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Como o leitor pode intuir, essa perspectiva fornece um poderoso aparato teó-
rico para a elaboração da crítica externa ao direito penal. Não se trata mais de for-
mular modelos teóricos arquitetados para averiguar as (possíveis) causas que podem
ter sido fundamentais para a realização de um fato punível (teorias da criminalidade);
senão de investigar os processos (sociais) por meio dos quais determinados compor-
tamentos são caracterizados como fatos puníveis (teorias da criminalização). Dentro
dessa última perspectiva começarei pelos partidários da reação social; esses estão
preocupados, como veremos a seguir, com as seguintes questões: a identificação de
quais impactos determinado comportamento proibido tem para os sancionados (es-
tigmatização); a descrição do comportamento sancionado pelas instâncias de con-
trole social e também pela sociedade; as consequências das medidas sancionatórias
para determinados grupos de pessoas (sanção seletiva); e, finalmente, a pergunta
sobre quais as condições em que surgem as normas utilizadas para a sanção1126. Essa
nova moldura de compreensão da questão criminal, como ressalta parcela da litera-
tura científica, ao desviar a lente de análise do autor do delito, produziu o primeiro
salto qualitativo no desenvolvimento da teoria criminológica1127.
1124. Para parcela da doutrina, essa “Criminologia é produto da sociologia do conhecimento, que é respon-
sável por investigar como os conhecimentos se produzem. Essa epistemologia se denomina Constru-
cionismo e os autores mais destacados desta nova tendência epistemológica são Berger e Luckman”.
Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 209.
1125. O gráfico é de Werner Rüther.
1126. Cfr. Murck, Manfred. Kriminalität und soziale Kontrolle. In: Kritische Justiz, 1972, p. 264.
1127. “Con la aparición de los enfoques que desviaron la atención hacia la reacción y las instancias sociales
a través de las cuales la conducta es ‘filtrada’ y definida se produjo entonces una cesura en la inin-
terrompida linea tradicional. Los ulteriores avances de la investigación, particularmente aquellos de
características socio-históricas, causaron una segunda ruptura. En efecto, cuando se pudo afirmar
que la ley penal no era producto de un consenso; que, por el contrario, sólo constituye el autentico
instrumento de preservación de los intereses de las clases dominantes, entonces el vuelco fue to-
tal...”. Bergalli, Roberto. Origen...Op. cit., p. 51.
1128. As expressões serão utilizadas indistintamente.
1129. Cfr. Neubacher, Frank. Kriminologie... Op. cit., p. 105, Rn. 1.
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1130. Cf. Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 68, Rn. 91; Schneider, Hans Joachim. Kriminolo-
gie... Op. cit., p. 538.
1131. Cf. nota de rodapé n. 1005.
1132. Cf. Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 223.
1133. Brown, Stephen E; Esbensen, Finn-Aage; Geis, Gilbert. Criminology: explaining crime and its con-
text. 7. ed. Ohio: LexisNexis, 2010, p. 319.
1134. Garcia Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 797.
1135. Sobre as tendências radical e moderada no seio do labelling approach, cf. Garcia Pablos de Molina,
Antonio. Tratado... Op. cit., p. 802; Hassemer, Winfried. Fundamentos... Op. cit., p. 82 e ss.
1136. Cf. Garcia Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 798.
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perceber que as ideias acolhidas pelos teóricos do labelling derivam de duas tradições
teóricas dentro da investigação científica: 1. O poder econômico e político determi-
na não somente o que é etiquetado, senão também quem o é; 2. A experiência de ser
etiquetado é instrumental para a criação de um caráter e de um estilo de vida des-
viado. Antes de passar à análise das reflexões que decorrem dessas duas tradições
teóricas, cumpre fornecer ao leitor uma breve visão panorâmica do aparato teórico
que serviu de base para o desenvolvimento do labelling.
1137. Cf. Bergalli, Roberto. Origen...Op. cit., p. 68; Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op. cit., p. 47; Her-
rero, Herrero, César. Criminología…Op. cit., p. 385. Parcela da literatura considera que a sua influên-
cia teórica e prática fora, naquele momento, extremamente pequena. Cf. Garcia Pablos de Molina,
Antonio. Tratado... Op. cit., p. 801; Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 224.
1138. Cf. Bergalli, Roberto. Origen... Op. cit., p. 69.
1139. Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 528.
1140. Amelang, Manfred. Sozial abweichendes... Op. cit., p. 217; Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op.
cit., p. 47.
1141. Garcia Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 801; Téllez Aguilera, Abel. Criminología...
Op. cit., p. 529.
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Convém ressaltar, ainda que de passagem, o clima político dos anos sessenta do
século XX nos Estados Unidos, país em que a teoria foi gestada. Com efeito, ressalta
a doutrina, ali, e naquele momento, se produziu uma forte luta estudantil contra
a intervenção norte-americana no Vietnã e contra a segregação racial, ainda pre-
sente naquele período. Naquele momento também surgiu o movimento feminista
que lutava pela igualdade de oportunidades e, ademais, floresceu igualmente um
movimento que propugnava um novo estilo de vida, um estilo de vida mais liberal
nas relações pessoais e mais hedonista. Todos esses aspectos entram em conflito
com a sociedade estabelecida, cujos grupos de poder reagiram criminalizando estas
lutas1147. Isso expressou, portanto, que o determinante para a identificação das pes-
soas desviadas estava na reação social àqueles novos modelos comportamentais. E
se o que é determinante para classificar determinada conduta como crime é a reação
social, parece evidente que ele não possui uma natureza ontológica, mas apenas
definitória e, portanto, contingencial. Para melhor compreender, aqui está um
bom exemplo da diferença que há entre o conceito de crime para a Criminologia da
reação social e o conceito para o direito penal. Aquela defende um conceito defini-
tório de crime, ou seja, o crime nada mais é que a consequência da reação social.
Imagine-se, por exemplo, que uma senhora, idosa e bem apresentada, seja flagrada
saindo de uma joalheria com um relógio de ouro no punho; os demais clientes, bem
assim o segurança que efetue um eventual controle descreverá o seu comportamen-
to como uma distração ou um esquecimento; poucos, por outro lado, o descreverão co-
mo comportamento desviante. Contudo, se comportamento idêntico fosse realizado
por outra pessoa, agora mais jovem, negra e miseravelmente vestida, essa seria ime-
diatamente etiquetada como gatuna ou larápia e o mesmo comportamento, outrora
tratado como esquecimento, seria interpretado como tentativa de furto.
Nesse contexto, portanto, bem se vê que a rotulação social trata de (tentar) ex-
plicar os processos de criminalização, as carreiras criminais: trata-se de teoria for-
mulada com o objetivo muito claro de tentar decifrar a desviação secundária. E é
justamente por isso que alguns autores, com razão, avaliam que o labelling é muito
mais uma teoria da criminalização que uma tradicional teoria sobre a origem e a
etiologia do crime1148.
Nesse enfoque, como se vê, não interessam as causas do desvio, mas sim o pro-
cesso por meio do qual alguém é definido como criminoso e o impacto que isto tem
sobre a desviação secundária. Como bem afirmou Rüther, recorrendo ao teorema de
Thomas1149: “não há criminalidade como um pedaço de ferro, pois este apresenta-se
como objeto físico, independentemente de valorações e descrições. A criminalida-
de, contudo, existe preponderantemente em pressupostos normativos e valorativos
1147. Cf. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 199.
1148. Cf. García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 797.
1149. O célebre teorema de W. I. Thomas foi vazado nos seguintes termos: “se os homens definem uma
situação como real, ela acaba se tornando real para eles”.
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da sociedade. A criminalidade que realmente existe é aquela cuja imagem pode ser
transportada à realidade em virtude da fixação e aplicação de normas”1150.
Esquematizando as ideias lançadas: na reação social, as investigações não se
dirigem a possíveis déficits de socialização ou patologias sociais, mas sim aos repres-
sores, de modo que o desviante é produzido pelo controle social, daí porque se
fala em uma sociologia da sociedade punitiva. O enfoque definitorial, portanto,
questiona o processo de definição da criminalidade e, com isso, suprime as inves-
tigações sobre as causas. Esquematicamente, os enfoques etiológico e definitorial
assumiriam, respectivamente, a seguinte estrutura1151:
Enfoque etiológico
Enfoque definitorial
1150. Rüther, Werner. La criminalidad (o ‘el delincuente’) a través de las definiciones sociales (o etiqueta-
miento). In: Doctrina Penal, 1978, p. 749.
1151. O gráfico é de Werner Rüther.
1152. Questionamento da definição e, com isso, a supressão da investigação sobre as causas.
1153. Cf. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie... Op. cit., p. 538 e ss.
1154. Cf. Kunz, Karl-Ludwig; Singelnstein, Tobias. Kriminologie... Op. cit., p. 162, Rn. 6; Meier, Bernd-Die-
ter. Kriminologie…Op. cit., p. 69, Rn. 92; Bergalli, Roberto. Origen…Op. cit., p. 71; Téllez Aguilera,
Abel. Criminología... Op. cit., p. 534 e ss.
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Nesse cenário traçado por Lemert, agora desde uma perspectiva mais próxi-
ma e clara, como bem indicado por Hassemer e Muñoz Conde, o processo de crimi-
nalização se deve também ao próprio funcionamento dos órgãos encarregados da
Administração da Justiça1158. Denominando-se, assim, criminalização primária a
1155. Martínez González, Maria Isabel; Mendoza Calderón, Silvia. Teorías... Op. cit., p. 127.
1156. O leitor encontrará uma versão gráfica simplificada desse processo abaixo, item 2.4.
1157. Lemert, Edwin M. Social Pathology. A Systematic Approach to the Theory or Sociopathic Behavior.
New York: McGraw-Hill Book Company, 1951, p. 77.
1158. “[…]principalmente a los jueces, que muchas veces de un modo más o menos directo deciden en base a
sus propias convicciones morales o ideológicas, incluso aunque actúen dentro del marco más o menos
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amplio que les permite la ley”. Hassemer, Winfried, Muñoz Conde, Francisco. Introducción... Op.
cit., p. 116.
1159. “Una de las causas del proceso de etiquetamiento se debe efectivamente, según la teoría del etiqueta-
miento, al papel del Juez como creador del Derecho penal”. Idem, ibidem.
1160. Idem, ibidem.
1161. Bergalli, Roberto. Origen…Op. cit., p. 73.
1162. Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 70, Rn. 94. Mencionando, ainda, ao lado de Becker,
John I. Kitsuse, Kai T. Erikson, Harold Garfinkel e Edwin M. Schur, cf. Schneider, Hans Joachim.
Kriminologie... Op. cit., p. 540. Sobre a importância de Tannenbaum, que é considerado o avô da
teoria do etiquetamento, cf. Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 225-226. Sobre a influência do
antropólogo Malinowski, em sua pesquisa sobre a endogamia nas Ilhas Trobriand, no pensamento de
Becker, cf. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 219 e ss.
1163. Ignácio Anitua, Gabriel. Histórias... Op. cit., p. 592 e ss; Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena.
Teorías... Op. cit., p. 202-204; Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 527.
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1164. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 225 (itálico no original).
1165. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 219.
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base nisso, ele assenta o aparato conceitual da “desnaturação do eu”, que é justamente
o efeito desse processo de interação (ou encontro) com o outro e que terá especial
relevância no âmbito das instituições totais.
Para Goffman, instituições totais são aquelas em que as pessoas são retiradas
do convívio social por considerável espaço de tempo, compartilhando uma situação
comum, transcorrendo parte de sua vida em lugar fechado e formalmente adminis-
trado. Essa característica ele encontrou em asilos, manicômios, campos de con-
centração, prisões e conventos1172. Nessas instituições, o que se tem de efeito é
a despersonalização do sujeito, conduzindo-o à rigorosa rotina do local; no dizer
de Anitua, “em que pesem os diferentes objetivos de cada uma dessas instituições,
todas elas têm algo em comum, pois se encarregam da programação da vida dos
internos de acordo com normas concebidas para a consecução dos objetivos da ins-
tituição”1173. O fechamento do indivíduo ao convívio social promove modificações
no seu “eu”, transformando-o drasticamente no tocante ao seu papel social, que se
resume a adaptar-se às regras da casa.
A assunção das atitudes e desses novos valores pertencentes à subcultura car-
cerária, na linguagem utilizada pela doutrina, dá causa ao fenômeno denominado
de prisionização. No livro Estigma (1963), por exemplo, Goffman analisa os efeitos
sociais que a instituição total pode provocar no indivíduo. Como o título do livro
sugere, o termo é compreendido como um atributo que indica a inabilidade social do
indivíduo. Assim, por exemplo, o atributo de louco ou de delinquente acompanhará
o indivíduo e mostrará a ele mesmo e aos demais que o seu lugar “natural” é a ins-
tituição total1174. No âmbito cinematográfico, bem lembrado por Shecaira, o filme
Um Sonho de Liberdade retrata a realidade da despersonalização, repersonalização e
estigmatização do indivíduo1175.
O conceito de cerimônias degradantes foi introduzido por Garfinkel1176. São
processos ritualizados em que o indivíduo é condenado e despojado de sua identida-
de e recebe outra (degradada)1177. É possível pensar, assim, que há cerimônias degra-
dantes formais e cerimônias degradantes informais. As primeiras ocorrem em razão
das respostas formais do controle social, a exemplo do processo e julgamento penal;
a segunda, decorre da intervenção das instâncias informais, a exemplo do papel da
mídia no processo penal. Para que a cerimônia da degradação seja exitosa, o fato e
o seu autor precisam ser categorizados como “anormais”. Para isso, “desempenham
um papel primordial as instituições e os especialistas que criam determinadas
1172. Significativo: Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos; trad. Dante Moreira Leite. São
Paulo: Perspectiva, 1996.
1173. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 581.
1174. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 583.
1175. Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia... Op. cit., p. 301, nota de rodapé n. 63.
1176. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 585.
1177. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 206; Dias, Jorge de Figueiredo; Andra-
de, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 350.
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Por tudo isso, e também é preciso pôr destaque neste ponto, os meios de comu-
nicação de massa se converteram em protagonistas dos rumos político-criminais do
Brasil1186. Nas precisas palavras da doutrina: “si trasladamos la teoría de la agenda-
-setting al ámbito de la política criminal lo que ello significa es que los medios de
comunicación, ejercitando su facultad de fijar la agenda de temas relevantes, pueden
decidir en determinado momento situar a la delincuencia en general o a determina-
do tipo de delincuencia en el centro del debate público, creando una extraordinaria
presión en el poder político para que actúe de una determinada manera”1187.
Se pensamos no histórico midiático mais distante e mais recente do Brasil, não
há dificuldade em encontrar diversos exemplos do espetáculo da notícia associados
a questões criminais. Na retrospectiva mais distante, recorda-nos Shecaira sobre
o caso da Escola de Base, ocorrido em São Paulo, em que os donos foram massiva e
injustamente acusados pela imprensa; ao final, com o término das investigações,
o inquérito foi arquivado1188. Para mencionar exemplos mais recentes, rememore-
mos o caso Eloá; o assassinato de Isabella Nardoni; a espetacularização em torno
do “caso Neymar” ou a discussão que se formou em torno da terminologia “estupro
culposo”, no caso Mariana Ferrer. Por isso, qualquer estudo que pretenda averiguar
a racionalização na elaboração das leis penais, os processos de vitimização e, no que
aqui nos interessa, a espetacularização do fenômeno criminal, não pode ignorar o
papel fundamental desempenhado pela mass media1189.
Com potencial para evitar tudo isso, como adverti anteriormente, o Código
de Processo Penal deu passo importante. Com a reforma implementada pela Lei
13.964/2019, que entre outras coisas instituiu o Juiz de Garantias, determinou-se
que esse “... deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos pre-
sos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa
para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade
civil, administrativa e penal”1190.
Naturalmente, a publicidade de um fato criminoso serve como garantia, porém,
não é menos verdade que a garantia não blinda, tampouco é carta branca para a
publicidade abusiva. Os discursos midiáticos histéricos promovem, por um lado, a
impressão da necessidade normativa, e, por outro, a mais expressiva cerimônia
degradante informal.
1186 Sobre o cenário norte-americano, cf. Roberts, Julian V; Stalans, Loreta; Indermaur, David; Hough,
Mika. Populism and Public Opinion. Lessons from five Countries. Oxford: University Press, 2003, p.
76 e ss. Destaco: “No exploration of penal populism would be complete without a discussion of media
influences on the public”.
1187. Veróna Gomez, Daniel. Medios de comunicación…Op. cit., p. 4.
1188. Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia... Op. cit., p. 295.
1189. Um exemplo de investigação nestes moldes pode ser encontrado em García Arán, Mercedes; Peres-
-Neto, Luiz. Agenda de los medios…Op. cit, p. 271 e ss.
1190. Até o fechamento da atualização dessa edição, esse dispositivo estava com a sua eficácia suspensa, v.
ADI’s n. 6298, 6299, 6300 e 6305.
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Finalizarei o parêntese com uma advertência final: é óbvio que esse processo
de tematização não é fruto, somente, da interferência midiática, senão que é resul-
tado da complexa interação, na sugestão de Roberts, Stalans, Indermaur e Hough,
entre os meios de comunicação, os políticos, o público e os grupos de interesses1191.
O resultado disso, todos nós sabemos: populismo punitivo. Adaptando o gráfico de
Kennamer, aqueles autores expressam a relação dinâmica da seguinte maneira:
1191. Roberts, Julian V; Stalans, Loreta; Indermaur, David; Hough, Mika. Populism…Op. cit., p. 86-87.
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1192. Exemplo em Brown, Stephen E; Esbensen, Finn-Aage; Geis, Gilbert. Criminology... Op. cit., p. 321.
1193. Cf. Quensel, Stephan. Wie wird man kriminell? In: Kritische Justiz, 1970, p. 375 e ss.
1194. Toda a classificação e descrição é de García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 799-801.
O leitor também encontrará uma interessante síntese das teses do labelling em Lamnek, Siegfried.
Theorien... Op. cit., p. 224-225.
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do sistema penal que assume o papel de agente criminalizador, à medida que ela
tem o poder-dever de definir quem será criminoso.
Em síntese: toda criminalidade é, pois, uma criminalidade criada, seja
pela intervenção da teia normativa, seja pelos efeitos que as reações for-
mais causam. O que fundamentalmente há de comum entre todos os crimi-
nosos é a resposta das instâncias formais de controle.
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2.6. Críticas
O labelling padece de elevado déficit etiológico, afinal, o desvio primário – por
ser multifatorial – é margeado pelos seus teóricos1198. Mais ainda, se o crime é um
processo de definição, nada mais relevante que investigar justamente este processo
de definição, em vez de questionar apenas a legitimidade da intervenção. Daí por-
que o labelling, por meio de seu processo político-criminal de filtragem, “apenas”
desconstrói o discurso punitivo. E justamente por essa razão trata-se muito mais de
uma “teoria” da criminalização que uma teoria explicativa do crime1199.
Nesse sentido, sendo mais contundente, López-Rey Arrojo afirma que a tese
interacionista é uma mera repetição nada original do subjetivismo reducionista:
“não há dúvida que as relações humanas dão lugar a uma série de ações e reações
especialmente no que diz respeito à lei. Mas nem umas nem outras servem por si só
para explicar o fenômeno da criminalidade e o funcionamento do sistema penal”1200.
Outra objeção comum é a que se faz entre a relação carreiras criminais e ro-
tulação. Com efeito, como tem apontado o setor crítico ao labelling, há uma série
de carreiras criminosas solidamente consolidadas sem que o indivíduo tenha sido
etiquetado e, na linha inversa, os bons exemplos de (re)inserção demonstram que
nem todo estigmatizado desencadeia, necessariamente, uma carreira criminal1201.
Em definitivo, considerando os aclaramentos efetuados, ao menos dois equívocos
merecem ser destacados: primeiro, a teoria do etiquetamento universaliza e atribui
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o problema criminal às agências de controle social, sendo certo que há uma série de
outras variáveis que merecem ser consideradas para uma adequada compreensão do
fenômeno. A monogenia conduz ao seu próprio fracasso enquanto teoria; em segundo
lugar, a perspectiva generalizante de exercício de poder em favor de poucos – é dizer –
como fator de dominação, ignora a crível realidade de que há determinada delinquên-
cia que agride bens jurídicos que não guardam qualquer conexão com fatores de poder
e, portanto, sua seleção não decorre de um simples processo de imposição dominante
(a exemplo dos crimes contra a vida ou contra a dignidade sexual). Soa no mínimo
estranho apontar que a condenação por estupro decorra, única e exclusivamente, de
uma atuação seletiva e parcial das agências de controle formal1202.
1202. Próximo à segunda crítica cfr. Wellford, Charles. Labelling Theory and Criminology: An Assessment.
In: Social Problems, vol. 22, No. 3 (Feb., 1975), p. 334.
1203. Categorização e estruturação de Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción…Op. cit., p. 441 e ss; igual
abordagem em Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 557-566; Martínez González, Maria
Isabel; Mendoza Calderón, Silvia. Teorías... Op. cit., p. 132-133.
1204. Zaffaroni, Eguênio R; Alagia, Alejandro; Solkar, Alejandro. Manual de Derecho penal. Ediar: Buenos
Aires, 2010.
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1205. Braithwaite, John. Crime, shame and reintegration. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.
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• Do mesmo modo que a teoria de Braithwaite, a teoria do desafio também se desenvolve sobre
as bases do conceito de vergonha, igualam-se quando concluem que as sanções podem ter um
efeito dissuasor se os vínculos do autor com comunidade sancionadora são sólidos.
1206. Cf., especialmente, Sack, Fritz. Neue Perspektiven in der Kriminologie. In: Sack, Fritz; König, René
(Hrsg.). Kriminalsoziologie. Frankfurt: Akademische Verlagsanstalt, 1968, p. 431-475.
1207. Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 161, Rn. 65; Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p.
237; Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 70, Rn. 95a; Schneider, Hans Joachim. Krimino-
logie... Op. cit., p. 551.
1208. Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 546.
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3. O MODELO DE DAHRENDORF
Seguindo a linha orientada pela reação social, especialmente no tocante à ideia de
dominação de classes e poder de decisão, as construções abaixo descritas se debruçam
sobre quem tem o poder de definir o que é crime1210 e, com isso, rompem com o
mito da sociedade estática, desprovida de conflito e baseada no consenso1211.
Nesse contexto, Ralf Dahrendorf foi o responsável pela quebra de paradig-
ma consensual, chamando à ordem a ideia de que a sociedade vive um conflito de
classes (não propriamente no sentido marxista1212). Consoante antecipado, onde as
teorias estrutural-funcionalistas, acima analisadas, viam uma harmonia de normas
e valores, a teoria do conflito vê coerção, dominação e poder. Dahrendorf viu am-
bas, dependendo do foco do estudo. De acordo com ele, o funcionalismo é útil para
compreender a ideia de consenso, ao passo que o conflito serve-se à compreensão da
coerção e do poder.
Para ele, a dinâmica das estruturas sociais desenvolve-se a partir das relações
de autoridade, classificando o conflito social como algo normal em todas as socie-
dades e em todos os tempos; bem por isto, para Dahrendorf, o funcionalismo das
teorias estruturais é utópico, eis que fundado na ideia de consenso de valores. Em
toda sociedade, diz ele, é possível distinguir, há associações que dominam e associa-
ções que são dominadas.
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1213. Siegel, Larry J. Criminology... Op. cit., p. 269; García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit.,
p. 833.
1214. Baratta, Alessandro. Criminologia... Op. cit., p. 123.
1215. Vold, George B; Bernard, Thomas J; Snipes, Jeffrey B. Theoretical... Op. cit., p. 236-238.
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conservador tende a moldar a imagem de uma Justiça Penal mais conservadora; nas
de um liberal, uma Justiça menos conservadora.
Dentro desse quadro, moldado por Vold, insere-se a ideia de que, para ele, o
crime representa um comportamento do grupo minoritário; o comportamento hu-
mano é dominado pelo comportamento do grupo que caracteriza o conflito.
Sua teorização é mais ajustável:
I) aos crimes decorrentes de protestos políticos;
II) aos crimes decorrentes de disputas nas relações de trabalho;
III) aos crimes decorrentes de conflitos entre e dentro de sindicatos; e
IV) aos crimes decorrentes de conflitos étnicos e raciais.
Austin Turk, que integra grupo de autores mais modernos e ainda vinculados
ao modelo da rotulação social, baseia sua teoria nas relações de poder existentes
entre o sistema econômico (não apenas capitalista) – sustentado pela dominação
política – e a criminalidade1216. Para ele, nada e ninguém é interiormente criminoso,
a criminalidade é uma definição aplicada por indivíduos com o poder de fazê-lo; a ro-
tulação e o consequente status de criminoso é conferido aos indivíduos que integram
estratos inferiores da sociedade.
Turk constatou a tendência de criação de leis para punir pessoas cujo compor-
tamento é mais característico nas classes inferiores do que nos estratos sociais mais
elevados; bem como, até que ponto pessoas e grupos podem usar os instrumentos
de resposta do Estado para aumentar seu poder e dominação. O crime, portanto, é
resultado da interação entre os dominadores e os dominados.
QUADRO SINÓTICO
A explicação para o crime reside nas respostas formais do Estado para o comportamento
2
desviante.
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