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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

Centro de humanidades
Curso de Letras
Docente:: Dr. Marcelo Almeida Peloggio

PROVA SOBRE A OBRA “MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE BRÁS CUBAS”, DE


MACHADO DE ASSIS.

Isabely Lima de Andrade


Gabriel Júlio Soares
Yasmin da Costa Vieira
Pergunta: A obra “ Memórias póstumas de Brás Cubas" é, na historiografia literária,
classificada como “realista”. Essa classificação em geral procede? Se sim ou não, por
quê?

A partir do entendimento da classificação da obra como realista pela historiografia literária,


o presente trabalho visa discutir as classificações alternativas da ohra a fim de responder à
pergunta proposta.

O processo de classificação de obras literárias é intrincado e pleiteia a análise de


inúmeras facetas, como o estilo, a linguagem e os temas. O termo "realismo" na literatura
refere-se à representação da realidade como ela é, sem embelezar ou idealizar suas ideias. O
objetivo da formação de uma obra realista vem a partir da análise sobre os “fenômenos da
existência”, em oposição à idealização desses. “Memórias póstumas de Brás Cubas”, romance
de Joaquim Maria Machado de Assis, apresenta um retrato detalhado da vida no Brasil
durante o século XIX, e seus personagens são indivíduos falhos com motivações e desejos
complexos. A obra é classificada como realista pela historiografia literária. Além disso,
Segundo o crítico literário “Antonio Candido”:
Mas, além disso, é notória uma conotação mais ampla, que transcende a
sátira e vê o homem como um ser devorador em cuja dinâmica a
sobrevivência do mais forte é um episódio e um caso particular. Essa
devoração geral e surda tende a transformar o homem em instrumento do
homem, e sob este aspecto a obra de Machado se articula, muito mais do
que poderia parecer à primeira vista, com os conceitos de alienação e
decorrente reificação da personalidade, dominantes no pensamento e na crítica
marxista [..] (CÂNDIDO, 1995, p. 28)

Embora essa classificação tenha sido amplamente reconhecida por críticos literários e
estudiosos, ela levanta questionamentos sobre essa categorização. Uma das principais críticas
à classificação realista na literatura é que ela assume uma notória intensidade de objetividade
e desagregação do autor. O realismo mostra que o autor está puramente apresentando a
realidade de forma fiel, sem qualquer viés pessoal ou interpretação subjetiva. Entretanto, essa
suposição ignora o fato de que todos os autores têm perspectivas singulares, o que,
inevitavelmente, afeta sua escrita. Apesar de a classificação de "Memórias Póstumas de Brás
Cubas" como "realista" tenha sido aceita com mais afinco na historiografia literária, existem
classificações alternativas dessa obra.
Uma dessas classificações é o "realismo mágico", que enfatiza a fusão dos elementos
da realidade e da fantasia para criar uma atmosfera onírica. Tal classificação é ,também,
pertinente, dado o uso do surrealismo pelo romance para retratar a narração após a morte do
protagonista. Afinal, é possível um enredo com interferências reflexivas, digressões e um
defunto-autor ser chamado de realista? Discorrendo um pouco sobre isso cabe pontuar o
processo de alienação de Brás Cubas, usando como base o trabalho de Marly Amarilha de
Oliveira, intitulado “O delírio de Brás Cubas”, publicado na Revista Travessia em 1981,
afirmando que:
Brás Cubas no momento em que narra, cria a temporalidade do "eu vivido" que se
presentifica no "eu narrado". Caracteriza-se nessa forma o herói problemático, que
ao reviver seu passado pela memória, estando morto, (Brás Cubas) ratifica a sua
situação problemática, sua busca inadequada. Portanto, ao narrar procura recuperar a
consciência do vivido. Neste ponto, temos uma contradição criada por Machado,
pois seu personagem só se humaniza, só se liberta, quando se transforma num
defunto autor (OLIVEIRA, 1981, p. 24).

Além dessa, uma outra classificação é a “existencialista “, que está concentrada na


liberdade e responsabilidade individual. Definição adequada para uma obra que explora
temas de vida e morte, moralidade e existência, como é o caso da autorreflexão que o
personagem faz no capítulo “O almocreve”. Neste capítulo, Brás Cubas, reflete sobre a
liberdade do almocreve que, apesar de levar uma vida aparentemente normal, está livre de
preocupações e obrigações, ao contrário dele, que se sente preso às normas e expectativas da
sociedade.

Ademais, é importante pontuar, a volubilidade do narrador autodiegético “Brás


Cubas” como um fator contribuinte para as discussões da categorização da obra, visto que a
narração possui diversas digressões, divagações e ironias. Inclusive, é justamente essa
volubilidade narrativa uma das caracterizam a obra de Machado tão inovadora e complexa,
sendo uma estratégia do autor para criar um estilo único, incitando as convenções românticas
e realistas da época. Portanto, com a capacidade de explorar temas, personagens e situações
de sua própria perspectiva e interesses únicos, o eu narrador possui uma presença dominante
sobre os elementos da história

A ponderação cética de Machado de Assis é justificável, visto que ele não acreditava
ser possível produzir literatura a partir do âmago das estéticas do Realismo. Em sua crítica ao
realismo em O primo Basílio, de Eça de Queirós, Machado afirma que:
Era realismo implacável, consequente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade.
[...] Pois que havia de fazer a maioria, senão admirar a fidelidade de um autor, que
não esquece nada, e não oculta nada? Porque a nova poética é isto, e só chegará à
perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um
lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha. (ASSIS, 1878, p. 2)

A afirmação de Machado de Assis nos incita a refletir sobre a ligação entre o realismo
e o princípio artístico, onde o autor sugere que o realismo tende a se concentrar em uma
abordagem objetiva e factual, às vezes em detrimento do aspecto imaginativo e pessoal
inerente ao arte.

Por outro lado, o professor Gustavo Bernardo em seu livro O problema do realismo de
Machado de Assis é categórico ao afirmar que “o escritor brasileiro é ainda o adversário mais
veemente e mais qualificado do realismo em qualquer época” (BERNARDO, 2011, p. 13),
defendendo a tese de que o fundador do realismo brasileiro não é e nunca foi realista. No
ensaio intitulado A nova geração, Machado corrobora com essa definição à medida que impõe
seu olhar crítico: “Ia-me esquecendo uma bandeira hasteada por alguns, o realismo, a mais
frágil de todas, porque é a negação mesma do princípio da arte (ASSIS, 1937, p. 44).

Desse modo, é contraditório caracterizar sua obra nessa estética realista, haja vista que
o próprio autor a satiriza por meio de metáforas e alegorias em forma de personagens em suas
tramas (tendo o protagonista, Simão Bacamarte, da novela O alienista como exemplo mais
claro) ou mesmo noutra passagem presente na crítica ao livro O Primo Basílio:
Digo isto no interesse do talento do Sr. Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é
adversa; porque a esta o que mais importa é que o Sr. Eça de Queirós escreva outros
livros como O Primo Basílio. Se tal suceder, o Realismo na nossa língua será
estrangulado no berço; e a arte pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável
(porque o há, quando se não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no
ridículo), a arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias, d'O Monge de
Cister, d'O Arco de Sant' Ana e d'O Guarani (ASSIS, 1878).

É possível que a historiografia literária classifique a obra como realista em razão do


contexto histórico de criação da obra, bem como sua relevância nos tempos modernos, tendo
em vista que o livro foi publicado em 1881, quando o Brasil estava passando por uma rápida
transformação devido à industrialização e urbanização. E por isso, possuía uma grande
relevância de crítica social. Essa elenca a prosa a um patamar incômodo de classificação
quanto escola literária, no entanto, apesar das dissidências que perduram, vale ressaltar o
conceito de “sistema literário” formulado por Antonio Cândido, e como nele, talvez em parte,
se explique a presente problemática:
Terminando, desejo voltar à relação inextricável, do ponto de vista sociológico, entre
a obra, o autor e o público, cuja posição respectiva foi apontada. Na medida em que
a arte é — como foi apresentada aqui — um sistema simbólico de comunicação
inter-humana, ela pressupõe o jogo permanente de relações entre os três, que
formam uma tríade indissolúvel. O público dá sentido e realidade à obra, e sem ele o
autor não se realiza, pois ele é de certo modo o espelho que reflete a sua imagem
enquanto criador. Os artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo,
passam realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste
modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra (CÂNDIDO,
2006, p. 46-47).

Significa dizer que a crítica literária, elo pertencente ao público leitor, pode vir a julgar
uma obra ou seu conjunto de maneira que não agrade o autor, seja em sua vida, seja em sua
posteridade. Semelhante a Machado, a título de exemplo, a artista mexicana Frida Khalo foi
ainda em vida considerada surrealista, algo que para ela não a agradava: «No sabía que era
surrealista hasta que llegó André Breton a México y me lo dijo» (Grimberg, 2017, p. 214).

Embora "Memórias Póstumas de Brás Cubas" possa ser associada ao realismo por sua
crítica social e engajamento com temas contemporâneos, a obra ultrapassa esses aspectos. A
estrutura não linear da narrativa, o uso da metalinguagem, a perspectiva do narrador falecido e
o tom irônico são elementos que a distinguem do realismo estrito. Portanto, classificar
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" como um romance realista pode ser contestado, dadas
as particularidades da obra e seu estilo literário distinto. Dessa forma, conclui-se que a obra
referida não é realista.

Referências bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Moderna, 1999.

______. “O Primo Basílio”. In: Crítica literária. São Paulo: W.M, 1978.

______. A nova geração. In: ______. Crítica literária. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W. M.
Jackson Inc., 1937. p. 179-247.

BERNARDO, Gustavo. O problema do realismo de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
118p.
CÂNDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: CÂNDIDO, Antônio. Vários Escritos. São
Paulo: Duas Cidades. 1968. p. 15-32.
______. A Literatura e a Vida Social. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2006. p. 27-49.

GRIMBERG, Salomon. “En México, André Breton conoció al surrealismo: su nombre era Frida
Kahlo” en el catálogo de la exposición México moderno. Vanguardia y revolución. Buenos Aires,
MALBA, 2017, pp. 213-226

OLIVEIRA, Marly Amarilha de. “O delírio de Brás Cubas” In: Revista Travessia. n. 2, p. 23-32. Santa
Catarina:UFSC, 1981. Disponível em <
https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/18095/17013> Acesso em 30 de maio de
2023.

PELOGGIO, Marcelo Almeida. Um problema de forma: o dogmatismo em Machado de Assis.


Antares: letras e humanidades, Caxias do Sul, v. 7, n. 13, p. 113-126, jan/jun 2015.

SOUSA, Geovane Melo Emídio. Aclimatando Machado de Assis: um cético no contexto do Realismo
e do Naturalismo. 2022. 142 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) - Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Literatura, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2022.

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