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: -: ;:,: J. Guinsburg

mario faustino
POESIA.
.EXPERIÊNCIA

: -, :. :: :e.,1izaçào Organizaçào: Benedito Nunesl Revisão:


- Procjução: Plínio M. Filho
ss\rra
r -: \ ,- :.: \Í ir a:hiro; EDITORA PERSPECTIVA
7r,*3
- :-, ': P::.t..lt\ a- 1976

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7
I. POÉTICA: DIÁLOGOS DE OFICINA
1. Para que Poesia? 2',7
2. O Poeta e seu Mundo ..., 43
3. Que é Poesia? 59

II. FONTES E CORRENTES DA POESIA


CONTEMPORÂNEA
1. Edgar Allan Poe 73
2. Théophile Gautier 75
D::e:los reservados à 3. Walt Whitman 78
EDITOR.{ PERSPECTIVA S. A. 4. Charles Baudelaire 81
{i B:igadeiro Luís Antônio, 3025 5. Emily Dickinson 85
- :- i - Sáo Paulo - Brasil 6. Arthur Rimbaud 91
Tt-;:one: 288-8388
'.
r'- 5
Cerard Manley Hopkins 96
r Lautréamont ........ 101
: \\'i1liam Butler Yeats . . 104
Tristan Corbiêre I lC'
Stéphane Mallarmé 111
lt/
Jules Laforgue ....... i::
Ezra Pound t39

I]], POESIA BRASILEIRA


: A Poesia "Concreta" eo Momento
Poético Brasileiro 209
I Revendo Jorge de Lima 219
,1 Poesia-Erperiência 275

INTRODUÇÃO
Benedito Nunes
,.. . la critique doit accomplir son devoir avec
' passiolx; car pour être crítique on n'en est pas
moins homme. . . (Baudelaire, A quoi bon la
critique? Salon de 1896.S
-
Armado de aguda consciência critica, Mario Faus-
tino (1930-1962) de quem já se conhece a obra poética
numa edição póstuma 1 que inclui seu primeiro e
ítnico livro, O Hornem e -sua Hora leyslsu em tudo
-
quanto nos últimos anos de vida escreveu a convicÇão
de que os poetas de hoje, pelo fato de viverem numa
época de crise, têm nas mãos o destino da poesia. O
reconhecimento de uma tal responsabilidade, que dele
recebeu, numa escala ética e estética, um sentiào exis_
tencial e histórico, foi o motivo que o levou a aplicar
sua consciência crítica de poeta à crítica de poesiã, e a
militar nesse campo, com raríssimas e eÀporáãicas exce-
ções, através da página inteira do Suplemento Literário
do Jornal do Brasil, denorninada poesia-Experiência,
que ele próprio concebeu, orientou e dirigiu, durante
mais de dois anos, entre 1956 e 1958 2.
l. Poesia de Mario Faustíno. Rio, Civilização Brasileira, 1g66.
2. A Página circulou dc ZS,g.tS:.6 u l.tt.tgSA.

c 7
I

3. QUE É POESIA?
I
Que é poesia?
-* Nenhum de nós pode pretender, lucidamente,
apresentar, sobre isso, um conceito definitivo. O mais
que podemos fazer é procurar estabelecer, discutindo o
assunto por algum tempo, o que representa para nós,
a esta altura, aquilo que chamamos de "poesia". Jovens
poetas que somos, em período de formação, não deve-
mos frear nosso desenvolvimento com a construção de
conceitos e definições pretensiosamente fixos e rígidos.
Entretanto, lançada essa margem de maleabiiidade, à
qual e da quai os enganos e as omissões ocasionais
poderão aportar e zaÍpaÍ ao tempo favorável do pensa-
mento tentativo, creio poder expressar, desde já, minha

59
c:. .: -e que é necessário pôr de parte, antes de ou outro elemento dessa maneira "prosaica,'. Toda
.:--r:':.,-rs i-tLr assunto, a falácia da .,poesia,, solta, da obra literária, portanto, parece-me flutuar sempre entre
:r;: : ;*e :aira no ar, os paradoxos do qwe mú,sica tão esses dois extremos de prosa e de poesia, muitas haven-
: :..-.;'. Lrs absurdos do a noite estava muito poétíca. do que se encontram de tal maneira eqüidistantes dos
Por que dois extremos que não há como chamá-las "prosa,, ou
- Porque motivo? "poesia", daí surgindo as modalidades intermediárias
essa atitude de chamar de ..poesia,,
do Verso (em um dos sentidos ingleses da palavra
".-i - -:; não passa daquele conjunto de solióitações
verse) e dos "poemas em prosa".
.r ., 1::cárel. ao profundo, à recordação, à meditaóão,
A distinção mais comum que se faz entre prosa
:,:-: :.r encontrado em qualqUer parte, ao sabor âaS e poesia é apenas formal e quantitativa. Formai por
-.*.'.:--L,es subjetivas de cada u- porque essa atitu- referir-se apenas aos aspeÇtos por assim dizer concretos
::. ::z-a eLr. só serve para desviar, - para obscurecer e que até hoje (não se pode dizer que para sempre) têm
:::: ..tniundir princípios, meios e fins. Tal conjunto distinguido uma coisa da outra: aspecto exterior, gráfi-
;: .--l:citacôes. de motivaçôes, de .,inspiraçsss,, _ 4 co, da página de prosa e do poema, variações rítmicas,
:...:,; Lio ttundo pode ser ou não sàr, dependendo etc. E quantitativo porque todas as distinções formais
- artista, captado através da músi_
:: ::.'iilidade de cada até hoje apontadas entre a prosa e a poesia apenas têm
:". :-t :rrr-rtura, da escultura, da dança, até da arquite_ servido para mostrar que a poesia tem mais ritmo, num
i-:: LlrJe . felizmente para os arquitetos, é a arte menos certo sentido, que a prosa; que a poesia é uma lingua-
.-,..:.r a tais ingenuidades. Fixado esse ponto (em gem mais concentrada; que o metro em poesia é mais
:aji.:to: que não nos interessa, neste momento, o con_ preciso e mais fácil de identificar. . .
:;.:,-. r.uigar de "poesia" vagabunda, ave caprichosa pai_ Creio, todavia, que essas distinções formais não
:.';-. sobre o mundo, surgindo ou pousando neste ou chegam a distinguir a prosa da poesia: limitam-se, ex-
r';:ele cenário ou objeto) podemos aproximar_nos um clusivamente, a separar prosa e verso. O que principal-
::.:o ntais de um conceito de poesia (arte poética, é mente nos interessa nesta discussão é colocar em con-
c.::,.r se dissermos que se trata antes de tudô de uma traste duas linguagens, dois modos de expressão ou
:r::;ira de ser da literatura, ou seja, da arte da palavra, os dois extremos da mesma modalidade de expressão: -
r-: :rr;. de exprimir percepções através de pàlavras, a literatura, a arte verbal. Nesse nível creio que o pro-
.:_i-1r:zaudo estas em padrões lógicos, músicais e saico e o poético podem ser distinguidos com suficiãnte
't-:..t:S, nitldez, embora permaneça, creio que para sempre, a
E-çsa organizaçã,o de palavras em padrões que dificuldade de decidir, com exatidão, que esta ou áquela
;r.a _ji]-Lao nresmo tempo o pensamento e o oihar e o obra literária se encontra dentro dos limites do proiaico
.. -'. 'nentais daqueie que lê (porque a arte literária ou entre as fronteiras do poético.
:. :r ':e ern dia. mais que qualquer ouira coisa, literatura
3:rr_.-, ). essa arte apresenta dois extremos, o absoluta_ II
:-..:.. poético e o absolutamente prosaico, nem um
.-:-. orirro dos quais jamais foi atingido, dentro ou Recusas-te, então, a distinguir a prosa da
:,::-, -,.. ambrto artístico da literatura. Com'efeito, nada -
poesia?
=:! :rrrsaico do que um relatório científico; contudo,
:--,, :.i um só onde se nào possa encontrar, aqui e ali.
Não é bem isso: elas. de qualquer modo, se
-
distinguem automaticamente. pelo menos até esta altura
: - i. -. - i: rrechc. expressão ou combinação <ie palavras da evolução literária Apenas considerando que tal
:---i ..-! ilipressiona de maneira ,,poética,, _ maneira - plano formal e consi-
distinção só se torna precisa no
=... :',.i:s características é nosso propósito discutir, por derando que, ao nír'el material. essencial. encontrare-
r --r_.r-rSii ,-orn a maneira "prosaica,,. por outro lacio,
mos sempre o prosaico na poesia e o poético na prosa
i-rJ., Si iez ooesia tão "pura,, que não contjvesse um acho mais úti1 (e menos passír'el c1e certas confusões
-
67
ir:r-rr eries l procurar estabelecer a diferença qualita- porém, esse mesmo escritor, colocando-se diante do
tira =isienre entre o prosaico e o poético. objeto de sua criação, vê nascerem em sua mente pala-
Creio que tens razão. Parece-me também que vras como que inteiramente novas, insubstituíveis e
-
a::::I;ão entre prosa e poesia (palavras que sugeÍem essencialmente intraduzíveis, que não glosam o objeto
im:liatamente a "forma" da prosa e a "forma" da e sim o recriam em um piano verbal, batizando-o de
p:es:a r tem valor puramente acadêmico: as duas um modo inexplicavelmente novo, tirando-o do caos
cclsas. formaimente, o texto de prosa e o texto de em que parecia encontraÍ-se e colocando-o numa ordem
poesia. têm sido tão diferentes quanto a âgua do fogo, nova então esse esÇritor, queira ou não, está caindo
tornando-se inconfundíveis até mesmo em casos espe-
-
no poético o que, dependendo do contexto e da
ciais. como Un coup de dés jamais n'abolira le hasard
-
intenção criadora indicada pelo próprio escritor, pode
ot a Finnegans wake. O que é difícil e por isso ser bom ou mau e resultar em obras-primas ou me-
importante é, na verdade, precisar o-que distingue díocres.
- poético. Vamos a isso.
o prosaico do E se desses um exemplo?
- Tu mesmo podes lembrar centenas. Por exem-
{11ss de mais nada, é preciso abolir, neste
- as conotações pejorativas do termo "prosai-
coniexto, plo, -se Blake dissesse, ainda que no melhor verso,
Êo que deve ser para nós tão nobre, nesta discussão, qualquer coisa como "Ontem à noite, quando passeava
quento a palavra "poético". Isso estabelecido, diria eu na floresta, pareceu-me de repente ver brilharem na
que é prosaico o arranjo de palavras em padrões (cuja escuridão os olhos de uma fera" estaria sendo prosaico,
forma gráfica, e cujo ritmo, mais ou menos irregulares, e, conforme o talento empregado na escolha das pala-
não nos interessam ainda) que analisam, descrevem, vras e no arranjo das mesmas, Íaria boa ou má prosa,
ilustram, glosam, narram ou comentam o obieto: é ainda que em verso. Mas o que ele diz é: "Tigre, Tigre,
prosaico o discurso sobre o objeto (ser, coisa ou idéia). ardendo fulgurante nas florestas da noite" e isso é
E. correspondentemente, consideraria poético o arranjo - menos
poético. Se Blake tivesse usado outÍas palavras,
de palavras em padrões (cujo aspecto formal audi- bem escolhidas (em tese: as palavras dos dois versos
tivo ou visual -
repito, ainda não entra em considera- famosos são evidentemente insubstituíveis e intraduzí-
-
cão t que sintetizam, suscitam, ressuscitam, apresentam, veis Blake, sentindo a "novidade" com que naquele
criam. recriam o objeto; é poético o canto, a celebra- - renascia, por exemplo, a palavra "tigre", fez
instante
cão. a encantação, a nomeação do objeto. Compre- uso de uma grafia caprichosa, única: Tyger, com y)
endes? que o seu
Creio que sim. Mas poderias explicar-te T1-ger, Tyger, burning bright
-
meihor. Irt tlte lorests of the níght,
Quando um escritor, consciente ou inconsci-
-
entemente, esteja ele usando, no momento, padrões talvez fizesse má poesia, porém, de qualquer maneira,
formais próprios da prosa (períodos irregulares em sua seu approac,à seria poético, desde que o processo nào
forma -eráfica ou rítmica) ou padrões formais próprios fosse transformado.
da poesia tradicional (aquilo que se chama "verso"), Podemos. então. dizer que um trabalho não é
quando um escritor, tirando palavras do estoque de sua - nem pior por ser "poético" ou "prosaic6"
melhor
rnemória. procura adaptá-las ao objeto de sua criação, -
dando a essas palavras o sentido em que as vimos em-
fazendo tais palavras circularem em torno de seu pregando?
obieio. refletindo-o, comentando-o, contando-lhe a his- É óbvio. Uma frase pode ser "poética" ou
tona. analisando-o, personalizando-o, identificando-o, -
"prosaica", no sentido a que me ref iro, e pode ser
eic.. esse escritor, queira ou não queira, está entrando considerada boa ou má literarura. segundo critérios
no Fiosalco o que, é bom frisar, pode ou não resul- múltiplos de eficiência, de adequacão. etc.
-
tai em obras-primas de verso ou de prosa. Quando, E o verso?
-
t: 63
\áo nos parece importante neste momento. O
1:isLr- reln sido o padrão formal tradicional da poesia enquanto que a linguagem prosaica mais me parece
cc Ocidente (a poesia chinesa é poesia e que poesia! uma linguagem de comunicação.
3 fs7 uso de tudo, menos do "verso".- . . ) e pode Como assim?
-ser Lrom ou mau, independentemente de ser prosaico - É óbvio que não quero dizer não haja criação
ou poético. Eliot já teve ocasião de mostrar que -
no prosaico ou que não haja comunicação no poético.
I..ipirng. que quase nunca chega a ser poético, é um Sugiro, tão-somente, ser o principal objetivo dilingua-
crande t'erse-maker e, portanto, um grande poeta, gem poética a criação (ou recriação, repetindo) dJum
iá que como tal sempre- terá de ser classificado sendo objeto ou de um conjunto de coisâs, seres, idéias
sua obra poética bem mais importante para -a poesia que, sob- a forma de palavras realidades se reúnem,
que a de muitos poetas que facilmente atingem o poé- através de todas as ôonotações - possíveis, para formai
ir.ir sem, necessariamenÍe, fazerem boa poesia. por um complexo, um objeto novo: o poema enquanto
ouiro lado, ninguém vai chamar Lautréamont e St. -
que o fim capital da prosa seria o de comunióador:
Jc-ihn Perse de "prosadores" só porque suas obras se uma visão do mundo, real ou imaginária, uma visão
alrorimam, formalmente, muito mais dos padrões tra- pessoal de seres, ctrisas, idéias, simbolizados (ou assj-
oicionais da prosa que dos da poesia. nalados) por palavras que, toda.ria, não se confundem
Compreendo. Voltando, todavia, ao cerne de com os. objetos a que se referem. Na linguagem poética
nossa - discussão, creio que poderíamos resumir tuas não existe, a bem dizer, comunicação: o qué se verifica
palavras numa fórmula de fácil memorização, dizendo é a criação de um objeto por parte do poeta (ou, às
eue prosaico é o discurso e poético é. o canto. vezes, conforme já vimos, do próprio prosador ao fazer
Como queiras. Preferia, contudo, que não o uso dessa linguagem), que, em seguida, faz uma doação,
frzesse.- Tua fórmula, como todas as fórmulas, aproxi- ou uma exposição, desse objeto ao leitor ou ouvinte.
ma-se demais da frase feita, da falâcia pretensiosamente Nesse caso estaria a linguagem poética
ariomática. Por outro lado, há certas coisas natural- - das artes plásticas e da música, enquantomais
próxima que
mente diÍíceis e complicadas, sendo inútil e perigoso a linguagem prosaica seria saí generis, enquanto que
tentar simplificá-las, resumi-las ou facilitá-las. Se tudo artística?
o que dissemos até aqui já é esquemático demais. . . . É mais ou menos isso. A prosa artística está
Tu mesmo, se refletires com vagar, hás de descobrir mais -próxima da prosa científica oú filosófica do que
muiias falhas na exposição de meu pensamento, com se pensa. Em toda linguagem prosaica, mais ou menos
o qual neste instante concordas de tão boa mente. E artística isto é, com máior ôu menor conteúdo esté-
pode ser que amanhã tu, eu, nós ambos, pensemos de tico -
comenta-se o objeto e transmite-se tal comen_
modo bem diferente sobre todas essas coisas- tário-por meio do discurio, de um arranjo de palavras
já à disposição como diria Read -_ do escritor.
III -
Quem usa de linguagem poética fá-lo para conhecer o
unlverso, nomeando-o, recriando_o, e para, em seguida,
Resumir-se-á, contudo, nisso apenas a distin- doar, expor, essa criação aos outros Éom.n, como um
ção -
entre o prosaico e o poético? escultor oferece sua estátua e o músico sua música.
Estabelecemos, desde o princípio, não preten- Quem usa de linguagem prosaica conhece o universo
- esgotar um assunto que, a cada geração, até
dermos através de comentários. da utilização de palavras já
mesmo a cada ano, se vê enriquecido à luz de novas criadas e relativamente substituíveis, por isso que, no
contribuições. Desde já, entretanto, podemos indicar prosaico, não se confundem, no momento da criação,
uma outra diferença que me parece sobremodo impor- com as realidades que assinalam.
tanie e que está estreitamente relacionada a outra já Será-então por isso que a genuína linguagem
apontada. Refiro-me à impressão que me dá a lingua- - sendo comunicativa por exóelência, naã pãde
prosaica,
gem ooética de ser antes de tudo criação, ou recriação, dispensar um máximo de cláreza, de exatidão ã de
"inconfundibitidade" ao passo que a poesia sempre
r-,4 -
65
se aode dar ao luxo da ambigüidade (cujas maquina- iogia da paiavra poesia: o poiéin dos gregos, signifi-
cõe.. se-uundo Empson, constituem o próprio cerne da cando, bem perto, criação.
pL-esia r. do mistério eleusino, da fórmula mágica. . ' Não há dúvida. Urge, no entanto, recordar
Podemos avançar, até mesmo, que, a partir de - que, em essência, se não em forma, encontra-
sempre
- premissas, o poético não teria de ser compreen-
lr-.!as remos sempre o poético naquilo que convencionalmente
oiJr-r. e sim percebido
-- como um Yaso, um edifício, se chama prosa e o prosaico na poesia. Conforme
unia Gança -
ao contrário do prosaico, que perde dissemos desde o princípio, estamos tratando, ao falar-
lcdo o sentido se não é perfeitamente entendido. No mos em "poético" e "prosaico", de extremos absolutos
pr..saico o artista comenta o universo em benefício do nunca de todo atingidos: não há exemplo de obra lite-
iertor ou ouvinte. No poético, o artista organiza, rária "puramente poética" nem "puramente prosaica".
:,--:reia. reconstitui, recria o universo por meio de pala- E tampouco devemos condenar um trecho escrito em
,.:as-objetos, que doa, que oferece ao leitor ou ouvinte' prosa por ser vazado em linguagem próxima da poética,
Não concordas em que essa distinção apresen- ou rejeitar um poema, um conjunto de versos que
-
ia relações diretas Çom a própria questão da origem das podem ser ótimos, debaixo de outros critérios, somente
hn_quas? Vico, e depois Croce, não nos sugerem que a por estar composto numa linguagem mais próxima da
i:nguagem original era poética, isto é, uma primeira prosarca.
rcrneação do objeto por parte de alguém que nào
:cs.uía outro meio de conhecê-lo senão recriando-o, IV
nele. sujeito, através da palavra?
Tens toda a razáo. Por isso mesmo é que o De tudo o que temos visto, poder-se-á concluir
poetico- sempre precede, cronologicamente, o prosaico; ser a-recriação do objeto (acornpanhada de sua doação
que a linguagem dos selvagens e das crianças tanto se aos demais homens, sob a forma de palavras que com-
ápro:<ima do que ainda hoje consideramos poético; que põem uma coisa só com o objeto por elas nomeado),
o florescimento do prosaico corresponde, constante- a principal finalidade da linguagem poética; ao contrá-
mente, a épocas mais sofisticadas, mais afastadas da rio da prosaica, que serve para comunicar ao leitor ou
i:genuidade primitiva; etc., etc. Quaiquer das inúmeras ouvinte uma visão, um comentário, uma narração, uma
Ieorias sobre a origem das línguas 6nsrnsfopoética, descrição do objeto, em palavras que não se apresentam
- interjetiva, imi-
relação mística entre som e significado, identificadas, confundidas com esse mesmo objeto.
;ação oral de movimentos físicos, o protodiscurso de Donde, por outro lado, se conclui também ser o objeto
Leibniz, a comunicação automático-involuntária (Stur- o que realmente importa, tanto à linguagem poética
re\ant 1), etc., todas essas teorias (exceto, talvez, aque- quanto à prosaica.
las hoje pouco acreditadas, chamadas "da convenção"
Aristóteles, Demócrito, epicuristas opostasàque- É claro que te dás conta de estares prenun-
-ias denominadas "da necessidade inerente"- Pitágo- ciando- um truísmo: a recriação, ou o comentário, e a
ras. Platão, estóicos viriam em apoio -da tese de doação, ou a comunicação, do objeto, são funções de
\-ico: de que na poesia -) está a origem das línguas. Não qualquer forma artística. As artes plásticas, a dança,
a música, o cinema, todas naturalmente em seus aspec-
parece haver'dúvida, portanto, de que o processo de
criação das palavras processo por definição me- tos mais puros, por assim dizer, menos "anedóticos",
- extremamente, com ele se procedem como na linguagem poética: criação, ou
iaf órico aproxima-se
- do processo criador da linguagem poética.
rdentifrcando,
recriação, e doação do objeto, na forma de uma nova
realidade (sonora, p1ástico-estática ou p1ástico-dinâmi-
Não seria excessiva, a esta altura, 19se1d31 ca) que organiza e humaniza (projetando o sujeito do
-
r erdadeiro lugar-comum de argumentação -
a etimo-
- artista, carregado de toda a cuitura e de toda a história
L. -A.utor citado na obra de Mario Praz, The History of Language de um grupo social. sobre o objeto percebido, isto é,
C:1. I1. «Theories of Language Begiuning»), Filadélfia e Nova York, criado ou recriado) o objeto da criação: ser, coisa,
3. Lippincott Company, 1949, que lvlario Faustino conhecia.

o/
a "harmonia", o "pensamento profundo", a "imagina-
ção", a "emoção", a "linguagem metrificada", o "ver-
idéia. A linguagem prosaica, bem como as formas aci- so", o "conjunto de poemas", o ',poema", 9tç. çgig3g
dentalmenre discursivas, "anedóticas", Qrlo podem as- que. está claro, não têm 1á muito a ver com -a poiesis
sumlr as outras artes, procedem como já vimos: rela- dos gregos ou com a nomeação, a recriação do objeto
tarn. imitam, comentam, comunicam o objeto. em palavras coisas a que nos temos referido. A
Tudo isso nos faz relornar, bem o vejo, à muitos trechos- de U/ysses ou do Finnegans lYake, do
- da percepção do objeto por parte do poeta,
quesiáo Anabasis ou dos Chants de Maldoror, de an Coup
sc,bre a qual tanto já conversamos. O artista que se de Dés. ., a muitos ideogramas de Cummings ou de
uiihza da linguagem poética, percebe o objeto, natural- Pound, a tradição recusaria chamar de poesia: e, entre-
mente. como os outros homens: através de palavras, tanto, todos eles atendem tanto às características poéti-
pcr rreio do logos. Apenas, no processo simultâneo Ças que apontamos quanto qualquer obra em verse qve
percecção-nomeação-recriação do objeto, ele não atribui outros tempos tenham produzido. Assim 59 nf,e 1eg
uma paiavra qualquer a esse objeto, palavra que o -
quisermos curvar ao estabelecido pela evolução semân-
assrnalasse e que o artista pudesse, a seu bel-prazer, tica do vocábulo "poesia", chamaremos assim toda obra
suL,stituir por uma outra. Ao contrário, ele já "percebe" literária em que a nomeação ultrapasse em significativa
t e não apenas "reflete") o objeto nomeando-o como
proporção o relato dos objetos pouco importando
que -ne1a primeira vez e, por isso mesmo, recriando-o a profundidade, a importância, a- "beleza" desses obje-
em "uma" palavra, ou em "um" conjunto de palavras: tos, bem como pouco importando os padrões formais,
o símbolo, em seu caráter original, iomo bem o define mais ou menos rítmicos, mais ou menos regulares ado-
o Sr. Michel Debrun em seu trabalho "A Palavra poé- tados pelo autor e denominaremos "prosa" toda obra
rica" r. Com isso podemos, creio eu, dar por encerrada literária em que- o relato dos objetos ultrapasse em
nossa discussão sumária embora da distinção proporção substancial a nomeação dos mesmos: seres,
enrre a linguagem - poética e a prosaica,
- sobretudo se coisas, idéias. Creio que, à luz da boa lógica, temos
mantivermos em mente nosso ponto de partida: de que tanto direito a esse uso da palavra "poesia" quanto um
o absolutamente prosaico e o absolutamente poético Carlyle, ao dizer que "poesia é o pensamento musical",
não passam de extremos ideais, jamais concretizados, ou um Shelley, ao dizer que "poesia é o registro dos
oa hnguagem em geral (e não apenas da linguagem lite- momentos melhores e mais felizes dos espíritos melho-
rária I pois encontraremos sempre "símbolos" na prosa res e mais felizes".
e "sinais" na poesia, quer dizer, a "nomeação" do _ ot
l:
obieto em textos vazados nos padrões formais que a
tradição considera "prosa" e o "discurso" sobre o ou um Croce, ao dizer que a "poesia é o
objeio em trechos vazados nos padrões formais que a ocaso do amor na eutanásia da recordação".
a lradição considera com a denominação de "poesia". Donde se conclui, para vergonha nossa, que
\ão há prosa pura, como não existe poesia pura. - maiores poetas e pensadores não hesitaram, por
até os
De acordo. Mas com toda essa digressão não amor da "frase", em perder o respeito devido à arte
- estado apenas a evitar nossa questão primor-
ieremos que tanto amavam.
ciia1. ou seja: 'iQue é poesia?"
Como queiras. Evitamo-la porque concluímos
- nos é possível respondê-la sem cair na "litera-
qu; náo
rura" ou na literatice. Um estudo semântico da
palar-ra- "poesia", em qualquer das línguas ocidentais,
muiio nos afasta tanto de sua origem etimológica, como
do cc-rnceito filosófico que se lhe possa conferir. Porque
a iradição. o uso, tem chamado de poesia a "beleza",
I Fu:licado em Poesia-Experiência, SL/8.
69
a_'

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