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Universidade de São Paulo

Eduardo Carniel

A derrota do romancista
Édouard, Gide e seus “Moedeiros Falsos”

São Paulo
2014
Um dos primeiros desafios na análise de uma obra como Os moedeiros falsos é
apontado com precisão por E. M. Forster, nos seus Aspects of the novel:
We have, in the first place, a plot in Les Faux Monnayeurs of the logical objective
type that we have been considering—a plot, or rather fragments of plots. (p. 68)

São esses mesmos “fragmentos de enredos” que dão ao romance uma descentralização
quanto ao seu tema, ou mesmo aos seus personagens principais. Encarado por
diferentes críticos como sátira social, apelo pela liberdade individual ou desconstrução
narrativa, a obra ramifica e se estrutura através de uma confluência dissonante entre as
histórias dos diferentes personagens, que se interligam e influenciam mutuamente. Essa
forma de experimentação narrativa, mais tarde vista em obras como Contraponto e
Quarteto de Alexandria, não se configura como simples variação do tradicional
centralismo individualista visto na ascensão do romance. Pelo contrário, reflete
artisticamente toda uma visão de mundo decorrente da desilusão advinda da
modernidade.
Os diferentes personagens apresentados em Os moedeiros falsos recebem todos,
por mais curto que seja, algum foco na sua experiência particular. Do mais idealista ao
mais cínico, a mudança de foco na narração favorece suas micronarrativas de modo a
criar um mosaico de diferentes indivíduos e seus dilemas. Comparada por alguns
críticos à composição cubista na pintura, penso ser mais apropriada a analogia dessa
narrativa à fuga musical, como bem apontada por Édouard ao falar de seu próprio
romance. A fuga é uma composição formada de muitas vozes melódicas, que se alternam
e contrapõem em polifonia ao longo de sua duração. Estreitando as semelhanças, é
geralmente articulada em forma ternária, com uma exposição, um desenvolvimento e
uma conclusão. Não é difícil observar estrutura análoga no romance, também composto
de três partes, em que são apresentados os personagens e temas, desenvolvido o enredo
na viagem de Édouard aos Alpes e finalmente com um dénouement das histórias
colocadas até então, toda a ação situada nos choques entre os percursos aparentemente
independentes dos personagens na multidão.
Esse caleidoscópio de histórias está plenamente inserido no que foi imposto à
arte com a chegada da modernidade, e mais especificamente com o resultado da
Primeira Grande Guerra. Com a crise gerada nos valores liberais colocados até então e a
própria dissolução do reconhecimento do indivíduo que trouxe o horror da guerra, a
arte se viu também com suas bases filosóficas em ruínas. O romance em especial,
firmemente ligado, na sua ascensão, aos valores liberais e à força do indivíduo, recebeu
uma grande reformulação por várias frentes. A polifonia d’Os moedeiros falsos expressa
justamente um potente relativismo, não só de pontos de vista, mas de moralidade, que
varia abruptamente nos diferentes personagens (ou, em certos casos, no mesmo
personagem, como é o caso de Bernard no começo e no fim da obra). Isso é a expressão
de um mundo não mais unido por valores comuns e universalmente aceitos, mas a
expressão dissonante de uma sociedade fragmentada.
Nesse panorama se insere o que Forster trata como “o centro da obra”, que é o
debate trazido pelo romance sobre o próprio romance e o desafio da narração. O autor
André Gide, no seu célebre diário, escreveu que devia ficar claro aos leitores se os
eventos se passam antes da guerra ou depois. De fato, muitos dos eventos que
transcorrem no enredo (a empreitada das moedas falsas por um grupo de jovens, o
suicídio acidental de uma criança na escola e até mesmo o envolvimento do romancista
com um adolescente) são tirados de notícias de jornal e da vida de Gide, tudo
transcorrido antes da guerra. Mas não se pode perder de vista que a obra Os moedeiros
falsos em si foi escrita depois, e o autor não consegue escapar da fragmentação que se
apresenta na modernidade.
Gide renovou o termo mise en abyme ao apresentar sua visão da peculiaridade
narrativa dessa obra. Trazido da pintura, o mise en abyme é uma técnica que consiste
em projetar sucessivas vezes a imagem, muitas vezes através de um jogo de espelhos, de
modo a criar, dentro da moldura da obra, uma reprodução da mesma. Já utilizada na
literatura em trabalhos como as “peças dentro de peças” de Shakespeare, Gide
aprofunda essa técnica pela criação de um alter ego em Édouard que, como ele, busca
escrever um romance chamado Os moedeiros falsos (que figura um romancista), e que
para isso se utiliza de eventos à sua volta e da sua própria vida.
Tanto na vida real quanto no romance, porém, os romancistas encontram
grandes desafios ao formular seus livros. A intenção inicial, tanto de Édouard como de
Gide, tendo em vista a falha do romance em propriamente representar a realidade, era
escrever um romance de ideias:
- E se assim fosse?, gritou Édouard com redobrado vigor. Por causa dos desajeitados que
nele se extraviaram, devemos condenar o romance de ideias? À guisa de romances de
ideias só nos serviram até agora execráveis romances de teses. Mas não se trata disso,
veja bem. As ideias… as ideias, confesso, interessam-me mais do que os homens,
interessam-me mais do que tudo. Elas vivem, elas combatem, elas agonizam como os
homens. (p. 163)

Inclusive, mais tarde, critica os “realistas” que “partem de fatos, acomodam suas ideias
aos fatos”. A contradição está justamente aí, onde Gide e Édouard, com a intenção de
conceber um romance que seja “distanciado da realidade”, partem dos fatos mais
concretos à sua volta pra sua concepção, traindo o que haviam colocado como limites.
Édouard nem termina seu romance, mas Gide, que o completa, evidencia a falha na sua
tentativa.
A constatação suprema da derrota do narrador e do autor pela própria obra está
no capítulo VII da segunda parte, narrado em primeira pessoa pelo narrador que, até
então, tinha se mantido impessoal. Nele está a voz do próprio Gide, que, mirando a
narrativa do seu ápice, se frustra ao não conseguir compreender as motivações que
guiam os personagens, já mostrando que perdeu qualquer controle sobre eles. Quanto à
continuação do enredo, a ele só cabem suposições que podem ser feitas por qualquer
leitor, das quais erra algumas e acerta outras.
O capítulo inicia com a imagem do caminho, que nesse caso é sombrio e confuso
ao viajante. Imagem semelhante já aparece no começo da Teoria do romance, de
Lukács:

Happy are those ages when the starry sky is the map of all possible paths—ages whose
paths are illuminated by the light of the stars. Everything in such ages is new and yet
familiar, full of adventure and yet their own. The world is wide and yet it is like a home,
for the fire that burns in the soul is of the same essential nature as the stars; the world
and the self, the light and the fire, are sharply distinct, yet they never become permanent
strangers to one another, for fire is the soul of all light and all fire clothes itself in light.
Thus each action of the soul becomes meaningful and rounded in this duality: complete
in meaning—in sense—and complete for the senses; rounded because the soul rests
within itself even while it acts; rounded because its action separates itself from it and,
having become itself, finds a centre of its own and draws a closed circumference round
itself. (p. 11)

A luz das estrelas no mapa celeste remete à grande épica, inserida num contexto de
integração de valores ético-sociais, metafísicos e estéticos, onde a pessoa sabia seu lugar
e destino e o via refletido na arte. A imagem do viajante perdido na escuridão que usa
Gide é extremamente apropriada para a descrição do seu contexto histórico e artístico:
já não há mais ideias no lugar, nem valores universais, e o indivíduo está perdido,
inclusive na produção artística. É esse o sentido procurado pelo autor no capítulo
mencionado, e na sua empreitada, só encontra a frustração de não enxergar a coerência
do romance realista nos seu próprio enredo, nos seus próprios personagens. Essa falha
persiste até o final, já que a obra acaba sem uma completude de sentido por parte da
formação dos indivíduos. Nenhum deles chega em uma síntese das suas expectativas
com o mundo, como é esperado de um romance de formação, e o livro acaba difuso e
aporético.
Aí está colocada a experiência de Gide: estacionado em um mundo fragmentado,
onde já se perdeu o sentido dos valores que o levaram até ali, ele olha
retrospectivamente a eventos de sua realidade prévios à guerra e tenta ordená-los em
forma de romance, forma narrativa da causalidade e da coerência interna por
excelência. Ao contemplar a construção do enredo e constatar não só que não o
compreende entre o mar de polifonia, mas que não sabe o que fazer para que ele
obtenha a coerência que deseja, compreende que as formas narrativas que antes faziam
sentido com os fatos que eram dados pela realidade pararam de se aplicar. O seu
“romance de ideias” não pôde sair como planejava, porque as ideias que ele quer
traduzir com os eventos que tirou do jornal já não tem nexo: os valores que as
fundamentavam caíram por terra.
Ao explicitar o que chama de “tema profundo” de seu livro, Édouard (e Gide, por
tabela) afirma, assertivamente:

Será, sem dúvida, a rivalidade entre o mundo real e a representação que nós fazemos
dele. A maneira pela qual o mundo das aparências se impõe a nós e aquela pela qual
tentamos impor ao mundo exterior a nossa interpretação particular fazem o drama de
nossa vida. (p. 176)

Não só da nossa vida, como o drama do romance também. Lukács, na Teoria do


romance, coloca em questão que o enredo do romance é sempre criado pelo
enfrentamento entre o mundo real e a visão de mundo particular do herói. Mas o que
acontece quando a interpretação particular da realidade não faz sentido nem pra quem a
concebeu? Reflexo de um mundo fragmentado que também é incompreensível, o
romance já não pode trabalhar sobre as mesmas bases.
A moeda falsa, enfim, colocada por Gide e Édouard como símbolo nos seus
romances, se torna metáfora para a própria arte e para o romance: ela tem valor
enquanto a percepção de quem a usa a reconhecer como pertencente à realidade. Mas
percepção e realidade nunca foram sinônimas, e se a ideia de realidade que a moeda
antes tinha já não consegue ser percebida como verdadeira, ela perde sua função. O
mesmo se dá com o romance, e no caso Gide é o que denuncia a si próprio como um
moedeiro falso.

Bibliografia

GIDE, André. Os moedeiros falsos. São Paulo: Círculo do Livro


http://www.themontrealreview.com/2009/Andre-Gide-Four-Reflections-on-The-
Counterfeiters.php
FORSTER, E. M. Aspects of the novel. Acessado em:
http://ell.ibu.edu.ba/assets/userfiles/ell/Aspects%20of%20the%20Novel.pdf
LUKACS, Gyorgy. Theory of the novel. Acessado em:
http://analepsis.files.wordpress.com/2011/08/georg-lukacs-the-theory-of-the-novel.pdf

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