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Centro de humanidades
Curso de Letras
Docente:: Dr. Marcelo Almeida Peloggio
Embora essa classificação tenha sido amplamente reconhecida por críticos literários e
estudiosos, ela levanta questionamentos sobre essa categorização. Uma das principais críticas
à classificação realista na literatura é que ela assume uma notória intensidade de objetividade
e desagregação do autor. O realismo mostra que o autor está puramente apresentando a
realidade de forma fiel, sem qualquer viés pessoal ou interpretação subjetiva. Entretanto, essa
suposição ignora o fato de que todos os autores têm perspectivas singulares, o que,
inevitavelmente, afeta sua escrita. Apesar de a classificação de "Memórias Póstumas de Brás
Cubas" como "realista" tenha sido aceita com mais afinco na historiografia literária, existem
classificações alternativas dessa obra.
Uma dessas classificações é o "realismo mágico", que enfatiza a fusão dos elementos
da realidade e da fantasia para criar uma atmosfera onírica. Tal classificação é ,também,
pertinente, dado o uso do surrealismo pelo romance para retratar a narração após a morte do
protagonista. Afinal, é possível um enredo com interferências reflexivas, digressões e um
defunto-autor ser chamado de realista? Discorrendo um pouco sobre isso cabe pontuar o
processo de alienação de Brás Cubas, usando como base o trabalho de Marly Amarilha de
Oliveira, intitulado “O delírio de Brás Cubas”, publicado na Revista Travessia em 1981,
afirmando que:
Brás Cubas no momento em que narra, cria a temporalidade do "eu vivido" que se
presentifica no "eu narrado". Caracteriza-se nessa forma o herói problemático, que
ao reviver seu passado pela memória, estando morto, (Brás Cubas) ratifica a sua
situação problemática, sua busca inadequada. Portanto, ao narrar procura recuperar a
consciência do vivido. Neste ponto, temos uma contradição criada por Machado,
pois seu personagem só se humaniza, só se liberta, quando se transforma num
defunto autor (OLIVEIRA, 1981, p. 24).
A ponderação cética de Machado de Assis é justificável, visto que ele não acreditava
ser possível produzir literatura a partir do âmago das estéticas do Realismo. Em sua crítica ao
realismo em O primo Basílio, de Eça de Queirós, Machado afirma que:
Era realismo implacável, consequente, lógico, levado à puerilidade e à obscuridade.
[...] Pois que havia de fazer a maioria, senão admirar a fidelidade de um autor, que
não esquece nada, e não oculta nada? Porque a nova poética é isto, e só chegará à
perfeição no dia em que nos disser o número exato dos fios de que se compõe um
lenço de cambraia ou um esfregão de cozinha. (ASSIS, 1878, p. 2)
A afirmação de Machado de Assis nos incita a refletir sobre a ligação entre o realismo
e o princípio artístico, onde o autor sugere que o realismo tende a se concentrar em uma
abordagem objetiva e factual, às vezes em detrimento do aspecto imaginativo e pessoal
inerente ao arte.
Por outro lado, o professor Gustavo Bernardo em seu livro O problema do realismo de
Machado de Assis é categórico ao afirmar que “o escritor brasileiro é ainda o adversário mais
veemente e mais qualificado do realismo em qualquer época” (BERNARDO, 2011, p. 13),
defendendo a tese de que o fundador do realismo brasileiro não é e nunca foi realista. No
ensaio intitulado A nova geração, Machado corrobora com essa definição à medida que impõe
seu olhar crítico: “Ia-me esquecendo uma bandeira hasteada por alguns, o realismo, a mais
frágil de todas, porque é a negação mesma do princípio da arte (ASSIS, 1937, p. 44).
Desse modo, é contraditório caracterizar sua obra nessa estética realista, haja vista que
o próprio autor a satiriza por meio de metáforas e alegorias em forma de personagens em suas
tramas (tendo o protagonista, Simão Bacamarte, da novela O alienista como exemplo mais
claro) ou mesmo noutra passagem presente na crítica ao livro O Primo Basílio:
Digo isto no interesse do talento do Sr. Eça de Queirós, não no da doutrina que lhe é
adversa; porque a esta o que mais importa é que o Sr. Eça de Queirós escreva outros
livros como O Primo Basílio. Se tal suceder, o Realismo na nossa língua será
estrangulado no berço; e a arte pura, apropriando-se do que ele contiver aproveitável
(porque o há, quando se não despenha no excessivo, no tedioso, no obsceno, e até no
ridículo), a arte pura, digo eu, voltará a beber aquelas águas sadias, d'O Monge de
Cister, d'O Arco de Sant' Ana e d'O Guarani (ASSIS, 1878).
Significa dizer que a crítica literária, elo pertencente ao público leitor, pode vir a julgar
uma obra ou seu conjunto de maneira que não agrade o autor, seja em sua vida, seja em sua
posteridade. Semelhante a Machado, a título de exemplo, a artista mexicana Frida Khalo foi
ainda em vida considerada surrealista, algo que para ela não a agradava: «No sabía que era
surrealista hasta que llegó André Breton a México y me lo dijo» (Grimberg, 2017, p. 214).
Embora "Memórias Póstumas de Brás Cubas" possa ser associada ao realismo por sua
crítica social e engajamento com temas contemporâneos, a obra ultrapassa esses aspectos. A
estrutura não linear da narrativa, o uso da metalinguagem, a perspectiva do narrador falecido e
o tom irônico são elementos que a distinguem do realismo estrito. Portanto, classificar
"Memórias Póstumas de Brás Cubas" como um romance realista pode ser contestado, dadas
as particularidades da obra e seu estilo literário distinto. Dessa forma, conclui-se que a obra
referida não é realista.
Referências bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Memórias Póstumas de Brás Cubas. São Paulo: Moderna, 1999.
______. “O Primo Basílio”. In: Crítica literária. São Paulo: W.M, 1978.
______. A nova geração. In: ______. Crítica literária. Rio de Janeiro; São Paulo; Porto Alegre: W. M.
Jackson Inc., 1937. p. 179-247.
BERNARDO, Gustavo. O problema do realismo de Machado de Assis. Rio de Janeiro: Rocco, 2011.
118p.
CÂNDIDO, Antônio. Esquema de Machado de Assis. In: CÂNDIDO, Antônio. Vários Escritos. São
Paulo: Duas Cidades. 1968. p. 15-32.
______. A Literatura e a Vida Social. In: Literatura e Sociedade. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul,
2006. p. 27-49.
GRIMBERG, Salomon. “En México, André Breton conoció al surrealismo: su nombre era Frida
Kahlo” en el catálogo de la exposición México moderno. Vanguardia y revolución. Buenos Aires,
MALBA, 2017, pp. 213-226
OLIVEIRA, Marly Amarilha de. “O delírio de Brás Cubas” In: Revista Travessia. n. 2, p. 23-32. Santa
Catarina:UFSC, 1981. Disponível em <
https://periodicos.ufsc.br/index.php/travessia/article/view/18095/17013> Acesso em 30 de maio de
2023.
SOUSA, Geovane Melo Emídio. Aclimatando Machado de Assis: um cético no contexto do Realismo
e do Naturalismo. 2022. 142 f. Dissertação (Mestrado em Estudos de Literatura) - Programa de
Pós-Graduação em Estudos de Literatura, Instituto de Letras, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2022.