Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Considerações Iniciais
A ironia emerge das situações comunicativas como uma ferramenta para expressar
escárnio ou mesmo para transmitir humor e comicidade. No contexto linguístico, a ironia
desempenha um papel vital na dinâmica das interações verbais, satisfazendo os vínculos
conversacionais. Entretanto, quando explorada no âmbito literário, a ironia transcende as
simples figuras de linguagem para manifestar-se, por exemplo, na forma da ironia romântica.
No meio literário, a ironia adquire diversas nuances, indo além de seu papel
comunicativo convencional. Ao invés de ser apenas uma ferramenta para expressar
sentimentos ou apontar contradições, a ironia literária, como a romântica, amplia as
possibilidades da produção literária. Quando identificada, ela proporciona ao leitor uma
camada adicional de interpretação.
Ao adotar uma perspectiva irônica, o leitor não apenas compreende a narrativa de
maneira mais profunda, mas também contribui para enriquecer a obra. O olhar irônico do
leitor cria uma nova dimensão ao livro, ampliando sua significância e proporcionando uma
experiência de leitura mais rica e multifacetada.
A obra Frankenstein: ou o prometeu moderno de Mary Shelley, demonstra inclinações
para estudos acerca da ironia, podendo ser trabalhada por diversas óticas. Entretanto, é nulo
as análises e especulações que tencionam seus olhares para os traços irônicos no romance
gótico. O presente ensaio tem como principal objetivo averiguar como a ambiguidade
provocada pelo nome “Frankenstein” pode levar a uma leitura errônea, para solidificar a
pesquisa utilizou-se uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativa. Aplicou-se aos estudos
de Hutcheon (2000), Willrich (2013), Lukács (2000), Hitchcock (2010) e entre outros.
Recomenda-se que para melhor compreensão do ensaio ler as seguintes seções: O percurso
teórico da ironia; A ironia como recurso de comprovação da leitura equivocada da obra
Frankenstein de Mary Shelley e as Considerações finais.
1
Graduado em Letras Língua Portuguesa - UFPB. jvsilva951@gmail.com.
O percurso teórico da ironia
Mediante a essas reflexões que Hutcheon (2000) pondera acerca das arestas da ironia,
lacunas deixadas por parte do ironista com o intuito de que o receptor consiga distinguir o
grau de verdade ou falsidade da mensagem, assim como a ambiguidade. A falha por parte do
receptor pode acarretar em mal entendidos em detrimento da não detecção da mensagem
irônica.
A literatura propiciou uma expansão da ironia, contornando o seu conceito
tradicional, condecorando algumas obras por seu uso, além de ser uma ferramenta poderosa
para os escritores. Ferraz (1987, p. 29) apud Willrich (2013, p.3), assevera que o lugar
privilegiado da ironia é a literatura, dessa forma a autora afirma que, “a literatura é o lugar
por excelência, da expressão/problematização da linguagem, na relação/oposição
realidade/ficção ou verdade/ilusão”. Em outras palavras é no âmbito narrativo o espaço mais
propenso para a realização da ironia, podendo ser retórica ou romântica, “uma vez que se
admite a linguagem é expressão do mundo que cerca o indivíduo, e este, por sua vez, é sujeito
consciente de sua própria ação manifestada senão no espaço discursivo” (Willrich, 2013,
p.3-4).
Para o autor da Teoria do romance, Lukács (2000, p.93) a ironia pode ser
compreendida como a “objetividade do romance”, dado que por meio dessa forma existe
uma correspondência fidedigna com a situação histórico-filosófica. No entanto, se faz
necessário remontar um pouco as explicações do termo ironia e suas atribuições e utilizações
no seio literário. Destoando um pouco dessa noção da ironia por um ponto de vista
linguístico, deve-se assimilar que até o Romantismo, o campo da ironia permeou a retórica
clássica.
Conforme mencionado anteriormente essa ferramenta intitulada ironia colaborou para
o aperfeiçoamento da técnica literária, esse certo distanciamento do narrador para com a
narração, essa intromissão que é revelada no corpo do texto é chamada de ironia romântica.
Se faz necessário salientar que no trabalho desenvolvido estaremos tratando da ironia
romântica no texto literário, dado que existem outras formas de manifestar a ironia
romântica.
Buscando concatenar a origem do termo, torna-se necessário levar em consideração
algumas premissas de base teórica, as quais abarcaram o romantismo no século XVIII. O
termo “ironia” irrompe, na língua inglesa, precisamente na Inglaterra a partir do século XVI e
a posteriori no século XVII, difundindo-se em obras de autores como: John Dryden e
Anthony Cooper Shaftesburry. A ironia romântica pode ser compreendida nas palavras de
Willrich (2013, p.5):
[...] distanciamento do narrador/enunciador perante sua própria criação, que subjaz
o reconhecimento da impossibilidade do ser humano em se atingir o divino e o
absoluto – ideia tão corrente nos idos do século XVIII – uma vez que o narrador
conquanto eu materializado, reconhece os limites da natureza humana, mas pode –
através da literatura e do exercício da linguagem – criar uma ilusão momentânea da
plenitude, cujo objetivo é o gozo pela satisfação, pela liberdade do saber. Podemos
perceber até aqui, que a ironia, muito mais do que uma figura de linguagem, pode
ser reveladora de aspectos que ultrapassam a linguagem e beiram à discussões de
cunho filosófico e que, por sua vez, pode se mostrar útil para reflexões diversas na
crítica literária.
2
Adota-se no presente trabalho o título de Shelley para referir-se a Mary Shelley.
encontrar um homem em meio a neve, cujo nome é Victor Frankenstein. Durante o percurso
Victor começa a narrar os seus infortúnios para Walton. A história é narrada por três pontos
de vista, por Sr. Walton, Victor e pela Criatura.
Dentro desta perspectiva, Frankenstein, ou o moderno Prometeu é
uma parábola moral que adverte sobre a necessidade de se
estabelecer limites éticos na realização de procedimentos
científicos, uma vez que, por meio deles, podem ser criadas
aberrações biológicas e tecnológicas capazes de provocar a
extinção da raça humana. (Alegrette, 2010, p. 94)
Para os críticos da época, “ O romance não serve a nenhum propósito social e "não
inculca nenhuma lição de conduta, comportamento ou moralidade". O crítico imaginou "se o
autor seria completamente doente da cabeça ou do coração”(Hitchcock, 2010, p.84).
Conforme Alegrette ponderou, a obra é uma “parábola moral”, a qual demonstra como a
ambição pode levar o ser humano a sua ruína, essa busca desenfreada pelo cientificismo
acarretou em uma trajetória lascivamente sofrível para Victor Frankenstein. Por conseguinte
constata-se que a leitura equivocada dos críticos, os levou a afirmar que o romance não
dispõe de um fundo moralizante.
A produção literária ganha reconhecimento e notoriedade, após a morte de sua
escritora. Tornando-se:
[...] um mito, pois propõe uma solução imaginária para uma tarefa irrealizável nas
primeiras décadas do século XIX: trazer à vida um ser vivo com características
humanas, por meio de um experimento científico, o qual consiste em uma tentativa
de controlar e manipular a Natureza, que inserida dentro da perspectiva romântica é
uma manifestação sublime do poder divino e criador (Deus). (Alegrette, 2010, p.
93)
Esse vazio significativo é preenchido pela dinâmica complexa entre o criador, Victor
Frankenstein, e a Criatura. A relação tumultuada entre eles, marcada pelo sofrimento e pela
negligência "paterna", culmina na formação de um ser verdadeiramente "monstruoso". Este
monstro não apenas se destaca por sua construção física horripilante, indo além dos padrões
do gótico, mas também é moldado pelas margens sociais, sendo excluído e isolado. Essa
repulsa por parte do “genitor”, contribui para adensar essas congruências irônicas no
romance.
Considerações Finais
Assim como a criatura, Mary Shelley era um mosaico, muitas vezes contraditório,
de concepções e modelos de pensamento, herdeiros, em sua maioria, de seu círculo
familiar. De John Godwin, Mary Shelley herdou a reflexão acerca dos limites do
conhecimento e da solidão do homem moderno, questões já exploradas por ele em
St. Leon. De Mary Wollstonecraft, entre outras coisas, a crença na natureza
intrinsecamente boa do homem. De Percy Shelley, a leitura romântica de Milton e
do mito de Prometeu. Neste mosaico de influências, releituras e deformações,
destaca-se, como um letreiro luminoso, o próprio nome da artista: Mary
Wollstonecraft Godwin Shelley. Nome que em si só representa o mosaico,
evocando, ao pronunciá-lo em sua totalidade, a irônica fusão entre a autora e sua
personagem: como o monstro, ela também não possui um nome que seja só seu; na
melhor das hipóteses, para a posteridade, ambos serão reconhecidos pela repetição
de suas origens - "Mary Shelley" e "Frankenstein". (Giassone, 1999, p. 66-67).
Uma autora de grande destaque, Mary Shelley, deu à luz a uma obra verdadeiramente
emblemática. Nas palavras de Giassone, o romance de Shelley pode ser comparado a um
mosaico, cuidadosamente construído de maneira semelhante à Criatura que habita suas
páginas, repleto de retalhos. No entanto, esses fragmentos não são aleatórios; pelo contrário,
a obra é meticulosamente costurada com a ressignificação de mitos fundamentais e faz alusão
aos avanços da ciência da época.
Mary Shelley não apenas adota a forma do romance epistolar, mas também incorpora
elementos românticos e flerta com os ideais iluministas. Sua habilidade em absorver e
mesclar essas tendências culturais e literárias é evidente, resultando em uma obra que
transcende as fronteiras dos gêneros e reflete os dilemas morais e científicos de sua época.
Dessa forma, o Frankenstein de Mary Shelley não é apenas uma narrativa costurada com
maestria, mas uma expressão rica e intrincada que dialoga com diversos movimentos
intelectuais do século XIX, proporcionando uma experiência literária profunda e
multifacetada.
Ao construir um mosaico de ideias provenientes do livro, torna-se evidente que certos
aspectos da narrativa podem ser mais profundamente explorados por meio do estudo da
ironia. Ao seguir a jornada da Criatura ao longo do romance, identificamos o que pode ser
interpretado como uma ironia verbal. A ambiguidade gerada pela atribuição do nome
"Frankenstein" levou a equívocos por parte dos leitores, resultando em uma leitura incorreta
da obra.
Essa ambiguidade, aliada à presença de lacunas intencionais, destaca a presença da
ironia romântica, uma vez que incita os leitores a preencherem essas lacunas com suas
próprias interpretações. Consequentemente, a ironia se manifesta na dualidade de significados
atribuídos ao título da obra, gerando uma leitura ambígua e multifacetada.
Podemos, assim, concluir que a ironia em "Frankenstein" transcende o mero aspecto
verbal, abrangendo tanto o sentido literal quanto as interpretações subjacentes,
proporcionando uma experiência de leitura rica e complexa.
Referências:
ALEGRETTE, Alessandro Yuri. Frankenstein: Uma releitura do mito de criação. 2010. Dissertação
(Mestrado). UNESP, Araraquara-SP, 2010. Disponível: <http://hdl.handle.net/11449/91524>. Acesso
em: 03 jan. 2024.
GUIMARÃES, Armando Rui. Mary Shelley: Vida e obra. In: ARAÚJO, Alberto Filipe. et
al. O mito de Frankenstein: Imaginário & Educação. São Paulo: FEUSP, 2018. Disponível
em: https://www.livrosabertos.sibi.usp.br/portaldelivrosUSP/catalog/book/213. Acesso em:
03 jan. 2024.
HUTCHEON, L. Teoria e política da ironia. Trad. Julio Jeha. Belo Horizonte: Editora da
UFMG, 2000.
LOUREIRO, I.. Sobre a noção de “ironia romântica” e sua presença na escrita de Freud.
Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 5, n. 2, p. 78–91, abr. 2002.
Willrich, Glauber Rezende Jacob. Da ficção à história: a ironia romântica como elo mediador
entre o fato histórico e ficção na prosa saramaguiana. Anais do SILEL. Volume 3, Número
1. Uberlândia: EDUFU, 2013.