato direto com o imaginário e com as narrativas,
lócus privilegiado para o processo de significação e de ressignificação. Só para
lembrar Brougère: se a indústria do cinema descobriu este poder, por que não
utilizá-lo para fins educacionais?

Portanto, o desenvolvimento humano e o da sociedade são concebidos como


processos interdependentes, voltados para o futuro, e devem ser entendidos em seu
todo, não havendo indicação para estudos de aspectos isolados como a inteligência,
a memória, a personalidade, nem mesmo para sua compreensão ancorada na
progressividade, na forma de estágios fixos e previstos detalhadamente.

Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 69
1.2 | PRINCIPAIS CONCEITOS

A articulação dos conceitos básicos da teoria vygotskyana, ora proposta, objetiva


delinear uma trilha que leve o leitor ao entendimento da construção da subjetividade
humana circunscrita na dimensão simbólica, representacional. Para isto, prioriza a
explicação do surgimento do plano interno de atividade mental, sustentando-se nos
conceitos de internalização, atividade mediada e na articulação entre pensamento
e linguagem, bem como nas reflexões acerca do sentido pessoal e da zona do
desenvolvimento proximal.
Na lei genética do desenvolvimento cultural, Vygotsky (1989) indicou a direção
do desenvolvimento. O autor sugere que qualquer função no desenvolvimento
humano aparece em dois planos. Primeiro, no plano social ou interpessoal, a partir
das interações sociais, visando à internalização construtiva de tais interações,
surgindo, posteriormente, o plano interno, intrapessoal, também denominado como
intrapsicológico.

Qualquer função no curso do desenvolvimento cultural aparece em


duas vezes ou em dois planos. Primeiro aparece no plano social e,
posteriormente, no plano psicológico. Primeiro aparece entre pessoas,
como categoria interpsicológica,e,em seguida,nas pessoas, como
categoria intrapsicológica.(VYGOTSKY, 1984, p. 163)

Neste sentido, a internalização surge como conceito-chave, à medida que representa


a possibilidade de reconstrução interna de uma operação externa (Vygotsky,1989, p.
63). O processo de internalização52 desponta como um dos responsáveis pela formação
do plano interno de atividade, marcado por influências de instituições sociais e
sistemas educacionais que auxiliam na construção da consciência.
Ao internalizar, o ser humano ativa uma dinâmica psíquica que pressupõe uma
série de transformações, identificadas por Vygotsky (1989) como operações de
processos mentais superiores, originários das relações reais entre os indivíduos,
porque envolvem signos53, formas culturais de comportamento, atividade psicológica
e atividade mediada.
Signo, atividade psicológica e atividade mediada sustentam o conceito de
internalização, à medida que viabilizam o desenrolar do processo. Para compreendê-los

52 Internalização – Vygotsky (1989) desenvolve um bom exemplo sobre o processo de


internalização,focalizando o desenvolvimento do gesto de apontar. Para o autor, o gesto de apontar
nada mais é do que uma tentativa fracassada de pegar alguma coisa. Quando a criança tenta pegar
um objeto, fora de seu alcance, mantém suas mãos esticadas. Esse comportamento é interpretado
pela mãe, por exemplo, como apontar, dando um significado socialmente construído para o
comportamento da criança, que o internaliza.
53 No Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa:
Signo – refere-se a sinal indicativo; indício, marca, símbolo.Significado – conteúdo semântico de um
signo linguístico; acepção, sentido, significação, conceito, noção.
70 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
de forma articulada é preciso lembrar que o signo se caracteriza por ser o instrumento
da atividade psíquica e possibilita a comunicação entre as pessoas, sugerindo uma
atividade mediada.
Vygotsky (1989) se inspirou nos conceitos marxistas acerca de instrumento e
trabalho para, por analogia, propor uma correspondência no campo psicológico.
Segundo a perspectiva vygotskyana:

[...] a invenção e o uso de signos como meios auxiliares para solucionar


um dado problema psicológico (lembrar, comparar coisas, relatar,
escolher, etc.) é análoga à invenção e uso de instrumentos, só que agora
no campo psicológico. O signo age como um instrumento da atividade
psicológica de maneira análoga ao papel de um instrumento no trabalho.
(VYGOTSKY,1989, p.60)

Outro elemento importante se refere à atividade mediada, cujo entendimento


pressupõe dois planos: a mediação pela linguagem e a mediação social, mediante
interação social, berço dos conteúdos representacionais construídos no tecido cultural,
quando lhes são atribuídos significados.
No diálogo tem-se uma atividade mediada, na qual significados são compartilhados,
como se pode observar na descrição de uma cena proposta por Ferreira-Rossetti et al.
(1992, p. 13)54, em que as autoras exploram a construção do significado de creche por
crianças de dois e três anos. O cenário é uma sala da creche com muitos e variados
brinquedos espalhados pelo chão. os personagens são crianças de 2 e 3 anos e a
educadora.

Tudo é meu, tudo! (tentando agarrar um objeto)


Pedro – Sorvete? (apontando para o objeto que Pedro segura)
É sorvete? (olhando para Pedro)
Luis – Eu quero sorvete!
Ana – É da quéche!
Pedro – É meu!
Ana – É da quéche, viu?(gritando)
Pedro – É escolinha

Símbolo – palavra ou imagem que designa outro objeto ou qualidade, por ter com estes uma relação
de semelhança; alegoria, comparação, metáfora.
54 Essa situação retrata um momento de elaboração de significado em torno da representação de
creche. configura-se em uma negociação rica de conteúdos simbólicos, alguns deles internalizados
ou em via de internalização. é possível perceber como a criança pode evocar episódios de
interações sociais já internalizadas para se assegurar da atribuição do significado.
Procure identificar situações como essas no seu cotidiano, registre-as e analise-as à luz da teoria.
  Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 71
Ana – Quéche!(gritando)
Luís – Creche!
Pedro – É escolinha.
Ana – Não é escolinha... é quéche (corpo ereto, olhar bravo.)
Luís – Creche!
Minha mãe falou que é escolinha...
Pedro – um dia minha mãe falou que aqui é escolinha!
Ana – Não falou!
Pedro – Falou!
Ana – Mentira! (gritando)
Educadora – Pedro, oh Pedro! Creche é escolinha? Creche é escola?
Ana – Não é creche!
Educadora – Pedro, é escolinha e creche, não é?
Pedro – Não! é Escola!

Ao nascer, o ser humano é desprovido da capacidade de compartilhar significados.


Neste aspecto, pode-se dizer que a consciência do bebê é a consciência social, de um
tutor, alguém mais competente que ele, de sua mãe, por exemplo.

A palavra do adulto converte-se em um regulador de sua conduta,


elevando a organização da atividade da criança a um nível mais alto
e qualitativamente novo. Esta subordinação das reações da criança à
palavra de um adulto é o começo de uma longa cadeia de formação de
aspectos complexos da sua vida consciente e voluntária. Ao subordinar-
se às ordens verbais do adulto, a criança adquire um sistema de
instruções verbais e começa a utilizá-las gradualmente para regular a sua
própria conduta.(LURIA & YUDOVICH, 1987, p. 13)

A partir do falar e do fazer do adulto é que a criança se organizará em direção


a uma consciência individual e intrapsicológica, transformando a fala, inicialmente
reconhecida como um meio básico de comunicação, em um meio de análise e síntese
da realidade.
Para tanto, será preciso que os eixos do desenvolvimento da linguagem e do
pensamento se cruzem, por volta dos dois anos, possibilitando o surgimento do
pensamento verbal, da capacidade representacional e da função planejadora da
fala. Por fim, das operações mentais complexas ou superiores.
O aflorar do pensamento verbal representa um ganho qualitativo no
desenvolvimento, uma vez que oferece condições para a criança construir
72 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
representações mentais plenas de significado, caracterizando uma fase intelectual,
cuja função simbólica evidencia a curiosidade da criança pelas palavras.
O processo de representação possibilita que a própria ideia do ser humano seja
capaz de operar sobre o mundo, por meio de um conteúdo mental de natureza
simbólica que representa os objetos, situações e eventos do mundo real no universo
psicológico.

Essa capacidade de lidar com representações que substituem o real é


que possibilita que o ser humano faça relações mentais na ausência dos
referentes concretos, imagine coisas jamais vivenciadas, faça planos
para tempo futuro, enfim, transcenda o espaço e o tempo presentes,
libertando-se dos limites dados pelo mundo fisicamente perceptível e
pelas ações motoras abertas.(LA TAILLE et al. 1992, p. 26-27)

Em seu livro Pensamento e Linguagem, Vygotsky (1989) revela que o instante em


que a fala começa a servir ao intelecto pode ser delineado a partir de dois sintomas.
Primeiro, a curiosidade ativa e repentina da criança pelas palavras, característica da
pergunta: O que é isto?. Esta questão aparece exatamente porque a criança entendeu
que cada coisa tem um nome. O segundo sintoma ressalta a ampliação do vocabulário
da criança, que ocorre de forma rápida e aos saltos.

[...] a criança sente a necessidade das palavras e, ao fazer perguntas,


tenta ativamente aprender os signos vinculados aos objetos. Ela
parece ter descoberto a função simbólica das palavras. A fala, que na
primeira fase era afetivo-conativa, agora passa para a fase intelectual.
As linhas do desenvolvimento da fala e do pensamento se encontram.
(VYGOTSKY, 1989, p. 38)

No processo que antecede o pensamento verbal, a criança se organiza pela


consciência social, apresentando uma fala pré-intelectual, na forma de balbucio, choro,
primeiras palavras, consideradas formas de comportamento predominantemente
emocionais. Este processo se revela independente do pensamento pré-verbal
identificado a partir da compreensão de relações mecânicas e utilização de
instrumentos. Paulatinamente, a partir do surgimento do pensamento verbal, a
criança começará a se autorregular, à medida que sua consciência interna se constitui.
No entanto, esse processo não se dá de forma tão linear quanto possa parecer.
Vygotsky (1989) identificou um período intermediário, responsável pela transição
do plano externo para o plano interno da consciência, o período egocêntrico. No estudo
sobre o desenvolvimento da fala, esse processo fica claramente caracterizado.
Inicialmente, a criança é orientada pela fala do adulto, ator social temporariamente
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 73
mais competente. Na sequência, por um período, a criança passa a falar para si
mesma, buscando uma autorregulação para, só depois, conversar internamente
consigo, na forma de pensamento verbal e fala interior.
O egocentrismo, segundo a proposta vygotskyana, não configura característica
peculiar de determinado estágio de desenvolvimento, passível de ser superado. Nesta
teoria, o egocentrismo atua toda vez que o ser humano desencadeia novo processo de
internalização, buscando novos planos de ação, novas soluções mais inteligentes e
menos automáticas para seus problemas.
Luria & Yudovich (1987, p. 18) revelam que:

Já em 1929, Vigotsky demonstrou que, sempre que a criança de quatro


a cinco anos de idade enfrenta um problema que lhe traz algum tipo
de dificuldade, produz-se fala externa não dirigida a seu interlocutor; a
criança enuncia a situação colocada, toma dela cópia verbal e reproduz,
depois, aquelas conexões da sua experiência passada que podem tirá-la
de suas dificuldades presentes. Vigotsky tentou demonstrar que não se
tratava de linguagem egocêntrica afetiva, sobre a qual escrevia Piaget
na época, mas sim da intervenção da linguagem como mediadora da
conduta, através da mobilização de conexões verbais que ajudem a
resolver um problema difícil. Suas observações mostraram que a criança
fala primeiro em voz alta para si mesma, mas que sua fala se enfraquece
pouco a pouco, convertendo-se num sussurro, e acaba, afinal, em fala
interna. Mostraram também que a criança de sete a oito anos começa a
resolver os problemas complexos com a ajuda de sistemas de conexões
verbais internos construídos antes, no transcurso do intercâmbio verbal,
e que, a partir de então, converteram-se em seus próprios mecanismos
individuais, capacitando-a a incluir as conexões verbais na organização
da sua atividade.55

O desenvolvimento da fala, segundo Vygotsky (1989), pode ser considerado


detentor do mesmo curso, obedecendo às mesmas leis do desenvolvimento de todas
as outras operações mentais que envolvem o uso de signos, como a contagem ou a
memorização. Neste processo, o autor identificou quatro estágios, esquematizados
da seguinte forma:
• 1º estágio: natural ou primitivo – é caracterizado pela fala pré-intelectual e pelo
pensamento pré-verbal. Portanto, pode ser identificado como ocorrendo antes
dos dois anos de idade.

55 Na literatura brasileira você irá encontrar a grafia de Vygotsky com y e com i. O uso de y refere-se
a influência dos textos originais do autor traduzidos pelo inglês, e o uso de i indica a influência das
traduções em espanhol.
74 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
• 2º estágio: psicologia ingênua – revela a experiência da criança com propriedades
físicas do próprio corpo e dos objetos à sua volta, além da aplicação desses
instrumentos. Este estágio circunscreve o primeiro exercício de inteligência prática
da criança e as primeiras manifestações corretas das formas e estruturas gramaticais
antes que a criança tenha entendido as operações lógicas que representam.

• 3º estágio: signos exteriores, operações externas– que são usadas como auxiliares
na solução de problemas internos. Neste estágio, a criança conta com os dedos, faz
uso de recursos auxiliares para se lembrar das coisas ou eventos, o que corresponde à
função da fala egocêntrica.

• 4º estágio: crescimento interior – pode-se observar a internalização das operações


externas que, ao se efetuarem, provocam profunda mudança no funcionamento
psicológico da criança. Comportamentos característicos desse processo podem
ser identificados quando a criança passa a contar mentalmente, a usar a memória
lógica, operando com relações intrínsecas e signos interiores. Quando comparado
ao desenvolvimento da fala, esse estágio corresponde à conquista da fala interior,
silenciosa.
Mesmo após a construção do crescimento interior, continua a existir uma interação
constante entre as operações externas e as internas. Uma operação transformando a
outra, por exemplo, quando alguém se prepara repassando mentalmente o conteúdo
de uma conferência, como bem lembrou Vygotsky (1989).
Uma vez internalizado, o conteúdo ganha, através de processos psicológicos mais
sofisticados, como a vontade e a intenção, um sentido pessoal, levando o ser humano
a construir seus significados e a recriar sua própria cultura.
Para La Taille et al. (1992), à medida que o ser humano internaliza formas de
funcionamento psicológico,culturalmente construídas, toma posse delas, utilizando-
as como instrumentos pessoais de pensamento e de ação no mundo.
O sentido pessoal para Leontiev (1983) não possui uma existência própria.
Ocorre quando o indivíduo relaciona, em sua consciência, o conteúdo externo com
as significações da realidade do mundo objetivo, vinculando-as à sua própria vida
dentro desse mundo, com suas motivações. Esse processo origina a parcialidade da
consciência humana e expressa as forças internas que movem o ser humano.
Uma das conclusões destacadas por Vygotsky (1989) se refere ao pensamento
verbal como não sendo forma de comportamento natural ou inato. Longe disso. Ele
é determinado por um processo histórico-cultural e está sujeito a todas as premissas
do materialismo histórico, que são válidas para qualquer fenômeno histórico na
sociedade humana.
Esse raciocínio pode ser mais bem esclarecido pelas reflexões de Leontiev
(1983) acerca do sentido pessoal, quando o autor revela que o indivíduo não
possui um idioma próprio de significações elaborado por ele mesmo. Por isso, a
conscientização dos fenômenos da realidade só pode operar-se no ser humano por
meio de significações elaboradas pelo contexto social. Conhecimento, conceitos e
pontos de vista são identificados a partir da comunicação interpessoal, ou de
Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 75
massa. Podem, perfeitamente, conter significados fantásticos e deformados, berço
de estereótipos e ideologias que somente poderão ser questionados mediante sérias
confrontações.56 Desta forma, torna-se necessário que a consciência do indivíduo
produza uma ressignificação do conteúdo em um contexto onde os indivíduos lutem
pela construção de suas consciências.

Con esto quiero decir que el individuo no se encuentra sencillamente


parado ante una cierta vitrina de significaciones que en ella se exponen,
entre las cuales a él le resta solamente hacer su elección, estas
significaciones representaciones, ideas, conceptos - no están esperando
pacientemente ser elegidas, sino que penetran en sus relaciones com
las personas que conforman el círculo de su esfera de comunicaciones
reales. Si el individuo se ve impelido a elegir ante determinadas
condiciones de vida, su elección no es entre las significaciones, sino
entre posiciones sociales em conflicto, quese manifestan y conscientizan
através de estas significaciones. En la esfera de las representaciones
ideológicas este processo es inevitable y de caráter general solamente
dentro de la sociedad de clases. Pero, se mantiene también, aún en las
condiciones de la sociedad socialista y comunista, en la medida que
entonces se manifiesten las particularidades de la vida individual del
hombre, las particularidades de sus relaciones personales en conflicto,
su forma de comunicación com las demás personas y relaciones
cotidianas vitales; se mantiene también este processo, debido a que en
el ínterin, sus particularidades como esencia corpórea y las condiciones
externas concretas son sui generis, no pueden ser idénticas para
todos.57(LEONTIEV, 1983, p. 127-128)

No livro intitulado Psicologia Social Contemporânea, Bonin (1998) relata que na


proposição vygotskyana emerge a questão da pessoa e da intencionalidade circunscrita

56  Neste ponto, é oportuno retomar o debate acerca da construção da imagem social do tubarão,
ou da creche, ambos apresentados neste texto.
57  “Com isto quero dizer que o indivíduo não se encontra simplesmente “parado” diante de uma
certa “vitrine” de significações que nela se expõem, entre as quais lhe resta somente fazer uma eleição.
Estas significações – representações, ideias, conceitos – não estão esperando pacientemente para
serem eleitas em sua sorte, penetram nas relações pessoais que configuram o círculo da esfera de
comunicações reais. Se o indivíduo se vê impulsionado a escolher ante determinadas condições de
vida, sua escolha não se dá entre as significações, mas entre posições sociais em conflito, que se
manifestam e conscientizam através destas significações. Na esfera das representações ideológicas,
este processo é inevitável e de caráter geral somente dentro de uma sociedade de classes. Mas,
também se mantém ainda nas condições das sociedades socialistas e comunistas, à medida que se
manifestam as particularidades da vida individual dos homens, as particularidades de suas relações
pessoais no conflito, sua forma de comunicação com as demais pessoas e relações cotidianas vitais.
Se mantem também este processo, nesse ínterim, suas particularidades como essência corpórea y
as condições externas concretas são condições sui generis, não podendo ser idênticas para todos.
(Tradução da autora).
76 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
à questão semiótica58, enfocando a mente formada por meio de um diálogo de vozes,
atinente à produção de representações e ideologias. Neste contexto, o ser humano
assimila a narrativa de sua cultura, que supõe uma diversidade de diálogos, incluindo
conformidade, contradição e discordância.
Narrativa manifesta-se em histórias contadas por autores formais ou pessoas
comuns. As narrativas desenvolvidas não são simples acontecimentos, carregam
implicitamente a capacidade humana de elaborar os significados encontrados ao
longo da vida.
O exercício de análise de narrativas contemporâneas, tais como as produções de
desenhos animados, livros e músicas dirigidas ao público infantil, é recomendado ao
educador infantil.
Particularmente destaco o trabalho da cantora Adriana Calcanhoto, no CD Adriana
Partimpim e no livro O Poeta aprendiz, que acompanha o CD, além do trabalho musical
do Palavra Cantada, de Toquinho em No mundo da criança. Na parceria com Vinícius
de Moraes em: A arca de Noé e A casa de brinquedos e do CD Tutu, o menino índio,
de Tony Brandão. Os filmes da Disney como Rei Leão I, Lilo & Stitch, Toy Story I,
Procurando Nemo, Dinossauro são narrativas que merecem ser revisitadas com olhar
analítico para o conteúdo socioafetivo subjacente a seus enredos. Ainda falando de
filmes, também merece distinção Spirit: o corcel indomável,da Dreamworks Pictures.
Na literatura infanto-juvenil contemporânea podem-se encontrar narrativas que
estabelecem um diálogo com a criança, buscando a superação de pensamentos
estereotipados a partir de temáticas polêmicas, como é o caso de Menina Bonita
do Laço de Fita, Dani e O menino Nito, que abordam as questões relativas à etnia.
Miguel e O menino maluquinho falam da criança incompreendida pelos adultos,
classificadas como endiabradas em uma visão maniqueísta que as condena ou a anjo
ou a diabo, negando a dialética de amor e ódio presente em todo ser humano. Uma
família parecida com a da gente busca relativizar o conceito de família. Suriléa, a mãe-
mostrinho, Quando mamãe virou monstro, As muitas mães de Ariel focalizam a relação
da criança com a mãe dentro de um contexto de superação da visão linear que defende
que somente o adulto tem razão. Mostram diferentes pontos de vista que revelam
que cada um possui sua razão. Boneca de Pano discute a relação da menina com a
boneca e a representação do amadurecimento e da relação do adulto com sua razão
em detrimento de sua emoção. Faca sem ponta, galinha sem pé trabalha as questões
de gênero, buscando superar os preconceitos socialmente colocados, apostando no
reconhecimento do outro como diferente e, ao mesmo tempo, complementar. Isso
sem esquecer de autores clássicos,como Monteiro Lobato. Você já pensou sobre
o rico potencial de elaboração dos significados da identidade sexual infantil
presente em Reinações de Narizinho, por exemplo?

58  No Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa, semiótica se refere ao estudo dos fenômenos
culturais considerados como sistemas de significação, tenham ou não a natureza de sistemas de
comunicação (inclui, assim, práticas sociais, comportamentos etc.); semiologia. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 77
Outro exercício bastante produtivo de análise de publicações, já citadas neste
fascículo, que revisitaram os contos clássicos como Chapeuzinho Amarelo, de Chico
Buarque, e A verdadeira história dos três porquinhos,de Jon Scieszka.

Se você se interessou pelo assunto, busque no texto,relativo à


importância da brincadeira na educação infantil, deste fascículo,
as referências sobre Gilles Brougère, antropólogo que propõe um debate em
torno do conceito de cultura lúdica.

A cultura, na perspectiva vygotskyana, é compreendida como práticas coletivas e


normativas que envolvem expectativas, valores e formas de agir em conjunto. Essas
atividades são apropriadas pela criança com o apoio de adultos em um processo que
perpassa gerações. Nesta configuração, pode-se afirmar que, o que uma criança
consegue fazer hoje com a ajuda de um adulto, amanhã ela poderá fazer sozinha,
garantindo que a tradição cultural seja transmitida por meio de ações e interpretações
das práticas cotidianas que são socializadas no contexto da história do grupo.
A história do grupo e a tradição cultural são noções que, na teoria vygotskyana,
são possíveis quando sustentadas pelas noções de interação social, mediação simbólica
e pelo conceito de zona de desenvolvimento proximal. Este último define-se como
sendo

[...] a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma


determinar através da solução independente de problemas, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes. (VYGOTSKY, 1989, p. 97)

Sass (1992) indica que o conceito de zona de desenvolvimento proximal59 é


um dos pressupostos vygotskyanos que fazem a mediação entre a Psicologia do
Desenvolvimento e Aprendizagem e a Psicologia social. Tal afirmação se dá porque
o conceito de zona de desenvolvimento proximal se configura a partir da relação
comunicativa que se estabelece entre os indivíduos, situação em que um deles se
caracteriza como tutor, orientador, aquele que dá pistas, dicas, modelos.
Em uma situação de exploração da criança com um material pedagógico, por
exemplo, o que se percebe é que, em um primeiro plano, ocorre a mediação do tutor
com o aprendiz e, em decorrência desta, se dá a atividade operativa da criança sobre
o material.

59 O menino e seu amigo, de Ziraldo, aborda com muita sensibilidade a relação adulto-criança no
contexto temporal, demarcando o processo de educação que atravessa gerações. 
78 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Essa dinâmica da ação comunicativa pode ser mais bem compreendida,no
contexto das discussões sobre zona de desenvolvimento proximal, quando associada
à noção de imitação.
Sobre isso, Vygotsky (1987, p. 89) acrescenta:

[...] a imitação e aprendizagem desempenham um papel importante:


trazem à tona as qualidades especificamente humanas da mente e
levam a criança a novos níveis de desenvolvimento. Na aprendizagem
da fala, assim como na aprendizagem das matérias escolares, a imitação
é indispensável. O que a criança é capaz de fazer hoje em cooperação,
será capaz de fazer sozinha amanhã. Portanto o único positivo de
aprendizagem é aquele que caminha à frente do desenvolvimento,
servindo-lhe de guia; deve voltar-se não tanto para as funções já
maduras, mas principalmente para as funções em amadurecimento.

Vasconcellos (1995), apoiando-se em seu trabalho com Valsiner (1984), revela a


existência de numerosas tentativas conceituais com o objetivo de compreender o
conceito de zona de desenvolvimento proximal. Dessas tentativas, destaca três, mais
populares.
A primeira proposição, versão quantitativa60, refere-se à preocupação original
do autor com a situação de ensino e as avaliações formais nas escolas de sua época.
Com base no conceito de zona de desenvolvimento proximal, o autor estabelece uma
crítica às questões relativas à idade mental61 estipulada por testes de QI. Essa crítica
influenciou os métodos de diagnóstico na educação, sobretudo porque o conceito
de zona de desenvolvimento proximal focaliza o potencial de desenvolvimento
identificado ao longo do processo educacional. A noção de idade mental está mais
focalizada na idade atual62 ou real, portanto no produto.
O desenvolvimento potencial pode ser medido por meio da comparação –
contagem de diferença –, da observação de situações, em que o sujeito realiza suas
ações sozinho e assistido por um adulto ou companheiro mais competente.

60 Contagem da diferença.
61 Com relação à idade mental, vasconcellos (1995) salienta que a escola obtém o nível da idade
mental ideal, isto é, o que pode ser esperado a partir de uma visão de desempenho por estágios
universais. Sendo assim, se a idade mental atual e a idade mental ideal diferirem muito, a criança terá
poucas possibilidades de desfrutar dos ensinamentos escolares.
62 Nível atual ou real de desenvolvimento – é o resultado do ciclo de desenvolvimento já
completado. Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 79
A distância entre o desenvolvimento atual e o potencial é o que se denomina
de desenvolvimento proximal, isto é, aquilo que está entre os dois estágios de
desenvolvimento, um já realizado e o outro em potencial. Entre um e o outro se
desenvolve o que está próximo, as estruturas que estão em via de amadurecer, em
processo de estruturação.63
Outro elemento subjacente ao conceito de zona de desenvolvimento proximal
se refere aos aspectos qualitativos64 da capacidade de resolução de problemas que
estariam mais otimizadas no contexto de trocas sociais com pares mais competentes,
se comparado à atuação solitária da criança. Estes aspectos sustentam a afirmação
da escola como lugar privilegiado, no sentido de oferecer diferentes situações em
que o desenvolvimento potencial da criança se realiza pela via da imitação e da
orientação do par mais competente. Por meio do mecanismo da internalização, o
desenvolvimento proximal paulatinamente se transforma em atual.

Vygotsky detalha sua explicação refletindo sobre o ambiente,


intencionalmente mediado de significados, que é a escola: lócus de
aprendizagem sistematizada e de potencialização das conquistas
culturais sobre os modos de pensamento do cidadão. Quando a
performance de uma criança, numa atividade ou na solução de um
problema se dá com a ajuda de um companheiro mais experiente, tal
atividade ou solução do problema acontece, primeiramente, na forma
de uma operação externa, realizada entre companheiros (interpsíquica);
mais tarde, tal operação precisa ser reconstruída, pelo sujeito, passando
a ser internalizada pelo próprio aprendiz (intrapsíquica). Assim sendo,
o processo interpessoal, existente no ser guiado (ou ajudado), só é
completo após ser transformado num processo intrapessoal, isto
é, interno à própria criança, e será reconhecido ao ser novamente
externalizado em forma de ações intencionais, organizadoras,
expandidoras ou inibidoras da ação dos outros sociais. A transformação
é resultante de uma longa série de eventos internos de desenvolvimento,
constituidores do sujeito. (VASCONCELLOS, 1995, p.51)

63 Um exemplo exagerado às vezes ajuda na compreensão. Então,imagine um bebê de três meses


interagindo com uma criança de dois anos. Pensar que desta interação pode resultar a aprendizagem
da fala do bebê em função da orientação da criança de dois anos seria uma inadequação do ponto de
vista do conceito de zona de desenvolvimento proximal, isto porque o bebê ainda não possui maturação
neurológica suficiente para tal. Ainda que este seja seu potencial de desenvolvimento, as estruturas
necessárias para o exercício da fala ainda são rudimentares; porém, do ponto de vista do bebê, a
condição rudimentar da função relacionada com a linguagem representa um desenvolvimento atual
ou real. No entanto, o fluxo do desenvolvimento não cessa,e este bebê está prestes ou está próximo
do balbucio e, não tarda, demonstrará isso de forma cada vez mais intencional. Nesta perspectiva,
pode se identificar a zona proximal, aquela que será estimulada pela ação da criança de dois
anos. Daí porque falar que a zona proximal está entre a zona atual, ou real, e a zona potencial de
desenvolvimento.
64 Fazer com assistência.
80 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
As conclusões advindas da análise do conceito de zona de desenvolvimento
proximal apontam:
►► 1) As funções que compõem o desenvolvimento psicológico e sustentam a
aprendizagem se estruturam de maneira prospectiva, referindo-se sempre ao que
está para ser.

Essas funções poderiam ser chamadas de” brotos “ou” flores “do
desenvolvimento, ao invés de “frutos”do desenvolvimento. O nível
de desenvolvimento real caracteriza o desenvolvimento mental
retrospectivo, enquanto a zona de desenvolvimento proximal caracteriza
o desenvolvimento mental prospectivamente.(VYGOTSKY, 1984, p.97)

►► 2) A aprendizagem sempre depende de interações de indivíduos (presentes


ou representados por objetos culturais ou instituições), que despertarão o
desenvolvimento interno.

►► 3) A terceira proposição decorrente do conceito de zona de desenvolvimento


proximal se refere à constatação de que o sujeito social, mesmo sozinho, vive em
um mundo mediado por recursos socioculturais,como a organização espacial65, os
brinquedos66 e demais objetos, eventos, linguagem.

Ao analisar a brincadeira, a partir das reflexões de Valsiner (1988), Vasconcellos


(1995, p. 53) destaca:

Na brincadeira, a criança usa os recursos disponíveis do ambiente para


criar sua própria zona de desenvolvimento proximal, tais como arranjos
espaciais próprios e estratégias de ação organizadas pelas gerações
anteriores.

65 Sobre este assunto, vale ler o texto intitulado Considerações acerca do espaço: alguns subsídios
para se pensar a organização espacial dos ambientes escolares, apresentado neste mesmo fascículo.
66 Para análise complementar sobre a relação estabelecida entre a teoria vygotskyana e a
brincadeira, consultar o texto Por que se afirma que, na educação infantil, brincadeira é coisa séria?,
também presente neste fascículo.  Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 81
De forma geral, Vasconcellos (1995) salienta que o conceito de zona de
desenvolvimento proximal foi proposto por Vygotsky (1989) com o objetivo de chamar
a atenção dos educadores para a importância do processo de construção da estrutura
futura das funções psicológicas superiores, as protofunções67. Estas, por sua vez,
quando observadas e trabalhadas pedagogicamente, revelam o desenvolvimento em
sua forma plena68.

Notas finais
O questionamento inicial deste trabalho convida o leitor a descobrir a relevância
das contribuições de Vygotsky para a Psicologia e para a Educação. Para tanto,
focalizaram-se as contribuições deste autor no que se refere à Psicologia do
Desenvolvimento e alguns elementos convergentes à Psicologia Social, atuais aos
interesses da Psicologia Educacional.
O foco principal que o leitor é levado a analisar persegue o fenômeno da construção
ontogenética do pensamento representacional e da construção do plano interno de
atividade mental, com a emergência das funções mentais superiores.
Dentre vários apontamentos, destacam-se os conceitos de internalização, atividade
mediada, sentido pessoal, pensamento verbal e zona de desenvolvimento proximal. Tais
conceitos, articulados com o caráter discursivo-ideológico da linguagem, oferecem
subsídios para o entendimento de como se dá a construção da subjetividade na
qualidade de produto e de processo.
A discussão em torno do conceito de imitação propicia ao leitor o desvelamento da
abstração teórica, indicando as possibilidades concretas de teoria viva nas interações
entre crianças e entre adulto-criança.
A imitação, neste sentido, parece ser elemento esclarecedor da teoria, ainda mais
fortalecido quando se compreende sua articulação com a ação comunicativa, a zona
de desenvolvimento proximal, a internalização e a construção de representações,
sustentados por uma matriz histórico-social e ideológica que se expressa por recursos
socioculturais tais como eventos, linguagem, brinquedos, organizações espaciais e a
construção das narrativas.
Por fim, vale ressaltar o convite ao leitor para o exercício de análise dos processos
de significação subjacentes às narrativas contemporâneas dirigidas às crianças
e sua relação com a construção das subjetividades, atividade imprescindível para o
educador no exercício de conhecer e dese comunicar com o universo infantil.

67 Protofunções – funções ainda imersas em sua potencialidade, ou processos intrapsíquicos que


ainda permanecem inacessíveis.
68 Para análise complementar sobre a relação estabelecida entre a teoria vygotskyana e a
brincadeira, consultar o texto Por que se afirma que, na educação infantil, brincadeira é coisa séria?,
também presente neste fascículo. 
82 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
PROPOSTA DE ATIVIDADES E LEITURA

Atividade ❶
Diferencie a concepção acerca do egocentrismo, presente na teoria piagetiana,
daquela proposta por Vygotsky. Neste exercício, considere a situação abaixo
caracterizada.

Ao lembrar da reação das pessoas frente ao atentado de 11 de setembro de 2001,


em Nova York, o que se pôde observar foi uma reação na qual as pessoas falavam
sozinhas, como que repetindo para si mesmas o que seus olhos enxergavam e suas
mentes, de imediato, não podiam representar, traduzir, dar sentido. Como estratégia
para construir um significado para aquela tragédia, muitas pessoas assistiam
compulsivamente as reportagens, buscavam imagens e informações que pudessem
auxiliá-las na construção de um enredo, de uma versão dos fatos a ser internalizada.
Interessante notar que, ao longo do processo de internalização, as pessoas foram
elaborando e reelaborando significados, criando um sentido pessoal para os fatos.

Atividade ❷
Explore o conceito de zona de desenvolvimento proximal, identificando as três
proposições possíveis no entendimento do conceito. Neste exercício, busque analisar
o papel da relação adulto-criança, criança-criança e criança-linguagem midiática no
processo de desenvolvimento e aprendizagem.

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Desenvolvimento e aprendizagem
na infância 83
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VYGOTSKY, Lev S. A formação social da mente.São Paulo. Martins Fontes, 1989.
_____. Pensamento e linguagem. São Paulo:Martins Fontes, 1987

84 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
Para encerrar esta parte, algumas palavras
Ao finalizar a apresentação das principais contribuições da Psicologia à
educação infantil é possível constatar que desenvolver e aprender significa tornar-se
diferenciado, em outras palavras autônomo, seja no plano intelectual, no social ou no
afetivo.
A autonomia deve ser compreendida como a capacidade de autorregulação,
governar-se por si mesmo, levando em consideração seu ponto de vista e o ponto
de vista do outro, pronunciando-se contra ou a favor aos dados da realidade,
compreendendo as razões implícitas que os geram e aderindo, ou não, a elas.
Na construção da autonomia o sujeito está em constante exercício de análise,
entendimento e convencimento.
De outra forma, diz-se que autonomia remete ao sentido de diferenciação, de
superação da dependência total do meio, de uma percepção centrada no eu para
uma consciência da relação eu-outro que se amplia em direção à constituição do eu
inserido no grupo, como sujeito social, cidadão.
No entanto, é preciso ressaltar que desenvolver-se autonomamente não é a
direção natural do curso do desenvolvimento, até porque, de acordo com os autores
estudados neste fascículo, o desenvolvimento não se dá aprioristicamente, mas,
sim, no entrecruzamento das dimensões biológicas, sociais e culturais. Isso implica
dizer que nem todo processo educacional se orienta pelos objetivos da emancipação
do sujeito. Ao contrário, acabam reproduzindo relações heterônomas, nas quais a
criança simplesmente aceita as regras ou o conhecimento em si como algo pronto,
submetendo-se a eles.
Deste ponto de vista, a problemática, a educação para a autonomia ainda enfeixa
outra reflexão: o mesmo que se reivindica para a criança também deve ser reivindicado
para seus professores.
Antes que o leitor pense que a chave para esse dilema se encontra muito longe
do que foi exposto neste fascículo, é preciso lembrar que os ensinamentos de Piaget,
Wallon e Vygotsky explicitam o processo de desenvolvimento e aprendizagem do
ser humano e, como tal, devem ser reconhecidos. Isso implica dizer que, ao refletir
sobre os conceitos apresentados neste fascículo, o leitor deverá ampliar o foco de sua
análise para além da criança, na qualidade de aluno. Neste sentido, deverá analisar a
si mesmo como ser em desenvolvimento, como aluno que foi e que é.
Eis as perguntas que seguem: Como vejo meu processo de desenvolvimento e
de aprendizagem? Em que medida posso dizer que minha formação foi ou é pautada
pela autonomia? Quais são minhas limitações e minhas possibilidades? Na condição
de profissional de Educador da Infância, como sou influenciado pelos significados desta
profissão?
Como me posto diante disso? como se pode notar, as reflexões sobre
desenvolvimento e aprendizagem, tendo na diferenciação e na autonomia suas
questões de fundo, requerem elementos que extrapolam os limites deste fascículo,
ao mesmo tempo em que remetem o leitor à leitura de outros, cuja temática aborda
a questão identitária do educador da infância, por exemplo.
Boa caminhada!
86 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
REFERÊNCIAS
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Pesqui., São Paulo, n. 117, nov. 2002. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.
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TAJFEL, Henri. Grupos humanos e categorias sociais. Lisboa: Livros Horizonte, 1982

88 Desenvolvimento e aprendizagem
na infância
MINISTÉRIO DA
EDUCAÇÃO

COORDENAÇÃO DE
APERFEIÇOAMENTO DE
PESSOAL DE NÍVEL SUPERIOR -
CAPES

UNIVERSIDADE
ABERTA DO BRASIL - UAB UNIVERSIDADE
UAB ABERTA DO BRASIL

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