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Imaginação e verossimilhança
O literário situa-se, pois, entre dois limites: de um lado, ele depende do que
um escritor tem a dizer; de outro, do modo como esse dizer se apresenta e o
que significa para seu público. Esses dois polos são matéria de avaliação porque
podem ser bem realizados ou não, o que depende de um terceiro elemento,
ainda não mencionado: a apresentação de um mundo imaginário.
Dessa forma, entre o que dizer, o modo de dizê-lo e o significado do que é dito
coloca-se um miolo: o mundo criado por um escritor. Édipo pode ter aparecido
originalmente em um mito, de circulação oral entre povos da Antiguidade. Da
mesma maneira, outras situações presentes em obras literárias são retiradas de
acontecimentos previamente conhecidos: as invasões napoleônicas, que cons-
tituem o pano de fundo do romance Guerra e Paz, de Leon Tolstói; a viagem de
Vasco da Gama à Índia, fazendo pela primeira vez a volta da África, como narra
Luís de Camões, no já mencionado Os Lusíadas; a ocupação e a colonização
do Rio Grande do Sul no século XIX, como aparece em O Continente, primeiro
volume de O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo. Além disso, figuras da história
podem protagonizar romances, como o escritor Graciliano Ramos, no romance
Em Liberdade, de Silviano Santiago, ou aparecer em segundo plano, como D.
João V, de Portugal, em Memorial do Convento, de José Saramago.
E não apenas nesses casos fatos e pessoas conhecidas, cuja existência pode
ser atestada pela história, estão presentes em obras literárias. Em romances como
O Quinze, de Rachel de Queiroz, e Vidas Secas, de Graciliano Ramos, a dramática
condição do retirante nordestino está ali representada, assim como a censura e
a repressão, resultantes de um regime político autoritário, nutrem uma novela
como 1984, do inglês George Orwell.
Contudo, não é imaginação que garante o literário, mas a coerência com que
se apresenta. Não que o escritor não possa exacerbar a própria fantasia, esti-
cando-a ao máximo. Mas quando a traduz em palavras ele não pode perder a
verossimilhança, porque precisa convencer o leitor de sua “realidade”, mesmo
que ela seja fantástica.
Agora sozinhas e sem socorro, João e Maria acabam por chegar à casa da
bruxa, construída com marzipã e confeitos. Esfomeadas, as crianças começam a
comer a casa, até que a feiticeira aparece e aprisiona-os. Depois de algum tempo,
eles livram-se da bruxa e retornam à sua morada.
(Soneto 11)
Pode-se logo observar que o poeta chama a atenção para uma série de con-
tradições: se o amor é fogo, ele “arde sem se ver”; se é ferida, “dói, e não se sente”;
além disso, é “contentamento descontente”. Essas contradições são, por sua vez,
verossímeis, pois Camões chama a atenção para as oposições dentro de um
mesmo campo semântico: fogo que não se vê arder; ou a ferida cuja dor não se
sente. Inverossímil seria, por exemplo, escrever que o amor é “ferida desconten-
te”, já que não se estabelece de imediato uma relação de causa e consequência
entre o ferimento e o contentamento. Para chegar a isso, ele teria de ter propos-
to um ponto em comum entre o significado dos dois termos, o que não acontece
no caso desse soneto camoniano.
Ao não literário pertencerá, pois, o texto em que não forem encontrados esses
aspectos, considerados básicos pela Teoria da Literatura contemporânea e acei-
tos nas distintas correntes dessa ciência. Quando do exame de obras, serão eles
os primeiros a serem buscados, mostrando que a Teoria pode se tornar igual-
mente uma prática, oportunizando o conhecimento e a avaliação individual de
cada obra.