Você está na página 1de 1

NOVA VENÉCIA-ES

Sexta-feira, 29 de janeiro de 2021 07


Roney
Marcos Pavani OPINIÃO

P
onto prévio: Fortuna governo, no sistema, etc. Todos também era retratada cega ou gente se sente / Como quem par- dade moderna, veremos que,
aqui, assim como em nascem iguais em liberdade de com a vista coberta (assim como tiu ou morreu / A gente estancou como os homens são totalmen-
seu significado origi- iniciativa, portanto, chega na a moderna imagem da Justiça), de repente / Ou foi o mundo en- te responsáveis pelos seus atos
nal não diz respeito a uma gran- frente quem é “melhor” (e não o pois distribuía seus desígnios tão que cresceu… / A gente quer (partindo das mesmas condições
de quantidade de riqueza ma- “bem-afortunado”), e ficam para “ao sabor da maré”, isto é, ale- ter voz ativa / No nosso destino de liberdade), a desigualdade
terial (como quando se diz que trás os “preguiçosos” e “estúpi- atoriamente. A alguns a sorte era mandar / Mas eis que chega a entre eles não será somente na-
Elon Musk possui uma fortuna dos” (não os “azarados”). favorável, a outros não. Simples roda viva / E carrega o destino tural, mas também moralmente
avaliada em US$188,5 bilhões). No entanto, a ideia de que assim. prá lá.” justa. A isso muitos dão o nome
Aliás, Fortuna não é algo ne- um homem pode ser senhor do “Isso não é justo”, diriam al- Nos últimos versos dessa de “meritocracia”. Portanto, os
cessariamente positivo. Trata- seu próprio destino não é tão guns hoje. “E quem disse que o estrofe, Chico utiliza a palavra conceitos de justiça no mundo
-se, simplesmente, do acaso, do antiga assim (remonta ao século mundo é justo?”, outros respon- “destino” no sentido de “vontade antigo e na modernidade tam-
aleatório, da sorte que governa XVII, talvez). Se levarmos em deriam. O fato é que há muitas própria”, isto é, no sentido que bém são diferentes. Uma visão
o mundo e a todos nós em nos- consideração que esses princí- maravilhas e muitas calamidades demos para a sociedade liberal de mundo fatalista (que crê no
sas vidas. Por isso, se diz que pios só se aplicariam a homens no universo as quais não depen- moderna: “os homens fazem os destino ou no fado) é sutilmente
alguém é “afortunado”, isto é, nobres e passou a ser popular só dem da nossa vontade para exis- seus próprios destinos”. Aqui distinta. Apesar de dizer respei-
possui uma “boa fortuna”, é feliz muito mais tarde (século XIX), tirem. Acontecem e ponto final. o artista está colocando Desti- to a um conjunto de fenômenos
porque a sorte lhe foi favorável; nos resumimos a pouco mais Não pedem a nossa opinião, nem no (vontade) e Fortuna (acasos) que acontecem independente-
ou então, ao contrário, “desafor- que 200 anos de história. Con- se importam se ficaremos inco- como conceitos distintos, anta- mente da sua vontade, pressupõe
tunado” seria aquele sem sorte, ceitos e visões tão conhecidas e modados ou não com elas. Só gônicos e/ou contraditórios. Seja existir um plano já traçado para
infeliz. Se observarmos que os tão alardeadas, tidas como dog- nos resta recebê-las, como qual- como for, e diferentemente de cada um dos seres humanos. Se
termos em inglês para “felizmen- mas para quase todas as pessoas, quer mortal, de forma honrada Buarque, coloquemos Destino as coisas acontecem, para o bem
te” e “infelizmente” são, respec- não possuem nem meio milênio ou covarde: e é justamente aí que e Fortuna em um mesmo plano. ou para o mal, não é “por acaso”,
tivamente, fortunately e unfortu- de existência. Em contrapartida, entra a parte referente ao mérito Vamos partir do princípio de que mas sim porque algo ou alguém
nately, ambas palavras derivadas o Homo sapiens já caminha por dos homens, à sua liberdade de ambos dizem respeito ao impon- ou alguma inteligência superior,
de fortune e, por conseguinte, do essas bandas há mais ou menos ação e às suas vontades. Quer di- derável. Aconteceu e pronto! Po- como Deus ou os deuses, assim
latim fortuna, tornaremos essa 150 mil anos. Algo está fora do zer, os seres humanos são livres, rém, mesmo no sentido que bus- o quiseram. Logo, por essa ótica,
relação ainda mais clara. lugar. Se a sorte não governa porém, dentro de um conjunto camos analisar aqui, eles não são não existem coincidências, ape-
Com o tempo, Fortuna dei- mais o mundo (a menos que se muito maior de eventos involun- a mesma coisa. Vejamos por quê. nas o inevitável, diante do qual
xou de significar “sorte”, dando trate de um jogador ou apostador tários, aos quais se poderia dar o Um dos sentidos da Fortuna, qualquer esforço é vão.
lugar a sua variante “boa sorte”, inveterado na expectativa de ga- nome de vontade dos deuses, ou, como vimos, é a sorte e o aca- Uma última reflexão: pensar
“felicidade” e, logo em seguida, nhar uma bolada na Mega Sena simplesmente, “acaso”, “sorte”, so. E um dos sentidos do acaso dessa maneira significa crer que
“riquezas”. Essa mudança de da virada...), o que havia antes? “fortuna”. é, exatamente, tudo aquilo que, doenças, pragas, epidemias e a
sentidos dentro de uma mesma Em quê se acreditava? Nesse sentido, a imagem da além de acontecer sem se impor- morte estão fora do escopo de
palavra certamente está conju- Os antigos gregos e romanos, “Roda” da Fortuna, isto é, da tar com a vontade dos indivídu- ação humana. Não há o quê fa-
gada com a ascensão, o desen- dos quais somos parentes próxi- circunferência que gira infinita- os, também acontece sem uma zer, quando muito lamentar. Não
volvimento e a consolidação das mos (assim como os “bárbaros” mente controlando nossas ações, causa aparente (a-caso, “sem existem “milagres”. Ora, até a
ideias liberais, do liberalismo. germânicos que por lá andavam) criada no mundo clássico e de- causa”). Trata-se de um aleatório presente data, a pandemia do
Estas enfatizam que todo o ho- eram politeístas. Criam em vá- senvolvida ao longo de toda a absoluto. Os antigos diziam que novo coronavírus já ceifou, so-
mem faz a sua própria sorte, cada rios deuses. Uma dessas divin- Idade Média é bastante interes- a Fortuna era justa porque capri- mente no Brasil, mais de 225 mil
um é livre para prosperar ou não, dades chamava-se Tique (para sante. chosa, por favorecer e prejudicar vidas. O presidente da Repúbli-
de acordo com seus próprios mé- os gregos) ou Fortuna (para os Tão poética quanto esclare- as pessoas independentemente ca e um percentual constante de
ritos. romanos): a deusa da sorte (boa cedora. Por essa via de pensa- de sua condição jurídica e social. apoiadores (cerca de 30% da po-
Em termos mais amplos, para ou má, como já dissemos) e da mento, os homens são levados Partindo do princípio de que as pulação) desdenhou do problema
a sociedade contemporânea, fru- esperança. Ou a própria sorte a crer que não são donos de si. pessoas, em sociedades como ou procurou sistematicamente se
to indigesto de visões de mundo em si, a ideia da sorte e do acaso E mais, há momentos em que se essas, já nascem desiguais (pe- isentar das responsabilidades.
como essa, não existe “sorte”, personificados. Era representada pode estar bem, feliz e satisfeito, rante a lei e perante tudo), elas “Todos vamos morrer um dia”,
“acaso”, “aleatoriedade”: cada portando uma cornucópia (espé- ou seja, está na parte de cima da são iguais em apenas um aspec- alguém disse.
um de nós é única e diretamen- cie de chifre gigante, contendo roda; como também pode-se es- to: todas estão presas à roda da A Roda da Fortuna ainda
te responsável por seus atos, em seu interior todos os benefí- tar por baixo. fortuna, a situações as quais não vive.
seus fracassos e seus sucessos. cios do mundo) e um timão, que É como diz a letra da músi- desejaram ou escolheram. Todos
Usando uma linguagem vulgar: simbolizava a distribuição des- ca Roda Viva, do incomparável são tratados da mesma forma, * O autor é mestre em História
não adianta colocar a culpa nos ses bens e a coordenação da vida Chico Buarque de Holanda, lan- nesse sentido. Se compararmos pela UFES e professor do
outros, em Deus, na família, no dos homens. Geralmente a deusa çada em 1967: “Tem dias que a novamente com a nossa socie- IFES de Nova Venécia

Você também pode gostar