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NOVA VENÉCIA-ES

Quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023 07


Roney
Marcos Pavani * ENSAIO

Na modernidade, todo ro- solutamente não inventou e seu nível está mais baixo que relatar o que fora vivido. Mais jamin 1995, 196).
mance tem sempre algo de que pediu emprestado de seu nunca, e que da noite para o do que isso, o próprio ato de Em outras palavras, o ro-
autobiográfico. Escrever so- meio. dia não somente a imagem do transmitir em palavras algo mance pode ser entendido
bre os outros é escrever sobre O texto literário, assim, di- mundo exterior mas também que, até então, estava acoplado em termos de um mundo em
si mesmo. Ao elaborar uma reta ou indiretamente, está car- a do mundo ético sofreram no corpo e na mente, minora- rupturas. Rompe-se a relação
trama, ou melhor, um univer- regado de marcas que revelam transformações que antes não va-o, reduzia a sua importân- da narração com o corpo (e,
so ficcional, o autor necessa- a vida de seu autor: onde nas- julgaríamos possíveis. Com cia e o seu impacto. Nas pa- consequentemente, do narra-
riamente perscruta sua mente ceu, quem foram seus amigos, a guerra mundial tornou-se lavras de Beatriz Sarlo (2007, dor com a sua audiência), e
em busca de referências para por quais dramas e angústias manifesto um processo que 35): “porque comunicado, é do passado com o presente.
a composição do enredo, das passou, em quais contextos continua até hoje. No final da uma versão incompleta”. Tudo Não se pode representar tudo
personagens, do espaço, do esteve inserido. Não de for- guerra, observou-se que os o que acontecera ali era sim- o que a experiência foi para o
tempo e dos pontos de vista ma simples e categórica como combatentes voltavam mu- plesmente inacreditável. sujeito. O vínculo entre o texto
presentes na narrativa. Tais uma fotografia da realidade, já dos do campo de batalha não É a mesma autora quem literário e a realidade é feito às
referências, por sua vez, estão que, por óbvio, nenhuma pes- mais ricos, e sim mais pobres adverte que nos tempos mo- apalpadelas.
ligadas a suas próprias visões soa sozinha consegue abarcá- em experiência comunicável. dernos é difícil encontrar um A literatura, em suma, car-
de mundo e a seus valores, -la totalmente. Mas como uma E o que se difundiu dez anos narrador, pois, como vimos rega um vínculo com o real,
os quais são forjados a partir sua pintura, em que, a partir depois, na enxurrada de livros acima, tornou-se muito difícil mas não é a sua cópia (Pes-
de lembranças, traumas e de- da criatividade e da indus- sobre a guerra, nada tinha em intercambiar experiências. As soa, 2013). Ela possui auto-
mais experiências pessoais. triosidade de cada um, certos comum com uma experiência demais catástrofes do século nomia de significado, sem,
Portanto, em um texto literá- elementos são enfatizados e transmitida de boca em boca. XX (o Holocausto, os Gulags, contudo, desligar-se do real
rio, conhecer o lugar de onde outros rejeitados. Mesmo por- Não havia nada de anormal as guerras de limpeza étnica e atuar sobre ele. Por isso, a
se constroem os enunciados, que, via de regra, um roman- nisso. Porque nunca houve ex- e os terrorismos patrocinados obra literária se relaciona tão
quem os constrói e para quem cista é uma pessoa extraída periências mais radicalmente pelo Estado) só reforçarão intimamente com as questões
são construídos é necessário à das camadas médias de uma desmoralizadas que a experi- esse problema. existenciais do ser humano.
produção de sentidos. sociedade, e seu olhar para o ência estratégica pela guerra Entre suas funções, a nar- Enquanto arte, ela propor-
Antonio Cândido define a real está filtrado por essa con- de trincheiras, a experiência rativa oral possuía uma di- ciona ao leitor reconhecer os
obra literária como uma pro- dição socioeconômica. econômica pela inflação, a ex- mensão utilitária – o saber dar sentidos dos fenômenos e per-
dução cultural de dimensões Dito de outra maneira, as periência do corpo pela guer- conselhos. E essa sabedoria, ceber como tais fenômenos es-
coletivas por atuar estetica- obras literárias de um modo ra de material e a experiência incapaz de ser transmitida, tão conectados a contradições
mente na representação de um geral, e os romances, em par- ética pelos governantes. Uma está a definhar. Em seu lugar, sociais e históricas.
povo, uma nação ou uma co- ticular, do ponto de vista do geração que ainda fora à es- emerge o romance (que já Em suma, estamos diante
munidade. Dessa forma, com- historiador, não são textos me- cola num bonde puxado por existia, é verdade), atrelado de três premissas: 1) a obra li-
preende-se a literatura como ramente informativos, como cavalos se encontrou ao ar ao livro-objeto, à imprensa, ao terária (e o romance, por exce-
um instrumento que desvela jornais. Não falam de uma livre numa paisagem em que indivíduo isolado e ao leitor lência) é um produto feito por
os aspectos mais íntimos de suposta conjuntura. Enquanto nada permanecera inalterado, solitário. Esse indivíduo não e sobre um autor; 2) não se
uma sociedade, sendo impos- fontes a serem analisadas, o exceto as nuvens, e debaixo quer (e, se quisesse, não con- trata de um artefato puramente
sível dissociar-se dela. seu papel é muito mais com- delas, num campo de forças de seguiria) aconselhar e, muito individual, feito no vazio, mas
Experiências individuais plexo, obscuro. Um ladino se torrentes e explosões, o frágil menos, ser aconselhado por que é atravessado por diversos
e dimensões coletivas não se ocultando nas sombras, não e minúsculo corpo humano” alguém. Seu tempo é curto, contextos; 3) sua relação com
configuram como elementos um cavaleiro trajando uma ar- (Benjamin 1995, 182-183). imediato. Não há lugar para a realidade é difusa, e não di-
contraditórios, uma vez que, madura reluzente. Sabemos que o argumen- “moral da história”: “Com reta e objetiva. É a partir de-
desde os aportes clássicos so- Essa relação indireta do to de Benjamin não pode ser efeito, ‘o sentido da vida’ é las que buscaremos, em nos-
bre a memória, é sabido que texto com a realidade ficou tomado como uma regra, uma o centro em torno do qual se so trabalho, investigar a obra
“não podemos pensar nada, mais evidente a partir dos anos vez que houve quem voltasse movimenta o romance. Mas ficcional de J. R. R. Tolkien,
não podemos pensar em nós iniciais do século XX, sobre- da Primeira Guerra orgulhoso essa questão não é outra coisa desde seus primeiros escritos
mesmos, senão pelos outros e tudo após o fim da Primeira dos cadáveres que havia em- que a expressão da perplexida- na forma de poemas e contos
para os outros, e sob a condi- Guerra Mundial (1914-1918) pilhado. Ou ainda, que visse de do leitor quando mergulha (1917), até a conclusão de sua
ção desse acordo substancial e de toda a catástrofe que ela em um conflito de proporções na descrição dessa vida. Num obra maior: The Lord of the
que, através do coletivo, per- significou. É possível, por gigantescas não um mal em si caso, ‘o sentido da vida’, e no Rings (1949), em forma de ro-
segue o universal e distingue exemplo, traçarmos um pa- mesmo, mas a certeza de que a outro, ‘a moral da história’ — mance. Buscamos, igualmen-
(…) o sonho da realidade, a ralelo entre essa questão e os solução para os problemas do essas duas palavras de ordem te, fornecer uma contribuição
loucura individual da razão estudos de Walter Benjamin mundo não estava na política e distinguem entre si o romance para o diálogo entre a Histó-
comum” (Halbwachs 1990, sobre narração e experiência. na diplomacia, e sim na agres- e a narrativa, permitindo-nos ria do século XX e a literatura
15-16). Segundo o filósofo alemão, a são e na vitória do mais forte. compreender o estatuto histó- fantástica, gênero que o mes-
É o mesmo Maurice Hal- experiência transmissível fi- Não por acaso, os principais rico completamente diferente mo autor ajudou a criar.
bwachs quem diz que, se su- cou em choque a partir daque- líderes do nazifascismo esti- de uma e outra forma. (…)
postamente o sujeito participa le conflito. Das trincheiras e veram envolvidos diretamente Com efeito, numa narrativa a * O autor é mestre e
de dois tipos de memória (uma dos fronts da guerra os homens nos campos de batalha e, se- pergunta — e o que aconteceu doutorando em História pela
coletiva e outra individual), a voltaram emudecidos: “Uma gundo eles próprios, o único depois? — é plenamente jus- UFES, professor do IFES de
memória dita individual não das causas desse fenômeno mal da guerra era não tê-la tificada. O romance, ao con- Nova Venécia e colaborador
está isolada ou fechada. Isso é óbvia: as ações da experi- vencido. trário, não pode dar um único do Jornal Correio9
porque o seu funcionamento ência estão em baixa, e tudo Seja como for, para muitos passo além daquele limite em
não é possível sem instrumen- indica que continuarão caindo ex-combatentes, entre explo- que, escrevendo na parte infe- OS TEXTOS ASSINADOS
tos, isto é, palavras e ideias, até que seu valor desapareça sões de granadas e rajadas de rior da página a palavra fim, NÃO REFLETEM,
que o indivíduo – e o escritor de todo. Basta olharmos um metralhadoras automáticas, convida o leitor a refletir sobre NECESSARIAMENTE, A
de ficção não é exceção – ab- jornal para percebermos que simplesmente não era possível o sentido de uma vida” (Ben- OPINIÃO DO CORREIO9

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