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editorial cartas desenhar o dono delas mesmas). O desenho dessas mãos encontra-se
outros envio
e editora dos linkscontato pregado por tachinhas num pedaço de cortiça – mas o pedaço de cortiça
númerosde material
créditos leitores que sustenta o desenho é ele mesmo um outro desenho. As mãos que
se desenham não estão completas, se ainda não terminaram de se
desenhar, mas ao mesmo tempo compõem um quadro completo.
revista
GUSTAVO BERNARDOi
A mão esquerda desenha a mão direita que por sua vez desenha a mão
esquerda. Duas mãos desenham com zelo uma à outra, aparentemente
começando por si mesmas: as mãos já estão tão definidas que parecem “As mãos de Escher” nos apresentam o enigma da metaficção. Segundo
sair do próprio desenho que elaboram, e elas agora se dedicam a verbete em dicionário de termos literários, William H. Gass cunhou o
preparar os punhos da sua camisa (como se só então começassem a termo “metafiction”, preferindo-o à expressão “anti-romance” – essa
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bem o meu pêssego, é o poema que fará a minha boca aguar... aspectos e referências de teoria ou crítica da literatura; obras que criam
enquanto o pêssego real se estraga”. biografias de escritores imaginários; enredos que sugerem aos leitores
que eles se encontram em mundos tão ficcionais quanto aquele dos
A característica principal da metaficção é a autoconsciência, mas uma enredos.
autoficção socrática que sabe o quanto não sabe: de acordo com David
Lodge, “metaficção é uma ficção sobre ficção: romances e histórias que O romance metaficcional confronta, sem a eles se opor totalmente, o
chamam a atenção para o seu status ficcional e para os seus próprios romance realista do século XIX e sua variante no século seguinte, o
procedimentos de composição”. Suas passagens “reconhecem a romance não-ficcional ou histórico. No romance histórico pessoas
artificialidade das convenções realistas mesmo quando as empregam; “reais” e personagens históricos interagem com personagens “de
desarmam a crítica, antecipando-a; adulam o leitor tratando-o como verdade” (ou de mentira, dependendo do ponto de vista). Algumas
intelectualmente igual, suficientemente sofisticado para não ser vezes esse tipo de ficção é chamado de “não-ficção” justamente
derrubado pela assunção de que um trabalho de ficção é antes uma porque, ao usar personagens históricos em meio a personagens-
construção verbal do que uma fatia da vida”. personagens, reforçaria a ilusão realista de representação do real ponto
a ponto. No entanto, o efeito pode ser semelhante ao da metaficção
A ficção que chama a atenção sobre a sua própria condição ficcional estrita: “romances não-ficcionais sugerem que fatos são, em última
termina por levantar questões relevantes sobre as relações entre ficção análise, ficções, e romances metaficcionais sugerem que ficções são
e realidade e, em última análise, questões decisivas sobre a a realidade fatos. Em ambos os casos, a história é vista como uma construção
mesma. De acordo com Patricia Waugh, “ao criticar seus próprios provisória”. A História maiúscula que conhecemos é marcada pelas
métodos de construção, tais escritos não examinam apenas as molduras textuais que a narram e se mostra um mundo alternativo
estruturas fundamentais da ficção narrativa, eles também exploram a dentro de um conjunto de vários mundos alternativos.
possível condição ficcional do mundo externo ao texto ficcional”. A
reflexão teórica sobre a literatura se amplia, nesse caso, para uma Intensificando esse efeito, há uma variante contemporânea do
reflexão filosófica sobre o mundo e a nossa existência nele: a romance histórico conhecida como “metaficção historiográfica”. Esse
metaficção “também tem oferecido modelos extremamente acurados tipo de metaficção critica ou até mesmo falsifica a narrativa histórica
para entender a experiência contemporânea do mundo como uma tradicional, revisitando ironicamente as convenções da memória
construção, um artífice, uma rede de sistemas semióticos cultural e manifestando clara desconfiança quanto as grandes
interdependentes”. narrativas, em particular quanto a narrativa da História. Segundo
Currie, “a importância da metaficção historiográfica é definida por sua
Para fazê-lo, o texto metaficcional incorpora o diálogo no seu habilidade de pôr em dúvida as pressuposições do romance ‘realista’ e
monólogo, fazendo o escritor, os leitores e os críticos conversarem da narrativa da história, de questionar a ‘conhecibilidade’ absoluta do
entre as metáforas: “a metaficção assimila todas as perspectivas passado e de especificar as implicações ideológicas das representações
críticas dentro do próprio processo ficcional”. Entre os esquemas históricas passadas e presentes“.
metaficcionais, encontramos: romances sobre uma pessoa escrevendo
um romance; contos sobre uma pessoa lendo um conto até se ver de O advento da metaficção historiográfica foi analisado por Linda
repente dentro do conto que está lendo; histórias que comentam as Hutcheon, que mostrou como as disciplinas Literatura e História eram
convenções da própria história, como capítulos, títulos, parágrafos ou consideradas no século XIX dentro do mesmo campo de aprendizado.
enredos; romances não-lineares que possam ser lidos não apenas do Elas se separam no século XX por força da hiper-especialização, mas
princípio para o final; notas de rodapé que continuam a história também por força da multiplicação das dúvidas epistemológicas.
enquanto a comentam; romances em que o autor é personagem do Entretanto, essas mesmas dúvidas acabam por reaproximá-las num
seu próprio romance; histórias que conversam com o leitor, determinado aspecto: “na ficção e na história escritas hoje, nossa
antecipando, frustrando ou ironizando suas reações à história; confiança nas epistemologias empiricistas e positivistas tem sido
personagens que se preocupam seriamente com a circunstância de se abalada – abalada, mas talvez ainda não destruída“.
encontrarem em meio a uma história de ficção; trabalhos de ficção que
saem de dentro de outros trabalhos de ficção; histórias que incorporam A lição comum a ambas é a de que o passado existiu um dia, mas nosso
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conhecimento sobre esse passado só pode ser transmitido por meio de Machado de Assis não é para quem quer, só para quem pode”. O elogio
signos verbais e visuais. Questiona-se dessa maneira o conhecimento a Machado (nosso escritor metaficcional por excelência, como adiante
positivo, mas não se pode e não se quer destruir a possibilidade desse tentarei demonstrar) é na verdade um elogio-restrição à metaficção e ao
conhecimento. Logo, no lugar de uma destruição iconoclasta das próprio escritor, praticamente sugerindo que ele permaneça quieto na
formas anteriores de saber, promove-se uma espécie de ceticismo sua condição de estátua canônica de maneira a não dar mau exemplo
suspensivo. Esse ceticismo marcará igualmente a metaficção mais para os jovens escritores. Manifesta-se dessa maneira a saudade do
ampla, quando ela se dedica, como veremos um pouco mais adiante, realismo simples e direto que Machado tanto criticou – quando afirmou,
a revelar as convenções do realismo sem, todavia, ignorá-las ou por exemplo, que “a realidade é boa, o realismo é que não presta para
abandoná-las. nada” , ou quando solicitou: “voltemos os olhos para a realidade, mas
excluamos o realismo”. A saudade do realismo implica, enfim, a saudade
Se a presença do personagem histórico em um trabalho de ficção não do tempo das certezas burguesas.
torna a a ficção mais “histórica” mas sim contamina de ficção a história,
de modo equivalente a realidade do autor como pessoa, quando ele se A importância para compreender a literatura e o mundo em que se faz
torna personagem de suas próprias histórias, se esfuma: “quanto mais literatura ressalta quando se estuda a linguagem cotidiana. Essa
o autor ou autora aparece, menos ele ou ela existe. Quanto mais o linguagem endossa e sustenta estruturas de poder que naturalizam, isto
autor ou autora alardeia sua presença no romance, mais notável é sua é, tornam invisíveis diferentes formas de opressão. Para Waugh, o
ausência fora dele”. Entre nós o caso mais emblemático é o de Machado equivalente literário da naturalizante linguagem cotidiana é a linguagem
de Assis (como veremos adiante): quanto mais intervém como autor do romance realista e suas convenções de verossimilhança: “a
nos seus romances, confundindo-se com seus narradores, menos metaficção se ergue em oposição não ostensivamente contra os fatos
conhecida e mais misteriosa se torna a sua vida pessoal. Teríamos aqui objetivos no mundo real, mas contra a linguagem do romance realista
uma espécie de retomada do Paradoxo do Mentiroso, quando um que tem sustentado e endossado tal visão da realidade”.
cretense dizia que todos os cretenses são mentirosos: se ele estivesse
dizendo a verdade, ele estaria mentindo, logo, não estaria dizendo a Como o realismo pretende descrever “a vida como ela é”, o que
verdade; entretanto, se ele estivesse mentindo, ele estaria dizendo a subentende a idéia de que a vida só pode ser de um jeito, a saber, o
verdade, logo, não poderia estar mentindo. Pela reconfiguração jeito com que o realismo a descreve, faz parte das suas convenções a
moderna do Paradoxo, um metaficcionista afirmaria, com toda a figura do narrador onisciente que tudo sabe porque, no seu mundo
sinceridade: “todos os romancistas são mentirosos”. ficcional que supostamente representa o mundo real, tudo pode ser
sabido. O narrador onisciente a que personagens e leitores não têm o
As definições que Lodge e Waugh nos oferecem para a metaficção são menor acesso atua como invisível alter ego do próprio escritor, por sua
elogiosas, sugerindo que ela se constitua em uma característica vez representação em miniatura do próprio Criador. Em contrapartida,
sofisticada da literatura contemporânea. Suas definições também “romances nos quais o romancista apaga a si mesmo criam mundos sem
mostram a importância da metaficção para compreender não somente a deuses”, isto é, mundos livres de causas suficientes, onipresentes e
literatura, mas o mundo em que se faz literatura. No entanto, é preciso onipotentes.
lembrar que há controvérsias. Tom Wolfe, por exemplo, vê esse tipo de
escrita como sintoma de uma cultura literária narcisista e decadente: Identifica-se a saudade do realismo, ainda, na ênfase obsessiva dos
“Outra história sobre um escritor escrevendo uma história! Outro media e das próprias editoras na pessoa do escritor: “de fato a recepção
regressus ad infinitum! Quem não prefere arte que ao menos imite de um novo escrito provavelmente nunca foi tão obsessivamente
abertamente alguma outra coisa, preferencialmente a seus próprios centrada no autor quanto hoje”. Semelhante obsessão não se traduz na
processos?” multiplicação de resenhas e críticas, mas sim na multiplicação de
entrevistas, perfis, prêmios, leituras públicas e lançamentos
De fato, são muitos os escritores, editores e professores que continuam performáticos de livros. Os livros que mais vendem não são
defendendo o contrato de ilusão e verossimilhança entre autores e necessariamente os mais lidos, simplesmente porque eles são
leitores, reagindo ao que entendem como a moda (ou a overdose) da comprados menos por causa deles mesmos e mais graças à persona do
metaficção. Escutam-se comumente declarações desse tipo: “ser autor. Se os autores contemporâneos desconfiam tanto da realidade
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quanto de si mesmos, seus críticos e leitores resistem a essa autoconsciência é irônica e auto-irônica. Logo, uma característica
desconfiança com todas as suas forças cognitivas: insiste-se em ver no secundária da metaficção é a ironia. A ironia se justifica porque a
autor a origem “real” do seu texto bem como a representação fiel consciência-de-si leva, paradoxalmente, à dúvida existencial mais
daquele Criador que criou um mundo só (e não vários mundos, muito profunda. O movimento de autoconsciência conduz ao beiral de
menos várias verdades). diferentes abismos. Quanto mais me pergunto quem sou, com o
providencial auxílio da história, da biologia, da psicanálise ou da
A linguagem realista é basicamente metonímica: “as descrições são filosofia, menos sei quem sou, quem fui ou quem serei nos próximos
apresentadas como recortes de um todo que seria o mundo real”. instantes.
Romances metaficcionais, entretanto, quebram a metonímia e rejeitam
aquela noção divinizante do escritor, entendendo-o como uma A catarse literária também mostra esse paradoxo da identidade.
construção social tal qual o leitor: “a metaficção torna explícita a Quando Fulano sente se identificar com um personagem ou com uma
problemática implícita ao realismo”. Desconfiando da sua própria de suas falas, imagina que aquele personagem faz ou diz algo que ele
história, a metaficção promove a desconfiança em relação à realidade, sempre quis fazer ou dizer, como se o autor estivesse pensando
conseqüentemente, em relação a todo tipo de realismo. Desconfiando do especificamente em Fulano para criar seu personagem e seus diálogos.
seu próprio narrador, a metaficção promove a desconfiança em relação Uma auto-reflexão um pouco mais atenta e menos auto-referente,
à ciência e à onisciência do escritor. Desconfiando ironicamente de porém, reconhecerá que antes de ler aquele livro Fulano nunca desejou
ambos, a metaficção promove a desconfiança do leitor em relação à sua fazer ou dizer o que o personagem fez ou disse, simplesmente porque
própria identidade. isso não poderia ter lhe ocorrido. A vulgar sensação de identificação
que chamamos de catarse não se deve definir como uma igualdade
Todavia, cabe uma ressalva importante: “a metaficção explicitamente primária e prévia entre leitor e personagem, mas sim como o processo
revela as convenções do realismo; ela não as ignora nem as do reconhecimento de si mesmo como alguém que há pouco não se
abandona”. O combate ao realismo não supõe a construção de um texto era, isto é, como o processo de produção de si mesmo.
anti-realista ou completamente surrealista que siga sem peias os
prazeres narcisistas da imaginação. O que o texto metaficcional faz é O leitor não se identifica propriamente com o personagem, mas sim
reexaminar as convenções do realismo para descobrir, através da sua este é que oferece àquele uma identidade: “não é que nos
própria auto-reflexão, um formato ficcional que seja relevante e identifiquemos com o personagem, mas sim este que nos atribui uma
compreensível para os leitores contemporâneos: “ao nos mostrar como identidade, nos esclarece e nos define frente a nós mesmos”. Como
a ficção literária cria seus mundos imaginários, a metaficção nos ajuda nossa sensação de identidade pessoal é difusa, tanto que
a entender como a realidade que vivemos dia a dia é, de modo similar, gaguejaremos se forçados a responder de chofre à pergunta “quem é
construída e escrita”. você”, e como o personagem ficcional tem uma identidade muito
melhor definida, mercê de sua limitação à folha de papel, de bom grado
Mais do que isso, a metaficção nos ajudaria a viver nesta realidade. Os tomamos emprestada a identidade e o caráter do personagem que
textos metaficcionais revelam a indeterminação e a referencialidade tenha nos comovido. Dizendo de outra maneira: a leitura do mundo
propositalmente incompleta da ficção, sua existência como mundo feito através da perspectiva diferente do personagem modifica a perspectiva
de palavras: “tais textos, entretanto, enfatizam que a habilidade para do leitor; ora, essa modificação implica alteração substancial na sua
manipular e construir mundos hipotéticos, alternativos ou própria identidade. Ou seja: a catarse não implica uma identificação
ontologicamente distintos é também uma condição da existência social, que acalme porque, afinal, se tem uma identidade e se sabe quem se
da vida fora dos romances”. é, mas sim uma mudança de identidade (ora prazerosa, ora dolorosa).
Porque ainda somos burgueses, logo ainda relativamente presos à A própria palavra “identidade” e suas derivadas escondem esse
concepção realista da verdade e do mundo como únicos, a metaficção processo. Quando alguém diz que tem uma “identidade” (e não apenas
se dedica a desequilibrar esta nossa condição e as certezas dela um documento de identidade) está na verdade dizendo que é “idêntico”
derivadas com boas doses de ironia. Se a característica principal da a algo ou a alguém – que é idêntico a um modelo. A identidade, nos
metaficção é a autoconsciência, importa lembrar que via de regra a termos da própria palavra e a despeito de nós mesmos, não é aquilo
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que singulariza Fulano mas todo o contrário: a identidade é aquilo que decerto, mas, como todo o cômico, fala de nossas tragédias cotidianas
o torna igual a outrem. Quando outrem é um ser que não existe, e da estreita margem de esperança que temos. Essa margem estreita
todavia, realiza-se sim uma identificação singularizante – ainda que também se encontra representada no desenho: como vemos, o
sempre irônica. Como dirá o matemático, “o símbolo do eu é desenhista ainda não fechou o quadro em torno de si mesmo. Todavia,
provavelmente o mais complexo de todos os símbolos do cérebro”. Não falta pouco.
é possível dizer “eu” não sendo eu, ao contrário de todos os outros
referentes possíveis. Logo, não é possível sair de mim para saber o que
sou – então, só me resta fazer uma pirueta mental e aninhar-me em
mim mesmo através de um meta-movimento equivalente ao da
metaficção.
i GUSTAVO BERNARDO é Doutor em Literatura Comparada e professor de estuda as relações entre a literatura e o ceticismo. Autor dos
romances Lúcia (1999), Desenho mudo (2002) e o recém-
Teoria da Literatura no Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de
publicado Reviravolta (2007).
Janeiro (UERJ). Com auxílio de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq,