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DOI: https://doi.org/10.26512/rfmc.v9i3.

43039

As Razões do Negacionismo: Guerra Civil e Imaginário Político


Moderno
[The Reasons of Negationism: Civil War and the Modern Political Imagination]

Pedro Rocha de Oliveira∗

Resumo: O texto procura empreender uma análise do negacionismo. Por um lado, su-
gerimos tratar-se de um fenômeno ideológico caracterizável em termos de uma crítica
da modernidade empreendida por formuladores que não participam intelectualmente
dos pressupostos modernos. Por outro lado, construímos a imagem de um negacionismo
objetivo, o qual consistiria no desenrolar histórico dos limites intrínsecos do processo
de socialização moderno. Para caracterizar esses limites, sugerimos uma apreensão da
história da modernidade focada no caráter de classe de instituições costumeiramente
convocadas por sua apologética – a sociedade civil, a ciência, o Estado. Caracterizamos
como progressista o pensamento ocupado dessa apologética que, no entanto, procura ou
criticar intelectualmente, ou relevar, aquele caráter de classe, o qual se torna, não obstante,
historicamente evidente para as pessoas comuns, consistentemente por ele vitimadas.
Nesse sentido, o processo social moderno é caracterizado como guerra civil, da qual, bem
compreendido, o pensamento moderno deve ser tomado como a enunciação.
Palavras-chave: Negacionismo. Progressismo. Modernidade. Guerra Civil.

Abstract: The text delivers a twofold analysis of negationism. On the one hand, it is taken
as an ideological phenomenon characterized by a critique of modernity construed from the
outside of its customary assumptions. On the other hand, an objective sort of negationism
is found in the historical unfolding of the intrinsic limitations of modern socialization.
These are brought forward by attention to the class content of the class character of the
institutions regularly evoked by the apologetics of modernity – civil society, science, the
State. Progressivism, we suggest, the main target of negationism, is the tradition occupied
with that apologetics, either promoting an intellectual critique of, or simply overlooking,
the afore-mentioned class character, which, however, becomes historically undeniable to
the common people, consistently victimized by it throughout modern history. In this sense,
the modern social process is characterized as civil war.
Keywords: Negationism. Progressivism. Modernity. Civil War.

∗ Professor Associado do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro – UNIRIO. Doutor
em Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-RJ. E-mail: oliveira.rocha.pedro@gmail.com. ORCID:
https://orcid.org/0000-0002-8199-8671.

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PEDRO ROCHA DE OLIVEIRA

Nossos ídolos ainda são os mesmos


Belchior

O discurso filosófico da modernidade deputado federal pelo PSOL-RJ, con-


denando o engajamento do então pre-
feito carioca Marcelo Crivella contra
A coisa está muito feia – pelo me-
religiões de matriz africana, criticava
nos para “nós”. Múltiplas crises nos
“o radicalismo medieval que seu par-
acossam: mudanças climáticas, ten-
tido defende até hoje” (CATRACA LI-
sões econômicas permanentes, desi-
VRE, 2016). Essas detrações do pre-
gualdade social brutal, encarceramento
sente com comparações pré-modernas
em massa, esfacelamento das institui-
extrapolam as fronteiras nacionais: os
ções democráticas e do Estado laico etc.
progressistas gringos também as em-
Enquanto isso, do outro lado, tem gente
pregam, e é assim que, em 2018, em
dizendo que não se passa nada, ou fes-
um periódico estadunidense “liberal”,
tejando: defende-se abertamente a di-
uma advogada denunciava que os ata-
tadura, a administração neoliberal e a
ques à imigração da administração de
tutela estatal dos costumes sexuais e re-
Donald Trump “nos arrastam de volta
produtivos, propagandeia-se a violên-
para a Idade das Trevas” (DEMORACY
cia policial e faz-se uma chacota con-
NOW, 2018). No mesmo ano, a mí-
tínua da ciência que recomenda medi-
dia corporativa britânica denunciava a
das antipandêmicas ou decifra sinais
inacessibilidade à cannabis medicinal
da catástrofe ecológica. A polariza-
como sinal de que “as leis de drogas da
ção entre os dois campos tornou-se um
Grã Bretanha estão na idade das trevas”
fenômeno indelével do discurso polí-
(JENKINS, 2018). Por fim, nossa classe
tico brasileiro. Por tradição e mania, o
política – muito antenada, na melhor
primeiro campo – o nosso, que se pensa
tradição do Deputado Cubas – também
progressista – vem falando do segundo
adotou a retórica iluminista: em março
em termos do retorno de um passado
de 2021, o presidente do Senado, Ro-
sombrio.
drigo Pacheco, do DEM, fez uso público
Em 2015, por exemplo, num artigo
da Razão para referir-se à negligência
sobre o execrável movimento parla-
calculada do governo federal diante da
mentar de redução da maioridade pe-
pandemia como atitude “negacionista”,
nal, o filósofo e colunista Vladimir Sa-
“brincadeira de mau gosto macabra e
fatle denunciava o “projeto de reme-
medieval” (TRUFFI, LIMA, 2021).
ter o Brasil à Idade Média” [SAFATLE,
Entre nós, está claro que o mote desse
2015]. Em 2016, Jean Wyllys, na época

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jargão odiador do passado não é real- tenha fixado nossa referência anacrô-
mente nada novo. Remonta ao imagi- nica no medievo. Não fomos nós, obvi-
nário do subdesenvolvimento, à ideia amente, que concebemos originalmente
de um Brasil que ficou para trás den- a ideia de um passado sombrio – e
tro de um processo civilizatório geral: tampouco foram os famosos iluminis-
os debates sobre o dualismo brasileiro, tas franceses do século XVIII. A “Idade
o caráter feudal de nossa colonialidade das Trevas” foi inventada pelo toscano
etc. A mania de Idade Média dos pole- Petrarca (1304-1374), poeta, latinista,
mistas de hoje tem a ver com a consci- epistoleiro, jurista a contragosto, au-
ência do atraso de nossos antepassados tor de literatura de autoajuda, expoente
(cf. CANDIDO, 1973): desde os abolici- originário da renascença italiana. Esse
onistas esperançosos em educar as clas- primeiro movimento de odiadores do
ses proprietárias retrógradas e dos co- passado emitia um chamado a transfor-
munistas procurando entender em que mar o seu mundo mediante uma con-
estágio nos encontrávamos no caminho cepção utilitária de conhecimento. Ar-
ao socialismo, até os seus alunos, e os gumentavam pela refundação das ins-
alunos de seus alunos, que somos nós. tituições de ensino, para que fosse se-
Se, depois de tudo, os tempos tenebro- pultada a preocupação escolástica com
sos se avizinham sempre que o horror o formalismo linguístico disputatório e
social se manifesta, é porque seguimos as sutilezas metafísicas. Os estudos ti-
andando na direção contrária à da his- nham de servir para o melhoramento
tória que, nessa versão dos fatos, sem- moral dos homens e, à medida que
pre tem – ou deveria ter – algo de um a modernidade se aprofundou, aquilo
“carro alegre” (BUARQUE, MILANÉS, que hoje chamamos de ciência entrou,
1978). É que não se trata de qualquer também, no menu. Tendo arregimen-
história: o Estado de direito que aqui tado a cultura dos antigos romanos para
capenga e a justiça social que nos falta, sua tarefa reformadora, os humanistas
a laicidade dos representantes e a tec- conceberam que o período histórico te-
nicidade das instituições, são suposta- nebroso contra os quais erguiam-se di-
mente características da sociedade mo- zia respeito ao eclipse que o gênio clás-
derna; o que amargamos é um déficit de sico havia sofrido durante uma época
modernidade. “média” entre a antiguidade e a sua.
Notavelmente, os originadores do
movimento renascentista, além de bons
cristãos, eram também membros de
O inventor de toda a escuridão uma classe urbana do Norte italiano
que vinham aguçando suas faculdades
É notável que a releitura do discurso de leitura imanente nos compêndios ju-
do subdesenvolvimento hoje corrente

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rídicos latinos (cf. SKINNER, 2002). damentando esse baluarte da moderni-


Vale a pena entender o contexto desse dade política, a chamada Ordem Legal.
exercício intelectual. Devido a suces- Não é qualquer coisa!
sões e multiplicações dinásticas que da- A equipagem dessa classe humanista
tavam do período Carolíngio, as cida- politizada era completada, ademais,
des do Norte italiano encontravam-se com o conhecimento da história – dos
imersas em uma luta política secular romanos, é claro. Era preciso estudar
que envolvia as elites citadinas, a mo- a grandeza exemplar dos homens en-
narquia alemã, os bispos que a repre- volvidos na construção daquela organi-
sentavam localmente, e o Papa que os zação civil estável e funcional. Quanto
odiava. Um dos fronts dessa luta con- aos tolos e os covardes que não ficaram
sistia em debates em torno das prer- à sua altura, eles também precisavam
rogativas e dos limites de cada uma ser conhecidos, para que seu fracasso
dessas autoridades, conforme estabe- não se repetisse. Por meio da análise de
lecido nos tempos cristãos do Império eventos momentosos ocorridos outrora
Romano – do qual o Germânico ale- – cercos, batalhas, intrigas – e do cará-
gava ser sucedâneo – e fixado no Có- ter daqueles neles envolvidos, era pos-
digo de Justiniano, uma coletânea da- sível estabelecer a melhor maneira de
tada do século VI. Ora, a compreensão proceder no presente. Desenvolvia-se,
do “codex” dependia da exegese da lei assim, uma preocupação com a causali-
romana antiga; nos interstícios dessa dade entre os fatos e os caracteres, de-
exegese apareciam dificuldades inter- batida nos manuais principescos e nos
pretativas; dessas dificuldades podiam estudos biográficos.
surgir oportunidades políticas, as quais
apenas latinistas exímios seriam capa-
zes de encontrar, contestar ou defender,
dependendo do caso em questão e dos Um país dividido
interesses em jogo. É do setor social
desses “Glosadores” que surgirá a gente A invenção das trevas e o avanço ci-
afeita à cultura romana: metidos nas bi- vilizacional rumo ao passado clássico,
bliotecas obscuras, ressuscitarão os ma- pulando por cima do medievo, tinha a
nuais jurídicos e os manuscritos raros, e ver, portanto, com um interesse polí-
cuidarão de reestabelecer os textos dos tico bem específico. Tanto na medida
filósofos. No fim das contas, através da que mantinham os narizes metidos nos
sua inteligência, o equipamento do di- compêndios jurídicos – coisa que o pai
reito romano foi ressuscitado, e os códi- de Petrarca queria que o garoto hou-
gos públicos e privados sofrerão uma vesse feito –, quanto na medida em que
reconfiguração até hoje vigente, fun- se dedicavam à poesia entusiasmadora
e produtora de virtude clássico-cristã –

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como Petrarca acabou fazendo –, o que soas, e prolongando-se por dias a fio.
os humanistas miravam era o problema Com as cidades internamente dividi-
do governo: a capacidade de alcançar o das, soluções desfavoráveis numa corte
poder, exercê-lo bem, e manter-se nele. civil sempre podiam ser reapresenta-
Tratava-se, por um lado, de um projeto das à atenção de outros juízes apadri-
de classe das elites citadinas neoletra- nhados, cujas jurisdições também era
das; por outro, entretanto, essa classe resolvidas politicamente – ou seja, por
também brigava consigo mesma: es- meio da negociação, das influências, e
tavam em jogo as ambições individu- da força bruta. Finalmente, para obter
ais de famílias aristocráticas e propri- ganho privado, as famílias não hesita-
etárias que, dentro de cada uma das vam em aliar-se com players de outras
cidades autônomas, disputavam umas cidades e de outras classes, inclusive
com as outras. Na ausência de uma o papado, o próprio Imperador, outras
modernidade plena, essa disputa tinha monarquias europeias etc., o que trazia
apenas um tênue enquadramento ins- a guerra civil para o plano interurbano
titucional: era realizada nas cortes, nos e internacional.
conselhos, mas também debaixo de por- Se olharmos sem preconceito,
rete e na ponta do punhal. As estirpes tratava-se de uma época muito ani-
esmeravam-se na construção – e na de- mada, politicamente falando. A frou-
coração, com excelente gosto – de forta- xidão institucional tornava a política
lezas urbanas, onde séquitos formados quotidiana realmente decisiva desde
por capangas, primos distantes, capa- um ponto de vista histórico; e a pró-
chos, filhos bastardos, rufiões e solda- pria história não se contava em épocas,
dos profissionais defendiam os Albizzi mas em curtos períodos de ascendên-
dos Medici, os Medici dos Alberti, os cia e decadência desse ou daquele su-
Alberti dos Albizzi etc. Em torno desses jeito, sempre com seus capachos e de-
séquitos, mediante redes de influência e pendentes na boleia. Ademais, a parti-
favorecimento, formavam-se subcomu- cipação das pessoas comuns nas nego-
nidades dentro das cidades, cimentadas ciações à base de bofete era essencial,
pela lealdade que vem da dependência. e essa participação só era alcançada
Disputas políticas nos conselhos citadi- mediante favorecimento, o que signi-
nos – questões de prestação de contas, ficava haver entre as elites e as massas
competições para uso dos fundos cívi- um jogo de interesses que tinha que ser
cos, preferências na distribuição de car- diariamente resolvido. Quer dizer: a
gos, prerrogativas comerciais ou acesso violência política constante e difusa –
à terra – eram frequentemente resol- coisa que, por princípio, dá arrepios na
vidos no braço, em confrontos abertos classe letrada de ontem e de hoje, tendo,
nas ruas, envolvendo centenas de pes- há pouco tempo, trazido uma luminar

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franco-ultramarina para discursar para zoavelmente estável governo do Grande


a polícia fluminense – era, portanto, um Conselho, com seu Senado aristocrá-
traço indelével e onipresente da soci- tico, seus subconselhos e a presidên-
edade medieval. Sinal de seu caráter cia do Doge. Era, enfim, uma forma
primitivo, alguém dirá: mas antes, di- de política devidamente organizada –
remos nós, do equilíbrio de forças en- porque distribuída de comum acordo
tre os setores sociais e agentes econô- pelos magnatas entre si mesmos. Ne-
micos que, na ausência de uma instân- nhuma pena respeitável podia deixar
cia qualquer capaz de submeter todas de ocupar-se por alguns instantes da
as demais – um exército nacional, uma questão de tentar desvendar a natureza
força policial –, podiam levar às últimas da “constituição” veneziana – leia-se,
consequências a defesa de seus interes- não seu conjunto de leis, mas a genial
ses (cf. OLIVEIRA, 2018, pp. 176ss). configuração institucional que a permi-
De fato, quando a geração de Petrarca tiu ser a exceção da política de facções
falava das trevas, referia-se também a do Norte italiano.
esse ambiente de desequilíbrio e reequi-
líbrio político sistêmico. Foi montado
todo um vocabulário a respeito dos pe-
rigos representados pela discórdia, vio- Governo técnico
lência, hostilidade, ganância, interesses
mundanos etc. Contra tudo aquilo – Encurtaremos a história dizendo que,
ou seja, contra a política propriamente pelo 1400, a tranquilidade veneziana
dita – e em nome da tranquilidade, de- difundiu-se pelo Norte italiano. Depois
veriam erguer-se as ideias cívicas e o de séculos de luta entre facções, algu-
bem público: era a famosa “questão das mas perderam, outras ganharam, e a
facções”, um termo-chave que, durante redução de seu número, e a concentra-
todo o Renascimento, funcionou como ção de riqueza e influência na mão das
o xibolete dos homens racionais e de restantes, tornou possível tratados de
bem. paz civil pela submissão do poder so-
Para contrastar com o sistema fac- bre a cidade a elementos externos: os
cioso de guerra civil permanente que chamados signori. Eram administrado-
transbordava a vida das elites e envol- res pagos, eleitos para mandatos cur-
via todos os setores da sociedade, o dis- tos, que vinham às cidades, seguidos
curso renascentista italiano dispunha de sua pequena corte de juristas, solda-
da admirável imagem da República de dos, contadores, cavalariços, artistas e
Veneza – La Serenissima. Ali, desde o escrivães, para manter a ordem, redigir
século XII, em virtude de um bem or- códigos citadinos, e organizar a defesa
questrado pacto oligárquico, vigia o ra- contra as outras cidades, num clima de
acirramento permanente dos conflitos

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interurbanos. Ora, as rédeas do assalariamento são


Os signori não tinham lealdade ci- mais ou menos curtas, mas não são in-
dadã a ninguém: eram tiranos de alu- quebráveis. Assim, não era estranho
guel. Sua neutralidade assalariada tor- que surgissem eventuais desequilíbrios
nou possível que se desenhassem os es- de forças entre os signori e as forças po-
paços institucionais de administração líticas que os haviam contratado. Se-
“pública”: os cargos citadinos de te- gundo o resultado dos eventuais con-
soureiro, construtor, capitão da guarda flitos dessa ordem, os grandes homens
etc., não seriam ocupados mais por afi- viriam a ser conhecidos como tiranos
lhados de ninguém especificamente, ou como cônsules. A extrapolação dos
mas por critérios definidos sob os olhos mandados, a sedimentação de gover-
vigilantes do signore – que, por suposto, nos autocráticos, e a emergência do re-
tinha seus próprios afilhados, os quais gente citadino principesco, que Maqui-
estavam desvinculados das aristocra- avel tornou famoso, foram os desen-
cias citadinas. É aí por essa altura, volvimentos ulteriores. Assim mesmo,
então, que começa, entre os cidadãos, do mundo dos signori e dos príncipes,
uma discussão a respeito da importân- não se podia dizer que as facções bri-
cia de se desocupar dos assuntos pú- gavam quotidianamente nas ruas: para
blicos para concentrar-se em ganhar di- tanto, teriam que ver-se com os exér-
nheiro. citos privados dos signori, legitimados
Vale sublinhar que, à medida que por uma maioria oligárquica. Com o
a guerra civil resolvia-se por meio estabelecimento de um pacto entre as
do pacto em torno dos governadores elites, sedimentava-se uma cidadania
profissionais, as cidades podiam fazer oligárquica: criava-se uma esfera polí-
guerra mais serenamente umas com as tica restrita na qual a importância das
outras. O período dos signori viu, por- pessoas comuns desaparecia, e não ha-
tanto, uma organização dos interesses via lugar sistêmico para a expressão de
da cidade como um todo em torno dos sua vontade, a pressão sobre a aristo-
interesses de uma elite concertada, e cracia, as lutas por acesso à terra, salá-
uma intensificação dos conflitos entre rios, preço do trigo etc. Por pagamento
as cidades. Em outros termos: na me- ou por putsch, cumpria-se a ambição re-
dida que defendiam os cidadãos de si nascentista de um ambiente político em
mesmos, o serviço que os signori presta- que a violência civil difusa da idade das
vam era – sob certo aspecto – uma ter- trevas havia sido eliminada, substituída
ceirização da guerra civil, e uma expul- por uma violência civil concentrada –
são dos interesses belicosos para fora da aquela do governo dos cidadãos con-
cidade, para cima de oligarquias porta- tra as pessoas comuns – e uma violên-
doras de outros endereços. cia não-civil difusa: aquela das cidades,

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umas contra as outras. A terra totalmente esclarecida


A má consciência desse processo
coube ao próprio Niccolò Machiavelli
(1469-1527). Por um lado, deixava es- Nesse ponto, o imaginário dos nossos
tabelecida, em seu trabalho mais céle- odiadores das trevas em grande me-
bre (O Príncipe, escrito em 1513), a co- dida separa-se daquele dos renascen-
nexão entre a estabilidade política da tistas originais, já que a ideia do tirano
cidade e a autopreservação do príncipe não lhes encanta. Por outro lado, to-
cujo destino identificava-se com o dela. talmente alheia à sua consistência in-
Por outro lado, no seu Discurso sobre telectual, é notável que a história mo-
a primeira década de Tito Lívio (1517), derna haja teimado em produzir com-
declarava sua preferência pessoal pelas binações e recombinações entre estabi-
repúblicas, e lembrava que, no fim das lidade política, competência virtuosa,
contas, a verdadeira liberdade dos ro- modernização institucional e tecnoló-
manos derivava da luta constante e da gica, e autocracia. No caso brasileiro,
rivalidade aberta entre os diferentes se- há quem diga que todos os episódios
tores sociais e atores políticos – ou seja, mais significativos de formação socioe-
da política tenebrosa das facções. conômica moderna estão marcados por
Assim, no fim das contas, a ques- violência civilizadora: pra não falar de
tão reduz-se a um raciocínio plena- Cabral, temos Deodoro, Caxias, Vargas,
mente moderno: os governos autocrá- e a referência recente incontornável, a
ticos eram simplesmente mais eficazes. ditadura de 1964-85. A intensidade
Chama atenção a oportunidade que o do investimento público, a formaliza-
fenômeno dos signori deu para que as ção do trabalho, a ampliação do con-
classes letradas desempenhassem fun- sumo, a expansão do parque industrial,
ções de governança, o que não ape- a conformação do sistema financeiro
nas lhes favorecia o bolso, como tam- a padrões internacionais, combinado à
bém era um óbvio sinal da sensatez substituição da representatividade po-
de seus patrões. O próprio senhor de lítica e civil por conselhos técnicos po-
aluguel, com sua formação cívica, seu voados de membros da elite empresa-
currículo de administrações anteriores, rial e bancária, marcam o caráter, ao
sua especialização burocrática e mili- mesmo tempo, modernizante e autori-
tar, era o protótipo de um quadro téc- tário desse regime.
nico, bem-educado, intelectualmente Para que não se diga que não tive-
vanguardista, ávido consumidor da li- mos nossa renascença, existem outros
teratura dos primeiros humanistas. paralelos a serem traçados. Na me-
dida que falava de uma luta contra o
comunismo, o vocabulário do regime
evocava, em certa medida, uma preocu-

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pação análoga ao problema humanista intelectual diante dos vinte anos de de-
das facções. A justificativa oficial de senvolvimento sob o coturno? Seria
uma pura e simples defesa da demo- preciso inserir uma nuance na auto-
cracia tem algo do raciocínio daqueles compreensão do Brasil dentro do pro-
primeiros pensadores da modernidade: gresso civilizatório – se isso, entretanto,
a questão não é tanto que existia uma já não tivesse sido feito. Estudos pro-
guerra entre dois lados, os comunistas duzidos entre nós, já a partir da dé-
e o regime; a questão é que os comunis- cada de 19601 , cuidaram não apenas
tas traziam a experiência social de uma de sublinhar o caráter autoritário da
ruptura facciosa, de uma sociedade cin- nossa modernização, mas de explici-
dida. Os milicos, nossos preservadores tar que tal caráter não a torna menos
da ordem, quando combatem a ameaça moderna: muito pelo contrário. Aten-
comunista não são inimigos dos comu- tando especificamente para a relação
nistas, apenas, mas inimigos da própria entre o desenvolvimento econômico e a
cisão social. A democracia em cuja de- urbanização durante o regime militar,
fesa oficialmente saíram é sereníssima: Francisco de Oliveira (1972) e Ermí-
é tão somente o business as usual. Ora, nia Maricato (1979), por exemplo, de-
a estabilidade política como valor em monstraram que a industrialização do
si, que é, evidentemente, a questão cen- período, e tudo que dela decorre, de-
tral do Príncipe de Maquiavel, está pre- pendeu da favelização. Afinal, depen-
sente em todas as principais penas da deu de baixos salários que condenaram
alvorada da modernidade inglesa: de o trabalhador assalariado e com carteira
Francis Bacon aos Commonwealthmen, e assinada à autoconstrução, abortando o
depois Hobbes. De olho nessas figuras, surgimento de um mercado imobiliá-
vemos como a expressão “moderniza- rio formal moderno de massas. Os bai-
ção conservadora” é, a rigor, um pleo- xos salários, a precariedade da forma
nasmo. de vida periférica, tornam nossa força
Com o advento de uma ditadura mo- de trabalho internacionalmente “com-
dernizante, a história mostra sua fide- petitiva”, e são, assim, pressuposto para
lidade aos primeiros renascentistas, e que o capital tenha interesse em vir nos
uma indiferença frente aos nossos odi- modernizar. Ao mesmo tempo, a faveli-
adores das trevas. Trata-se de um im- zação condena a mão de obra brasileira
portante episódio de superação do sub- moderna a espaços extraoficiais, desre-
desenvolvimento que não trouxe jus- conhecidos pelas autoridades estatais,
tiça social. Como fica o ódio ao pas- onde, portanto, as políticas públicas ci-
sado e o progressismo como princípio vilizatórias não chegam. Quer dizer: a

1 Um interessante mapa da história dessa sensibilidade brasileira aos limites do dualismo é fornecido por ARANTES, 1992.

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injustiça social e a modernização nacio- lização a combinação de governo forte


nal são elementos complementares. e ordem legal, de outro. Nesse sentido,
Na verdade, não falta, mundialmente o testemunho dos renascentistas ingle-
falando, quem tenha identificado esse ses – tão admirados pelos iluministas
cunho intrinsecamente violento e soci- franceses, que, diante deles, se conside-
almente cindido do progresso civiliza- ravam infelizes habitantes de um país
tória moderno: desde leituras a respeito atrasado – é especialmente eloquente.
das formações nacionais europeias (cf. Tomemos como exemplo Thomas
Mayer, 2010), até reflexões a respeito Smith (1513-1577), o sujeito que pela
do sentido histórico mais abrangente da primeira vez escreveu “civil society”
tal civilização ocidental (cf. ADORNO, em inglês. Esse advogado, parlamen-
HORKHEIMER, 1985). E, entre nós, tar e conselheiro de Elizabeth I cuidou
a consagrada interpretação schwarzi- de traduzir o termo para poder falar
ana da obra de Machado de Assis fala da comunidade dos empreendedores-
da arbitrariedade e da truculência que guerreiros que auxiliariam na en-
marcam o ingresso do capitalismo na tão chamada “pacificação” da Irlanda
periferia, o que remete a uma consci- (SMITH, 1873). Tratava-se de ocupar
ência da elasticidade econômica e cul- o território, povoando-o de fazendeiros
tural da modernização, e sua intimi- armados e submetendo os nativos a um
dade para com seu suposto contrário regime de segregação que, proibindo-
(cf. SCHWARZ, 1999). os a posse de terra, também fixava seus
salários em valores baixíssimos. Os fa-
zendeiros ingleses, zelosos de manter
suas terras a qualquer custo, cuidariam
A guerra de alguns contra alguns de fazer, em nome de seu próprio in-
teresse, a guerra colonial que a Coroa
Ou seja: não é por falta de aviso. A não tinha condições financeiras de re-
gente letrada e progressista segue na alizar – e isso algumas décadas depois
sua mania de modernidade a despeito de Henrique VIII, pai de Elizabeth I, ter
tanto desse arcabouço crítico endógeno, indagado o governador-geral a respeito
quanto do que diziam os próprios mo- da possibilidade logística de exterminar
dernos originais. O resultado ora bas- completamente a população irlandesa.
tante bem-acabado do projeto desses Smith, que chegou a ser reitor de Eton,
últimos se antevia de forma translúcida era também profundo conhecedor dos
nas suas declarações de intenções de sé- clássicos – jurista que jamais titubea-
culos atrás: o pensamento e a prática ria antes de pronunciar “cônjuge”, ou
que condenaram como trevosa a luta o nome de artistas estrangeiras; inclu-
política e a participação das massas, de sive, havia sido diplomata na França –
um lado, e erigiram em modelo de civi-

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e interessava-se pela questão da cida- tas, é compreendida como uma elite


dania porque entendia, como os gre- armada, sustentada por privilégios ir-
gos e os romanos, tratar-se do exercício mãmente compartilhados, ao mesmo
de privilégios. Materialista, é festejado tempo que seus interesses são impos-
pela historiografia marxista do pensa- tos sobre o resto da sociedade. Ou seja:
mento econômico como o gênio que paz entre os proprietários; ao resto, por-
primeiro entendeu a economia como rada. A guerra civil facciosa é conde-
um mecanismo automático (cf. WOOD, nada, mas a guerra civil contra os des-
1994). Tratava a ambição, ou o interesse possuídos é normalizada. Era esse, afi-
de classe, como cimento do pacto civil nal, o papel dos signori renascentistas,
entre os proprietários, aquilo que os tor- também.
nava uma força política. A “república” Para entender o que está em jogo aí,
com que ele sonhava era um sistema é interessante como Smith se preocupa
oligárquico em que a Coroa, constran- em fazer uma cuidadosa distinção entre
gida pela riqueza e pela expertise dos a questão da legitimidade do governo e
empreendedores, governava para eles, e a questão do seu caráter violento. O
as pessoas comuns só entravam no jogo governo legítimo é aquele que defende
para trabalhar ou consumir (cf. SMITH, os interesses da república; tanto faz se
1982). chegou ao poder na base da força. Está
A imagem italiana de um pacto so- aí outro luminar da modernidade que
cial de elite reaparece em Smith, de não teria nada contra Geisel. Ademais,
fato, combinada à demofobia: como no se a república está definida em termos
estudo maquiavélico sobre Tito Lívio, de interesses, então ela exclui de si to-
mas com sinal trocado, o autor refere- dos aqueles que trabalham para outrem
se ao fenômeno romano da guerra ci- e que, por isso, a rigor, não são capazes
vil como atividade do “populacho e da de possuírem interesses próprios. Fica
canalha” (cf. SMITH, 1982, p.51), em subentendido que, justamente porque
contraste com o governo legítimo pelo os não-proprietários estão fora do pacto
“povo”, que, na realidade, compreendia republicano, é necessário que haja uma
o patriciado em sentido amplo. Esse reserva de violência agregada à legiti-
setor sociopolítico não é propriamente midade do governo. O governo só pode
aristocrático, mas oligárquico: equi- ser legítimo para quem tem interesses
vale, na Inglaterra renascentista, àquela comuns; para quem não compartilha
parte da classe proprietária que parti- desses interesses, o que caracteriza a
ciparia da Câmara dos Comuns, onde, vida social não é a legitimidade, mas a
evidentemente, nenhuma pessoa real- força. É para isso que o conceito de so-
mente comum jamais colocou o pé. Em ciedade civil precisa ser criado: trata-se
Smith, a sociedade civil, no fim das con- de um qualificador restritivo. A guerra

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civil, nesse contexto, não é uma guerra tão, com a escravidão. De fato, o sis-
entre os cidadãos, mas uma guerra con- tema penal de Utopia tinha um caráter
tra os despossuídos que os cidadãos de- especial: de todos os crimes previstos
sencadeiam enquanto tais – a guerra que em leis, os mais graves consistiam no
define o caráter civil do pacto civil. desrespeito às decisões judiciais, de tal
É interessante perceber a onipresença modo que, na prática, o mais alto valor
dessa imagem de sociabilidade intrin- dessa sociedade era a vontade do ma-
secamente aguerrida no imaginário re- gistrado, membro da oligarquia gover-
nascentista. Também a encontramos na nante. Devido à sua índole pacífica, os
magnus opus de Thomas More (1478- utopianos empregavam vizinhos subci-
1535), mártir católico, xerife de Lon- vilizados para morrer nas guerras em
dres, conselheiro de Henrique VIII e in- seu lugar, prestando assim um duplo
ventor da palavra “utopia”, que tanto serviço à humanidade: o castigo dos ím-
pano para manga dá até hoje para as pios inimigos dos estados racionais e a
benignos autocompreendedores da mo- eliminação dos povos inferiores, merce-
dernidade. Esse homem de família fa- nários afeitos à guerra (cf. MORE, 2003,
mosamente afável – que deixou de le- p. 89).
gar à posteridade, entretanto, o nome Fundamentalmente, contudo, a orga-
de sua esposa (cf. MORE, 2003, p. xiv) nização política desse país das maravi-
– foi também conhecido pelo bom gosto lhas devia-se à mão forte e ao coturno
arquitetônico de sua mansão bucólica civilizador do General Utopos, um su-
na periferia de Londres, cujo jardim jeito que havia chegado numa penín-
frontal decorou com a mão certeira do sula habitada por bárbaros tecnologica-
modernizador, colocando, ali, um ado- mente inferiores – os quais, contudo,
rável pelourinho (cf. WOOD, 1994, p. a confiar em Pierre Clastres, prova-
92). Mirando na República platônica, velmente também não passavam fome
concebeu um país maravilhoso em que (cf. CLASTRES, 2004). Vencidos numa
a economia funcionava, nenhum fun- guerra colonial e obrigados a trabalhar,
cionário era corrupto, e os inteligentes foram esses aborígenes que ergueram –
eram eugenicamente selecionados para com base nas ideias geniais do general
serem dispensados do trabalho, estu- – a civilização utopiana. É esse, afi-
dar e governar os demais. Como tudo nal, o preço daquilo que Karl Kautsky,
funcionava perfeitamente, não faltava leitor de Mooe, chamou elogiosamente
comida, e todos eram educados para de “socialismo utópico” (cf. KAUTSKY,
reverenciar a elite intelectual gover- 1979)? O próprio Marx, outro conhece-
nante, a estabilidade política reinava dor do Utopia, quiçá tampouco desviava
nesse não-lugar. Quem destoava era os olhos desse caráter colonial: havia
evidentemente irracional, e punido, en- considerado, afinal, a ocupação britâ-

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nica da Índia como um preço a se pagar serventia econômica à terra fértil sobre
para extinguir o fanatismo religioso, as a qual viviam. Por não serem gente, po-
corporações de ofício e o sistema de cas- diam ser varridos do mapa.
tas (cf. MARX, 1853). . .
É assim que as ideias de uma civiliza-
ção moderna e de um desenvolvimento
moderno dependem dos incivilizados Classe trabalhadora
e da incivilização, tanto desde o ponto
Contudo, como se sabe, houve algum
de vista do que realmente aconteceu,
momento na história da modernidade
quanto desde o ponto de vista concei-
em que a população adquiriu um sen-
tual. Esses inimigos podem ser tanto
tido diferente, que se reflete no desen-
externos – como no caso dos aborígenes
volvimento da assistência social pú-
pré-utópicos –, quanto internos. O po-
blica, dos serviços estatais de preser-
pulacho, as pessoas que usavam a terra
vação e manutenção da vida: educação,
para viver – para comer, beber, festejar,
saúde, previdência etc. De fato, é nes-
contar histórias, celebrar cultos etc. –
ses traços da sociedade moderna que
foram, no período da ascensão do capi-
a imaginação dos odiadores das trevas
talismo, insistentemente caracterizadas
geralmente se apoia para falar bem do
pelos produtores de ideias como ani-
processo de modernização. Pelo que
malescas, monstruosas, boçais (cf. LI-
já dissemos, queda evidente que a dis-
NEBAUGH, REDIKER, 2000), caracte-
tância entre o Estado de Bem-Estar e
res destilados na figura do Calibã (cf.
o extermínio colonial, a demofobia e
FEDERICI, 2017), inventada pelo in-
a institucionalização da guerra decla-
comparável gênio renascentista de Wil-
rada de classes não é realmente equiva-
liam Shakespeare. Por serem subuma-
lente à distância entre modernidade e
nos, podiam ser desalojados, torturados
pré-modernidade, mas sim entre a mo-
e destruídos. E quando as classes pro-
dernidade e ela mesma. Mas será que
prietárias da Inglaterra, já tendo desen-
se tratam de duas modernidades, uma
cadeado ali o processo de acumulação
menos moderna do que a outra?
primitiva de capital, resolveram voltar
Na verdade, não é difícil encontrar
os olhos para a ilha vizinha, caracteriza-
o ponto de inflexão entre o populacho
ram os irlandeses como bichos e como
matável da acumulação primitiva e a
bárbaros que, ocupados com a mera
massa portadora de direitos das Déca-
subsistência – a mesma que, no final da
das de Ouro do capitalismo. Uma das
década de 1980, às vésperas do lança-
aparições desse elo perdido deu-se aqui
mento da Campanha Contra Fome, foi
entre nós – não surpreendentemente,
desprezada pelos Titãs (cf. ANTUNES
durante nosso processo de colonização,
et al., 1987) –, eram incapazes de dar
tendo ficado registrado no Regimento

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das Missões de 1686. Ali, Pedro II, Rei tetor Universal de Todos os Índios”. A
de Portugal, dito “o Pacífico”, é provido preocupação demográfica que atravessa
de anunciar uma distinção entre os ín- seus relatos famosos contra o extermí-
dios selvagens – que “não vivem com nio ameríndio tem como pano de fundo
modo e forma de República” e que po- a proposta – lançada no Memorial de
dem ser submetidos ao extermínio mi- Remédios para as Índias, de 1516 – da
litar – e os índios civis, cuja vida deve reorganização de uma população in-
ser preservada (REGIMENTO, 1724. p. dígena preservada em aldeias geome-
59]. Os primeiros são caracterizados tricamente dispostas em torno dos as-
como canibais, teimosamente resisten- sentamentos espanhóis. A ideia, às ve-
tes aos missionários, desprovidos de lei zes considerada humanitária, de que os
e de senhores. Diante dessa gente, rei ameríndios têm alma, servia para di-
cristão nenhum está obrigado a nada. zer que, então, podiam ser convertidos
Os segundos são marcados por uma sé- e, portanto, disciplinados e, portanto,
rie de diferenças, mas a mais funda- postos para trabalhar de bom grado,
mental de todas é a de poderem ser sem as excessivas violências da escra-
trazidos para perto dos assentamentos vidão.
coloniais e postos para trabalhar. Sua Uma versão particularmente explí-
participação no processo econômico co- cita desse raciocínio, ademais colocada
lonial, percebida como fundamental, numa perspectiva transoceânica, vem
garante-lhes a proteção da Coroa por- da pena de Richard Hakluyt (1553-
tuguesa, inclusive sob a forma de “ou- 1616), noveleiro das navegações, pro-
vidores dos índios” encarregados de ve- pagandista do esforço colonial inglês,
rificar se os “descidos” estão sendo bem parlamentar, embaixador, empreende-
tratados e bem pagos, se suas mulheres dor, acionista da Companhia da Virgí-
estão sendo respeitadas etc. Os índios nia. Hakluyt considerou com atenção
se tornam súditos do rei, e cidadãos do o fenômeno dos vagabundos da alvo-
reino, na medida que trabalham, e são rada da modernidade – os sem-terra
economicamente úteis. produzidos pelo capitalismo agrário-
Outro atropelamento indiferente mercantil inglês, reduzidos à mendi-
pelo carro alegre da história e os con- cância e ao banditismo. Na Inglaterra,
tentes odiadores das trevas de que está acabavam torturados, mutilados, pre-
cheio: o raciocínio colonial de Pedro II, sos e mortos. Mas era preciso – con-
o Pacífico, é completamente moderno, e clamava Hakluyt – encarar esses corpos
ao mesmo tempo brutal. Encontramos desde uma ótica moderna: era preciso
um pensamento semelhante na obra de exportá-los como escravos para o Novo
Bartolomeu de las Casas (1484-1566), o Mundo, onde suas vidas não seriam
frade dominicano que alçou-se a “Pro- supérfluas e seu trabalho era necessá-

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rio para a árdua tarefa de converter as compõe com uma tendência geral do
paisagens selvagens em terras econo- sistema punitivo na sociedade mo-
micamente produtivas (cf., p. ex., HA- derna, que assume sinais claramente
KLUYT, 1877. p. 37). A destruição do destrutivos, e corresponde a uma trans-
corpo precisava ser substituída por uma formação do papel que as pessoas co-
preservação moderna da vida. Assim – muns desempenham diante do pacto de
para voltarmos à modernidade plena – classe das elites proprietárias. Isso cor-
não é à toa que a escola e o hospital responde a uma inversão da tendência
públicos formam sistema com a peni- que havia sido desencadeada com o hu-
tenciária, que é, originalmente, um ar- manístico apelo hakluyteano pela pre-
mazém de gente cuja lotação varia com servação dos corpos, ecoado pela ma-
os altos e baixos da economia e a corres- temática populacional da colonização
pondente demanda de força de trabalho portuguesa; por outro lado, não tem
(cf. RUSCHE, KIRCHHEIMER, 2004). nada a ver com um retorno à Idade
É verdade, contudo, que, em tempos Média, quando o poder dos senhores
recentes, a prisão mudou de caráter: vi- se media em almas e o destino dos in-
rou um lugar aonde se vai para ser eli- divíduos era tão indissociável daquele
minado, e não preservado. Por um lado, de sua comunidade que a quantidade
em recantos do mundo como o Brasil, de filhos era um sinal de prosperidade.
os índices de mortalidade nas prisões é A relativização da vida à sua signifi-
incrivelmente superior àquele fora dela cação econômica, a subsunção da exis-
(cf. ENSP/FIOCRUZ, 2020]. Por outro, tência dos humanos – e de tudo mais
no centro propriamente desenvolvido que há na terra – pela função do tra-
do mundo, o sistema prisional cuida balho e da acumulação de riqueza, é
de concretamente eliminar populações inegavelmente um advento da moder-
inteiras do mercado de trabalho e da nidade. A guerra civil permanente que
democracia representativa. Nos EUA, a disso se depreende foi antevista e proje-
legislação bizarra e os bancos de dados tada pelos primeiros ideólogos moder-
unificados permitem aos empregadores nos. Se, ao longo da história moderna,
discriminar ex-condenados na hora da houve momentos em que massas um
contratação. Com base nos mesmos ca- pouco maiores gozaram de trégua, foi
dastros, leis eleitorais restritivas garan- apenas devido à própria seletividade
tem que, em estados como a Califórnia, econômica.
ou em cidades como Baltimore, entre
40% e 50% dos negros sejam impedidos
de votar (cf. WACQUANT, 2013. pp.
240, 118, 312).
Tal alteração do caráter da prisão

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Máquina do tempo querda brasileira, e tão sensível às ques-


tões dos direitos humanos e da segu-
rança pública, chegou, em certo mo-
Naquela que é uma das cinco passagens
mento, a unir-se ao coro dos saudado-
mais não-lidas da história das aulas de
res das Unidades de Polícia Pacificado-
História da Filosofia, Immanuel Kant,
ras. Durante a ocupação do morro do
em seu unanimemente celebrado texto
Alemão e do Complexo da Penha pelas
sobre a civilização das luzes, saúda o es-
Forças Armadas – também elas, então,
clarecimento de Frederico II, o Grande,
designadas como Força de Pacificação –,
o qual podia deixar a modernização cor-
Freixo justificava o pedido da popula-
rer solta inacabadamente porque dis-
ção por uma UPP com base num motivo
punha de “um numeroso e bem disci-
técnico: o exército não estava devida-
plinado exército para garantir a tran-
mente preparado para atuar junto à po-
quilidade pública” (KANT, 2012, p.
pulação (cf. LEMOS, 2011)2 . Dois anos
71). Smith e More fizeram, afinal, uma
depois, num artigo intitulado “UPP e
longa escola – e, quando convém, nos-
cultura de direitos” (observe-se: não é
sos próprios renascentistas também fi-
ironia), Freixo avaliava o projeto como
cam do lado da ordem cívica. Por exem-
um todo, e lamentava: “A UPP Social,
plo: em plena onda de protestos de
que deveria garantir a prestação de ser-
2013, quando a violência estatal seria
viços públicos e a presença cidadã do
brutalmente trazida à tona, a filósofa
Estado, é uma peça publicitária de fic-
Marilena Chaui achou por bem empre-
ção. Não existe.” (FREIXO, 2013). Foi
ender uma jornada civilizatória ao Rio
um fracasso, afinal? O notável é que
de Janeiro a fim de contribuir com a
a ideia de agentes de segurança pública
racionalização da Polícia Militar me-
com missão civilizadora era ecoada pela
diante uma palestra a respeito do ca-
própria Polícia Militar: num vídeo pro-
ráter fascista dos black blocs (cf. FO-
mocional que comemorava os 200 anos
LHA, 2013). Incoerência? Coerência?
da corporação, era exibido um cambu-
As coincidências espaciais envolvendo
rão que subia em alta velocidade as es-
nossos odiadores das trevas e nosso
treitas ruas de uma favela, e do qual
aparato punitivo, mais do que um si-
saíam, ao final do trajeto, os funcioná-
nal de deslizes pessoais, revela algo do
rios do cuidado moderno com a vida:
caráter da própria modernidade e do
médicos, professores, assistentes soci-
progressismo.
ais (cf. BRITO, 2013).
É assim que uma figura como Mar-
Para continuar o panorama, nas elei-
celo Freixo (ex-PSOL-RJ, atual PSB-RJ),
ções de 2018, encontramos Freixo, en-
quando era importante quadro da es-

2 Numa fotografia infeliz que então circulava, Freixo segurava um cartaz que dizia: “UPP URGENTE” (cf. NSC, 2011).

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tão candidato a Deputado Federal – portante fase do processo civilizató-


vaga que acabou levando – dizendo rio brasileiro, Safatle consistentemente
no rádio: “Contra a corrupção, vote indagava-se sobre a utilidade das con-
Freixo”. Tratava-se, evidentemente, de denações penais para a correção da sub-
eleições determinadas por uma mili- modernidade brasileira, analisando a
tância judicial que, depois de anos de judicialização da política desde a ótica
martelação televisiva, havia colocado o do desvelamento da razão universal en-
problema do crime no centro da polí- tre nós, não obstante seu caráter po-
tica nacional. O vocabulário da Guerra liticamente interessado (cf. BARONI,
às Drogas – que falava, há décadas, 2016).
de bandidagem, vagabundos, cadeia, No cenário internacional, evidente-
julgamento sumário, pena de morte – mente, a batalha pela justiça ocorre em
tornava-se intercambiável com o voca- escala bastante maior – mas a enverga-
bulário do lavajatismo e do combate à dura dos apologistas não fica atrás. A
corrupção. Não surpreendentemente, ideia de uma guerra justa – punitiva ou
no plano estadual, o resultado foi a preemptiva – foi, na década de 1990,
eleição de Wilson Witzel para gover- simultaneamente avançada pelo Depar-
nador, um sujeito obscuro cuja princi- tamento de Estado norte-americano e
pal proposta para a segurança pública filosoficamente estabelecida por figu-
era o emprego de snipers posicionados rões como Norberto Bobbio, Jürgen Ha-
em helicópteros para assassinar, com bermas e Axel Honneth (cf. ARANTES,
tiros “na cabecinha”, “bandidos” nas 2007. pp. 31ss.). Tratava-se de pen-
favelas cariocas (PENNAFORT, 2018). sar um concerto do Ocidente pela inter-
Nada mais contrário às bandeiras de venção militar contra a barbárie asiá-
Marcelo Freixo – que, por outro lado, tica – religiosamente fanática, politi-
em 2007, emprestou seu corpo para o camente instável, populista etc. – por
filme Tropa de Elite, inicialmente rece- ocasião da Primeira Guerra do Golfo.
bido como uma peça de crítica, mas fi- Progressistas fazendo apostas erradas?
nalmente adotado como bandeira pelos Quem poderia prever que carros tão
nichos da cultura política que acaba- alegres fossem enveredar por percursos
riam elegendo Jair Bolsonaro o Presi- tão sinistros? Na década seguinte, um
dente da República em 2018. país inteiro foi mergulhado na destrui-
Como é possível essa dubiedade? ção bélica permanente para que Sad-
Para repetir a pergunta, é interessante dam Hussein fosse formalmente acu-
observar como o progressismo de uma sado e enforcado – ao mesmo tempo
figura como Vladimir Saflate torna-o em que a busca pelas famosas armas de
simpático ao lavajatismo. Nas suas re- destruição em massa estocadas no Ira-
flexões a respeito dessa recente e im- que também assumia o caráter de pro-

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jeto inacabado. Mas ninguém pode di- ligado à reconfiguração das instituições
zer que, com a Guerra ao Terror, não de Estado e à manutenção de uma po-
foram dados passos importantes para pulação de trabalhadores e consumido-
o desenvolvimento do Estado de Di- res: o que tradicionalmente entendia-
reito: por exemplo, em 2013, o Presi- se como imperialismo. Já os fenôme-
dente Obama tornou legal o assassinato nos de tempos recentes, especialmente
de cidadãos americanos pela CIA (cf. desde a deflagração da Guerra ao Ter-
REILLY, 2013), que até então o vinha ror, têm sugerido uma terminologia
fazendo ilegalmente. nova: fala-se de capitalismo por espo-
Um capítulo curioso e eloquente liação (cf. HARVEY, 2003), desmoder-
desse processo de civilização por meio nização (cf. GRAHAM, 2016) etc. Mas
da guerra havia, entretanto, acontecido – numa nova reviravolta cronológica –
em 2001. Ali, na sequência do ataque essas novidades não seriam desconhe-
às Torres Gêmeas, a secretaria de Es- cidas dos renascentistas. Seu cardápio
tado norte-americana declarou que o de modernizações incluía, como vimos,
Paquistão seria “bombardeado até vol- tanto o genocídio quanto a manutenção
tar à Idade da Pedra” se não colaborasse da vida: paradigmaticamente, Thomas
com a invasão do Afeganistão (REU- Smith, Francisco Pizarro e Hernán Cor-
TERS, 2006)3 , da qual, oficialmente, a tez, de um lado, e os Commonwealth-
segurança nacional estadunidense de- men, Bartolomeu de las Casas e Tho-
pendia. A sentença é importante por- mas More, do outro. Longe de repre-
que envolve um deslocamento tempo- sentarem etapas dentro de um quadro
ral e uma relação com o passado, e por de desenvolvimento, ou algo que o va-
isso dialoga com o renascentismo e o lha, tratam-se de esquemas do exercício
progressismo, embora de um jeito es- do poder econômico das elites moder-
tranho. É essa a mesma guerra que nas apaziguadas consigo mesmas, mas
os progressistas defenderam quando da em guerra com alguém. O que dife-
Primeira Guerra do Golfo? O que será rencia as duas situações é o papel de-
que acontece que acaba transformando sempenhado pelas populações dentro
o ódio à Idade Média num amor pelo desses esquemas. A proposta de geno-
Paleolítico? cídio e pilhagem, ou a possibilidade –
É notável a diferença desses proje- num quadro pós-genocidário – de in-
tos internacionais de destruição frente cluir os aztecas como súditos do impé-
às guerras coloniais dos séculos XIX e rio espanhol, ou reestabelecer a aristo-
XX. Aí, o controle do território estava cracia inca sobrevivente como supervi-

3 A eloquência da expressão não pode ser imputada à administração de George W. Bush, mas parece ser uma reedição da proposta
feita em 1965 pelo então chefe da Força Aérea Norte-Americana, em sua declaração de intenções para o Vietnã (CF. OXFORD, s.d.).

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sora da produção local de mercadorias, gavam (cf. DANOWSKI, VIVEIROS DE


dizem respeito tão somente às circuns- CASTRO, 2014). Entre nós, contudo,
tâncias ondulantes do mercado interna- desenvolveu-se, em meados dos anos
cional: a demanda por ouro, prata, te- 1990, a percepção de que, talvez, aos
cido etc., o valor da força de trabalho, a tupinambás haja faltado uma dialética,
quantidade de capital sobrante para in- ou a “fome de transcendência” (ARAN-
vestimento ultramarino etc. Aquilo que TES, 1997, p. 38) necessária para per-
chamam de civilização – que envolve a ceber sua grande oportunidade. Assim
manutenção da vida, e decorre imedia- articulou-se autoconsciência de uma
tamente das ações dos missionários ou, idade intermediária que se abriu entre
a confiar em Marx, da colonização bri- a modernidade inacabada, as trevas do
tânica da Índia – é uma espécie de efeito passado, e a pré-história futura: a Era
colateral desses fatores, que os progres- FHC.
sistas tomam, por simples mania, como O discurso político daqueles tem-
uma espécie de sentido histórico dese- pos, documentado por Paulo Arantes
jável. Assim como não há nenhum do- (cf. ARANTES, 1997), intencionou aliar
cumento de civilização que não seja um uma penetrante percepção da natureza
documento de barbárie, tampouco há do capitalismo realmente existente com
algum documento de barbárie que não uma exaltação da racionalidade mo-
seja um documento de civilização. derna. O teor de verdade dessa sín-
tese levava os teóricos e os jornalistas
a experiências de clareza mística que só
quem viveu consegue entender. Assim,
Noção de país um colunista na Folha de São Paulo es-
crevia, em 1996, que “O Deus dos cató-
A sensibilidade à determinação econô- licos reúne três pessoas num ser único.
mica do sentido da civilização moderna A natureza pública de Fernando Henri-
foi, evidentemente, muito bem compre- que Cardoso soma apenas duas: o pre-
endida pelos renascentistas, e também, sidente e o sociólogo.” A essa intimi-
como vimos brevemente, pelo pensa- dade com a ciência social era reputada
mento crítico antidualista que a de- a leitura excepcionalmente adequada
nunciou. A reflexão sobre aspectos da realidade contemporânea: “um sis-
daquela determinação é que levaram tema que (. . . ) não é dos excluídos, mas
Déborah Danowski e Eduardo Vivei- do capitalismo competitivo e avançado
ros de Castro à ideia de que, diante tecnologicamente.” (FREIRE, 1996). No
do capital plenamente desenvolvido, contexto da dita “globalização” tratava-
a humanidade encontra-se, hoje, na se de tornar a economia brasileira com-
mesma posição que os ameríndios es- patível com o ambiente internacional,
tiveram diante das caravelas que che-

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fazendo o Brasil participar daquele pro- canologia atraísse panegiristas do naipe


cesso capitalista estrangeiro atrás do do sinistro economista Albert Hirsch-
qual os progressistas sempre correram. man, que, já em 1995, descrevia o re-
Na prática: dolarizar, financeirizar – gime FHC em termos do seu conceito
o que também significava “enxugar as de “desenvolvimento não equilibrado”,
contas públicas” – privatizar. É tam- o qual os milicos argentinos também
bém disputando a audiência progres- haviam empregado para formular sua
sista que FHC afirmava que declaração de intenções na década de
1960 (ARANTES, 1997, pp. 45-6). Tudo
se considera de esquerda: a isso, entretanto, parece excelente no
nova esquerda, que percebeu Mais!, porque seus redatores e leito-
que a mudança do modo de res são dotados de alma, conversos, e
produzir – do capitalismo para capazes de trabalhar, qualificando, por-
o socialismo, por exemplo – não tanto, como índios civis, a quem a pos-
é a solução. A palavra da nova sibilidade explícita de exclusão do pro-
esquerda é universalização – do cesso moderno não concerne.
acesso aos bens e direitos. Se, Alguém, afinal, por acaso tem “res-
quando e como for possível.” posta política” para a limitada capa-
(FREIRE, 1996). cidade moderna de funcionalizar eco-
nomicamente as populações? Coube à
Era FHC, no processo do desvelamento
A ideia de um universal condicio- objetivo do espírito do capitalismo en-
nado e limitado é realmente estupenda, tre nós, o papel de escancarar essa falta
e suspende a relevância de toda a tra- de resposta, e ao lulopetismo continuar
dição dialética de crítica imanente à esse escancaramento com determina-
modernidade. A tucanologia, de um das nuances. A visão realista, combi-
realismo acurado e implacável, con- nada às soluções técnicas, impedia que
vida à racionalização da economia e se duvidasse de que o que estava acon-
das instituições que com ela têm que tecendo era uma forma de desenvol-
ver. Ao mesmo tempo – e justamente vimento: o país se moderniza, cresce,
por aquele motivo – vai na direção de os números mostram etc. Nesse sen-
uma “paixão pelo possível” (ARANTES, tido preciso, existe uma continuidade
1997, p. 44), o que subentende – nas entre esses dois períodos recentes da
palavras do próprio FHC – que seto- administração pública brasileira, que
res inteiros da sociedade “vão dançar” cuidaram, cada um a seu modo, da im-
(ARANTES, 1997, p. 39), porque, afi- plementação de um progressismo real-
nal, o apetite demográfico da economia mente existente, sendo por isso brin-
moderna tem limites. O caráter maca- dados por uma acachapante aprovação
bro dessa dança é que fez com que a tu-

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intelectual – no caso lulopetista, ape- visando, na lógica do universalismo re-


nas até certo ponto, como depois ficou almente existente, a expansão da ex-
claro. plorabilidade econômica da população
Essa aprovação intelectual corres- em geral. Por trás de tudo isso pai-
pondia, na prática política, a concep- rava um discurso de concertação social,
ções pragmáticas de pacto social. FHC cujo sentido pode ser eloquentemente
havia desenvolvido, já na década de resumido numa declaração de Lula em
1970 – e justamente no contexto de uma 2010: “vim mais à FIESP do que fui à
crítica ao dualismo – a ideia de uma CUT” (MALDONADO, 2010). E não
burguesia brasileira afeita a seu cará- foi a despeito disso, mas por causa, que
ter periférico e seu lugar subordinado o presidente-metalúrgico percorreu o
na divisão internacional do trabalho mundo dando lições sobre a inclusão
(cf. CARDOSO, 1972). Isso significava social, e recebendo um doutorado hono-
que, ao perseguir seu interesse especí- ris causa atrás do outro.
fico, a classe proprietária brasileira ja- O notável sobre esse concerto social
mais produziria um ambiente economi- lulopetista é que, em grande medida,
camente vivaz o suficiente para desem- o seu passo a passo havia sido oracular-
bocar num processo civilizado como o mente previsto por um relatório de pro-
das nações desenvolvidas – ao que cor- posta de política econômica do Banco
responderia, no fim das contas, a es- Mundial em 2002. Para brasileiros es-
tratégia de universalização restrita dos caldados, são incrivelmente familiares
anos 1990. Em torno dessa estratégia, os sumários de recomendações desse re-
construiu-se a atmosfera de sóbrio culto latório, onde se fala sobre a combina-
à tecnocracia – “um monte de gente sé- ção de flexibilização legislativa em ge-
ria fazendo coisas sérias num governo ral, expansão do microcrédito, rede de
sério” (ARANTES, 1997, p. 42) – que assistência baseada na distribuição de
persistiria por anos a fio, e viria assom- alimentos, importância da mão de obra
brar o governo Dilma às vésperas do não-qualificada, investimento em infra-
impeachment. estrutura, combinação de redes pública
No que diz respeito ao lulopetismo, e privada de educação etc. (WORLD
as configurações da “paixão pelo possí- BANK, 2002., cf., p. ex., pp. 108, 119,
vel”, desde o início, levaram a rupturas 120). Enxerga-se claramente a preo-
dentro do campo progressista. A pri- cupação com o crescimento, a pobreza
meira dessas configurações foi a infame e inclusão na perspectiva do universa-
reforma da previdência, que, no fim das lismo realmente existente.
contas, levou ao racha do PT e à funda- Ao mesmo tempo, fala-se de uma glo-
ção do PSOL em 2004. A ela seguiram- balização que beneficia a sociedade “na
se reformulações das leis trabalhistas, média”, mas que produz “vencedores

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e perdedores específicos em cada soci- lios monetários pandêmicos, aos quais


edade” (WORLD BANK, 2002., p. 2) imputa-se uma suposta escassez de mão
– algo previsto também pela tucanolo- de obra em meio a um quadro de con-
gia. Milita-se contra a fiscalização dos tratos de trabalho de zero horas e sa-
mercados pela Organização Mundial do lários baixos demais para proporcionar
Trabalho, e a aplicação de sanções tra- um nível mínimo de subsistência (cf.
balhistas internacionais: “o mais pro- MITIKANI, 2021; BROWN, 2021; BLO-
vável é que tal abordagem se trans- OMENTHAL, 2021), o que leva uma
forme numa nova forma de protecio- parte da população a simplesmente de-
nismo que venha a restringir as opor- sistir de trabalhar.
tunidades dos países de baixa renda” A ideia de uma parcela da popula-
(WORLD BANK, 2002., p. 87). Da ção global sistematicamente expelida
mesma forma, conclama-se uma limi- da economia formal – à margem até das
tação das “regulações de saúde e se- estatísticas de desemprego, visto que
gurança [no trabalho]” que muitas ve- não procura trabalho – nos coloca di-
zes tornam-se “excessivas” (WORLD ante de uma dupla “brasilianização do
BANK, 2002., p. 96): o cuidado mo- mundo” – para colocar no jogo outro
derno com a vida, afinal, não tem a pró- jargão que caiu no radar de Paulo Aran-
pria vida por finalidade, mas a explora- tes (cf. ARANTES, 2004). A mais antiga
bilidade econômica. dessas brasilianizações, registrada pela
Com isso tudo, o relatório realiza intelectualidade gringa na década de
uma espécie de defesa, portanto, da 1990, dizia respeito a um aumento da
mesma exploração da subcivilização desigualdade nos países ricos. Interes-
que Chico de Oliveira trabalhosamente santemente, a segunda brasilianização
desvendava, trazia à tona e denunci- se estabelece para remediar a primeira:
ada. Nos tempos que correm, a reali- normaliza-se a exclusão social, sua per-
dade dessa subcivilização extrapolou cepção como estimulador de apetite da
os confins usuais do Sul global. Em acumulação capitalista pela população
harmonia com as intimações do Banco periférica, usando a matéria ornitorrín-
Mundial, a precarização do trabalho al- tica as-is contra toda a crítica social. É
cança os países ditos desenvolvidos. A essa normalização, proposta pelo Banco
combinação de exploração e repressão Mundial em 2002, que será testada pelo
ao trabalho imigrante, numa franja de lulopetismo em nosso laboratório so-
semiformalidade econômica, permite cial.
que se fale hoje de “boias frias da Eu-
ropa” (JAPIASSU, 2021). E, enquanto
o presente texto está sendo escrito, os
EUA vivem um clamor contra os auxí-

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No such a thing as society 2005, p. 2). É verdade que variações


no preço do petróleo ou dos alimentos
criam grandes turbulência na vida das
Em termos meramente lógicos, é difí-
massas populacionais; mas os mais po-
cil decidir se a ideia de um desenvol-
bres,
vimento econômico baseado na explo-
ração da subcivilidade consiste num
pacto social, ou na ausência de qual- embora sejam muitos em ter-
quer coisa do tipo. Quis a história do es- mos numéricos, representam
pírito econômico, contudo, que uma au- pouco em termos de sua ca-
toconsciência da dessolidarização fosse pacidade de consumo, e sua
alcançada por meio de um par de rela- influência econômica simples-
tórios publicados em 2005 e 2006 por mente não é importante o sufi-
analistas do Citigroup. Contestando o ciente para provocar uma alte-
supracitado documento do Banco Mun- ração na confiança econômica,
dial – na verdade, levando-o até as úl- no bem-estar ou na capacidade
timas consequências –, os autores argu- de consumo dos ricos” (KAPUR
mentavam que a maior parte da econo- et al., 2006, p. 5).
mia capitalista gira em torno dos “origi-
nadores de demanda dominantes”, su-
jeitos milionários que, quanto maiores Tratam-se de ideias óbvias, já colo-
os desequilíbrios sociais, mais milioná- cadas em jogo no relatório do Banco
rios ficam. Por isso, os ambientes so- Mundial de 2002, porém mobilizadas
cioeconômicos onde existem – as “plu- para suspender a importância do pro-
tonomias” – prescindiriam de preocu- blema administrativo da desigualdade.
pações com a “integração” econômica. A ideia de que, desde o ponto de
“Numa plutonomia”, dizia o primeiro vista de um concerto entre os ricos,
dos relatórios, “há consumidores ricos, os destinos do resto da humanidade
que, embora em pequeno número, são tornam-se indiferentes contém, eviden-
desproporcionalmente grandes pela fa- temente, uma ameaça. Ela já está pre-
tia que lhes corresponde na renda e sente na consciência objetiva da Era
no consumo” e “há o resto, os ‘não- FHC – que, aliás, com sua loquacidade
ricos’, as numerosas multidões, que res- característica, denominava a globaliza-
pondem por mordidas surpreenden- ção uma “nova Renascença” (FRIAS FI-
temente pequenas da torta nacional”. LHO, 1996). Em termos da lógica mo-
Devido às diferenças abissais entre os derna, o periférico Príncipe dos Soció-
dois grupos, “análises de consenso” que logos está no mesmo território do me-
“focam no consumidor ‘médio’ estão tropolitano e pacífico Rei de Portugal,
erradas por princípio” (KAPUR et al., e também dos cosmopolitas pensadores

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modernos originais, que mantinham di- necta o desenvolvimento sereno com


ante dos olhos todo o tempo os limites a autoridade e a mortalidade. Assim,
da funcionalização econômica da po- em 2010, encontramos Marcelo Freixo
pulação e, por isso, o caráter violento dizendo que “da população das fave-
da socialização moderna. É por causa las, 99% são pessoas honestas que saem
daquele caráter ameaçador que o eco- todo dia para trabalhar na fábrica, na
nomicismo excludente dos tecnocratas rua, na nossa casa, para produzir tra-
é, afinal, complementado por um jargão balho, arte e vida” (FREIXO, 2010). É
exterminista: não é à toa que, durante gritante o moralismo embutido no jar-
a Era FHC, e também ao longo do lu- gão da honestidade, bem como o ponto
lopetismo, se haja refinado, a partir do cego que envolve a porcentagem de cri-
punitivismo tradicional, uma cultura minosos desonestos, sem trabalho e sem
de administração territorial baseada na arte, que acabam – segundo um ato fa-
segregação e na execução sumária por lho de vultosas proporções – também
agentes públicos, amparada numa dis- inevitavelmente desprovidos de vida.
tinção entre “trabalhadores” e “bandi- Mas, valendo-se da contextualiza-
dos”4 . O que vem à tona, aí, é o ca- ção econômica e da pegada punitivista,
ráter realmente genocidário do “capi- o progressismo dispõe, esquematica-
talismo competitivo”, do universalismo mente, de duas perspectivas. Na pri-
“se, quando e como for possível”, que, meira, ressalta-se que, no fim das con-
desde as origens da socialização mo- tas, a lógica do confronto com o crime
derna, pensava em termos francamente não funciona – nas palavras de Freixo,
brutais a estabilidade política, a ordem “não parece ser eficaz”. A desumani-
social necessária aos negócios, e a tran- dade policial é inadministrável: nos
quilidade “pública”. confrontos intermináveis, as comunida-
Esse exterminismo realmente exis- des são “tornadas praças de ‘guerra’”, e
tente, afinal, não foi inventado pelas os trabalhadores “não conseguem exer-
eleições de 2018, apenas conduziu a cer sequer o direito de dormir em paz”
elas, e à vitória de algo que ora cha- (FREIXO, 2010). A lenta ação geno-
mamos de extrema direita, e que os cida precisa ser modernizada – e, em
progressistas condenam como retro- termos propriamente modernos, esta-
cesso. Trata-se, entretanto, de um fenô- mos no campo análogo ao dos odiado-
meno completamente moderno, e é por res das facções, apologistas da autocra-
isso que, nos tempos que correm, nem cia senhorial, para quem a guerra civil
mesmo os melhores progressistas con- precisava ser organizada. A segunda
seguem escapar do polinômio que co- perspectiva do progressismo, comple-

4 Uma tentativa de mapear essa cultura encontra-se na obra organizada por Felipe Brito e Pedro Rocha de Oliveira, 2013.

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mentar à primeira, é a reflexão a res- Fluminense, sem sociologismo princi-


peito da origem dos incivis exterminá- pesco, mas com honestidade intelectual
veis: a falta de emprego, educação etc. comparável, declarou, em 2008, que “a
Nesse sentido, deve haver algum mala- Polícia Militar é o melhor inseticida so-
barismo socioeconômico que amplie o cial” (TOLEDO, 2008).
apetite capitalista pela população, ou É preciso enfatizar o quanto essa ló-
que torne a população mais desejável gica, que historicamente nos trouxe
para a acumulação capitalista. da modernização econômica e do uni-
O lulopetismo foi justamente um ma- versalismo seleto ao exterminismo de-
labarismo desse tipo – e é nesse sen- clarado, já havia sido raciocinada pe-
tido que Marildo Menegat denominava- los ideólogos originais da moderni-
o uma administração da barbárie. As dade. Como vimos, se a paz social é
operações policiais e militares no Rio de um dos pilares do pensamento polí-
Janeiro dessa época envolviam o morti- tico moderno, a guerra social é o ou-
cínio de sempre, saudado, entretanto, tro. Por isso, nesse imaginário político,
como “Choque de Paz” e “Choque de a ideia da desigualdade reverbera so-
Ordem” (BASTOS, ANTUNES, 2011) noramente. Por um lado – como di-
– para empregar os termos utilizados zia Thomas Smith –, o governo legítimo
para descrever uma mui espetaculari- depende de uma comunidade de inte-
zada operação na favela da Rocinha em resses, o que se torna impossível entre
novembro de 2011. Na época, um en- setores separados por expectativas e ex-
tusiasmado comentarista de segurança periências sociais completamente dife-
da TV Record celebrou a operação di- rentes. Aí, aparece a situação de des-
zendo que “agora, a paz será total, per- solidarização social que era apontada
manente, ad aeternum”. A sensação rei- pelo conceito gringo de brazilianização
nante na opinião pública era de que do mundo. Seguindo com Smith, sem
se estava tirando do caminho um se- interesse comum, não há governo legí-
tor da população sobrante e emperrado, timo: mas isso, para o arauto original
para que, então, fosse possível ao capi- da civil society, não significava a falên-
talismo penetrar triunfalmente nas co- cia do governo, mas sim que o governo
munidades. A cada operação de paci- acabaria sendo ilegítimo – para alguns
ficação, seguiam-se as cifras de inves- – sem, obviamente, deixar de ser go-
timentos públicos e privados, injeções verno. Aliás, muito pelo contrário, por-
de vitalidade nos recantos de uma ci- que governo é isso. Se não fosse para
dade que estava às vésperas de receber promover uma violência civil focada e
a Copa do Mundo de 2014 e as Olim- polarizada, poderíamos ter ficado no
píadas de 2016. É assim que um co- mundo das facções.
mandante de policiamento da Baixada

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As pazes fazíveis policial para cada 163 habitantes (RE-


AVES, 2015). A média nas comunida-
des com UPP, contudo, chegou a um
As Unidades de Polícia Pacificadora an- policial para cada 62 habitantes (cifra
dam, hoje, um pouco esquecidas: em estabelecida por OLIVEIRA, 2016, p.
2019, a PM fluminense reclamava de 261). Em mais da metade dessas co-
sucateamento (CORRÊA, 2019). Origi- munidades, essa relação foi maior do
nalmente, o projeto tinha a marca do que um policial para cada 50 habitan-
policiamento inteligente, da adminis- tes. Ora, em 2003, lobistas da ocupação
tração territorial competente. Propa- do Iraque, reclamando aumento da pre-
ganda enganosa? Não é verdade que o sença militar norte-americana no país,
professor, o assistente social e o den- projetavam que, para uma “estabiliza-
tista brotaram do camburão – ou dos ção sustentável”, seria necessária, jus-
contêineres que acabaram servido de tamente, uma taxa mínima de um sol-
sede para as UPPs em várias comunida- dado por 50 habitantes (QUINLIVAN,
des –, mas isso se deve a que, no fim das 2003) – algo próximo da densidade sol-
contas, há um limite para o que essa dadesca empregada nas ocupações do
sociedade pode fazer com gente edu- Kosovo (1999) e da Bósnia (1996).
cada, assistida e com boa dentição. Em Quer dizer: em termos numéricos, as
seu ápice, entretanto, é inegável que as UPPs estiveram pautadas por um para-
UPPs realizaram algo, e é importante digma militar. Esse paradigma não diz
notar o quê. respeito exatamente às concepções de
Um ponto de partida útil para tanto segurança pública preferidas dos seus
é a questão da enorme densidade po- defensores e proponentes, mas a consi-
licial a que as comunidades com UPPs derações técnicas a respeito da manu-
estavam submetidas. Enquanto a mé- tenção da estabilidade política graças
dia urbana mundial fica em torno à guerra civil – à questão moderna da
de um policial para cada 292 habi- administração social armada, da ma-
tantes (HERRENDORF, HEISKANEN, nutenção do pacto social entre as elites
MALBY, 2010, p. 136), o estado do Rio às custas da imobilização sociopolítica
de Janeiro tem em torno de um poli- dos despossuídos. E, afinal, o dia-a-dia
cial militar para cada 401 habitantes operacional da polícia pacificadora não
(MAGALHÃES, ARAÚJO, 2019)5 , e ci- foi jamais pacífico, embora tenha sido
dades como Nova Iorque e Washington sempre pacificador. Por exemplo: no
D.C. contam com, respectivamente, um dia 4 de abril de 2013, moradores da
policial para cada 246 habitantes e um

5 O contingente estabelecido pela Lei Estadual n. 6681, de 15 de janeiro de 2014, elevaria esse número para um PM a cada 268
habitantes.

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favela do Jacarezinho, na Zona Norte Rio de Janeiro mata 3,4 pessoas por dia
carioca, se insurgiram contra os poli- (ROLIM, 2021, p. 7), de modo que o
ciais da UPP diante do que considera- que a Chacina do Jacarezinho realizou
ram a prisão arbitrária de um jovem (cf. foi abreviar o trabalho de nove dias em
GRANJA, CHALITA, 2013). Os polici- um só.
ais, acossados pela multidão, acabaram Ao longo dos anos, os episódios de
encurralados em um beco. Atiraram conflito entre a população e a paci-
para todos os lados, e uma das balas ficação foram documentados mensal-
matou um garoto que comia numa lan- mente e, muito em breve, em torno des-
chonete, e que ficou estendido no chão ses conflitos, o jargão da guerra civil
no meio de uma poça de sangue ainda assentou-se de forma completamente
com o cachorro-quente na mão. Con- não-problemática. E é assim que, em
sultado sobre o ocorrido, o diagnóstico março de 2014, vemos o ataque popu-
do comandante da UPP foi que a po- lar à UPP da Rocinha ser descrito como
pulação tinha que se acostumar com as ação de “prestadores de serviço do trá-
abordagens constantes da polícia, que fico, homens que agem sem fuzis nem
estava ali para aquilo mesmo (O DIA, pistolas e têm por objetivo atrapalhar
2013). Nisso, estamos apenas um passo o trabalho da PM” (G1 RIO, 2014). Na
atrás da contraparte do mundo desen- sociedade do universalismo realmente
volvido, onde departamentos de polí- existente, é evidente e inevitável que os
cia e organizações da sociedade civil – excluídos da operação capitalista for-
entre elas, uma chamada “Survive The mal sejam economicamente absorvidos
Stop” – fazem oficinas para ensinar jo- pela operação capitalista informal e ile-
vens a se comportar direito durante as gal e, nesse sentido, as distinções ex-
abordagens policiais de modo a não se- clusivamente morais entre “trafican-
rem mortos pelos oficiais da lei (AN- tes” ou “criminosos” e “trabalhadores”
DERSON, 2016). No Jacarezinho, a UPP ou “gente de bem” realmente desapa-
continuou a funcionar, e a multidão rai- recem. Isso é o que torna cruelmente
vosa foi dispersa, até a próxima escara- verdadeira a genocida ficção midiática
muça entre as partes civilmente belige- dos “prestadores de serviço do tráfico”:
rantes. E então, pouco mais de 8 anos desde o ponto de vista da administra-
depois, a opinião pública assombrou-se ção pública, e da consciência econômica
com a operação policial mais mortífera do capitalismo avançado, os habitantes
da história da PM fluminense, que dei- daqueles espaços são indiferentemente
xou, ali, 29 mortos. O motivo do assom- descartáveis, pacificáveis. Existem fora
bro, contudo, pode ser apenas a inten- do pacto civil.
sidade do horror, e não sua natureza: É curioso que os supracitados relató-
pela média de 2020, a Polícia Militar do rios metropolitanos do Banco Mundial

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e do Citigroup, embora tenham no ho- mos da preocupada sociologia de en-


rizonte uma incontornável dessolidari- tão, os mendigos aptos preferiam viver
zação nacional, não façam menção ao “vagabundando” – vagando a esmo, pe-
problema da segurança pública. O que dindo esmola, soltos pelos campos – a
chega mais perto disso, no primeiro, é enfurnarem-se em oficinas para ganhar
o assunto do combate à corrupção, ou uns trocos que, no fim das contas, não
um índice que, sob uma aura humani- somavam mais do que conseguiriam es-
tária, mede o quanto os Estados subde- tendendo a mão para provocar pena nos
senvolvidos são realmente Estados de cristãos. Como se sabe, as prisões foram
direito, mas que seguramente possui inventadas para disciplinar essa gente,
impactos mensuráveis sobre o padrão numa época em que o crescimento da
de consumo. O ponto cego chama aten- manufatura e os trabalhos da coloniza-
ção: afinal, estão em jogo os limites da ção do Novo Mundo geravam uma de-
socialização capitalista, e a guerra ci- manda crescente por força de trabalho.
vil que há séculos fica subentendida. O Hoje, contudo, as prisões são lugares
que fazer com aqueles que venham a se onde se vai para morrer, desenvolvi-
cansar do trabalho inseguro, insalubre mento manufatureiro nenhum gera de-
e, no fim das contas, mortífero, ou que manda de ninguém, e o imperialismo
se deem conta de que serão os “perde- clássico foi substituído pela desmoder-
dores específicos”? nização. Estamos, assim, no mundo dos
Essas populações que não participam irremediavelmente desonestos, sem tra-
da “integração” – o termo é muito em- balho, sem arte e sem vida.
pregado pelo relatório do Banco Mun-
dial – constituem um problema mo-
derno recorrente. Na Inglaterra do sé- Consciência de classe
culo XVI, nos tempos da acumulação
primitiva, eram os chamados “men- Em 2010, quando do início da ocupação
digos aptos”: uma gente que, recém- policial-militar da Vila Cruzeiro e do
expropriada, e acostumada aos para- Complexo Alemão, no Rio de Janeiro,
digmas de trabalho para uma subsis- ficou famosa a cena de “fuga de tra-
tência autônoma e pouco monetari- ficantes” pelo alto dos morros. Escre-
zada, não queria se vender ao assalari- vendo sobre essa cena, Marcelo Freixo
amento. Eram diferenciados dos “men- falou de
digos inaptos” que, por defeito físico,
idade avançada ou extrema juventude,
estavam impedidos de trabalhar, sendo, dezenas de jovens pobres, ne-
por isso, autorizados pelo Estado mo- gros, armados de fuzis [mar-
derno nascente a mendigar. Nos ter- chando] pelo meio do mato.
Não se trata de uma marcha re-

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volucionária, como a cena po- çada, politicamente dinâmica, religio-


deria sugerir em outro tempo samente cínica etc.
e lugar. Eles estão com armas Desde então, o progressismo se
nas mãos e as cabeças vazias. coloca do lado das massas para
Não defendem ideologia. Não modernizá-las – e apenas para isso. É
disputam o Estado. (FREIXO, assim que o complemento lógico do
2010). simpático movimento de alfabetização
popular é o desprezo pelos incultos e
as equiparações contínuas, tão ubíquas
É impossível esconder o desaponta- na esquerda, entre as más escolhas po-
mento: por sensíveis que sejamos à cru- líticas e a deficiência intelectual. No
eldade do destino desses rapazes, o que ápice desse elitismo rubro, temos ti-
está em jogo é a percepção de que, se radas como uma recente manifestação
fossem portadores das ideias corretas, de Marilena Chaui na Fundação Per-
teríamos o que fazer com eles – mas, as- seu Abramo. Caracterizando o governo
sim, como estão, não há caminho, senão Bolsonaro como “totalitário”, a filósofa
o perecimento. encontra relevante salientar, com uma
Trata-se, em realidade, de uma ideia risada derrisória, que “seus conselhei-
fundante da variante de progressismo ros são autodidatas”, gente que “mos-
que procurou desenvolver uma simpa- tra total ausência de pensamento, de
tia pelas classes populares. Nesse sen- reflexão, a ignorância levada ao ponto
tido, a proposta original de Marx e En- máximo. O que se pode esperar? Não
gels pode ser lida como um convite a dá pra esperar nada.” (FORUM, 2019).
massas irremediavelmente despossuí- De fato, não consta que a gestão Bolso-
das para que se engajassem com entusi- naro favoreça uspianos nos rangues da
asmo no processo moderno incontorná- administração pública: que dizer, en-
vel e vitorioso. Inicialmente, comeriam tretanto, do papel dos autodidatas na
o pão que o diabo amassou – mas esta- construção do Partido dos Trabalhado-
vam condenadas à vitória: num futuro res, de seus principais quadros políti-
mais ou menos próximo, graças aos po- cos, de suas bases históricas?
tenciais internos da mesma moderni- Não se trata de uma fala desastrada.
dade que os subjugava, acabaria para Se olharmos com atenção, a cultura pro-
sempre a guerra civil. Mediante a alqui- gressista flerta continuamente com esse
mia dialética, o mesmo trabalho assala- elitismo intelectual: veja-se o fenômeno
riado contra o qual seus antepassados do Tropicalismo. Ali, na leitura de Ro-
haviam resistido até a morte tornar-se- berto Schwarz (cf. SCHWARZ, 1978),
ia sua força, porque era sua porta de jogam as peculiaridades do subdesen-
entrada para uma modernidade intrin- volvimento: o contraste entre uma rea-
secamente boa: tecnologicamente avan-

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lidade urbana conectada ao mundo de- sia comparável com o gosto das pessoas
senvolvido, e os traços localistas – ge- educadas pela alta cultura. O povo,
ralmente de tom festivo – que remetem contra o qual a guerra civil continua,
à realidade precária de quem pode ser e que, inclusive, está em guerra consigo
subempregado para ajudar na moder- mesmo, torna-se simpático na medida
nização brasileira. Acontece que o Tro- em que fala de um jeito agradável para
picalismo é, segundo ele próprio, abso- aqueles que estão no pacto civil. Os in-
lutamente genial, o que lança um juízo cultos sem fala, ali, não têm lugar: o
de valor sobre a involuntária e mortí- apetite da estetização, como o da eco-
fera arregimentação do subdesenvolvi- nomia, tem limites. Em contraste, num
mento para o desenvolvimento. “Vaca trecho particularmente eloquente do
Profana”, uma canção da década de Memórias do Cárcere, Graciliano fala de
1980, reflete de forma retrospectiva e uma elite que, com a genuína curiosi-
sintética sobre isso. O compositor con- dade dos alienígenas, inclina-se sobre o
clama a gente culta da Bahia, do Rio, de gradeado do navio para observar os pri-
São Paulo, a alçar-se “pra fora e acima sioneiros, nos porões fétidos, cantando
da manada”, ao mesmo tempo que mo- e batendo palmas animadamente.
biliza os contrastes locais para ficar no É claro que os movimentos de alfa-
mesmo plano de Gaudi e Thelonius betização popular, educação pública,
Monk (cf. VELOSO, 1984). Trata-se de luta por direitos, reforma agrária etc.,
uma mobilização ingrata, visto que, ob- têm todos algo que ver com a inclusão
viamente, a tensão com a manada per- das massas no processo moderno. Con-
manece, uma forma inculta e brega de tudo, a situação tem sempre um limite
populacho continua existindo, e os que tragicômico, visto que a modernização
se salvam dela – fazendo-o, aliás, atra- só as pode aproveitar até certo ponto.
vés do conteúdo que ela fornece – não Tal limite hoje está brutalmente claro
têm nada a dizer a seu respeito, para para aqueles setores da sociedade que
além das recriminações por breguice – recentemente ingressaram na universi-
ou seja, submodernidade. dade por meio da expansão lulopetista
De forma parecida, embora aparen- da educação superior – caracterizada,
temente mais benigna, temos a trans- aliás, por um sistema de quotas raciais
formação do idioma dos miseráveis em que, notavelmente, os tecnocratas pre-
metafísica heideggeriana na obra de cedentes não se preocuparam em im-
Guimarães Rosa. Ali, ao invés do ca- plementar. O professor universitário
bra impotente e mudo de Graciliano que, no ensino público federal, trabalha
Ramos, temos cabras que se tornam com as humanidades, encontra-se no
humanos interessantes na medida que infeliz e privilegiado lugar de apreciar
seu linguajar pode produzir uma poe- o quanto grande parte dos estudantes

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tem plena ciência de que o tempo que fantasmagórico problema das facções,
estão passando na universidade é uma no fim das contas, não dizia respeito
espécie de trégua entre o ensino mé- a outra coisa que à restrição da parti-
dio, obrigatório e inescapável, e um fu- cipação das massas no quotidiano po-
turo completamente incerto. Durante lítico. Isso porque, da mesma forma
essa trégua, a galera relaciona-se com que em Roma e no medievo, o povão da
a cultura universal metropolitana do alvorada da modernidade não era ape-
jeito que dá. Os de vocação profun- nas quem resolvia a pancadaria para
damente progressista, ou os que con- as demais “classes beligerantes”, mas
seguem antever um caminho profissio- também puxava suas próprias brigas.
nal dentro da academia – por teimosia, As consequências desse tipo de parti-
origem socioeconômica, e/ou confiança cipação política ficaram registradas na
em seu preparo prévio – mergulham Carta das Florestas, irmã conveniente-
nela tão completamente quanto possí- mente esquecida da Magna Carta in-
vel. A maioria o faz de forma relaxada glesa, resultado da Guerra dos Barões
e episódica, aproveitando o que é pos- de 1217 (cf. LINEBAUGH, 2008). Esse
sível desde o ponto de vista da reali- documento estabeleceu uma série de
dade periférica precária, divertindo-se prerrogativas para as massas campone-
com uma parte, maravilhando-se com sas que haviam participado no conflito:
outra, usando o restante pra equilibrar a acesso à terra cultivável, à madeira, à
as aprovações e as reprovações, maxi- caça e aos frutos nas florestas, à água
mizando a duração de sua experiência nas terras comuns etc. Fica ali ates-
acadêmica. Sabem que se trata de um tado que, no paradigma pré-moderno,
encontro feliz com prazo de validade ao final da guerra civil, quando as clas-
finito, porque o mundo não tem lugar ses participantes do conflito reúnem-se
para todos. para combinar os termos para recome-
çar uma vida social mais ou menos es-
tável, e registram suas condições sob a
forma de uma nova ordem legal, o po-
Fobos e Demos pulacho tem assento garantido na mesa
de negociações. Quer dizer: na ausên-
Desde o ponto de vista político, dá-se a cia do Estado moderno, a guerra civil
mesma coisa que no cenário econômico englobava realmente todo mundo.
e cultural: o desenvolvimento das insti- Isso é que precisava ser mudado, e
tuições modernas determina a política os signori foram convocados para rea-
como uma esfera específica, apartada lizar essa mudança, com a colaboração
da vida comum e das pessoas comuns. do expertise dos humanistas – sua poe-
O renascentismo refletiu sobre alguns sia grandiloquente, seu moralismo ele-
dos impulsos iniciais desse processo. O

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gante, seu conhecimento jurídico. O re- sua participação no pacto político mo-
sultado foi a segmentação da guerra ci- derno não pela força dos números, mas
vil. O pacto renascentista da oligarquia pela propriedade, pelo sangue, ou pe-
amante das letras fez com que a política los dois. A partir da inauguração do
e a vida social se tornassem uma ques- mundo moderno dos códigos citadinos,
tão de especialistas inteligentes e mer- até o grande oxímoro da democracia de
cenários pagos para bater nos iletrados. massas, as pessoas comuns perderam
Textualmente, os especialistas em polí- sua subjetividade política, e passaram
tica legaram discussões a respeito do es- a figurar forçosamente como objeto de
copo e do caráter de categorias como “o uma administração demográfica milita-
povo” e “os cidadãos”; e a tradição aca- rizada. O objetivo do estabelecimento
dêmica, por motivos escusos, resolveu da ordem social moderna foi a exclusão
identificar-se com essas categorias, ou das pessoas comuns do pacto social, e
torná-las imediatamente comensurá- esse objetivo, obviamente, se concreti-
veis com a experiência das democracias zou.
do capitalismo plenamente desenvol- Nesse sentido, é interessante atentar
vido. Autoilusão? Desonestidade? Pre- para a maneira como, não importando
guiça? Consciência de classe? Qualquer a nacionalidade – italianas, inglesas,
leitor atento que se dispa de sua ma- francesas etc. –, as penas renascen-
nia de progressismo, e se permita um tistas que começavam condenando as
pouco de ódio àquela gente abominá- facções passavam direto às imprecações
vel que capitaneou a origem da sociali- contra o populacho rude que partici-
zação capitalista, entende rapidamente pava das balbúrdias urbanas. Os in-
que o objeto daquelas categorias são as sultos – beberrões, selvagens, ignoran-
elites que, embora não pertencentes à tes – são análogos aos que, na era da
altíssima nobreza, não deixavam por luta popular contra os cercamentos dos
isso de ser minúsculas. Ao preço de campos, foram dirigidos às multidões
criar uma identificação com essas eli- campesinas revoltosas, e são, na prá-
tes, a tradição filosófica progressista de- tica, antepassados dos escarnecimentos
senvolveu mirabolantes exercícios ver- franco-ultramarinos contra o autodida-
bais cuja aceitabilidade está restrita aos tismo. No fim das contas, esse vocabu-
meios hiperespecializados e àqueles em lário bate no teto de sempre, no qual
que o hábito da fé no progressismo blin- até hoje batem mesmo nossos deputa-
daram psicologicamente contra seu teor dos de esquerda: juízos sobre a utili-
monumentalmente pelego. A rigor, no dade e a inutilidade das pessoas para
jargão renascentista, o que aqueles ter- o trabalho moderno e, daí, para a po-
mos de caráter genérico e anônimo des- lítica moderna. O populacho que é in-
creviam eram setores que garantiam culto e desordeiro – ou seja, que não

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vota direito nem age pelos proper chan- nal. O reinado inequívoco do desen-
nels – também é imprestável, ou seja, volvimento no nosso mundo das ideias
não-moderno. Nos relatórios do Banco – sempre contemporâneo ao mais tei-
Mundial dos anos 1990 e 2000, e pa- moso submodernismo social – foi colo-
peluchos do gênero, eram chamados de cada em standby. E a nêmesis antiga das
“não-integrados” ou “excluídos”. A ri- trevas recorrentes adquiriu consciência
gor contudo, esse caráter não-moderno de si sob a forma do discurso negaci-
é simplesmente equivocado, visto que onista, terraplanista, antiprogressista
a existência dessas populações se deve etc., articulado por figuras públicas fa-
inegavelmente ao processo moderno de lantes. Apareceram entre nós, nesse
expropriação, manutenção da distin- contexto, as designações de nova direita
ção entre licitude e ilicitude, limitação e neoconservadorismo: porque o velho,
da relevância econômica da população, persistente desde a época em que o es-
e pacificação civil. Os despossuídos, cravismo e o capitalismo combinaram-
o lúmpen, são criações tão modernas se sutilmente, não precisava de porta-
quanto todo o resto. Mas, essa gente, vozes.
nem a revolução salva. De fato, essa mudez é motivo de cha-
cota por aqui há muito tempo, especi-
almente desde os momentos iniciais da
redemocratização. Uma fala anedoti-
Nunca antes nesse país camente atribuída a Paulo Maluf dizia
que não existe direita no Brasil, onde
Foi então, nessa calmaria, que sucedeu todos os partidos são “democráticos” e
o horror que ora vige no Brasil. O que “sociais”. Nas décadas de 1980 e 1990
foi que aconteceu? Pelos motivos que era comum a sátira dessa ausência. Na
viemos enumerando, os diagnósticos de análise do segundo turno das eleições
retrocesso não se sustentam. É preciso de 1989 – que ficaria entre Fernando
buscar algum outro sentido histórico Collor e Lula –, um colunista do Jornal
para a ascensão das formas de estrago do Brasil falava de Ronaldo Caiado, en-
que hoje vicejam. Desde o ponto de tão do PDS, hoje governador de Goiás
vista da política eleitoral, é importante pelo DEM: “tem o mérito de ser ori-
notar que, a despeito da vacuidade da ginal no Brasil: não esconde que é de
expressão “nova política”, a irrupção direita” (MARTINS, 1989, p. 5). Na
de sociopatas desconhecidos nos execu- mesma edição, um redator adverte: “as
tivos e legislativos pelo país afora re- cassandras já propalam que o 2o turno
presenta a interrupção da manutenção dividirá o país (. . . ) se dividir, só vai
da simbologia de progressismo, desde dividir a esquerda, pois ninguém é de
sempre sustentada pelas partes até en- direita” (ATHAYDE, 1989, p. 13). O
tão participantes do jogo institucio-

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tema foi repetidamente abordado em econômicas difusas, protestos contra a


crônicas por Luís Fernando Veríssimo, modernização urbana violenta e exclu-
para quem “no Brasil, como se sabe, dente para a recepção dos Jogos Olím-
ninguém é de direita (. . . ) para ler de- picos de 2016, e uma resposta ao cha-
núncia social no Brasil (. . . ) basta ler mado midiático para o combate à cor-
um catálogo de debutantes. Todas são rupção, o golpismo tucano ganhou mo-
contra a injustiça e por um futuro mais mento, mas acabou escorrendo rapida-
fraterno.” (VERÍSSIMO, 1996, p. 9). mente por entre os dedos do establish-
Que tempos! Hoje não faltariam as ment político progressista, sendo, afi-
núbeis pedindo tiro, porrada e bomba. nal, galvanizado pela tal nova direita.
É difícil mapear rigorosamente essa Na votação do impeachment, foi o espí-
transição, mas os palpites que circu- rito dessa nova direita que brilhou: as
lam insistem em buscar o ponto de vi- alusões, regadas a escárnio e sadismo,
rada no 2013 dos protestos, das prisões aos valores familiares e às crenças re-
do mensalão, dos confrontos com a po- ligiosas; a paranoia anticomunista; o
lícia, do engajamento midiático anti- jargão da violência policial mobilizado
corrupção e antipetista. Quem esteve, para a luta anticorrupção, fizeram es-
então, nas ruas, há de se lembrar do quecer completamente as tecnicalida-
primeiro dia em que os manifestantes des contábeis originalmente mobiliza-
de vermelho e de preto foram hostili- das para iniciar o processo. O tucanato
zados abertamente por setores difusos saiu de jogo, e o projetado revezamento
porém indeléveis da multidão, até te- dentro do campo progressista foi abor-
merem por sua segurança e serem obri- tado. Aparecia um sujeito falante cole-
gados a se retirarem, por puro susto e tivo diferente, mais capaz de elaborar e
despreparo diante da existência de uma performar o vocabulário e emoções pri-
oposição naquele espaço até então por meiro balbuciados nas ruas em 2013.
“nós” monopolizado: o espaço de quem Esse sujeito chegou às desenvoltas vitó-
tem ideias políticas. rias nas eleições de 2018, que deixaram
Depois da apertada vitória de Dilma os progressistas de todos os naipes es-
Rousseff nas eleições presidenciais de tupefatos e incrédulos.
2014, e a contestação extraoficial do re-
sultado eleitoral por parte de um can-
didato cujo nome ninguém mais se re-
corda, o discurso sobre a ilegitimidade E o novo não pode nascer
do governo petista, até então apenas
moralista, assumiu contornos políticos Na figura do bizarro personagem eleito
mais precisos. Em 2015, nas manifesta- para a presidência, abundam os tropos
ções em que se misturavam demandas antimodernos no campo da forma de
expressão. Verbalizações rudes, desca-

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radamente violentas; a quebra de pro- baram substituídos por um gestor sim-


tocolo; a afronta brutal àquilo que, em plesmente displicente e privatista. A
algum momento, as classes propria- reputação do ministro da economia é
mente políticas, num sentido moderno, de tecnólogo – no fim das contas, nada
chamavam de politicamente correto. mais, nada menos, do que alguém que
É como se tudo fosse precária, porém vai oferecer boquinhas privatistas para
eficientemente calculado para ofender o empresariado e cuidar de desonerar o
os ouvidos dos progressistas. Qual- Estado: uma maior injeção de realidade
quer pretensão ao universalismo real- no universal realmente existente. É a
mente existente é abandonado: o ra- isso, na prática, que corresponde toda
cismo aberto, o particularismo religi- a verborragia bolsonarista, uma regula-
oso, a homofobia declarada, parecem gem na torneira?
buscar a erosão dos frágeis amparos do Não apenas. As violências que tive-
nosso pacto civil. ram lugar ao longo da campanha pre-
Mas como ficam esses ataques ver- sidencial de 2018 são inesquecíveis: o
bais diante da estreiteza desse pacto? mestre de capoeira negro de 63 anos es-
Seus termos, afinal, nunca foram os faqueado em Salvador por criticar Bol-
melhores e, mesmo durante os anos sonaro (G1 BA, 2019); a funcionária pú-
de benigna administração da barbá- blica espancada em Recife por portar
rie, as limitações do universalismo real- um bóton da campanha “Ele Não” (VA-
mente existente expressavam-se numa LADARES, 2021); os estudantes univer-
socialização amargamente violenta. Ao sitários no Rio que, distribuindo panfle-
mesmo tempo, em seu funcionamento tos do candidato petista, fora agredidos
quotidiano, a administração pública com barras de ferro (LEMOS, 2018); a
dessa nova direita continua sendo ad- transgênero esfaqueada por um sujeito
ministração pública e, portanto, um que gritava que, com Bolsonaro, ha-
novo capítulo da horrivelmente conti- veria guerra declarada contra os gays
nuada história da sociedade moderna. (QUERINO, 2018). Tais atos, perpe-
Não obstante a estupenda inabilidade trados durante a corrida presidencial,
do bolsonarismo, o aparato estatal con- estiveram inegavelmente conectados à
tinua funcionando, à sua maneira. Os figura de Bolsonaro; para além desse
procedimentos de desmonte do sistema contexto, contudo, qual será sua espe-
público de assistência, de flexibilização cificidade bolsonarista? A resposta a
da fiscalização ambiental etc., não são essa questão não é evidente. O perfil
exatamente inéditos e não envolvem racial das vítimas dos crimes violen-
uma engenharia institucional especial. tos no Brasil é bem conhecido há muito
Os ministros da educação, de quem se tempo; os números hediondos de vio-
esperava uma revolução cultural, aca- lência contra a mulher, idem; e, no que

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diz respeito às agressões inspiradas por preservação do país. Por significativas


homofobias, simplesmente não são pro- que sejam as mudanças recentes na le-
duzidas no Brasil estatísticas suficien- gislação e na fiscalização ambiental, um
temente abrangentes (BUENO, LIMA, relatório de 2016 da Global Witness
2020, p. 110)6 , o que denota uma longa lembrava o quanto o Brasil já era tra-
tradição de indiferença a crimes desse dicionalmente conhecido por ser recor-
tipo. Desde um ponto de vista estru- dista de assassinatos contra militantes
tural, nosso país estava preparado para da causa do meio ambiente (GLOBAL
aquelas violências, bem como para a WITNESS. 2017, p. 6.) numa época
permissividade que se supõe haver-lhes em que Bolsonaro ainda não passava de
seguido, a qual, contudo, não parece uma atração macabra em programas de
haver provocado nenhuma alteração es- variedades.
tatística significativa. Assim, por si mesmos, o racismo, a
Por exemplo, os aumentos registra- homofobia, o machismo e as insinua-
dos desde 2018 nos índices de violência ções de ecocídio do discurso bolsona-
contra a mulher não alcançaram níveis rista expressam uma realidade pree-
impensáveis antes do governo Bolso- xistente, não inauguram alguma nova
naro. Nos últimos tempos, o maior in- era de brutalidade – diferentemente do
cremento anual no número de estupros que se poderia dizer, por exemplo, do
se deu entre 2016 e 2017: de 49.497 Nacional Socialismo, tão evocado para
para 61.032 casos, uma variação de comparações retóricas, e cuja prática de
cerca de 23%. De 2018 a 2019, esse nú- segregação racial, embora bebendo do
mero sofreu uma queda de cerca de 2%: tradicional antissemitismo europeu, foi
de 67.211 para 66.348 casos7 . Mas a co- muito além dele. Mas se as violências
nhecida subnotificação do estupro, que perpetradas na campanha desaparecem
convive com uma estabelecida norma- no oceano de barbaridades do quotidi-
lização da violência contra a mulher no ano brasileiro, assim mesmo algo salta
Brasil, torna todos esses números difí- aos olhos nos episódios que enumera-
ceis de interpretar, e o que emerge dessa mos acima: o corte de classe. Não se es-
dificuldade é uma sociedade caracteris- pera que aquele tipo de coisa aconteça
ticamente e tolerantemente brutal, an- em espaços frequentados pelos parti-
tes e depois das eleições de 2018. Algo cipantes do pacto civil. Bater num es-
assim também se passa com o ecocídio tudante universitário na Zona Sul cari-
e a “passagem da boiada” nas áreas de oca, em plena luz do dia, ou atacar uma

6 O anuário denota um aumento de 6% no número de registros de crimes de lesão corporal dolosa contra LGBT entre 2018 e 2019
(de 731 para 775), e uma redução de 32% no número de registro de homicídio doloso contra LGBT no mesmo período (de 124 para
84; pp 106-107). A subnotificação é evidente e incontornável, e torna a interpretação da estatística uma tarefa complexa.
7 Os números foram extraídos do aplicativo estatístico do Forum de Segurança Pública (cf. FBSP, 2021).

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branca sentada num bar em Recife, na Danos colaterais


frente de todo mundo, seriam eventos
impensáveis fora do contexto político
acirrado que a ascensão da nova direita As agressões pontuais politicamente
provocou no Brasil. motivadas não são o único sinal de que
Nesse sentido, talvez seja correto di- a guerra civil passou a incluir os ci-
zer que o bolsonarismo introduz uma dadãos: para nós, a administração es-
mudança na natureza da guerra civil tatal da pandemia de coronavírus tem
contemporânea, trazendo a violência o mesmo significado. Enquanto escre-
para dentro dos espaços de cidadania vemos esse texto, todas as estatísticas
– no sentido original, adequadamente disponíveis parecem indicar que o Bra-
oligárquico, do termo. Lembremos que sil é o pior país do mundo na chamada
a modernidade política nasceu justa- “gestão” do covid-19, e é evidente que a
mente para evitar essa violência, es- intenção e a incompetência do governo
tabelecendo o pacto entre os cidadãos federal combinaram-se para produzir
propriamente ditos, definidos por sua esse resultado. Também é impossível
riqueza e sua cultura, e deixando de negar que o discurso negacionista teve,
fora aqueles cuja existência depende de aí, consequências práticas, sob a forma
sua relevância econômica, e contra os da sinistra insistência, por parte do pró-
quais a força bruta continuaria valendo. prio presidente e de seu círculo, em ca-
A ideia de uma campanha presidencial çoar das recomendações científicas de
violenta encaixa perfeitamente nesse distanciamento social e uso de másca-
modelo: trata-se de violência política no ras, e da prolongada recusa a organizar
sentido tipicamente moderno, diz res- uma campanha de vacinação. Setores
peito a preferências ideológicas, e por mais críticos da mídia vêm utilizando
isso ocorre nos espaços do pacto civil, a expressão “pandemicídio” para des-
entre aqueles que tipicamente se inte- crever a concretização desse macabro
ressam por essas questões. É verdade projeto de governo, apontando, assim,
que, contra as previsões horrorizadas para fora da lógica moderna da preser-
que fizemos no final de 2018, essa vi- vação da vida.
olência política diminuiu das eleições Mas até aí morreu o Neves: a rela-
para cá. Contudo, não desapareceu, ção da sociedade moderna com as pes-
prossegue vicejante nas redes sociais, soas comuns sempre foi cheia de altos
nos almoços em família, nos estaciona- e baixos. Assim, desde o ponto de vista
mentos, bares, condomínios etc., e aí há da administração social, a perda de vi-
algo a se pensar. das para o covid-19 é contabilizada se-
gundo raciocínios gerais a respeito da
significância econômica da população.
Vejam-se, por exemplo, observações fei-

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tas pelo ministro da economia, e por Quer dizer: é evidente que não foi a
membros de sua equipe: o raciocínio gestão Bolsonaro que inventou os hos-
de que a morte de idosos por covid-19 pitais lotados, as pessoas morrendo nos
contribuiria para equilibrar as contas corredores, a falta de equipamentos bá-
da Previdência (LINDNER, VARGAS, sicos e insumos elementares. Muito an-
2020), e a lamentação de que a vontade tes de existir a nova direita, o serviço
das pessoas de viver demais causa sobre público de saúde do Terceiro Mundo es-
os serviços públicos de assistência uma tava alheio aos tratamentos científicos
pressão contábil insustentável (MAR- mais avançados proporcionados pelas
TELLO, GOMES, 2021). O vocabulário descobertas das vanguardas intelectu-
brutal é característico da desfaçatez da ais da humanidade. Mesmo nos bons
nova direita, mas a ideia subjacente, de tempos em que nosso atual presidente
caráter meramente técnico, é suficien- ainda limitava sua atividade política às
temente velha: é algo do repertório do boquiabertas sonecas no parlamento e à
universalismo realmente existente, bas- medíocre organização de rachadinhas,
tante parecido com o que a mídia séria já vigia a falta de leitos no SUS, as alas
incensava nos tempos áureos do civili- de hospitais interditadas por decadên-
zado principado sociológico. cia estrutural, os pacientes de UTI aten-
Nessa perspectiva, o ovo da serpente didos em cadeiras plásticas, o abandono
caberia direitinho dentro do ninho do e a pressão para privatizar os hospitais
tucano, e estaríamos apenas diante de universitários etc.
um capítulo particularmente sangrento Também é óbvio que esse negacio-
da guerra moderna contra os economi- nismo objetivo não está limitado à ex-
camente supérfluos. Nessa linha de ra- periência social brasileira, e precede o
ciocínio, encontramos as análises po- advento do covid-19. De acordo com
líticas progressistas, com suas lamen- dados da ONU, na última década, uma
tações petrarquianas e suas acusações média de 1,7 milhão de pessoas morre-
de incompetência, ignorância e obscu- ram todos os anos vitimadas por do-
rantismo. Foca-se no aspecto subje- enças diarreicas (DADONAITE, RIT-
tivo do bolsonarismo, como se os hor- CHIE, ROSER, 2019), causadas por pa-
rores que estamos vivendo houvessem tógenos que a ciência humana conhece
brotado ineditamente da cabeça de al- e compreende desde o século XIX. A
guém. Nessa perspectiva, contudo, fica profilaxia para essas doenças, que en-
de lado o negacionismo realmente exis- volve a higiene mais básica, está invi-
tente: o descompasso moderno con- abilizada para grande parte da huma-
creto, objetivo, entre as verdades cien- nidade, e isso não se deve a uma cam-
tíficas estabelecidas e as práticas de as- panha negacionista contra o sabonete.
sistência e manutenção da vida. Segundo dados da ONU, 2 em cada 5

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AS RAZÕES DO NEGACIONISMO: GUERRA CIVIL E IMAGINÁRIO POLÍTICO MODERNO

pessoas no mundo não têm onde lavar dense Franklin Delano Roosevelt, para,
as mãos, e metade dos seres humanos sem um pingo de negacionismo, depo-
não têm acesso ao saneamento básico sitar rios de dinheiro no Projeto Ma-
(ONU, s.d.). nhattan, e iniciar a produção de arma-
Extrapolando a problemática para mentos nucleares. Não havia nenhum
outras frentes, a despeito de todos os Véio da Havan ali e, desde o ponto de
avanços científicos na produção tecno- vista da ciência moderna conforme ori-
lógica de alimentos, metade da huma- ginalmente concebida, nada de estra-
nidade está em insegurança alimentar, nho, tampouco. Francis Bacon (1561-
mais de 25% das pessoas no mundo es- 1626), oficialmente o inventor do tão
tão desnutridas, e cerca de 10% pade- celebrado método experimental, em ne-
cem de alguma doença associada à sub- nhum de seus exemplos práticos indi-
nutrição crônica (FAO et al., 2020, p. cou o emprego da ciência para a sa-
xvi). A eficácia dos alimentos para a sa- tisfação de necessidades, cura de do-
ciação da fome não é questionada por enças, auxílio em obras humanísticas,
nenhum teórico da conspiração; ade- superação da desigualdade social etc.
mais, os alimentos existem – segundo Explicitamente, Bacon só nos fala da
dados da ONU, para 10 bilhões de pes- eficácia científica para a produção de
soas (cf. HOLT-GIMÉNEZ et al., 2012) armas, a construção de edifícios altís-
– e, mesmo assim, a fome persiste. O simos para servirem de morada à elite
obscurantismo enquanto projeto inte- político-intelectual, e artigos luxuosos
lectual é supérfluo para a sociedade tais como joias artificiais e roupas bri-
moderna: a lógica das coisas moder- lhantes (cf. BACON, 1952, passim).
nas é obscurantista por si mesma, sem Essa imagem baconiana deveria nos
que ninguém tenha que jurar por terra dar o que pensar: os resultados do exer-
plana nenhuma. Diante da realidade cício intelectual interessam aos mem-
do SUS, da fome, do transporte público bros oligárquicos do pacto civil. Mas
lotado, da pobreza sistêmica etc., as ver- isso não quer dizer apenas que as pes-
dades científicas são indiferentes. soas comuns ficam de fora, mas tam-
Isso não quer dizer, é claro, que um bém que as pessoas de bem deveriam
governo e um empresariado absolu- ficar dentro – e é isso que não acontece
tamente comprometidos com a ciên- na gestão bolsonarista da pandemia. O
cia mais avançada não possam reali- que se passa é que há uma diferença en-
zar grandes coisas. Foi assim que me- tre o contexto pandêmico, de um lado,
gacorporações como a DuPont, a Kel- e as pessoas morrendo no corredor do
logs, a Union Carbide, entre outras, hospital ou da inacessibilidade da água
ouviram o chamado de Albert Eins- limpa e alimentos, do outro. A socie-
tein, e do próprio presidente estaduni- dade moderna sempre excluiu os eco-

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nomicamente inúteis e/ou substituíveis caminhadas no parapeito etc., não será


das benesses do desenvolvimento, mas um micróbio maldito que irá detê-los.
o que o covid-19 apresenta é a possi- A indiferença frente às nossas vidas,
bilidade do perecimento sistemático de contudo – à vida daqueles que normal-
membros do pacto civil. Ao contrário mente conseguem se cuidar, e que ge-
das epidemias de sarna que correm sol- ralmente estão do lado preservativo do
tas no sistema carcerário, ou a tubercu- poder moderno sobre a vida e a morte –
lose que mata nas favelas, o coronaví- é coisa nova.
rus, como se diz, não conhece muros, e É assim que fazem sentido as reme-
passa facilmente do motorista de apli- morações, hoje muito correntes, de uma
cativo para o usuário do aplicativo, do declaração emitida por Bolsonaro no fi-
faxineiro para o patrão, do padeiro para nal da década de 1990, num programa
o freguês etc. E não é preciso ter ou- de televisão. Falando sobre sua espe-
vidos muito apurados para perceber a rança no Brasil, diz que isso aqui só vai
ênfase com que, a cada nova “onda” de ter jeito “quando nós partirmos para
infecções, a mídia contabiliza os riscos uma guerra civil aqui dentro. E fazendo
não só dos hospitais públicos não da- um trabalho que o regime militar não
rem conta – o que não seria nenhumís- fez, matando uns 30 mil, e começando
sima novidade –, mas também a possi- com o FHC (. . . ). Se vai morrer al-
bilidade de lotação do sistema privado guns inocentes, tudo bem, tudo quanto
de saúde. é guerra morre alguns inocentes. Eu até
Nesse sentido, novamente, encontra- fico feliz se morrer, mas desde que vá
mos no caráter de classe da violência (. . . ) 30 mil junto comigo” (BITTEN-
uma marca específica do bolsonarismo. COURT, 2017). Ora, a guerra civil con-
É claro que, no fim das contas, quem cebida aí não é aquela tradicional, de
morre mais são os economicamente su- Petrarca, de Henrique VIII, de Thomas
pérfluos ou limítrofes, nos termos da Smith, contra as pessoas comuns: essa
guerra civil tradicional – os mesmos todos os governos vem praticando inin-
que não precisam se preocupar com terruptamente, porque é para isso, exa-
profilaxia e distanciamento social, pois tamente, que servem. Trata-se de uma
utilizam transporte público lotado, re- guerra civil contra cidadãos – especifi-
sidem em habitações de baixa metra- camente, contra os progressistas. É uma
gem, e seguirão procurando trabalhar guerra de desmodernização e, como tal,
de qualquer jeito; se já o fizeram, his- ela está funcionando: levando em conta
toricamente, a custo de dedos e braços, a proporção demográfica da classe le-
lesões por esforços repetitivos e defor- trada no Brasil, digamos que já morre-
mações ósseas, intoxicação aguda e pul- ram umas centenas de milhares de ino-
mões calcificados, andaimes precários e centes. Mas o coronavírus não conhece

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muros. tinadamente a contrariá-la, ao invés de


simplesmente manter diante dela a in-
diferença civilizacional usual.
Essa observação é importante por-
Dever-Ser que, por meio dela, fica claro que o
negacionismo enquanto doutrina – não
Como dizíamos não há tratamento ge- o dar-de-ombros popular, mas os vitu-
nético para câncer no SUS, e falta sabo- périos antivacina, terraplanistas etc. –
nete até nos banheiros das universida- situa-se, ideologicamente falando, no
des públicas, e por isso as verdades ci- mesmo campo que o progressismo: am-
entíficas constituem, para a maioria dos bos são formas de cultura no sentido
brasileiros, um assunto completamente moderno do termo, conjuntos de cren-
vão. Os cientistas do clima aperfeiçoam ças que distinguem aqueles que as pos-
modelos sofisticados e complicadíssi- suem, marcando-os como connoisseurs
mos, então utilizam suas atualizações de algo, gente especial por causa da-
quase semanais sobre a irreversibili- quilo que leu, ouviu dizer, as ideias que
dade da catástrofe para digladiarem- defende, os canais que segue, o profes-
se contra os negacionistas; ao mesmo sor de filosofia preferido etc. No fim das
tempo, os meteorologistas tradicionais, contas, às costas das pessoas comuns,
utilizando previsões calculáveis com lá- os intelectuais e os anti-intelectuais
pis e papel, não têm sucesso em pre- travam uma batalha cultural, chacoa-
caver a administração pública sobre o lhando o pacto civil.
colapso hídrico que ameaça os paulis- No caso do antiprogressismo brasi-
tanos, por exemplo. Poucos de nós cir- leiro, um dos traços mais marcantes
cunavegarão o globo e, a primeira vez de seu caráter moderno é a existên-
em que isso foi feito, foi no contexto cia de Olavo de Carvalho. Nosso Ho-
do grande genocídio ameríndio, e é por mem da Virgínia é às vezes chamado
essas e outras que, na prática, para a de guru, mas apenas critérios chauini-
maioria esmagadora dos habitantes hu- anos muito suspeitos nos permitiram
manos da Terra, faz muito pouca dife- contestar o epíteto de filósofo que ele
rença se ela tem ou não tem formato e os seus lhe atribuem. Afinal, é pro-
de pires. As questões de epistemologia fundamente apegado à inteligência e ao
ocupam apenas, de um lado, os cora- espírito e, de forma idêntica aos odia-
ções e mentes de uma reduzida casta de dores das trevas, utiliza-os como crité-
progressistas e, de outro, de sua contra- rio de discriminação. Quando justifica
parte antiprogressista – a qual, a bem seu apego pelo conservadorismo cris-
da verdade, foi a responsável por tra- tão estadunidense, fala do prazer de ha-
zer essa coisa chamada “ciência” para o ver descoberto que “o vigor intelectual
debate político, quando começou obs-

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dessa cultura é assombroso”. Defende governo da nova direita. A nossa di-


o “povo” do interior da Virgínia como reita yuppie associada ao neoliberalismo
sendo o “mais educado, gentil e civili- ocupa-se apenas de raciocínios admi-
zado do mundo” – em contraste com as nistrativos, e mesmo o entusiasmado
populações mestiçadas e os ambientes filosofar tucanófilo do final da década
cosmopolitas das grandes cidades como de 1990 era entusiasticamente confor-
Chicago e Nova Iorque, onde “a crimi- mado, essencialmente despretensioso,
nalidade é galopante e incontrolável” pragmático e conciliador. Já os nossos
(cf. GRIMALDO, CARVALHO, 2015). períodos de governo autoritário, tanto
Tratam-se de comparações no melhor os mais recentes, quanto os mais anti-
estilo do cânone moderno, como as que gos, careceram de ideólogos: durante
Francis Bacon e Thomas More – para a última ditadura, de 1964-85, como
ficarmos entre esses homens de antiga- muita gente já deixou registrado, a he-
mente – emitiriam sem ruborizar. Ob- gemonia intelectual era inegavelmente
viamente, a cultura e a incultura, a ci- de esquerda. Os milicos não precisa-
vilização e a incivilização, são atributos vam de intelectual de estimação, o re-
de grupos diferentes para os progres- gime não tinha opiniões sobre os rumos
sistas e os antiprogressistas; o critério, da cultura ocidental, e até a filha do
entretanto, é o mesmo, bem como a fi- funcionário do DOPS era famosamente
nalidade de sua aplicação, que é a dis- fã de Chicho Buarque (cf. BUARQUE,
criminação pura e simples. 1974). Isso sim é que é um Estado laico!
Também é incrivelmente irônico que Vem daí, afinal, a necessidade de com-
a proximidade que o círculo bolsona- pletar o serviço. . .
rista procura cultivar para com a pes- De todo modo, chega a ser engra-
soa de Carvalho coloca-o numa posi- çado que, enquanto do lado do pro-
ção que os pensadores progressistas, na gressismo contemporâneo, temos o uni-
sua prática diária, sempre procuraram versalismo realmente existente que dis-
constitutivamente ocupar, sem nunca pensa pensadores, do outro lado temos
haver conseguido, ficando limitados a a promessa – que alguém poderia cha-
perfis de “feice” e encontros em restau- mar de utópica – de usar o lugar polí-
rantes italianos. E isso é ainda mais no- tico de comando para a implementação
tável quando pensamos no ineditismo dos pensamentos certos, utilizando a
de um pensamento de direita entre nós. premissa moderna de que a realidade
É historicamente curioso que o único pode ser transformada numa determi-
governo a procurar associar-se enfati- nada direção pelo exercício do poder
camente com um intelectual – não um concentrado no aparato estatal. É que
tecnocrata, mas alguém que é conhe- o orgulho específico dos partidários do
cido por ter ideias – seja justamente um universalismo realmente existente não

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repousa nos seus valores civilizados – pecialistas, com seus gráficos engano-
embora prestem homenagem verbal a samente simples e o branco ofuscante
eles –, mas em sua habilidade para go- dos seus jalecos, estiveram do lado da
vernar; em contraste, como testemu- violência tecnológica, ou exigindo das
nhou o próprio Jair Bolsonaro em de- pessoas comuns que aceitassem verda-
clarações conhecidas e reverberadas, des desvantajosas. As teorias eugêni-
ele e os seus não têm nenhuma aptidão cas, a superioridade racial dos brancos,
para o governo (cf. AGOSTINE, FREI- a inferioridade cognitiva das mulheres,
TAS, 2019), e o papel histórico de seu a inviabilidade contábil do Estado de
mandato seria o de desconstruir, e não Bem-Estar, os modelos históricos que
de criar. Ao mesmo tempo, essa pers- dizem que tudo sempre foi igual e as-
pectiva maljeitosa é caracterizada como sim permanecerá, a tecnologia de admi-
uma “revolução que estamos vivendo”, nistração populacional durante o Holo-
a qual “em grande parte” é devida às causto, o risco calculado de criar uma
ideias de Olavo de Carvalho (VALOR reação em cadeia infinita quando da
SÃO PAULO, 2019). O que está em primeira detonação nuclear, as rotinas
questão, no fim das contas, é a reali- de tortura padronizadas pela CIA, os
zação mundana das boas ideias. experimentos com material tóxico pro-
movido pela DuPont em seus funcioná-
rios: a cada vez, o establishment cientí-
fico pronunciou-se e assinou embaixo,
É hora do almoço e conclusões foram emitidas muito em-
bora os processos propriamente cien-
No discurso recente dos progressistas, tíficos usados para produzi-las fossem
chama a atenção a evocação da “auto- completamente opacos para as pessoas
ridade científica” e o apelo à “crença comuns. Esses processos – aquilo que
na ciência”. Esse vocabulário curioso poderia ser chamado de descoberta ci-
destoa de um espírito cético que parte entífica – ocorrem por trás das mura-
do iluminismo francês havia procurado lhas sempre crescentemente mais inex-
explorar, e que dizia respeito a um po- pugnáveis da sofisticação técnica e da
der propriamente científico de destruir divisão social do trabalho. O corte ra-
as autoridades estabelecidas e as cren- cial, de gênero e de classe dos pesqui-
ças inamovíveis, devido à enxurrada sadores soma-se aos interesses dos fi-
perpétua de novidades. Mas a escolha nanciadores para produzir um discurso
de palavras dos progressistas contem- com uma marca sociológica muito pre-
porâneos que se distancia dessa pers- cisa, mas um aspecto indiferentemente
pectiva não é acidental. Ele é perfei- autoritário. A divulgação científica e
tamente adequado a todos os momen- o estímulo à ciência obedecem lógicas
tos da história moderna em que os es-

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obscuras, que fazem com que os enunci- ções modernas e para quem o ateísmo
ados científicos tenham, objetivamente, maníaco dos progressistas não levaria
o aspecto de enunciações oraculares – a nenhuma vantagem prática. Dessa
as quais Francis Bacon defendia que de- forma, diferentemente dos progressis-
veriam ser o mais diferentes possíveis tas e dos antiprogressistas, as pessoas
da linguagem das pessoas comuns (cf. comuns talvez não tenham problemas
BACON, 2000). Às vezes, essas enun- de ordem estritamente cultural, por-
ciações estão do nosso lado, ideologi- que, para quem vive nas margens da so-
camente falando – como no caso da ci- ciedade moderna, não ocorre realmente
ência do clima, o materialismo dialé- uma separação entre, de um lado, as
tico etc. Sempre, entretanto, são mem- ideias defensáveis e indefensáveis, e, de
bros de nossa classe que as operam, outro, a reprodução material. Esse, no
mapeiam, interpretam, implementam, fim, é o pecado das populações que não
emitem. têm o bom senso de ocupar-se do que
Dado aquele aspecto de revelação, pensam, desejam e planejam os pro-
não é estranho que, mais cedo ou mais gressistas.
tarde, as demandas para que as pessoas De fato, quando Marilena Chaui
comuns aceitem a verdade da ciência ri dos autodidatas, ou quando algum
assumam o caráter do insulto. Quem amigo querido vocifera contra o gado
“não acredita” na ciência é estúpido; a ignorante, o que vem à tona é que o
alternativa a dizer isso seria, de fato, conhecimento, a ciência, a cultura etc.,
explicar a ciência, o que é impossível são contrassenhas que os membros pro-
para quem não tem muito tempo so- gressistas do pacto civil moderno usam
brando e nem conhecimento prévio, de para se reconhecer. Para além do al-
tal modo que, na prática, é o perfil de cance dessas contrassenhas – ou seja,
classe que determina os fundamentos entre quem está dentro e quem está fora
daquela crença. Quando levamos em do pacto –, não há nem fala comum,
conta a questão da religião, isso fica nem dívida de civilidade. Repetem-se,
ainda mais evidente. Aqueles que, se- aí, as condições que vigiam entre os ín-
gundo o jargão progressista, se deixam dios canibais e Pedro II, o Pacífico: a
levar pelo discurso “medieval” dos pas- única relação possível é a guerra. Como
tores etc., são os mesmos que precisam os frequentadores de refeições em fa-
da própria igreja e da comunidade em mília sabem muito bem, e os teóricos
torno dela para ter o que ler, o que da primeira modernidade também já
cantar, com quem conversar, aonde ir sabiam, muito mais do que ser um fun-
no fim de semana, com quem pegar damento para a socialização e a civili-
dinheiro emprestado etc. São pessoas zação, a racionalidade é um resultado
que estão além do alcance das institui- de um acordo comum que, inexistindo,

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torna o “intercâmbio de ideias” impos- No news is good news


sível. Primeiro você concorda – per-
tence à sociedade civil, é portador de
certas distinções raciais, econômicas, O negacionismo anticientífico e a des-
culturais – e só depois você conversa so- confiança frente à mídia têm o mesmo
bre as coisas. É assim desde Aristóteles: fundamento sociológico. O caráter au-
para ele, a política não era um atributo toritário do aparato tecnológico de in-
dos animais racionais, mas, ao contrá- formação frente às pessoas comuns é
rio, a racionalidade era um atributo do tão incontornável quanto o caráter ora-
animal político, de modo que os ateni- cular da divulgação científica – inde-
enses não faziam a pólis por serem ra- pendentemente do posicionamento que
cionais, mas podiam ser ditos racionais sai da boca do âncora de TV. Para além
porque faziam a pólis; e os escravos não do jornalismo investigativo que obe-
estavam fora da vida política por se- dece os parâmetros empiristas da veri-
rem irracionais, mas podiam ser ditos ficabilidade, sempre se chega no plano
irracionais porque estavam fora da vida das coisas que realmente importam,
política (cf. ARISTOTLE, 1992). No onde vige a opacidade social normal da
limite, o astronauta Buzz Aldrin é cele- modernidade: os interstícios da negoci-
brado por ter dado um soco na cara de ação política, a incompreensível capa-
um sujeito que negava que “o homem” cidade de acumular e exercer poder por
houvesse chegado a Lua, e chamava-o parte do Estado. Estamos, novamente,
de mentiroso (cf. THORNHILL, 2021). no âmbito da incontornável e determi-
A alternativa seria levar o negacionista nante divisão social do trabalho – as in-
para o espaço – o que é impossível por formações privilegiadas trocadas com
questões contábeis, para não falar de se- fontes exclusivas por informantes com
gurança militar – ou convencê-lo a con- circulação livre em esferas que, para os
fiar nos meios de comunicação, coisa meros mortais, são inacessíveis; os ga-
que os chamados teóricos da conspira- binetes onde se entra por amizade; as
ção não estão dispostos a fazer, talvez reuniões em que se penetra por indi-
seguindo os passos dos próprios pro- cação; as entrevistas que se obtém por
gressistas, que, por muito tempo, ocu- troca de favores etc. Numa leitura de
param sozinhos o posto de vanguarda Roberto Schwarz, o pano de fundo dos
crítica da ideologia e denunciadora das noticiários televisivos, onde se vêem
mentiras contadas na TV. os bastidores repletos de máquinas e
de trabalhadores, buscam revestir essa
opacidade com uma aura de objetivi-
dade científica, cujo sentido, contudo,
não é outro que a demonstração do
poder econômico necessário para fa-

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zer girar as engrenagens da informa- financiar, também ilegalmente, grupos


ção. É preciso acreditar nas notícias paramilitares na Nicarágua, colocam no
porque é impossível à maioria de nós chinelo qualquer assim chamada “teo-
produzi-las e difundi-las na escala que ria da conspiração”. E o infeliz que tem
está ao alcance dos jornalistas predomi- contato com o público de classe média
nantemente brancos e de classe alta, e estadunidense sabe do ceticismo que
das megacorporações que, obedecendo afeta, mesmo os “liberais”, diante do
sabe-se lá a quais critérios, resolveram fato do envolvimento da CIA nos gol-
empregá-los. pes militares da América do Sul. No
Objetivamente, isso significa que fim das contas, as inúmeras mediações
qualquer informação, mesmo a acu- envolvidas no processo de obtenção das
rada, tem o aspecto de verdade reve- informações a respeito dessas tramoias,
lada. Mas também os próprios fatos bem como a própria natureza mirabo-
narrados são indistinguíveis de cons- lante dos planos, torna-os tão incríveis
pirações. Quando a CIA envia secre- para a pessoa comum quanto histórias
tamente um esquadrão de elite num sobre OVNIs. Parafraseando Wilhelm
helicóptero para dentro do território Reich, o grande mistério não é de onde
Paquistanês, sem comunicar-se com o vieram os negacionistas e os conspira-
governo desse país, de modo a assassi- cionistas, mas sim o que fundamenta a
nar um sujeito chamado Bin Laden, e crença das pessoas de bem nas coisas
depois dispõe do corpo como bem en- que realmente aconteceram.
tende, sem sofrer nenhuma sanção in-
ternacional, a realidade desse aconte-
cimento se torna indiferente: a escala
do poder envolvido torna a veracidade Contracultura
da informação irrelevante. Cada mem-
bro do público que assiste a reporta- Desde o ponto de vista sociológico, o
gem a esse respeito poderia, objetiva- que há de errado é o fundamento ir-
mente, estar no lugar de Bin Laden: ser racional da sociabilidade racional. Por
desaparecido, raptado, assassinado, ter causa dos códigos de conduta, da bran-
o cadáver ocultado, perecer a tiro ou quitude, e da divisão do trabalho, a
esganado sob os joelhos de um oficial crença na ciência e no noticiário, é fá-
qualquer de uniforme, ou sem – como cil e natural para a classe que a pro-
sabem muito bem as populações eco- duz, e não para as demais classes. O
nomicamente supérfluas. Da mesma discurso progressista atribui um valor
forma, um caso como o Irã-Contra, em universal para os produtos da atividade
que a CIA facilitava a venda ilegal de ar- dessa classe, na esteira das primeiras
mas para o regime iraniano de modo a elites letradas modernas, que se deno-
minaram nada mais nada menos que

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humanistas. Mas essa retórica não é porém inevitável, o homem de preto


nem de longe suficiente para eliminar o narrador avisa: “o inimigo agora é ou-
gesto classista e arbitrário que instaura tro”. E é assim que, ao longo do filme,
a modernidade cultural. A própria di- o maconheiro da PUC é estapeado, a
visão social do trabalho, que determina mocinha branca da ONG é executada, o
o aspecto oracular da ciência e das notí- rapaz metido com política e que vendia
cias, remete ao caráter restrito do pacto drogas é queimado vivo, e o sobrevoo
civil moderno e à guerra civil decla- final mostra a estética modernista do
rada. As pessoas comuns convivem com Congresso Nacional, numa alusão aos
isso há séculos, e tocam sua vida como progressistas então governantes.
dá, numa mistura de pragmatismo, de- Mas o antiprogressismo se volta con-
sespero, autoconvencimento e contra- tra a cidadania desde dentro: da mesma
venção. Já os antiprogressistas voltam forma que o progressismo, a condição
aquele caráter alquebrado contra o pró- de possibilidade para o antiprogres-
prio pacto civil: os inimigos específicos sismo é a distinção socioeconômica da-
de seu discurso paranoico – os gayzis- queles que o proferem. São oriundos
tas, feministas, comunistas, pedofilis- do meio social dos cidadãos no sentido
tas, corruptos, racistas reversos etc. – estrito: suas roupas, seu endereço, sua
não são membros da massa economica- cor, garantem que suas declarações an-
mente supérflua, mas cidadãos ameaça- tiprogressistas não terão consequências
dores. práticas violentas. Ademais, conhecem
É claro, o elemento policialesco de o bastante da cultura progressista para
combate à “criminalidade” e o racismo entender e emular sua aura: frequen-
intrínseco do antiprogressismo torna-o taram a escola pelo menos o mínimo
partícipe da guerra civil moderna tra- suficiente para aprender a represen-
dicional, desencadeada contra as pes- tar suas ideias a respeito da realidade
soas comuns sem posses nem nome de com autoridade e entusiasmo. Vale
família: mas é que essa guerra está ga- para o antiprogressismo o que Theo-
nha. É por isso, aliás, que é possível e dor Adorno disse a respeito da astro-
necessário expandir o front para cima logia (cf. ADORNO, 2008): ele deve
dos cidadãos progressistas. Essa lógica sua existência à tendência do indivíduo
foi profeticamente explicada pelo filme educado a aceitar formulações sistemá-
Tropa de Elite II, que tão generosamente ticas repetidas com vigor, combinada
contribuiu para a autoconsciência ge- à opacidade do funcionamento social –
nocidária brasileira. Depois de passar do Estado e do governo tanto quanto da
dois filmes inteiros matando e tortu- ciência e da mídia – e à impossibilidade
rando negros economicamente supér- de dar um uso prático para a razão, a
fluos numa guerra às drogas irracional, qual os próprios progressistas atestam

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com seus universais capengas do pre- em mangas de camisa, com os microfo-


sente ou perpetuamente adiados do fu- nes apoiados numa prancha de bodybo-
turo. ard (cf. MARQUES, 2018), seu desres-
Assim, a origem do antiprogressismo peito pelo misancene usual foi perfei-
está na repetição da arbitrariedade do tamente adequado à consciência social
progressismo: são gente que simples- que, em contato imediato com a preca-
mente ousa desprezar a alta cultura riedade social constitutiva da periferia
progressista porque ela pode ser des- do capitalismo, havia acompanhado o
prezada, e porque é possível instaurar processo esculachado do impeachment,
outras referências culturais na base da e colocado-o lado a lado com as citações
mera convenção. O que faz com que em latim e a pose canastrona de Michel
os progressistas passem raiva é exata- Temer. Nesse sentido, o antiprogres-
mente isso: o fato de que, no fundo, sismo comunica-se com a indelével per-
a tradição progressista não era susten- cepção das contradições e dos limites
tada por seu valor intrínseco, e seu mo- da civilização moderna – contradições
nopólio da cultura pode ser destruído que os progressistas desejam resolver
facilmente por um monte de autodida- positivamente, e limites que pretendem
tas com celulares mais ou menos bara- sempre adiar mais um pouco, enquanto
tos e uma certa quantidade de tempo de o dia D não chega.
conexão. É claro, entretanto, que esse popu-
Mas, embora armados de uma forma lismo de direita tem limites muito cur-
de cultura tanto quanto os progressis- tos. Como já ensinou Roberto Schwarz,
tas, os antiprogressistas tiveram mais o luxo de obedecer e desobedecer a re-
sucesso que eles – incluindo os radi- gra moderna é reservado aos poderosos:
cais, que são, no máximo, um nicho, a desfaçatez é um privilégio de classe.
e não elegeram presidente – em repre- O mundo em que o presidente socio-
sentar a falsidade do pacto social mo- pático fala de jeito afrontoso e se veste
derno para as pessoas comuns. Esse é com simplicidade é o mesmo mundo
o lado dito populista da estética bol- em que a UPP Social promete ensinar
sonarista: o vocabulário escrachado, o as pessoas a falarem e se vestirem de
gestual alterado, o jeito escroto de fa- modo a não serem confundidas com
lar, as imagens simplistas, procuram bandidos e assassinadas pela polícia
sempre evocar o clima de uma reunião (cf. OLIVEIRA, 2013). O próprio im-
familiar em que todos são pessoas co- peachment – novamente, numa leitura
muns odiando juntos os malditos da de Schwarz – opera no mesmo regis-
vez. Quando, em novembro de 2018, tro descarado: o desrespeito às regras
depois da oficialização de sua vitória políticas de uma sociedade caqueirada
nas urnas, Bolsonaro deu uma coletiva “não favorece igualmente o campo po-

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pular e o campo das elites” (SCHWARZ, ção de impostos para fabricantes de ar-
2015)8 . E, no fim das contas, depois da mas de fogo, reprimindo protestos do
performance antiprogressista, a nova movimento civil etc.: sendo antipro-
direita faz uso da estrutura de governo gressistas, não são realmente antimo-
do Estado moderno. dernos. E, no fundo, da mesma forma
Assim, por um lado, é verdade que que os progressistas, têm seu próprio
os antiprogressistas, e aqueles que os apreço secreto pela primeira das “déca-
escutam, parecem ter perdido a fé nas das de ouro” do pós-guerra: não pelo
instituições modernas. Mas essa perda advento do Estado Social, mas porque,
de fé tem, no fundo, certa afinidade então, as pessoas andavam com o cabelo
com a crítica imanente dos progressis- arrumado, podiam ter casa própria, e os
tas: enquanto estes últimos acreditam hippies ainda não existiam.
que a sociedade moderna eventualmente
ficará à altura de si própria, os antipro-
gressistas acreditam que essa civiliza-
ção já foi decente um dia. Por um lado, Facções
denunciam com palavras ou na prática
a falsidade daquilo que os progressis- Quando uma estrutura de governo mo-
tas dizem ser o caráter propriamente derna combina-se ao escancaramento
moderno dessa sociedade: o universa- antiprogressista dos limites do pacto
lismo e todas as suas derivações, desde civil moderno, e da arbitrariedade de
o caráter laico do Estado até o globa- seu fundamento, o resultado é um go-
lismo, os direitos humanos, a separação verno que tem lado. No fim das con-
entre o público e o privado, a igual- tas, ainda quando não o reconhecem,
dade de raça e de gênero etc. Ao mesmo os antiprogressistas procuram dar um
tempo, evidentemente, têm uma visão determinado sentido à administração
de mundo centrada na pequena e média estatal moderna. Por um lado, essa ad-
propriedade privada, pautam-se numa ministração estatal está determinada
forma de vida e num conjunto de ideias pela exacerbação da performance pri-
que são as dos brancos, e aderem a uma vatista e monetarista do período ante-
concepção, ao mesmo tempo, individu- rior. Por outro lado, existem princípios
alista e policialesca de sociedade, que é especificamente antiprogressistas por
inviável sem um Estado moderno forte trás dessa operação. A velha percep-
tomando conta das fronteiras, regu- ção de classe média, de que os critérios
lando o sistema bancário, dando isen- de utilidade econômica, estreitíssimos,
ameaçam expulsar parte dos cidadãos

8 Como todos sabem, mesmo se, eventualmente, vingasse algum dos inúmeros pedidos de impeachment contra Bolsonaro, o que
estaria em jogo seriam acordos escusos entre players de alta patente.

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dos círculos da cidadania, combina-se ção humanística da barbárie, contava


com um desgosto ou uma indiferença com ex-guerrilheiros entre seus qua-
diante dos serviços estatais que, tra- dros. Ou seja: também tinha lado.
dicionalmente, os cidadãos obrigaram A beligerância discursiva que resulta
a sociedade como um todo a prestar a dessa leitura de mundo flerta com o
eles mesmos. A implicância insistente quadro pré-moderno de luta facciosa
com a tradicional hegemonia progres- em que todas as forças políticas se di-
sista nos ambientes da educação supe- gladiavam em pé de igualdade: de
rior, das artes e das ciências reflete a acordo com o vocabulário e o alar-
consciência de que parte dos progres- mismo empregados, os esquerdistas,
sistas já teria decaído para o plano dos gayzistas etc., são partes atuantes numa
despossuídos matáveis não fosse o gasto guerra civil de fato. Contudo, evidente-
de recursos públicos. Sem participa- mente, por causa da indestrutibilidade
rem desse universo e sentindo-se difu- do Estado moderno, o momento primi-
samente oprimidos por uma lógica so- tivo de guerra de todos contra todos é
cial opaca, revoltam-se contra a carga irrecuperável.
tributária, a corrupção, a Lei Rouanet Assim mesmo, a manutenção do dis-
etc. Do outro lado, os progressistas sem curso paranoico tem convivido com
financiamento, preocupantemente des- um cuidadoso entrincheiramento po-
providos de perspectivas, falam da in- lítico: a repetição de posicionamentos
viabilidade de sua forma de vida e de infames a respeito do que quer que
seus valores como se fosse o colapso da seja, de modo a mobilizar uma rea-
civilização ocidental, enquanto que as ção da opinião pública progressista,
pessoas comuns, que historicamente fo- que, por sua vez, retroalimenta a zanga
ram arrastadas para dentro dessa civili- dos vinte e poucos por cento do elei-
zação a contragosto, só ocasionalmente torado que se identificam com o bolso-
podem perceber se existem ou inexis- narismo em qualquer dos mundos pos-
tem políticas públicas de cultura. síveis. Ao lado dessa estratégia ideo-
O projeto de inanição dos profis- lógica, desenvolve-se uma outra, com
sionais da cultura, bolsistas de pós- consequências práticas significativas: a
graduação, professores etc., e a tenta- reconfiguração e a politização das for-
tiva de promover legislação para con- ças policiais. Aí, o escancaramento da
trole dos costumes, não esgota a luta guerra civil e a desfaçatez da tomada de
contra os inimigos onipresentes. O go- lado adquirem configurações bastante
verno esquerdista anterior, embora pre- concretas. É nesse sentido que deve
cariamente, realmente permitiu a ins- ser entendida a criação de uma polícia
tauração de uma Comissão da Verdade, legislativa com atribuições duvidosas,
desenvolveu estratégias de administra- funcionando num limbo institucional,

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mas desempenhando funções investi- tro do funcionamento institucional nor-


gativas (cf. VARGAS, 2021), e também mal, a defesa dos seus etc. De fato,
o inchaço da Força Nacional e seu em- a contexto brasileiro admite variações
prego em operações dos mais diversos bastante coloridas dessa ideia. Alguns
tipos, inclusive em substituição das cor- anos atrás, um quadro petista fez uma
porações institucionalmente configura- interessante análise dos famosos “er-
das para atuação no sistema carcerário, ros do PT”. Em outras palavras, disse
ou na segurança ambiental. Ao mesmo que, na prática, a corrupção é endêmica
tempo, assistimos o desenvolvimento e a acochambração das contas públi-
de laços especiais entre as polícias mi- cas incontornável; por isso, o lulope-
litares e o governo federal. Propaga- tismo havia investido num Ministério
se um discurso favorecendo a atuação Público e numa Polícia Federal inde-
inimputável dos agentes, e forçando pendentes, para que, no momento ine-
uma tensão política com o legislativo, vitável em que se produzisse – por inte-
como quando do projeto de lei do exclu- resses políticos – um escândalo qual-
dente de ilicitude (cf. FRAZÃO, 2021). quer, o centrão ficasse com medo de
Tenta-se criar, mediate mobilização de ser tragado pela tempestade de merda
recursos da Caixa Econômica Federal, e, então, acabasse optando por man-
vínculos econômicos entre a união e as ter o pacto petista funcionando. Eis
forças policias estaduais, promovendo uma saída mais sofisticada que o apa-
uma linha de crédito especial (cf. WI- relhamento, e um raciocínio político de
ZIACK, et. al. 2021). Finalmente, são interesse para nosso presente questio-
abundantes os indícios de uma rela- namento: por um lado, moderniza-se
ção entre o bolsonarismo e as organi- as expressões investigativa e punitiva
zações paraestatais milicianas, sabida- do aparato estatal de modo a tornar
mente operadas por ex-integrantes das arriscado demais produzir uma que-
polícias militares, bombeiros etc. Quer bra do pacto civil; por outro, realiza-se
dizer: quando a nova direita escancara essa modernização apenas de modo a
o quadro de crise do pacto civil, o apa- manter a precariedade administrativa
rato estatal moderno começa a atuar funcionando de maneira indetectável:
como uma facção, projetando sua ca- permite-se à sociedade que trate como
pacidade de exercer poder para fora do inexistente a falência das instituições
quadro institucional em torno do qual em torno das quais o pacto civil existe,
o pacto civil se organiza. no interesse da evitação de uma tran-
Isso é diferente do que normalmente sição de poder. Na perspectiva do pro-
se chama de aparelhamento: a indi- gressismo disposto a governar, é preciso
cação de superintendentes, fiscais, mi- que tenha lugar alguma forma de simu-
nistros do Supremo para garantir, den- lação de normalidade.

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Em contraste, a nova direita flerta nicamente, remete a um interesse na


com a possibilidade de abrir mão dessa verdade. Entre nós, a derrocada do lu-
simulação – sem, ao mesmo tempo, tra- lopetismo, no momento em que o pro-
zer à luz a real natureza do anormal. O jeto progressista alcançava seu ápice e
pacto civil é representado como repou- seu limite, e a eleição de Bolsonaro e
sando em uma mentira por causa do de figuras como ele, remete a uma von-
esquerdismo, do gayzismo, ou de algo tade de ver o circo pegar fogo – não
que o valha; por isso, já existiria uma mais de escutar alguém dizendo que as
guerra civil em curso, e a preparação de coisas vão melhorar, de que é só uma
terreno para uma quartelada policia- questão de jogar o jogo direito, mas de
lesca generalizada representaria apenas que é preciso virar a mesa com as cartas
um capítulo qualquer de uma norma- e tudo. Esse ceticismo foi mobilizado
lidade já belicosa. Ao mesmo tempo, pela direita porque, apesar da popu-
o presidente é incorruptível, e o movi- laridade da ideia de revolução nos re-
mento das engrenagens do maquinário duzidos círculos progressistas radicais,
administrativo é algo de que ele con- sua inteligência dialética apela conti-
fessa não entender nada – não lhe diz nuamente aos termos da modernidade,
respeito, para isso existe uma equipe de modo que só os especialistas enten-
tecnicamente competente etc. O acordo dem sua diferença diante de um pro-
tácito em torno da noção de uma opera- gressismo latu sensu combinado a um
ção estatal perfeita é mantido incólume, banditismo comum.
e a ideia de precariedade cívica é des- Ao mesmo tempo, a resposta ao in-
locada para o plano ideológico. Junto teresse das pessoas comuns na alque-
ao colo de um Estado moderno minimi- brada verdade da modernidade é uma
zado e penal, um pacto civil imaginá- espécie estranha de populismo episte-
rio se estabelece entre pessoas de bem, mológico, um fenômeno estritamente
contra os progressistas que cumpre des- cultural. Existem coisas muito mais im-
locar – e, também, contra os economi- portantes na vida do que representa-
camente inúteis, o que, contudo, não é ções adequadas e, enquanto o jogo de
novidade. administração da barbárie está funci-
onando de maneira minimamente sa-
tisfatória, pouco importa se o funda-
mento do pacto social é verdadeiro ou
Os comedores de salsichas falso – ou mesmo o preço que se paga
em termos de vidas economicamente
O antiprogressismo apela ao ceticismo supérfluas. Afinal, em todos os regi-
das pessoas comuns diante da ciência, mes possíveis, o caráter exterminista
da mídia, do pacto civil e da adminis- da administração pública fica evidente,
tração estatal modernos; com isso, iro-

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a existência palpável de um pacto ci- de vista psicológico, não surpreende


vil limitado sempre está presente para que a amarga decepção com essa ma-
todo o mundo o tempo inteiro, de modo gia da satisfação material tenha exigido,
que a vontade de ver a afirmação ex- em seguida, a entrega ao deleite com
plícita dessa violência onipresente tem, um comportamento via de regra deslei-
no fundo, o caráter de uma excrecência xado, frequentemente odioso e muitas
masoquista. vezes brutal. Em comparação, a figura
Essa ideia de um comportamento de Fernando Haddad, evocando a ideia
eleitoral perverso permite-nos entrar progressista da manutenção de uma ad-
num plano afetivo de discussão que não ministração competente, não proporci-
costuma ter lugar nos esquemas raci- onava nenhuma satisfação imediata, e
onais dos progressistas, mas no qual talvez fosse indistinguível da tecnofi-
residem diferenças irredutíveis entre lia tucana cuja consequência é, afinal,
as últimas experiências políticas bra- o abraço presunçoso do universal real-
sileiras. A superioridade condescen- mente existente.
dente de FHC; o entusiasmo deslum- Talvez sejam justamente as finalida-
brado do Lula; a falta de jeito da Dilma, des especificamente modernas do go-
possível enquanto dura a bonança; a verno que, desde a Era FHC, as pes-
cortesia cadavericamente enrijecida de soas comuns parecem consistentemente
Temer; a arrogância propositalmente recusar. Mais profunda do que a von-
grosseira de Bolsonaro são posiciona- tade de ver a nova direita falando a ver-
mentos determinados diante da ques- dade a respeito do pacto civil detonado,
tão da norma civilizada que encarnam, talvez seja o pragmatismo diante de
no plano dos caracteres, pensamentos a um pacto moderno desvantajoso, o sim-
respeito da modernização. No lulope- ples descrédito da administração social
tismo, a propaganda centrada na pos- racional, a má vontade frente ao Es-
sibilidade de uma fruição despreocu- tado moderno. Nesse sentido, a ques-
pada combinava-se às discussões sobre tão da satisfação psíquica com imagens
renda mínima, as políticas de desone- não é pueril: ela é tão mais importante
ração e estímulo ao consumo, a ideia quanto menos lhe dão atenção as análi-
de uma prazerosa abundância e a ima- ses políticas sérias, orientadas pelos va-
gem de um presidente muito contente lores racionais progressistas, questões
consigo mesmo. A especificidade do de conjuntura, frações de classe etc.
afeto que essa propaganda evoca nas Aquela má vontade tem várias ex-
pessoas não é desprezível. Aconte- pressões, e talvez a mais eloquente seja
ciam coisas que nunca haviam aconte- a maneira como a vida privada entra no
cido nesse país, não se tratava de téc- discurso político – especialmente na te-
nica, mas de milagre. Desde um ponto matização da família e do mérito pes-

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soal, algo com que o antiprogressismo o direito ao trabalho, à educação, à as-


sabe dialogar. Esses temas foram privi- sistência etc.
legiados por uma interessante pesquisa Essas alusões setecentistas e oitocen-
promovida pelo PT em 2017, em res- tistas, pelas quais o imaginário progres-
posta à qual os habitantes das perife- sista está colonizado, caracterizam-se
rias paulistanas puderam deixar claro pela ausência de qualquer tensão in-
seu desinteresse nas ações no âmbito terna contra o processo moderno. Por
público, experimentadas sempre como isso, são surdas aos aspectos mais ra-
precárias e insuficientes, e sua percep- dicais daquelas impressões populares
ção do Estado como uma espécie de inamovíveis que, século após século, in-
inimigo das pessoas comuns, em razão variavelmente frustram as expectativas
da imposição contínua de obrigações, dialéticas. Se voltamos nossos olhos
impostos, restrições, más notícias etc. para o século XVI, onde toda essa des-
(cf. PESQUISAS FPA, 2017). A fun- graceira começou, temos a chance de
ção do governo, nessa visão, deveria ser refrescar nossa memória a respeito dos
proporcionar a existência de uma reali- motivos pelos quais as pessoas comuns
dade econômica suficientemente dinâ- teimam em recusar as generosas pro-
mica para que as pessoas pudessem cui- postas da modernidade. Ali, na época
dar de sua própria vida. em que o cercamento dos campos espa-
Desde uma perspectiva progressista lhava a miséria, e o genocídio dos vaga-
radical, trata-se de uma posição equivo- bundos começava a criar problemas de-
cada e retrógrada. Especialmente desde mográficos, a Coroa inglesa aprovou as
o Dezoito Brumário, as pessoas comuns infames Leis dos Pobres, as quais pre-
que pensam na vida privada são vis- viam, em suma, o armazenamento de
tas com desdém: impedidas, por debi- pessoas em oficinas de trabalhos força-
lidade intelectual e imaginativa, de an- dos e a distribuição de alimentos. Não
tecipar as maravilhas de um Estado so- era incomum, entretanto, que os com-
cialista, ficam condenadas a desprezar boios que carregavam os grãos a se-
as mediações históricas, e deixar-se le- rem distribuídos pelos comissionários
var por qualquer oferta imediata de lin- da Coroa fossem atacados e apropria-
guiças. De fato, já a grande Revolu- dos pelas pessoas comuns, que então
ção Francesa, mãe de todas as promes- encarregavam-se de realizar a distribui-
sas progressistas, teria tido seus rumos ção com suas próprias mãos. Desde
propriamente modernos embarreirados um ponto de vista administrativo, esses
pela preocupação campesina com a re- ataques eram, evidentemente, desne-
forma agrária e a propriedade privada, cessários e contraproducentes. Por ou-
em detrimento da fixação de garantias tro lado, o ser humano vinha desenvol-
sociais a serem entregues pelo Estado: vendo, há um milhão de anos, o hábito

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de prover pelo seu próprio alimento ar o verão inteiro, ao invés de labutar. O


através da lida direta com a terra, e a ponto de chegada dessa política primi-
ideia de conferir ao Estado um lugar de tiva, pré-moderna, era a satisfação di-
mediação para a subsistência não pare- reta e imediata de necessidades. Para
cia, compreensivelmente, muito anima- desgosto dos progressistas, essa exigên-
dora. cia, ao mesmo tempo, pueril e perfei-
Da mesma forma, é interessante ob- tamente razoável ainda se encontra na
servar o caráter de satisfação imedi- mentalidade das pessoas comuns que,
ato envolvido nas negociações políti- diante dos ouvidos moucos dos dialé-
cas e nos numerosos episódios de re- ticos, vão encontrar quem lhes escute
beldia, que foram incessantes até o ad- no pentecostalismo e no populismo an-
vento dos exércitos nacionais. Na su- tiprogressista de direita.
pracitada Carta das Florestas, o que o De fato, nos meios propriamente pro-
populacho participante da Guerra dos gressistas, o “populismo” só evoca re-
Barões garantiu para si mesmo não foi pugnância. Isso é curioso. Em con-
que alguém lhe desse comida, ou lhe junção com esses sentimentos, o que
vigiasse as ovelhas, ou lhe desse tra- o termo denota é a ideia de que fazer
balho, mas que ninguém o impediria exatamente aquilo que as pessoas co-
de acessar os recursos necessários para muns gostariam que fosse feito é es-
que, com suas próprias mãos, fosse pro- truturalmente contrário à administra-
duzido todo o necessário para sua sub- ção pública responsável – algo que diz
sistência. Ademais, no lugar do que os mais a respeito da natureza da “gover-
modernos chamariam de luta política, nança” moderna do que sobre o cará-
o que se estabelecia era um regime de ter dos populistas. Mas, se é possível
vida diferenciado. As rebeliões popula- ganhar uma eleição com promessas tec-
res mais famosas, que mobilizavam os nicamente inadequadas, isso também
imaginários das pessoas comuns por ge- significa que, no fim das contas, por
rações a fio, não eram apenas aquelas meio de suas relações com o aparato
em que se alcançavam importantes vi- moderno, as pessoas comuns – origi-
tórias na manutenção ou restauração do nalmente, modernizadas a contragosto,
acesso direto à terra, mas eram também como mostra a história da colonização
aquelas em que os rebeldes divertiam- e da acumulação primitiva – buscam
se às pampas assaltando as despensas finalidades não-modernas. Depois de
da aristocracia, bebendo seu vinho e co- todo esse tempo, merecem, no mínimo,
mendo seu presunto, de pernas para o uma menção honrosa pela tenacidade.

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PEDRO ROCHA DE OLIVEIRA

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