04 NOVA VENÉCIA-ES
Sexta-feira, 11 de fevereiro de 2022
Roney
Marcos Pavani *
H
á cerca de quinze
dias faleceu Ola-
vo de Carvalho
(1947-2022). Boa
parte das pessoas, sobretudo em
tempos de YouTube e WhatsA-
pp, já ouviu falar a seu respeito.
As adjetivações sobre a figura
são múltiplas e, como não pode-
ria deixar de ser, contraditórias:
filósofo, pensador, ensaísta, pro-
fessor; e, ao mesmo tempo, as-
trólogo, charlatão, boboca, guru.
Seja qual for a postura do leitor
ou expectador, um fato é inegá-
vel: considerando-se a história
recente do país, das Jornadas de
2013 à ascensão de Bolsonaro,
nenhum indivíduo foi tão ampla-
mente responsável pelos rumos
tomados na política brasileira,
nem esteve tão diretamente li-
gado ao governo que se instalou
após as últimas eleições, a pon-
to de indicar ministros em áreas
estratégicas (por exemplo, Edu-
cação e Relações Exteriores).
Muito do debate público con-
temporâneo nesse país ainda gira
em torno de suas ideias. Dito de
maneira simples, foi ele quem
pariu a nova direita brasileira.
E digo mais: nenhum indi-
víduo conseguiu angariar tantos
seguidores (ou melhor, lacaios)
em tão pouco tempo, nem mer-
gulhar o país em um caos cogni-
tivo tão profundo, inimaginável
há alguns anos. Pressupostos
básicos e consensuais do conhe-
cimento científico foram, de ma-
neira sistemática, postos por ele
em xeque: o formato esférico do
planeta, o heliocentrismo e a fí-
sica clássica de um modo geral;
ou, pasmem, o fato de que fumar
cigarros faz mal à saúde, e, pelo
contrário, que vacinas fazem
bem. Ou que ações humanas no
campo ambiental têm produzido
uma série de consequências de-
vastadoras, contribuindo para o
aquecimento global. Ou ainda,
que o fascismo e o nazismo são
exemplos de ideologias de extre-
ma-direita; que o comunismo –
enquanto projeto de utopia igua-
litária – deixou de existir durante
a Guerra Fria (1945-1989); que o
Regime Militar Brasileiro (1964-
1985) foi uma ditadura. Por fim,
e em tempos mais recentes, que
a pandemia da Covid-19 é tão
real quanto mortífera, que só no
Brasil já ceifou cerca de 635.000
vidas humanas.
Por meio de uma linguagem
verborrágica, chula e insultuosa,
com o uso e abuso das redes so-
ciais, tudo isso passou a ser co-
tidianamente (e hipnoticamente)
questionável, por mais óbvio que
fosse. Ninguém tem mais certe-
za de nada. Ato contínuo: muitos
se puseram a mimetizar o estilo
agressivo de Olavo em busca de
curtidas e monetarizações. Em
linhas gerais, o homem revirou
o Brasil de ponta-cabeça. Foi um
encantador de serpentes. Um fei-
ticeiro.
Nesse sentido, não me cau-
sou espanto o texto “Olavo não
morreu”, publicado nesse mes-
mo Correio9. O tom, do começo
ao fim, é de louvação ao perso-
nagem-título. Por primeiro, diz
respeito à contribuição de Car-
valho à docência. Segundo o seu
autor, “nas últimas décadas nin-
guém no Brasil exerceu essa lou-
vável profissão [a de professor]
com tanta maestria e sabedoria
quanto o professor [sic] Ola-
vo de Carvalho.” Suponho que,
para uma afirmação de tamanha
ambição e amplitude, o autor do
texto tenha conhecimento acerca
do trabalho de todos os docentes
de todas as disciplinas de todas
as instituições brasileiras (inclu-
sive os já aposentados), em seus
níveis básico e superior. É admi-
rável, confesso. Mas isso não im-
porta tanto. Megalomania e Ola-
vo de Carvalho costumam andar
de mãos dadas. Observe o leitor:
Olavo recebe esse diagnóstico
mesmo sem ter tido qualquer
tipo de formação universitária,
sem que seus escritos tenham
sido confrontados por especialis-
tas, sem ter qualquer relevância
nos debates acadêmicos (con-
temporâneos ou não), sem ter
lido os filósofos clássicos no ori-
ginal, sem que seja sequer citado
nos programas de disciplinas dos
cursos superiores. Enfim, sem
ter contribuído de maneira efeti-
va para a construção do conhe-
cimento. Nada. Absolutamente
nada. E, ainda assim, “ninguém
exerceu a docência como ele”.
Seria impossível que isso fosse
levado a cabo, se não por meio
de poderes sobrenaturais. Tau-
matúrgicos, eu diria.
A coisa é maior do que se
imagina, pois além de profes-
sor, temos um missionário. De
acordo com o mesmo panegírico
citado anteriormente: “Há mais
de trinta anos Olavo de Carvalho
vem [não seria vinha? Pelo visto
o título não era só uma metáfo-
ra...] semeando as bases do con-
servadorismo no país e alertando
sobre o quão nefasto é o comu-
nismo”.
Pausa para um depoimento
pessoal: em minha Dissertação
de Mestrado, defendida no Pro-
grama de Pós-Graduação em
História da UFES, analisei as
ideias de um importante pensa-
dor conservador e católico – o
espanhol Juan Donoso Cortés
OPINIÃO
(1809-1853). Durante os dois
anos e meio daquele curso, fui
exposto a uma série de autores
que estudaram profundamente
essa importante ideologia políti-
ca moderna – o conservadorismo
– Norberto Bobbio, Andrew Vin-
cent, Peter Viereck, Russel Kirk,
Albert Hirschmann, Roberto Ro-
mano, dentre outros. Pensadores
diferentes, que seguiam linhas
teórico-metodológicas diferen-
tes. Cada qual, porém, com a sua
contribuição de uma vida inteira
sobre o assunto. Seja como for,
em minhas buscas por artigos
de periódicos, verbetes de enci-
clopédias, capítulos de obras ou
livros inteiros, nenhuma pala-
vra de Olavo. Nenhuma palavra
sobre o “semeador” Olavo. Por
que será? Talvez por que, como
ele mesmo dizia ad nauseam,
tratem-se de autores “comunis-
tas”, frutos de universidades
“doutrinadoras” e formadoras de
“analfabetos funcionais”, como
eu mesmo. Todos, direta ou in-
diretamente “a serviço do movi-
mento globalista internacional”.
Então, se esse tipo de conhe-
cimento não é confiável, e sim
nefasto, o que fazer? Simples:
ouvir os ensinamentos esotéricos
de Olavo: Caminho, Verdade e
Vida, o que mais? Aí estão “seus
cursos, suas análises, colabora-
ções em jornal, ‘podcasts’ e so-
bretudo sua dedicação ao estudo
[que] forjaram uma sólida gera-
ção no país, que vai ecoar seus
ensinamentos por anos, décadas
e séculos”. Amém.
Afinal, volto a dizer, é preci-
so ser dotado de poderes mági-
cos (ou divinos) para conseguir
decodificar um conceito extre-
mamente complexo, como o de
comunismo (que pode ser enten-
dido como ideologia, movimen-
to, partido político ou regime
de governo) em uma só palavra:
MAL. Ele proclamou, em uma
linguagem acessível, sem neces-
sidade de debate ou discussão
(basta ouvir o que ele diz, ué!),
o que todos precisavam saber:
há uma hegemonia cultural no
Brasil! Jornais, editoras, canais
de televisão, meios artísticos e,
obviamente, escolas e univer-
sidades. Tudo está sob controle
dos pérfidos esquerdistas, verda-
deiros parasitas e algozes da Ci-
vilização Judaico-Cristã Ociden-
tal. Inimigos que precisam ser
localizados e destruídos (inclusi-
ve fisicamente) a qualquer custo.
O perigo é supremo, e supremos
também devem ser os meios
para enfrentá-lo. Daí a retórica
olavista, cimentada no ódio ou,
segundo seus fiéis discípulos,
na “coragem” e na “convicção”
inabaláveis de seu mentor. Sim,
o homem fez da sua vida uma
missão sagrada, equiparável a de
um cruzado medieval.
Ora, que a linha editorial dos
principais jornais do Brasil (Fo-
lha, Estadão, Gazeta do Povo…)
não sejam propriamente “de es-
querda”; ou que vários dos prin-
cipais grupos de comunicação
do país (Record, SBT, Rede TV,
Jovem Pan) apoiem o atual go-
verno; ou que o chamado Serta-
nejo Universitário – o estilo de
música mais divulgado no país
atualmente – não tenha absolu-
tamente nada de progressista; ou
que os cursos universitários mais
tradicionais (Direito, Medicina,
Engenharia) estejam ideologica-
mente alinhados à direita conser-
vadora, isso não importa. A es-
querda é hegemônica. Aceita que
dói menos. Olavo vê o que você
não vê. Trata-se de um mago, um
vidente.
Hegemonia essa que rompe
as fronteiras nacionais e se ex-
pande pela América Latina e Ca-
ribe: aí está o famigerado e fan-
tasmagórico Foro de São Paulo,
que não me deixa mentir (ao me-
nos, não sozinho). Que haja, no
continente, diversidades de go-
vernos e ideologias, da esquerda
à direita, isso também não faz
muita diferença. O comunismo
está em todo o lugar. No mundo
inteiro: dos EUA (menos com
Trump), passando pela França
(de Macron) e Alemanha (de
Merkel e Scholz), até a Rússia e
a China (as duas Bestas do Apo-
calipse). Instalou-se, veja só, na
alta cúpula da Igreja Católica.
Afinal, quem não percebe que o
papa Francisco é comunista? É
latino, recebeu o Lula uma vez,
não vocifera contra homosse-
xuais… Pensa que me engana?
E ninguém melhor do que “o
católico devoto Olavo de Car-
valho”, para denunciá-lo. Um
paladino da verdade, “de mente
privilegiada”, como ele foi, não
precisava de intermediários ou
de lideranças. Era como Jesus
Cristo a expulsar os vendilhões
do Templo. Implacável. Sacer-
dote, profeta e rei.
Para além de tudo, Olavo era
detentor de um artefato raro: a
Pedra Filosofal. Transformou
o achismo em teoria, e o senso
comum em axioma. Rasgou a di-
tadura da edução formal e decre-
tou que a verdade estava acessí-
vel facilmente. Através dele e de
seu sistema de crenças, mesmo o
sujeito mais ignorante sentiu-se
autorizado a emitir conclusões
sobre absolutamente qualquer
assunto. De História do Brasil à
Literatura Russa. De geopolítica
internacional à neurociência. De
teologia dogmática a jogos de
computador. Para fazer alusão
ao Cântico da Virgem Maria:
“derrubou do trono os podero-
sos e elevou os humildes”, isto é,
aqueles que faziam seus cursos
ou compravam seus livros. Ou
simplesmente os que curtiam e
compartilhavam seus inúmeros
vídeos. Bendita era digital.
Por fim, de todos os caminhos
da feitiçaria, certamente o predi-
leta de Olavo era a necroman-
cia – a adivinhação por meio da
evocação dos mortos. Ele não só
ressuscitou ideias mortas, como
reanimou cadáveres (Alexandre
Garcia, Augusto Nunes, Leda
Nagle), e construiu um exérci-
to de zumbis (Caio Coppolla,
Nando Moura, Bernardo Kuster,
Allan dos Santos, Paulo Kogos,
Sílvio Grimaldo, Mário Frias,
etc.) para que cultivassem seu le-
gado. Afinal, era imperativo que
uma missão tão valorosa se per-
petuasse, não? Isso sem falar, é
claro, naqueles que, movidos por
uma incrível força ilusória, se-
guirão ecoando que “Olavo não
morreu”.
Com relação à sua morte, um
parêntese. A família de Carva-
lho lançou uma nota em redes
sociais sobre ela, ocorrida oito
dias após ter sido diagnosticado
com COVID-19. Olavo estava
internado num hospital em Ri-
chmond, na Virgínia. Embora a
causa mortis não tenha sido di-
vulgada junto da nota, sua filha
Heloísa afirmou que ela se deveu
ao coronavírus. Por outro lado,
Ahmed Youssif El Tassa, médi-
co dele, disse que o motivo do
falecimento teria sido uma “in-
suficiência respiratória aguda”
associada a pneumonia bacte-
riana. Olavo de Carvalho, além
de tabagista inveterado, negava
a existência da pandemia, che-
gando a afirmar, em 2020, que
o coronavírus era “a mais vasta
manipulação de opinião pública
que já aconteceu na história hu-
mana”. O escritor também era
crítico da vacinação, da proteção
pessoal com a utilização de más-
caras e do lockdown.
Pois é. Como diz o ditado,
por vezes, o feitiço se volta con-
tra o feiticeiro.
* O autor é mestre em História
pela UFES, professor do IFES
de Nova Venécia e colaborador
do Jornal Correio9
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OS TEXTOS ASSINADOS
NÃO REFLETEM,
NECESSARIAMENTE, A
OPINIÃO DO CORREIO9