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Fundamentos e fronteiras da Teoria da Literatura

razão, a psicanálise inspirou-se na personagem para explicar não apenas o


desejo do filho pela mãe, que denominou complexo de Édipo, mas também
para exemplificar a terapia analítica, caracterizada pela regressão à infância
e pela busca dos traumas que marcam o indivíduo desde tenra idade.

No primeiro caso, entenderemos porque Aristóteles considerou Édipo Rei


a tragédia mais perfeita entre as que conheceu na Atenas de seu tempo. Mas
a Poética considera sobretudo as qualidades formais do texto, valorizando sua
composição, que transforma em regras segundo as quais julga as demais peças
produzidas por dramaturgos gregos e que seus sucessores (o francês Boileau seu
principal seguidor) utilizam como metro para avaliar os dramas de Jean Racine e
Pierre Corneille, por exemplo.

No caso da Teoria da Literatura contemporânea, a obra também pode ser


examinada a partir de critérios formais, como a construção da trama; mas é im-
portante igualmente procurar interpretar o que o texto diz a seu público hoje
para se verificar sua atualidade e sua permanência.

Imaginação e verossimilhança
O literário situa-se, pois, entre dois limites: de um lado, ele depende do que
um escritor tem a dizer; de outro, do modo como esse dizer se apresenta e o
que significa para seu público. Esses dois polos são matéria de avaliação porque
podem ser bem realizados ou não, o que depende de um terceiro elemento,
ainda não mencionado: a apresentação de um mundo imaginário.

Dessa forma, entre o que dizer, o modo de dizê-lo e o significado do que é dito
coloca-se um miolo: o mundo criado por um escritor. Édipo pode ter aparecido
originalmente em um mito, de circulação oral entre povos da Antiguidade. Da
mesma maneira, outras situações presentes em obras literárias são retiradas de
acontecimentos previamente conhecidos: as invasões napoleônicas, que cons-
tituem o pano de fundo do romance Guerra e Paz, de Leon Tolstói; a viagem de
Vasco da Gama à Índia, fazendo pela primeira vez a volta da África, como narra
Luís de Camões, no já mencionado Os Lusíadas; a ocupação e a colonização
do Rio Grande do Sul no século XIX, como aparece em O Continente, primeiro
volume de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Além disso, figuras da história
podem protagonizar romances, como o escritor Graciliano Ramos, no romance
Em Liberdade, de Silviano Santiago, ou aparecer em segundo plano, como D.
João V, de Portugal, em Memorial do Convento, de José Saramago.

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E não apenas nesses casos fatos e pessoas conhecidas, cuja existência pode
ser atestada pela história, estão presentes em obras literárias. Em romances como
O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a dramática
condição do retirante nordestino está ali representada, assim como a censura e
a repressão, resultantes de um regime político autoritário, nutrem uma novela
como 1984, do inglês George Orwell.

Dessa maneira, a obra literária pode incorporar os mais diferentes elemen-


tos da vida cotidiana, da história, da sociedade e da política. Mas tais dados
adquirem sentido quando amalgamados à fantasia do escritor, cuja imagina-
ção criará um contexto para a apresentação desses dados, sugerirá figuras para
simbolizá-los, inventará ações para viabilizá-los e suscitará uma linguagem para
expressá-los. Sem um imaginário fértil, que faça com que todos os elementos colo-
cados à disposição do escritor interajam e articulem-se, não há criação literária.

Observe-se que o termo criação significa igualmente “invenção”, e a inventi-


vidade é o principal instrumento de um escritor. A inventividade é fecundada
pela imaginação, povoada por um imaginário que cresce à medida em que se
avolumam as experiências do próprio escritor. A imaginação está presente nas
narrativas mais fantasiosas e também nas mais realistas: ela nunca estará fora de
uma obra literária.

Contudo, não é imaginação que garante o literário, mas a coerência com que
se apresenta. Não que o escritor não possa exacerbar a própria fantasia, esti-
cando-a ao máximo. Mas quando a traduz em palavras ele não pode perder a
verossimilhança, porque precisa convencer o leitor de sua “realidade”, mesmo
que ela seja fantástica.

A verossimilhança engloba dois processos. O primeiro deles pode ser chama-


do de metafórico, pois, de alguma maneira, o que encontramos em uma obra
literária precisa guardar alguma semelhança com o que via de regra acontece. O
segundo relaciona-se à sintaxe, pois diz respeito à lógica da disposição das parte
de uma obra, o que supõe coerência e faculdade de persuasão e aceitação por
quem a acompanha pela leitura ou pela audição.

O exemplo de uma narrativa bastante popular pode ajudar a compreender o


que se espera de uma obra em termos de verossimilhança: “João e Maria” é um
conto de fadas que narra o que sucede a duas crianças largadas à sua própria
sorte em uma floresta. Elas são abandonadas por seu pai e pela madrasta, que,
empobrecidos, passam fome e concluem que, sem os dois pequenos, poderiam
começar a resolver seu problema econômico. João, uma das crianças, ouve o

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casal planejando o ato criminoso e previne Maria; os dois irmãos munem-se de


pedrinhas, que marcarão o caminho a ser percorrido de volta, quando retorna-
rem para casa, após serem deixados na mata. Os adultos surpreendem-se com o
regresso da dupla e planejam repetir a dose; na segunda vez, porém, as crianças
não têm tempo de obter as salvadoras pedrinhas, tendo de assinalar o percurso
com pedaços de pão, que são engolidos pelos pássaros, impedindo o retorno.

Agora sozinhas e sem socorro, João e Maria acabam por chegar à casa da
bruxa, construída com marzipã e confeitos. Esfomeadas, as crianças começam a
comer a casa, até que a feiticeira aparece e aprisiona-os. Depois de algum tempo,
eles livram-se da bruxa e retornam à sua morada.

De antemão, sabemos que a narrativa não é realista, pois o universo é consti-


tuído de fatos mágicos, do que é exemplo a casa da bruxa de que se alimentam
os heróis. Mas várias situações aproximam os fatos narrados a dados e eventos
conhecidos pelo leitor, como a pobreza, que pode induzir a atos condenáveis, ou
a inteligência, quando é empregada para a solução de problemas. Essa proximi-
dade, porém, não basta para sustentar a narrativa, mesmo porque as circunstân-
cias em que aparecem não são as predominantes no conto. Contudo, esse conto
popularizou-se, sem que fosse contestada sua validade, porque sua construção
apresenta lógica pela relação de consequência entre os acontecimentos, como
é próprio à verossimilhança. Dessa maneira, João e Maria podem retornar à casa
quando utilizam as pedras para marcar o caminho; perdem-se, porém, quando
se veem obrigados a apelar para os pedaços de pão que atraem as aves. Em um
conto em que a fome determina os principais acontecimentos – o abandono das
crianças pelos pais; o encontro da casa comestível; o fato de a bruxa engordar
João e Maria, porque deseja transformá-los em apetitosa refeição –, é lógico que
pedaços de pão não impeçam a perda dos dois meninos.

A verossimilhança é, pois, uma propriedade interna de toda obra literária,


mesmo quando se apresenta um quadro inteiramente descritivo ou avaliativo,
como se observa seguidamente em poemas. Luís de Camões, em um de seus
sonetos, expressa sua concepção de amor, destacando suas propriedades:

Amor é fogo que arde sem se ver,


é ferida que dói, e não se sente;
é um contentamento descontente,
é dor que desatina sem doer. [...]

(Soneto 11)

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Pode-se logo observar que o poeta chama a atenção para uma série de con-
tradições: se o amor é fogo, ele “arde sem se ver”; se é ferida, “dói, e não se sente”;
além disso, é “contentamento descontente”. Essas contradições são, por sua vez,
verossímeis, pois Camões chama a atenção para as oposições dentro de um
mesmo campo semântico: fogo que não se vê arder; ou a ferida cuja dor não se
sente. Inverossímil seria, por exemplo, escrever que o amor é “ferida desconten-
te”, já que não se estabelece de imediato uma relação de causa e consequência
entre o ferimento e o contentamento. Para chegar a isso, ele teria de ter propos-
to um ponto em comum entre o significado dos dois termos, o que não acontece
no caso desse soneto camoniano.

Contudo, a imaginação é uma zona inesgotável do cérebro humano, poden-


do propor infinitas imagens, de modo que, em outro texto, poderemos encon-
trar essa combinação, cujo sentido dependerá de sua apresentação verossímil
– aceitável, pois, pelo leitor.

A obra literária caracteriza-se, como já se observou, pelo emprego da lingua-


gem verbal, o que a diferencia, por exemplo, da música e da pintura. Essa lingua-
gem expressa o que a fantasia e a imaginação do escritor sugerem, o que define
sua natureza ficcional. Contudo, o imaginário mais fértil sofre a contenção da
verossimilhança, que determina os limites lógicos e aceitáveis de uma criação li-
terária. A verossimilhança apresenta-se como lei interna, já que a coesão depen-
de do arranjo dos fatos e das palavras que os manifestam. Mas a verossimilhança
igualmente estabelece a relação entre o mundo representado em uma obra e o
universo do leitor, que reconhece a validade de um texto de um lado por consi-
derá-lo coerente e de outro por firmar o nexo entre o que é ali mostrado e o que
ele sabe por experiência própria.

Ao não literário pertencerá, pois, o texto em que não forem encontrados esses
aspectos, considerados básicos pela Teoria da Literatura contemporânea e acei-
tos nas distintas correntes dessa ciência. Quando do exame de obras, serão eles
os primeiros a serem buscados, mostrando que a Teoria pode se tornar igual-
mente uma prática, oportunizando o conhecimento e a avaliação individual de
cada obra.

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