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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

qualidade intrínseca do comportamento, para a reação social o desvio é resultado de


uma construção social da realidade1124. Esquematicamente1125:

Estruturas de domínio e poder


Definição, imagem
da criminalidade
Realidade da criminalidade

Como o leitor pode intuir, essa perspectiva fornece um poderoso aparato teó-
rico para a elaboração da crítica externa ao direito penal. Não se trata mais de for-
mular modelos teóricos arquitetados para averiguar as (possíveis) causas que podem
ter sido fundamentais para a realização de um fato punível (teorias da criminalidade);
senão de investigar os processos (sociais) por meio dos quais determinados compor-
tamentos são caracterizados como fatos puníveis (teorias da criminalização). Dentro
dessa última perspectiva começarei pelos partidários da reação social; esses estão
preocupados, como veremos a seguir, com as seguintes questões: a identificação de
quais impactos determinado comportamento proibido tem para os sancionados (es-
tigmatização); a descrição do comportamento sancionado pelas instâncias de con-
trole social e também pela sociedade; as consequências das medidas sancionatórias
para determinados grupos de pessoas (sanção seletiva); e, finalmente, a pergunta
sobre quais as condições em que surgem as normas utilizadas para a sanção1126. Essa
nova moldura de compreensão da questão criminal, como ressalta parcela da litera-
tura científica, ao desviar a lente de análise do autor do delito, produziu o primeiro
salto qualitativo no desenvolvimento da teoria criminológica1127.

2. A TEORIA DA REAÇÃO SOCIAL


A teoria da reação social (rotulação social, etiquetamento ou labelling approa-
ch)1128 inverte a direção da lança1129 no que diz respeito à abordagem da questão
criminal. Como o sugestivo nome da teoria permite intuir, os teóricos da reação

1124. Para parcela da doutrina, essa “Criminologia é produto da sociologia do conhecimento, que é respon-
sável por investigar como os conhecimentos se produzem. Essa epistemologia se denomina Constru-
cionismo e os autores mais destacados desta nova tendência epistemológica são Berger e Luckman”.
Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 209.
1125. O gráfico é de Werner Rüther.
1126. Cfr. Murck, Manfred. Kriminalität und soziale Kontrolle. In: Kritische Justiz, 1972, p. 264.
1127. “Con la aparición de los enfoques que desviaron la atención hacia la reacción y las instancias sociales
a través de las cuales la conducta es ‘filtrada’ y definida se produjo entonces una cesura en la inin-
terrompida linea tradicional. Los ulteriores avances de la investigación, particularmente aquellos de
características socio-históricas, causaron una segunda ruptura. En efecto, cuando se pudo afirmar
que la ley penal no era producto de un consenso; que, por el contrario, sólo constituye el autentico
instrumento de preservación de los intereses de las clases dominantes, entonces el vuelco fue to-
tal...”. Bergalli, Roberto. Origen...Op. cit., p. 51.
1128. As expressões serão utilizadas indistintamente.
1129. Cfr. Neubacher, Frank. Kriminologie... Op. cit., p. 105, Rn. 1.

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social partem do pressuposto segundo o qual a explicação para o crime concen-


tra-se nas respostas formais do Estado para o comportamento (paradigma do
controle). O que fundamentalmente está em questão não é a causa de um determi-
nado comportamento (a desviação primária), mas sim o modo como as agências for-
mais de controle social filtram e reagem a esse comportamento1130. Isso significou
fundamental mudança de perspectiva de investigação: não se indaga quem é desviado,
mas sim quem é considerado desviado (construcionismo social1131). E é justamente
nesta (nova) moldura investigativa que se situa o ponto comum entre todas aquelas
perspectivas que podem ser subsumidas ao labelling: as teorias não são orientadas
etiologicamente, isto é, elas não buscam as causas do comportamento desviante, se-
não que o compreende como resultado de um exitoso processo de atribuição da des-
viação1132 (= processos de criminalização).
Se se parte dessa premissa, então, a primeira questão que se põe é: quais são
os elementos importantes para esse processo de criminalização? Como destacam
Brown, Esbensen e Geis, para a reação social não é o comportamento por si só que
condiciona a resposta oficial, mas as características físicas e o comportamento do
indivíduo também desempenham papel importante em moldar resposta das agên-
cias formais, a qual depende da sua posição social1133. Como a beleza, que se acha nos
olhos do observador, o crime também se acha nas definições sociais1134. Se transfe-
rimos essa observação metafórica para o campo criminológico, a conclusão a que
chegamos é a de que para o labelling o interesse da investigação se desloca daquele
que é controlado (o desviante) para aqueles que o controlam1135. Em maior ou menor
medida, isso implicará reconhecer que o paradigma do controle converte o desviado
em uma vítima do sistema penal1136.
Essa mudança de perspectiva (ou ruptura com o paradigma etiológico) altera os
tradicionais padrões de duplas conceituais que até então predominavam na Crimi-
nologia (crime versus pobreza; crime versus anormalidade e crime versus estrutu-
ra social) para dar origem a uma nova dupla conceitual: crime versus reação social
(transição para o paradigma do controle). O que importará nesse novo paradigma,
consoante será abordado adiante, não é a natureza do crime, mas sim as pessoas e
os processos por meio dos quais se definem outros indivíduos como desviantes e isso,
como é possível intuir, transmutará todo o tradicional esquema criminológico de
análise do comportamento desviante. Como se demonstrará a seguir, torna-se fácil

1130. Cf. Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 68, Rn. 91; Schneider, Hans Joachim. Kriminolo-
gie... Op. cit., p. 538.
1131. Cf. nota de rodapé n. 1005.
1132. Cf. Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 223.
1133. Brown, Stephen E; Esbensen, Finn-Aage; Geis, Gilbert. Criminology: explaining crime and its con-
text. 7. ed. Ohio: LexisNexis, 2010, p. 319.
1134. Garcia Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 797.
1135. Sobre as tendências radical e moderada no seio do labelling approach, cf. Garcia Pablos de Molina,
Antonio. Tratado... Op. cit., p. 802; Hassemer, Winfried. Fundamentos... Op. cit., p. 82 e ss.
1136. Cf. Garcia Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 798.

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perceber que as ideias acolhidas pelos teóricos do labelling derivam de duas tradições
teóricas dentro da investigação científica: 1. O poder econômico e político determi-
na não somente o que é etiquetado, senão também quem o é; 2. A experiência de ser
etiquetado é instrumental para a criação de um caráter e de um estilo de vida des-
viado. Antes de passar à análise das reflexões que decorrem dessas duas tradições
teóricas, cumpre fornecer ao leitor uma breve visão panorâmica do aparato teórico
que serviu de base para o desenvolvimento do labelling.

2.1. Os precedentes: Frank Tannenbaum


Conforme adverte parcela da literatura científica, Tannenbaum, em seu livro
Crime and Community (1938), foi o primeiro a considerar que as definições sociais
em relação a determinados comportamentos são fundamentais para o surgimento
do comportamento desviado1137. Noutros termos: o ajuste de determinada situação
à moldura da desviação se origina no conflito de valores entre o que viola as normas
e a comunidade e esses dois grupos têm definições opostas sobre a situação. Para o
primeiro, a conduta pode ser aceitável, não danosa ou de menor importância; para o
segundo, entretanto, a conduta pode tomar o aspecto de desviação, o que conduzirá
a uma exigência paralela de controle, correção ou castigo1138.
A partir dessa racionalização e com as investigações voltadas para a delinquência
juvenil, assentou o axioma que logo se converteria em central para a teoria do etique-
tamento: The young delinquente becomes bad because he is defined as bad1139. Essa propo-
sição representa, como é possível intuir, a superação da dicotomia “criminoso” e “não
criminoso” sugerida pelas teorias criminológicas até então. Com base naquele axioma,
argumentou-se que a delinquência não é “realizada”, mas sim criada e produzida por
meio da sociedade, é dizer, por meio de um complexo processo de criação e utilização das
normas1140. Isso significa que o problema central da Criminologia deve ser a pergunta
sobre os porquês de certas pessoas atribuírem a outras um fato punível.
Para além disso, outro aspecto desenvolvido por Tannenbaum, mesmo de modo
rudimentar, mas que logo marcaria o labelling, refere-se ao que ele denominou the
dramatization of evil (a dramatização do mal) e que diz respeito ao processo por meio
do qual o desviado muda a personalidade, identifica-se e assume posteriormente o
rótulo de desviado1141. Em detalhes: o processo de atribuição de responsabilidade

1137. Cf. Bergalli, Roberto. Origen...Op. cit., p. 68; Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op. cit., p. 47; Her-
rero, Herrero, César. Criminología…Op. cit., p. 385. Parcela da literatura considera que a sua influên-
cia teórica e prática fora, naquele momento, extremamente pequena. Cf. Garcia Pablos de Molina,
Antonio. Tratado... Op. cit., p. 801; Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 224.
1138. Cf. Bergalli, Roberto. Origen... Op. cit., p. 69.
1139. Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 528.
1140. Amelang, Manfred. Sozial abweichendes... Op. cit., p. 217; Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op.
cit., p. 47.
1141. Garcia Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 801; Téllez Aguilera, Abel. Criminología...
Op. cit., p. 529.

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conduz à modificação da autoimagem da pessoa etiquetada e tem como consequên-


cia o fato de que ela se comportará, uma e outra vez, criminalmente1142.
Naturalmente esse modelo de compreensão da desviação fez com que Tannen-
baum argumentasse a favor da redução do processo de etiquetamento do indivíduo
e de sua conduta; esse seria, na sua construção, o caminho adequado para evitar o
fortalecimento do comportamento criminal nos indivíduos.
Essa intuição de Tannenbaum somente produziria um significativo influxo so-
bre a ciência criminológica a partir do final dos anos sessenta do séc. XX. Desde
então, a ideia de uma teoria da criminalização, e não mais da criminalidade, ganha
corpo e aquele axioma nuclear passa a um nível mais sofisticado de desenvolvimento
científico. Passo à análise desse nível.

2.2. O processo de definição do delito, do delinquente e a assunção da identi-


dade de delinquente
Em primeira aproximação pode-se dizer que os defensores deste modelo crimi-
nológico costumam argumentar que o sistema penal é uma forma de dominação
social. Nesse sentido, considera-se que a lei penal não seria produto de um consen-
so, mas, ao revés, apenas constituiria um instrumento de preservação dos interesses
das classes dominantes, demonstrando-se que o delito e o chamado comportamento
desviante seriam produto de situações históricas precisas e contextos sociais deter-
minados1143. Com precisão, Batista considera que a criminalidade deixa de ser
uma realidade objetiva para ser lida como uma definição1144.
Com efeito, a observação é irretocável. A Criminologia, a partir da virada socio-
lógica proporcionada pela realidade estadunidense de meados do século XX, iniciou
um caminho paradigmático à medida que deixou de operar com patologias indivi-
duais para investigar processos de criminalização, mais precisamente processos
de etiquetamento como conceito fundamental para a compreensão do fenômeno
do crime: o delito (a desviação) não é uma qualidade da conduta, mas sim uma eti-
queta atribuída a partir de complexos processos de interação social. Noutros termos:
o determinante mesmo não é o fato em si, mas sim a maneira pela qual a sociedade
e instituições a ele reagem1145. Ou, no dizer de outro setor, “a criminalização não
obedece a critérios objetivos (proteção de um verdadeiro bem comum), senão que é
dependente de critérios de grupo e dirigidos contra os que estão distantes do êxito,
do dinheiro e do poder”1146.

1142. Eifler, Stefanie. Kriminalsoziologie…Op. cit., p. 47.


1143. Bergalli, Roberto. Origen... Op. cit., p. 51.
1144. Batista, Vera Malaguti. Introdução... Op. cit., p. 74.
1145. Cf. Bergalli, Roberto. Origen…Op. cit., p. 49 e ss; Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…
Op. cit., p. 218 e ss.
1146. Herrero Herrero, César. Criminología…Op. cit., p. 385.

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Convém ressaltar, ainda que de passagem, o clima político dos anos sessenta do
século XX nos Estados Unidos, país em que a teoria foi gestada. Com efeito, ressalta
a doutrina, ali, e naquele momento, se produziu uma forte luta estudantil contra
a intervenção norte-americana no Vietnã e contra a segregação racial, ainda pre-
sente naquele período. Naquele momento também surgiu o movimento feminista
que lutava pela igualdade de oportunidades e, ademais, floresceu igualmente um
movimento que propugnava um novo estilo de vida, um estilo de vida mais liberal
nas relações pessoais e mais hedonista. Todos esses aspectos entram em conflito
com a sociedade estabelecida, cujos grupos de poder reagiram criminalizando estas
lutas1147. Isso expressou, portanto, que o determinante para a identificação das pes-
soas desviadas estava na reação social àqueles novos modelos comportamentais. E
se o que é determinante para classificar determinada conduta como crime é a reação
social, parece evidente que ele não possui uma natureza ontológica, mas apenas
definitória e, portanto, contingencial. Para melhor compreender, aqui está um
bom exemplo da diferença que há entre o conceito de crime para a Criminologia da
reação social e o conceito para o direito penal. Aquela defende um conceito defini-
tório de crime, ou seja, o crime nada mais é que a consequência da reação social.
Imagine-se, por exemplo, que uma senhora, idosa e bem apresentada, seja flagrada
saindo de uma joalheria com um relógio de ouro no punho; os demais clientes, bem
assim o segurança que efetue um eventual controle descreverá o seu comportamen-
to como uma distração ou um esquecimento; poucos, por outro lado, o descreverão co-
mo comportamento desviante. Contudo, se comportamento idêntico fosse realizado
por outra pessoa, agora mais jovem, negra e miseravelmente vestida, essa seria ime-
diatamente etiquetada como gatuna ou larápia e o mesmo comportamento, outrora
tratado como esquecimento, seria interpretado como tentativa de furto.
Nesse contexto, portanto, bem se vê que a rotulação social trata de (tentar) ex-
plicar os processos de criminalização, as carreiras criminais: trata-se de teoria for-
mulada com o objetivo muito claro de tentar decifrar a desviação secundária. E é
justamente por isso que alguns autores, com razão, avaliam que o labelling é muito
mais uma teoria da criminalização que uma tradicional teoria sobre a origem e a
etiologia do crime1148.
Nesse enfoque, como se vê, não interessam as causas do desvio, mas sim o pro-
cesso por meio do qual alguém é definido como criminoso e o impacto que isto tem
sobre a desviação secundária. Como bem afirmou Rüther, recorrendo ao teorema de
Thomas1149: “não há criminalidade como um pedaço de ferro, pois este apresenta-se
como objeto físico, independentemente de valorações e descrições. A criminalida-
de, contudo, existe preponderantemente em pressupostos normativos e valorativos

1147. Cf. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 199.
1148. Cf. García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 797.
1149. O célebre teorema de W. I. Thomas foi vazado nos seguintes termos: “se os homens definem uma
situação como real, ela acaba se tornando real para eles”.

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da sociedade. A criminalidade que realmente existe é aquela cuja imagem pode ser
transportada à realidade em virtude da fixação e aplicação de normas”1150.
Esquematizando as ideias lançadas: na reação social, as investigações não se
dirigem a possíveis déficits de socialização ou patologias sociais, mas sim aos repres-
sores, de modo que o desviante é produzido pelo controle social, daí porque se
fala em uma sociologia da sociedade punitiva. O enfoque definitorial, portanto,
questiona o processo de definição da criminalidade e, com isso, suprime as inves-
tigações sobre as causas. Esquematicamente, os enfoques etiológico e definitorial
assumiriam, respectivamente, a seguinte estrutura1151:

Causas – ? Criminalidade Definição

Enfoque etiológico

Causas Criminalidade ?? – Definição


??????1152

Enfoque definitorial

Os principais teóricos do labelling approach foram: Mead, Goffman, Becker e


Lemert. Como síntese estruturante do pensamento e das ideias do labelling, há dois
autores fundamentais: Lemert e Howard S. Becker1153. Creio imprescindível uma
análise, ainda que breve, desses autores.

2.3. A estrutura nuclear do labelling: Edwin Lemert e Howard Becker

2.3.1. Edwin M. Lemert


Lemert, na obra Patologia Social (1951), fica particularmente conhecido pela
distinção que fez entre desvio primário e secundário1154. Desvio primário se re-
fere ao comportamento ocasional ou situacional e corresponderia à primeira ação
delitiva de um sujeito, cuja finalidade poderia ser a resolução de alguma necessidade
situacional, como a econômica, ou ser fruto da necessidade de acomodação do su-
jeito dentro das expectativas de determinado grupo subcultural, como os delitos

1150. Rüther, Werner. La criminalidad (o ‘el delincuente’) a través de las definiciones sociales (o etiqueta-
miento). In: Doctrina Penal, 1978, p. 749.
1151. O gráfico é de Werner Rüther.
1152. Questionamento da definição e, com isso, a supressão da investigação sobre as causas.
1153. Cf. Schneider, Hans Joachim. Kriminologie... Op. cit., p. 538 e ss.
1154. Cf. Kunz, Karl-Ludwig; Singelnstein, Tobias. Kriminologie... Op. cit., p. 162, Rn. 6; Meier, Bernd-Die-
ter. Kriminologie…Op. cit., p. 69, Rn. 92; Bergalli, Roberto. Origen…Op. cit., p. 71; Téllez Aguilera,
Abel. Criminología... Op. cit., p. 534 e ss.

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praticados no âmbito da delinquência juvenil1155. Por ser multifatorial, essa desvia-


ção primária deve ficar fora da explicação do crime.
O desvio secundário é o resultado da interação entre o desvio do indivíduo e
a resposta formal a esse desvio. De forma mais explícita, pode-se dizer que o desvio
primário é multifatorial, daí porque sua etiologia é insindicável; o desvio secundá-
rio, por sua vez, são as respostas aos problemas criados pela desviação primária.
Assim, o desvio secundário é consequência de uma série de interações e geralmente
segue o seguinte processo1156:
a. desviação primária; b. punições sociais; c. nova desviação primária; d. recha-
ço e punições mais severas; e. posteriores desviações, quiçá com hostilidades
e ressentimentos que começam a ser dirigidos contra aqueles que colocaram
em prática as punições; f. crise alcançada pelo limite de tolerância, expressada
mediante ações formais da sociedade estigmatizando o desviado; g. fortaleci-
mento da conduta desviada como uma reação à estigmatização e às punições; h.
aceitação final do status social de desviado e dos esforços de adaptação sobre a
base da associação de papéis.1157

Como é possível perceber, a violência da repressão a um desvio primário gera um


efeito em espiral no indivíduo criminalizado, aprisionando-o no papel de desviado
e, consequentemente, empurrando-o para o desenvolvimento da carreira criminal.
Até aqui, esse esquema pode ser provisoriamente representado da seguinte maneira:

Nesse cenário traçado por Lemert, agora desde uma perspectiva mais próxi-
ma e clara, como bem indicado por Hassemer e Muñoz Conde, o processo de crimi-
nalização se deve também ao próprio funcionamento dos órgãos encarregados da
Administração da Justiça1158. Denominando-se, assim, criminalização primária a

1155. Martínez González, Maria Isabel; Mendoza Calderón, Silvia. Teorías... Op. cit., p. 127.
1156. O leitor encontrará uma versão gráfica simplificada desse processo abaixo, item 2.4.
1157. Lemert, Edwin M. Social Pathology. A Systematic Approach to the Theory or Sociopathic Behavior.
New York: McGraw-Hill Book Company, 1951, p. 77.
1158. “[…]principalmente a los jueces, que muchas veces de un modo más o menos directo deciden en base a
sus propias convicciones morales o ideológicas, incluso aunque actúen dentro del marco más o menos

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criminalização levada a cabo pelo legislador (Parlamento, Senado, Assembleia Legis-


lativa) quando, por meio do procedimento estabelecido para isso, determina quais
comportamentos devem ser qualificados como delito e qual a pena deve ser-lhes
aplicada. Para a teoria do etiquetamento, o verdadeiro conteúdo da lei será precisa-
mente determinado pelos órgãos encarregados de sua aplicação nas distintas fases,
é dizer, Polícia, Promotores e Tribunais de Justiça1159. Isto é o que se chama crimi-
nalização secundária, uma forma de criminalização que na prática seria quase tão
importante ou mais que a própria criminalização primária1160.
Na síntese precisa de Bergalli, essa perspectiva adquire relevo em certos as-
pectos ignorados por uma perspectiva puramente etiológica: i. o caráter dinâmico e
processual da formação do comportamento desviado; ii. a importância da estigma-
tização e da sanção; iii. a importância das instâncias estabelecidas para o controle
dos comportamentos1161. Creio que, agora, fica fácil compreender o porquê da pers-
pectiva interacionista contrapor-se às respostas formais ao desvio primário, afinal,
a reação social gera mais desvio (ou carreiras criminais).

2.3.2. Howard S. Becker


É Becker, contudo, o responsável pela fundação das teorias criminológicas do
interacionismo e, mais precisamente, do labelling approach1162. Na obra Outsiders:
Estudos da sociologia do desvio (1963), Howard S. Becker delineou vários ele-
mentos-chave da rotulagem e desenvolveu, com base nesse modelo, a sua explicação
para o nascimento da delinquência e da criminalidade. Entre aqueles elementos está
a afirmação de que a desviação é produto de um processo exitoso de aplicação de
etiqueta: alguns são rotulados; outros, embora tenham cometido desvios, nunca são
descobertos. Desse ponto de vista, a desviação não é um predicado do comportamen-
to da pessoa, mas uma consequência da aplicação (por outros) das normas e sanções
a um ofensor. Comportamento desviante é, de acordo com Becker, o comportamento
que viola a norma. Para ele, dois são os momentos fundamentais para a análise desse
desvio: o momento de criação das normas e o momento de sua aplicação1163.

amplio que les permite la ley”. Hassemer, Winfried, Muñoz Conde, Francisco. Introducción... Op.
cit., p. 116.
1159. “Una de las causas del proceso de etiquetamiento se debe efectivamente, según la teoría del etiqueta-
miento, al papel del Juez como creador del Derecho penal”. Idem, ibidem.
1160. Idem, ibidem.
1161. Bergalli, Roberto. Origen…Op. cit., p. 73.
1162. Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 70, Rn. 94. Mencionando, ainda, ao lado de Becker,
John I. Kitsuse, Kai T. Erikson, Harold Garfinkel e Edwin M. Schur, cf. Schneider, Hans Joachim.
Kriminologie... Op. cit., p. 540. Sobre a importância de Tannenbaum, que é considerado o avô da
teoria do etiquetamento, cf. Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 225-226. Sobre a influência do
antropólogo Malinowski, em sua pesquisa sobre a endogamia nas Ilhas Trobriand, no pensamento de
Becker, cf. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 219 e ss.
1163. Ignácio Anitua, Gabriel. Histórias... Op. cit., p. 592 e ss; Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena.
Teorías... Op. cit., p. 202-204; Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 527.

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No primeiro momento, o da criação das normas, entra em cena a importante


variável do poder, de modo que a elaboração de determinado tipo de comportamen-
to criminoso é consequência de uma luta de interesses (como se vê, a norma penal
já não é concebida como fruto do consenso coletivo, mas sim como fruto dos inte-
resses da classe dominante). Nesse contexto, Becker introduz o conceito de “moral
entrepreneurs” (gestores da moral), indivíduos criadores ou aplicadores das regras
ocupados de impor sua moral a todos, porque se consideram superiores aos outros
e que suas regras vão tornar a vida melhor. Esses grupos de indivíduos conseguem
instrumentalizar o Estado e o Direito Penal a seu favor criminalizando determina-
dos comportamentos. Deveras, os grupos economicamente poderosos são – devido
à sua posição social – mais organizados e, em razão disso, têm mais força e armas
para impor as suas regras e os seus valores. Essa maior capacidade de mobilização,
faz com que os seus interesses cheguem rapidamente “às esferas institucionalizadas
de poder, seja através de mensagens a seus representantes no Congressos, seja atra-
vés de representantes de seus pontos de vista: em geral gente que faz lobby com os
parlamentares e busca convencê-los a obter votos na respectiva Câmara (e muitas
vezes em troca de votos eleitorais)” 1164.
Contudo, o comportamento delitivo não surge com a simples conversão de
comportamentos em normas abstratas, afinal, a lei estrutura somente um marco
abstrato de decisão. E é justamente nesse momento que entra em cena o processo
de interpretação e aplicação da lei penal levado a cabo pelos agentes do controle
social formal, esse é o ponto de chegada do ciclo de criminalização do desvio que
obedece ao critério do poder. Determinados comportamentos serão interpretados
como desviantes, mas outros não, mesmo que esses possuam caraterísticas que
também autorizariam a conclusão pelo caráter desviante. Aqui a investigação se
volta para a identificação dos fatores (classe social, família, raça, por exemplo) os
quais, para além da infração a lei, devem existir para que um fato ou uma pessoa
sejam o alvo da atuação das instâncias de controle social formal. É difícil identifi-
car quais serão as variáveis responsáveis pela criminalização do indivíduo. Como
ressalta a literatura, isso tem a ver com a “atitude de quem acusa ou denuncia; com
a descoberta de que se realizou o ato punível; com atitudes ou definições da polí-
cia, que decide quem apreender e quem não; ou do Ministério Público que decide
quem imputar e quando; ou dos Juízes que, ao final, concluem o processo com
sentenças em um sentido ou outro”1165.
As ideias centrais de Becker foram bem sintetizadas por Lamnek; são elas: 1.
Nenhum modo de comportamento contém em si a qualidade de desviado; 2. O com-
portamento desviado é definido por meio da fixação de normas; 3. As definições do
comportamento desviado somente influenciam o comportamento quando as nor-
mas são aplicadas; 4. A aplicação da norma acontece seletivamente, isto é, conforme

1164. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 225 (itálico no original).
1165. Aniyar de Castro, Lola; Codino, Rodrigo. Manual…Op. cit., p. 219.

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as situações e as pessoas específicas os mesmos comportamentos serão diferente-


mente definidos; 5. Os critérios de seleção resultam de diferentes relações de poder;
6. A rotulação como desviado põe em marcha os mecanismos da self-fulfilling prophe-
cy que permitem expectar ulteriores modos de comportamento que serão definidos
como desviados1166.
Como o leitor pode perceber, a operacionalização da estrutura punitiva, na
moldura teórica desenvolvida pelo labelling, concretiza-se fundamentalmente
por meio da seletividade que, por sua vez, desempenha papel fundamental não
somente no momento de criação da norma, senão também no da sua aplicação.
Na feliz expressão de Göppinger, “o direito dominante é apenas o direito dos
dominadores” 1167.

2.4. Outras contribuições


Para além das duas contribuições fundamentais abordadas no item anterior,
outros ingredientes para a compreensão do labelling são os conceitos de: institui-
ções totais, cerimônias degradantes e role-engulfment. Esses elementos in-
serem-se na Criminologia da reação social focada no estigma, cujo principal
representante é Erving Goffman.
Goffman é considerado o maior expoente do enfoque dramatúrgico dentro do
interacionismo simbólico1168. Seu nome está notavelmente vinculado à análise dos
institutos psiquiátricos e das instituições de execução penal, essas amalgamadas
por ele no conceito de instituições totais. As suas pretensões, entretanto, iam
além de simplesmente perceber a vida nessas instituições e o seu interesse estava na
vida cotidiana. Contudo, dedicou-se ao estudo das instituições totais como meio de
apreender as rupturas ocorridas entre os privados de liberdade e a vida cotidiana1169.
Talvez por isso a sua obra “A representação do eu na vida cotidiana” (1959) seja conside-
rada por alguns autores o seu principal trabalho.
Nesse primeiro trabalho, Goffman argumenta que o atuar humano é uma es-
pécie de representação teatral: os indivíduos desempenham papéis e, em razão dis-
so, procuram fazer com que a sua forma de ser e agir pareça verdadeira para o seu
público. Noutros termos: quando um indivíduo interage1170 com outro terá muitos
motivos para procurar controlar a impressão que esses recebem da situação1171. Com

1166. Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p. 234.


1167. Göppinger, Hans. Kriminologie…Op. cit., p. 159, Rn. 55 (sem destaque no original).
1168. Bergalli, Roberto. Origen…Op. cit., p. 61.
1169. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 582.
1170. Interação, segundo Goffman, é “a influência recíproca dos indivíduos sobre as ações uns dos outros,
quando em presença física imediata”. Goffman, Erving. A representação do eu na vida cotidiana;
trad. Maria Célia Santos Raposo. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 23.
1171. Goffman, Erving. A representação…Op. cit., p. 23.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

base nisso, ele assenta o aparato conceitual da “desnaturação do eu”, que é justamente
o efeito desse processo de interação (ou encontro) com o outro e que terá especial
relevância no âmbito das instituições totais.
Para Goffman, instituições totais são aquelas em que as pessoas são retiradas
do convívio social por considerável espaço de tempo, compartilhando uma situação
comum, transcorrendo parte de sua vida em lugar fechado e formalmente adminis-
trado. Essa característica ele encontrou em asilos, manicômios, campos de con-
centração, prisões e conventos1172. Nessas instituições, o que se tem de efeito é
a despersonalização do sujeito, conduzindo-o à rigorosa rotina do local; no dizer
de Anitua, “em que pesem os diferentes objetivos de cada uma dessas instituições,
todas elas têm algo em comum, pois se encarregam da programação da vida dos
internos de acordo com normas concebidas para a consecução dos objetivos da ins-
tituição”1173. O fechamento do indivíduo ao convívio social promove modificações
no seu “eu”, transformando-o drasticamente no tocante ao seu papel social, que se
resume a adaptar-se às regras da casa.
A assunção das atitudes e desses novos valores pertencentes à subcultura car-
cerária, na linguagem utilizada pela doutrina, dá causa ao fenômeno denominado
de prisionização. No livro Estigma (1963), por exemplo, Goffman analisa os efeitos
sociais que a instituição total pode provocar no indivíduo. Como o título do livro
sugere, o termo é compreendido como um atributo que indica a inabilidade social do
indivíduo. Assim, por exemplo, o atributo de louco ou de delinquente acompanhará
o indivíduo e mostrará a ele mesmo e aos demais que o seu lugar “natural” é a ins-
tituição total1174. No âmbito cinematográfico, bem lembrado por Shecaira, o filme
Um Sonho de Liberdade retrata a realidade da despersonalização, repersonalização e
estigmatização do indivíduo1175.
O conceito de cerimônias degradantes foi introduzido por Garfinkel1176. São
processos ritualizados em que o indivíduo é condenado e despojado de sua identida-
de e recebe outra (degradada)1177. É possível pensar, assim, que há cerimônias degra-
dantes formais e cerimônias degradantes informais. As primeiras ocorrem em razão
das respostas formais do controle social, a exemplo do processo e julgamento penal;
a segunda, decorre da intervenção das instâncias informais, a exemplo do papel da
mídia no processo penal. Para que a cerimônia da degradação seja exitosa, o fato e
o seu autor precisam ser categorizados como “anormais”. Para isso, “desempenham
um papel primordial as instituições e os especialistas que criam determinadas

1172. Significativo: Goffman, Erving. Manicômios, prisões e conventos; trad. Dante Moreira Leite. São
Paulo: Perspectiva, 1996.
1173. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 581.
1174. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 583.
1175. Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia... Op. cit., p. 301, nota de rodapé n. 63.
1176. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 585.
1177. Cid Moliné, José; Larrauri Pijoan, Elena. Teorías... Op. cit., p. 206; Dias, Jorge de Figueiredo; Andra-
de, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 350.

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Cap. X • EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS

‘categorias’ – ladrão, assassino – que permitem separar o autor do público ou dos


sujeitos respeitáveis que julgam...”1178.
Significativo, neste ponto, o papel dos meios de comunicação de massa. Com
efeito, a mídia (marrom) apresenta-se como uma das principais responsáveis pela
difusão da cultura do medo, daí porque, acertadamente, fala-se em sociedade do
medo1179. Após o surgimento da imagem, a influência da mídia no Direito Penal
ganhou sobrepeso, porque ela (a imagem) se dirige muito mais aos sentidos do que à
inteligência1180. Permitam-me um breve parêntesies sobre essa dimensão da mídia.
Deve-se dar razão à literatura que alerta sobre a ausência de quantificação da
cota de responsabilidade que cabe atribuir à mídia no processo de massificação do
populismo punitivo1181, mas ninguém discordará sobre o seu papel extremamente
eficaz no que diz respeito pautar o quê devemos falar. No âmbito da teoria comuni-
cação fala-se em hipótese da agenda-setting, formulada em 19721182. Em linhas ge-
rais, a hipótese sugere que a função de tematização é “el proceso en que los medios,
por la selección, presentación e incidencia de sus noticias, determinan los temas
acerca de los cuales el público va a hablar. En rasgos macrosociológicos, los medios
imponen los temas más discutidos en la sociedad (...)”1183. Trata-se de uma hipótese
de alerta sobre a função de tematização dos meios de comunicação. Se consideramos
essa teorização algo crível, então, destaca Veróna Gomez, os meios de comunicação
não podem ser considerados meros reflexos da realidade, pois no processo de seleção
de notícias já está implícito o poder de destacar e, igualmente, o poder ignorar deter-
minados casos1184. Não por outra razão, McCombs e Shaw destacam que na escolha
e exibição de notícias, editores e redatores, por exemplo, desempenham um papel
importante na formação da realidade política1185; a isso seria possível acrescentar o
seu importante papel, também, na conformação da realidade jurídica.

1178. Anitua, Gabriel Ignácio. Histórias... Op. cit., p. 585.


1179. Significativo: Ferrajoli, Luigi. El populismo penal en la sociedad del miedo. In: Zaffaroni, Eugênio
Raul; Ferrajoli, Luigi; Torres, Sérgio G; Basilico, Ricardo A. La emergencia del miedo. Buenos Aires:
Ediar, 2012, p. 57 e ss.
1180. Garapon, Antonie. O juiz e a democracia: o guardião das promessas; trad. Maria Luiza de Carvalho.
2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p. 82.
1181. Veróna Gomez, Daniel. Medios de comunicación y punitivismo. In: Indret 1/2011, p. 2.
1182. McCombs, Maxwell E.; Shaw, Donald L. The agenda-setting function of mass media. In: The Public
Opinion Quarterly 36, 2/1972, p. 176-187. Cf., ainda, Gleich, Uli. Agenda Setting in der digitalen Me-
dienwelt. In: MediaPerspektiven3/2019, p. 126 e ss; Maurer, Marcus. Agenda-Setting. Baden-Ban-
den: Nomos, 2010.
1183. García Arán, Mercedes; Peres-Neto, Luiz. Discursos Mediáticos y reformas penales de 2003. In: Gar-
cía Arán, Mercedes; Botella CorraL, Joan (Dir.). Malas Noticias. Medios de comunicación, política
criminal y garantías penales en España. Madrid: Tirant lo Banch, 2008, p. 25-28.
1184. Veróna Gomez, Daniel. Medios de comunicación…Op. cit., p. 3-4. No mesmo sentido: García Arán,
Mercedes; Peres-Neto, Luiz. Agenda de los medios y agenda política: un estudio del efecto de los
medios en las reformas del Código Penal Español entre los años 2000-2003. In: Revista de Derecho
Penal y Criminología, (1), 2009, p. 264.
1185. McCombs, Maxwell E.; Shaw, Donald L. The agenda-setting...Op. cit., p. 176.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

Por tudo isso, e também é preciso pôr destaque neste ponto, os meios de comu-
nicação de massa se converteram em protagonistas dos rumos político-criminais do
Brasil1186. Nas precisas palavras da doutrina: “si trasladamos la teoría de la agenda-
-setting al ámbito de la política criminal lo que ello significa es que los medios de
comunicación, ejercitando su facultad de fijar la agenda de temas relevantes, pueden
decidir en determinado momento situar a la delincuencia en general o a determina-
do tipo de delincuencia en el centro del debate público, creando una extraordinaria
presión en el poder político para que actúe de una determinada manera”1187.
Se pensamos no histórico midiático mais distante e mais recente do Brasil, não
há dificuldade em encontrar diversos exemplos do espetáculo da notícia associados
a questões criminais. Na retrospectiva mais distante, recorda-nos Shecaira sobre
o caso da Escola de Base, ocorrido em São Paulo, em que os donos foram massiva e
injustamente acusados pela imprensa; ao final, com o término das investigações,
o inquérito foi arquivado1188. Para mencionar exemplos mais recentes, rememore-
mos o caso Eloá; o assassinato de Isabella Nardoni; a espetacularização em torno
do “caso Neymar” ou a discussão que se formou em torno da terminologia “estupro
culposo”, no caso Mariana Ferrer. Por isso, qualquer estudo que pretenda averiguar
a racionalização na elaboração das leis penais, os processos de vitimização e, no que
aqui nos interessa, a espetacularização do fenômeno criminal, não pode ignorar o
papel fundamental desempenhado pela mass media1189.
Com potencial para evitar tudo isso, como adverti anteriormente, o Código
de Processo Penal deu passo importante. Com a reforma implementada pela Lei
13.964/2019, que entre outras coisas instituiu o Juiz de Garantias, determinou-se
que esse “... deverá assegurar o cumprimento das regras para o tratamento dos pre-
sos, impedindo o acordo ou ajuste de qualquer autoridade com órgãos da imprensa
para explorar a imagem da pessoa submetida à prisão, sob pena de responsabilidade
civil, administrativa e penal”1190.
Naturalmente, a publicidade de um fato criminoso serve como garantia, porém,
não é menos verdade que a garantia não blinda, tampouco é carta branca para a
publicidade abusiva. Os discursos midiáticos histéricos promovem, por um lado, a
impressão da necessidade normativa, e, por outro, a mais expressiva cerimônia
degradante informal.

1186 Sobre o cenário norte-americano, cf. Roberts, Julian V; Stalans, Loreta; Indermaur, David; Hough,
Mika. Populism and Public Opinion. Lessons from five Countries. Oxford: University Press, 2003, p.
76 e ss. Destaco: “No exploration of penal populism would be complete without a discussion of media
influences on the public”.
1187. Veróna Gomez, Daniel. Medios de comunicación…Op. cit., p. 4.
1188. Shecaira, Sérgio Salomão. Criminologia... Op. cit., p. 295.
1189. Um exemplo de investigação nestes moldes pode ser encontrado em García Arán, Mercedes; Peres-
-Neto, Luiz. Agenda de los medios…Op. cit, p. 271 e ss.
1190. Até o fechamento da atualização dessa edição, esse dispositivo estava com a sua eficácia suspensa, v.
ADI’s n. 6298, 6299, 6300 e 6305.

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Cap. X • EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS

Finalizarei o parêntese com uma advertência final: é óbvio que esse processo
de tematização não é fruto, somente, da interferência midiática, senão que é resul-
tado da complexa interação, na sugestão de Roberts, Stalans, Indermaur e Hough,
entre os meios de comunicação, os políticos, o público e os grupos de interesses1191.
O resultado disso, todos nós sabemos: populismo punitivo. Adaptando o gráfico de
Kennamer, aqueles autores expressam a relação dinâmica da seguinte maneira:

Finalmente, o último conceito-chave é o role-engulfment, a autoimagem que


o delinquente passa a fazer de si. Em outros termos, o papel que o criminoso passa
a assumir na carreira desviante. Um exemplo ajuda a compreender: Eduardo está
prestes a prestar vestibular de Direito para as mais conceituadas universidades
do país. Dias antes de realizar as provas, Eduardo vai a uma festa na qual há farta
quantidade de droga disponível. Curioso ao ver os amigos usando, resolve, pela
primeira vez, movido pelos impulsos da juventude, usar cocaína, levando consi-
go, ainda, outros tipos de droga para experimentar em momento posterior. No
caminho de casa é abordado em barreira de policiais em fiscalização da Lei Seca
que, acidentalmente, encontra as drogas, momento em que Eduardo é preso em
flagrante por tráfico. Tempos depois, ele consegue a liberdade. Aos olhos da lei
é, agora, criminoso. As ramificações desse processo de etiquetamento são ainda
maiores: familiares, amigos e professores agora veem Eduardo com outros olhos.
Já não é um jovem com futuro promissor, mas, sim, suspeito e visto como jovem
indesejado entre os outros jovens não etiquetados. O processo de etiquetagem está

1191. Roberts, Julian V; Stalans, Loreta; Indermaur, David; Hough, Mika. Populism…Op. cit., p. 86-87.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

completo: o rótulo foi aplicado formalmente, outros significativos reagiram ao ró-


tulo oficial, e Eduardo aceitou o rótulo1192.
Portanto, sinteticamente, todo o espiral vicioso1193 do fenômeno do crime, en-
saiado acima, pode ser complementado e assim compreendido: desviação primária
– aplicação da etiqueta de criminoso (cerimônia degradante) – novo status – isola-
mento e modificação da autoimagem – desviação secundária.
De tudo o que foi dito até aqui, e agregando as observações de Garcia-Pablos
de Molina, é possível derivar os principais postulados do labelling approach: inte-
racionismo simbólico e construtivismo social; introspecção simpatizante; natureza
definitória do delito; a seletividade e descriminação do controle social; o efeito cri-
minógeno da pena e o paradigma do controle1194. Vejamos cada um:
1) Interacionismo simbólico e construtivismo social. O comportamento
humano é inseparável dos processos sociais de interação e, em dita intera-
ção, não se pode prescindir do simbolismo. A realidade se constrói com base
em definições e significados implementados por meio de complexos proces-
sos de interação;
2) Introspecção simpatizante. Compreendida como técnica de aproximação da
realidade criminal para apreendê-la a partir do mundo do desviado e captar o
verdadeiro sentido que esse atribui à sua conduta;
3) Natureza definitória do delito. A conduta não é desviada em si. O caráter de-
litivo de uma conduta depende de processos de definição e seleção e, como con-
sequência, a criminalidade é criada pelos sistemas formais de controle social.
4) Seletividade e discriminação. O controle social é altamente seletivo e discri-
minatório. Ou seja, a chance de ser criminoso não depende tanto da conduta em
si, mas da posição do indivíduo na pirâmide social;
5) Efeito criminógeno da pena. A consequência da reação social exitosa, a apli-
cação da pena, é altamente criminógena. Copiosamente confirmado que o en-
carceramento, longe de prevenir e ressocializar, consolida a carreira criminosa
do indivíduo, bem por isso é costumeiro dizer-se que a prisão é a escola do cri-
me. Ademais, é notório ser a prisão definitivamente estigmatizante;
6) Paradigma do controle. Como a criminalidade não existe antes da interven-
ção da norma, nem antes dos processos de criminalização, é a resposta formal

1192. Exemplo em Brown, Stephen E; Esbensen, Finn-Aage; Geis, Gilbert. Criminology... Op. cit., p. 321.
1193. Cf. Quensel, Stephan. Wie wird man kriminell? In: Kritische Justiz, 1970, p. 375 e ss.
1194. Toda a classificação e descrição é de García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 799-801.
O leitor também encontrará uma interessante síntese das teses do labelling em Lamnek, Siegfried.
Theorien... Op. cit., p. 224-225.

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Cap. X • EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS

do sistema penal que assume o papel de agente criminalizador, à medida que ela
tem o poder-dever de definir quem será criminoso.
Em síntese: toda criminalidade é, pois, uma criminalidade criada, seja
pela intervenção da teia normativa, seja pelos efeitos que as reações for-
mais causam. O que fundamentalmente há de comum entre todos os crimi-
nosos é a resposta das instâncias formais de controle.

2.5. Consequências político-criminais


A orientação estruturante do labelling permite concluir que se trata de teoria
preocupada com a prevenção do desvio secundário; parafraseando Baratta, essa
perspectiva crítica transformou-se na crítica do direito penal. Se se tem firme essa
convicção, fica fácil concluir que a mudança de postura político-criminal se situa,
particularmente, na programação criminalizante, orientando-a no sentido de evitar
que o indivíduo ingresse nas instâncias formais de controle social.
Genericamente, portanto, os objetivos de prevenção são a exclusão e redu-
ção de processos de rotulação criminalizantes1195. Nas palavras de Kaiser, o
labelling contribuiu para estratégias de descriminalização, desestigmati-
zação, desinstitucionalização e rechaço ao modelo de tratamento1196. Nessa
linha, é possível mencionar como consequências político-criminais:
1) Diversificação: soluções alternativas ao sistema penal tradicional como, por
exemplo, utilização de algumas políticas públicas para jovens infratores;
2) Descriminalização: qualquer política legislativa que refletir sobre a progra-
mação criminalizante, a exemplo do que ocorreu com os crimes de sedução e
rapto no Brasil. Quanto à tipologia fala-se em: 1. descriminalização formal
(ou em sentido estrito) por vezes representa o total reconhecimento legal do
comportamento descriminalizado, corresponde à abolitio criminis; 2. a descri-
minalização substitutiva consiste na transformação de tipos penais em in-
frações administrativas ou fiscais1197; 3. e a descriminalização de fato (ou
material) é aquela que ocorre quando o sistema penal, embora formalmente
existente, não exerce a sua função. Decorre, em regra, da renúncia da vítima à
persecução penal ou, ainda, das cifras negras da criminalidade;
3) Despenalização: redução das sanções criminais tradicionais, geralmente con-
cretizada com as propostas de substituição da pena privativa de liberdade por
outras sanções não prisionais;

1195. Albrecht, Peter-Alexis. Criminologia... Op. cit., p. 56.


1196. Kaiser, Günther. Introducción... Op. cit., p. 26.
1197. Dias e Andrade também incluem no conceito de descriminalização em sentido estrito a conversão de
ilícito criminal em qualquer outra forma de ilícito como, por exemplo, o civil. Dias, Jorge de Figuei-
redo; Andrade, Manoel da Costa. Criminologia... Op. cit., p. 399-400.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

4) Devido processo: observância às garantias da liberdade, evitando os perigosos


“processos” judiciais informais e as cerimônias degradantes.
No tocante à Lei 9.099/95, embora seja possível reconhecer avanços no sentido
de impedir que o indivíduo ingresse no sistema prisional, não é possível ignorar ou
ao menos deixar de questionar que ela também pode significar uma hipótese de
horizontalização do controle penal, pois, nos casos que se ajustam à sua com-
petência, seria de se considerar a desnecessidade de qualquer intervenção punitiva.
No âmbito processual, a prática comum de transacionar, com o único objetivo de
“livrar-se” do processo, tem repercutido negativamente sobre a dialética necessária
para a imposição de um comando condenatório.
Dentro dessa realidade baste crível, convém argumentar que, ao menos em pri-
meiro plano (e em âmbito hipotético), os outros ramos do direito seriam suficientes
para a resolução do conflito nas infrações de menor potencial ofensivo.

2.6. Críticas
O labelling padece de elevado déficit etiológico, afinal, o desvio primário – por
ser multifatorial – é margeado pelos seus teóricos1198. Mais ainda, se o crime é um
processo de definição, nada mais relevante que investigar justamente este processo
de definição, em vez de questionar apenas a legitimidade da intervenção. Daí por-
que o labelling, por meio de seu processo político-criminal de filtragem, “apenas”
desconstrói o discurso punitivo. E justamente por essa razão trata-se muito mais de
uma “teoria” da criminalização que uma teoria explicativa do crime1199.
Nesse sentido, sendo mais contundente, López-Rey Arrojo afirma que a tese
interacionista é uma mera repetição nada original do subjetivismo reducionista:
“não há dúvida que as relações humanas dão lugar a uma série de ações e reações
especialmente no que diz respeito à lei. Mas nem umas nem outras servem por si só
para explicar o fenômeno da criminalidade e o funcionamento do sistema penal”1200.
Outra objeção comum é a que se faz entre a relação carreiras criminais e ro-
tulação. Com efeito, como tem apontado o setor crítico ao labelling, há uma série
de carreiras criminosas solidamente consolidadas sem que o indivíduo tenha sido
etiquetado e, na linha inversa, os bons exemplos de (re)inserção demonstram que
nem todo estigmatizado desencadeia, necessariamente, uma carreira criminal1201.
Em definitivo, considerando os aclaramentos efetuados, ao menos dois equívocos
merecem ser destacados: primeiro, a teoria do etiquetamento universaliza e atribui

1198. Cf. Amelang, Manfred. Sozial abweichendes... Op. cit., p. 232.


1199. No mesmo sentido, Mergen, Armand. Die Kriminologie... Op. cit., p. 94.
1200. Op. cit., p. 162. Para outras observações e críticas, do mesmo autor, cf. p. 162-166.
1201. Cf. Vold, George B; Bernard, Thomas J; Snipes, Jeffrey B. Theoretical... Op. cit., passim.

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Cap. X • EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS

o problema criminal às agências de controle social, sendo certo que há uma série de
outras variáveis que merecem ser consideradas para uma adequada compreensão do
fenômeno. A monogenia conduz ao seu próprio fracasso enquanto teoria; em segundo
lugar, a perspectiva generalizante de exercício de poder em favor de poucos – é dizer –
como fator de dominação, ignora a crível realidade de que há determinada delinquên-
cia que agride bens jurídicos que não guardam qualquer conexão com fatores de poder
e, portanto, sua seleção não decorre de um simples processo de imposição dominante
(a exemplo dos crimes contra a vida ou contra a dignidade sexual). Soa no mínimo
estranho apontar que a condenação por estupro decorra, única e exclusivamente, de
uma atuação seletiva e parcial das agências de controle formal1202.

2.7. Propostas atuais


Conforme destaca Serrano Maíllo, em resposta às críticas dirigidas à perspec-
tiva interacionista, surge uma série de recentes esforços teóricos e empíricos com
enfoque interacionista. Em geral, as novas propostas são mais matizadas que as ori-
ginais e não consideram que a reação social seja capaz de explicar por si só a delin-
quência. Destacam-se1203:

1. Teoria da criminalização secundária (Zaffaroni, Alagia e Slokar)1204


• O sistema de Administração da Justiça atuaria de forma altamente seletiva no sentido de que
nem todo mundo e nem todos os delitos têm as mesmas possibilidades de ser etiquetados como
criminosos, ainda que se trate de atos de criminalização primária;
• O programa punitivo estabelecido pela criminalização primária é tão extenso que simplesmente
não é possível a persecução de todos os delitos que se cometem: “a impunidade é a regra, a cri-
minalização secundária a exceção”. A consequência, portanto, é que a criminalização secundária
é altamente seletiva;
• Isto significa que a criminalização secundária se concentraria sobretudo nos delitos mais sim-
ples e, portanto, mais fáceis de detectar e processar; além disso, os aparatos do controle formal
focam nos indivíduos com menor poder, pois são mais vulneráveis e com menos possibilidade
de proteger-se e evitar o seu etiquetamento. Isso explicaria por que os delitos sofisticados e
realizados por pessoas com poder econômico tendem a não ser perseguidos;
• A criminalização secundária, portanto, é responsável por construir o estereótipo de quem é o
delinquente, e dito estereótipo se impõe em uma comunidade.

1202. Próximo à segunda crítica cfr. Wellford, Charles. Labelling Theory and Criminology: An Assessment.
In: Social Problems, vol. 22, No. 3 (Feb., 1975), p. 334.
1203. Categorização e estruturação de Serrano Maíllo, Alfonso. Introducción…Op. cit., p. 441 e ss; igual
abordagem em Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 557-566; Martínez González, Maria
Isabel; Mendoza Calderón, Silvia. Teorías... Op. cit., p. 132-133.
1204. Zaffaroni, Eguênio R; Alagia, Alejandro; Solkar, Alejandro. Manual de Derecho penal. Ediar: Buenos
Aires, 2010.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

2. Teoria da vergonha reintegradora (Braithwaite1205)


• Quando o indivíduo se vincula (prioriza) mais à sociedade onde vive do que a outros tipos de
obrigações, a exemplo do Direito, essa relação de interdependência entre os cidadãos da comu-
nidade faz com que o sentimento de vergonha tenha especial relevância. E é justamente essa
forte vinculação do sujeito com a sua comunidade que explica a menor taxa de delinquência. É o
caso, por exemplo, da sociedade japonesa;
• Em razão do vínculo descrito, a reação social ante o crime não tem poder suficiente para desfazer
os vínculos de respeito e pertencimento do sujeito à sociedade, é dizer, apesar do crime o indiví-
duo não é excluído da comunidade;
• O fato delitivo, por outro lado, ativa em seu autor um forte sentimento de vergonha; este “aver-
gonhar-se” tem duração limitada e, como a sociedade não desfaz os vínculos de aceitação do
sujeito, isso contribui para formação da consciência do indivíduo e, consequentemente, para
uma menor taxa de criminalidade;
• Para Braithwaite, portanto, a vergonha seria o grande obstáculo à prática delitiva;
• Nisto se baseia a distinção entre a vergonha reintegradora e a vergonha estigmatizante: a ver-
gonha reintegradora é caracterizada por permitir, ao lado de uma reação de desaprovação da
comunidade, cerimônias voltadas à reintegração do delinquente à comunidade, a exemplo de
palavras ou gestos de perdão.
Quando isso ocorre, o indivíduo tenderá a não voltar a delinquir: o indivíduo fica consciente
do dano que causou e a comunidade deixa as portas abertas para que ele efetivamente volte a
reconciliar-se com ela. Exemplo típico são os casos de reuniões entre ofensor e vítima, amigos e
familiares de cada um deles. Durante a reunião faz-se com que se reconheçam o dano e a culpa,
procurando o perdão e a reconciliação652;
• A vergonha estigmatizadora (ou desintegradora) ocorre quando o ato e o autor do fato são
denunciados como indignos da comunidade. Não há esforços para reintegrá-lo. Exemplo típico
é o modelo de processo e justiça criminais: o infrator é estigmatizado e literal e simbolicamente
afastado da comunidade para a prisão;
• Este conceito se inspira na ideia de modelo de educação em família e se centra na opinião de que
muitas pessoas cometeram delitos apenas uma vez na vida, mas a reação social a tais fatos seria
decisiva para que continuem sua carreira delitiva ou a abandonem.

3. Teoria do desafio de Sherman


• Parte da ideia de que não se pode esperar que a pena tenha o mesmo efeito para todo mundo;
• Considera que se alguém for adequada mente tratado ao ser preso e processado e se lhe é im-
posta uma sanção que considere justa, isso pode ter efeitos determinantes para que sua delin-
quência futura seja reduzida;
• A teoria do desafio define as condições de imposição de sanções penais que estimulam falso
orgulho e aumentam a criminalidade futura. Ocorre quando o criminoso: 1) percebe a sanção
injusta e estigmatizante, não o ato criminoso em si; 2) tem vínculos precários com o agente san-
cionador e com a sociedade; e 3) se recusa a reconhecer a vergonha causada com a sanção e se
mostra orgulhoso de seu isolamento da comunidade sancionadora;
• Em contrapartida, são condições para dissuasão criminal: 1) sanção imposta após o adequa-
do devido processo e com especial respeito à dignidade do criminoso; 2) o indivíduo punido
deve estar ligado à sociedade onde a punição é imposta; 3) os sujeitos punidos devem ser
capazes de introjetar a vergonha que a sanção gera e, portanto, caminhar em direção à rein-
tegração;

1205. Braithwaite, John. Crime, shame and reintegration. Cambridge: Cambridge University Press, 1989.

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Cap. X • EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS

• Do mesmo modo que a teoria de Braithwaite, a teoria do desafio também se desenvolve sobre
as bases do conceito de vergonha, igualam-se quando concluem que as sanções podem ter um
efeito dissuasor se os vínculos do autor com comunidade sancionadora são sólidos.

4. Teoria das valorações reflexas (Matsueda)


• A base para a teoria, como ele mesmo reconhece no início de seu artigo, situa-se no tradicional
conceito interacionista self, que ele toma emprestado de Mead.
• Chama a atenção sobre os controles internos, em especial sobre o conceito que o indivíduo tem
de si mesmo;
• Com o conceito de self, a teoria defende que o indivíduo é capaz de analisar-se desde fora, ou
seja, é capaz de perceber-se não a partir da própria perspectiva, mas sim do ponto de vista dos
outros. Em termos mais objetivos: ser capaz de se ver como os outros o veem. Por exemplo: uma
criança corta a cabeça e aparece no dia seguinte na escola com a cabeça raspada e uma enorme
cicatriz. Se ela se dá conta de que produz temor em seus colegas – isto pode levá-la a ver-se como
uma pessoa que pode recorrer à intimidação para conseguir o que deseja. Dito de outro modo:
quem é visto pelos demais como indivíduo que infringe normas tende a delinquir mais;
• O decisivo é que o indivíduo se coloque no papel do outro e valore do seu ponto de vista a situ-
ação, a ele mesmo e às ações possíveis de serem tomadas;
• Na hora de colocar-se no papel do outro, os outros que são realmente importantes são os mem-
bros do grupo de referência de cada indivíduo, ou seja, os outros que para ele são mais próximos,
como os pais, amigos e professores;
• As valorações dos pais (bem assim dos amigos) em relação aos filhos como desviados ou respei-
tadores das normas influenciam na sua delinquência, eis que afetam as valorações reflexas do
self como desviado ou conformista;
• Quando um indivíduo se encontra em uma situação problemática é justamente quando ele se co-
loca na situação do outro e imagina uma possível conduta. Uma vez que tenha optado pela ação
delitiva, o indivíduo tende a incorporar dito curso da ação em seu conjunto de opções e quando
se apresente uma nova situação problemática tende a recorrer ao mesmo comportamento;
• Em síntese: nestes complexos processos a pessoa que se vê capaz de recorrer ao delito para so-
lucionar dificuldades tem maior tendência a delinquir. Estas pessoas desenvolvem um self como
delinquente e o comportamento delitivo tende a estabilizar-se.

• Excurso: a recepção do labelling approach na criminologia alemã


Na Alemanha, nos setenta, o labelling approach também teve numerosos adeptos.
A sua versão radical deve-se à construção teórica de Fritz Sack1206-1207. Para ele, a
criminalidade deve ser compreendida como o resultado de um simples processo de
interação; um processo no qual se celebra um recíproco papel de atribuição que fabrica
uma nova realidade social. Como aponta a literatura, Sack defende uma concepção
macrossociológica da criminalidade, explicável a partir de uma teoria geral da socie-
dade: a criminalidade é um bem negativo cuja distribuição é fruto de acordos sociais1208.

1206. Cf., especialmente, Sack, Fritz. Neue Perspektiven in der Kriminologie. In: Sack, Fritz; König, René
(Hrsg.). Kriminalsoziologie. Frankfurt: Akademische Verlagsanstalt, 1968, p. 431-475.
1207. Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 161, Rn. 65; Lamnek, Siegfried. Theorien... Op. cit., p.
237; Meier, Bernd-Dieter. Kriminologie…Op. cit., p. 70, Rn. 95a; Schneider, Hans Joachim. Krimino-
logie... Op. cit., p. 551.
1208. Téllez Aguilera, Abel. Criminología... Op. cit., p. 546.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

É a própria estrutura social, e não a qualidade do comportamento, por meio da reação


social, a responsável pela conversão de determinado comportamento em comporta-
mento criminoso. Essa estrutura social, responsável por definir quem é o delinquen-
te e legitimar a reação social, serve-se das instâncias que compõem o controle social
formal – as quais, em últimos termos, são as responsáveis pelo processo de atribuição
da responsabilidade – para manter protegido os interesses das classes privilegiadas.
À desviação primária, afirmou, não é possível atribuir qualquer significado; a
criminalidade, em sua concepção, deriva somente do processo de criminalização. In-
dependentemente do etiquetamento, considerou Sack, o comportamento desviante
é um puro acontecimento físico (rein physikalischer Vorgang), de maneira que a cri-
minalidade, por meio do estigmatizante impacto do controle jurídico-penal, surge a
partir de nada; em sentido literal, equivale a uma criação ex nihilo1209.

3. O MODELO DE DAHRENDORF
Seguindo a linha orientada pela reação social, especialmente no tocante à ideia de
dominação de classes e poder de decisão, as construções abaixo descritas se debruçam
sobre quem tem o poder de definir o que é crime1210 e, com isso, rompem com o
mito da sociedade estática, desprovida de conflito e baseada no consenso1211.
Nesse contexto, Ralf Dahrendorf foi o responsável pela quebra de paradig-
ma consensual, chamando à ordem a ideia de que a sociedade vive um conflito de
classes (não propriamente no sentido marxista1212). Consoante antecipado, onde as
teorias estrutural-funcionalistas, acima analisadas, viam uma harmonia de normas
e valores, a teoria do conflito vê coerção, dominação e poder. Dahrendorf viu am-
bas, dependendo do foco do estudo. De acordo com ele, o funcionalismo é útil para
compreender a ideia de consenso, ao passo que o conflito serve-se à compreensão da
coerção e do poder.
Para ele, a dinâmica das estruturas sociais desenvolve-se a partir das relações
de autoridade, classificando o conflito social como algo normal em todas as socie-
dades e em todos os tempos; bem por isto, para Dahrendorf, o funcionalismo das
teorias estruturais é utópico, eis que fundado na ideia de consenso de valores. Em
toda sociedade, diz ele, é possível distinguir, há associações que dominam e associa-
ções que são dominadas.

1209. Göppinger, Hans. Kriminologie... Op. cit., p. 161, Rn. 66.


1210. Batista, Vera Malaguti. Introdução... Op. cit, p. 76.
1211. Baratta, Alessandro. Criminologia... Op. cit., p. 122.
1212. García-Pablos de Molina chama a atenção para o fato de que Dahrendorf rechaça o conceito marxis-
ta de classe, estado e conflito por considerar que, àquela altura, o proletariado já não era uma classe
homogênea de indivíduos miseráveis e sem qualificação. Cf. García-Pablos de Molina, Antonio. Tra-
tado... Op. cit., p. 833.

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Cap. X • EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS

Nesse contexto, quatro postulados expressam esse modelo1213:


1. Toda sociedade está submetida a um processo de mudança;
2. Toda sociedade, em qualquer lugar, mostra dissensos e conflitos; o conflito so-
cial é onipresente;
3. Todo elemento de uma sociedade aporta a sua contribuição à desintegração e
mudança daquela;
4. Toda sociedade se baseia na coerção de alguns de seus membros sobre os outros.
Mudança, conflito e domínio são, pois, os três elementos estruturais do modelo
sociológico conflitual. Esses elementos interatuam – segundo Dahrendorf – do se-
guinte modo: a relação de domínio cria o conflito e o conflito cria a mudança. Não
seria surpresa se um leitor se perguntasse agora– e até cogitasse – sobre o objeto
desse conflito social: seriam as relações materiais de propriedade? Em absoluto, co-
mo chama atenção a doutrina, o objeto do conflito na sociedade tardo-capitalista é
a relação política de domínio de um indivíduo sobre os outros: o ponto de partida
para a aplicação do modelo do conflito é, portanto, a esfera política1214; ele é o
resultado da relação política de domínio.

4. O MODELO DE VOLD E TURK


Na primeira edição de Theoretical Criminology1215, Vold apresentou sua
teoria do conflito limitando-se, contudo, aos conflitos de interesses em grupos de-
terminados (group conflict theory). Não é (nem pretende ser), portanto, uma teoria
generalizante. Vold baseou-se na observação de que a sociedade é formada por diver-
sos grupos humanos; cada um desses grupos é formado por pessoas que se associam
porque têm interesses comuns e desta associação será possível atender melhor a es-
ses interesses. Assim, por exemplo, o advogado que tem sua prerrogativa violada por
determinado magistrado provavelmente será mais bem atendido em sua reclamação
se a fizer por meio da Ordem dos Advogados (e não individualmente).
Vold sustentou que os grupos entram em conflito uns com os outros quando
os interesses e propósitos começam a se sobrepor e um a invadir o outro. E, nesses
casos, o conflito tende a intensificar a lealdade dos membros de cada grupo.
Um outro elemento importante para Vold, e aqui apresentando uma correção ao
déficit da teoria da reação social, é a distribuição de poder. Ele afirmou que quem
tem maior poder sobre o legislativo, tem controle sobre o “que” e o “como”, enfim,
sobre o que será suscetível de criminalização. A detenção do poder nas mãos de um

1213. Siegel, Larry J. Criminology... Op. cit., p. 269; García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit.,
p. 833.
1214. Baratta, Alessandro. Criminologia... Op. cit., p. 123.
1215. Vold, George B; Bernard, Thomas J; Snipes, Jeffrey B. Theoretical... Op. cit., p. 236-238.

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CRIMINOLOGIA • E DUARDO V IANA

conservador tende a moldar a imagem de uma Justiça Penal mais conservadora; nas
de um liberal, uma Justiça menos conservadora.
Dentro desse quadro, moldado por Vold, insere-se a ideia de que, para ele, o
crime representa um comportamento do grupo minoritário; o comportamento hu-
mano é dominado pelo comportamento do grupo que caracteriza o conflito.
Sua teorização é mais ajustável:
I) aos crimes decorrentes de protestos políticos;
II) aos crimes decorrentes de disputas nas relações de trabalho;
III) aos crimes decorrentes de conflitos entre e dentro de sindicatos; e
IV) aos crimes decorrentes de conflitos étnicos e raciais.
Austin Turk, que integra grupo de autores mais modernos e ainda vinculados
ao modelo da rotulação social, baseia sua teoria nas relações de poder existentes
entre o sistema econômico (não apenas capitalista) – sustentado pela dominação
política – e a criminalidade1216. Para ele, nada e ninguém é interiormente criminoso,
a criminalidade é uma definição aplicada por indivíduos com o poder de fazê-lo; a ro-
tulação e o consequente status de criminoso é conferido aos indivíduos que integram
estratos inferiores da sociedade.
Turk constatou a tendência de criação de leis para punir pessoas cujo compor-
tamento é mais característico nas classes inferiores do que nos estratos sociais mais
elevados; bem como, até que ponto pessoas e grupos podem usar os instrumentos
de resposta do Estado para aumentar seu poder e dominação. O crime, portanto, é
resultado da interação entre os dominadores e os dominados.

QUADRO SINÓTICO

CAPÍTULO X – EXPLICAÇÕES SOCIOLÓGICAS CONFLITUAIS


CONTEÚDO ITEM

Teoria da Reação Social

A explicação para o crime reside nas respostas formais do Estado para o comportamento
2
desviante.

1216. García-Pablos de Molina, Antonio. Tratado... Op. cit., p. 843.

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