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Entrevista
Publicado em
23/04/2020
Christian Schwartz
Num livro recente, Les Bords de la Fiction [Os Limites da Ficção], o crítico francês
Jacques Rancière tentou responder a um dilema antigo, sintetizado com
elegância e precisão pelo próprio em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo: “Toda
a história da ficção moderna é uma alternância dos valores atribuídos às
palavras ‘realidade’ e ‘ficção’”, disse Rancière. “A ficção não é o oposto da
realidade, mas a construção de um senso de realidade.”
“Eis então que a verdade que há tempos não goza de grande respeito e grande
estima em tantos campos do conhecimento, a verdade que em nossa gerência
diária das informações estaria caindo em descrédito”, argumentou o autor dos
romances A Resistência e A Ocupação, cujos pontos de partida oscilam entre o
autobiográfico (o primeiro, de 2015) e a experiência íntima da militância política
possível hoje (o mais recente, de 2019), “eis então que a verdade recupera nas
obras literárias uma centralidade imprevista”.
Mas isso será bom ou mau presságio para a ficção? São “notícias dessa nova
crise com que o presente nos brinda, a crise específica da ficção depois de tantas
outras crises, crise do narrador, crise da arte, crise da representação, crise do
sujeito, crise do sentido”, detalha Fuks — uma era que se anuncia marcada por
“atos de ficção cujo gesto fundador [a fabulação] foi abolido”.
O alvo aqui parece ser a autoficção — esse Judas já tão malhado, embora
generosamente reabilitado nos escritos de Fuks —, mas não só: a julgar pelos
dois autores contemporâneos que o autor decide analisar na sequência de seu
ensaio teórico, o alemão W.G. Sebald e o sul-africano J. M. Coetzee, “pequeno
cânone do romance pós-ficcional”, coloca-se sob escrutínio toda uma tendência
“documental” nas artes e, em particular, na literatura.
Nem antídoto, nem veneno. Considero que essa busca maior de uma realidade
no exercício literário é quase um sintoma do nosso tempo. Num momento em
que as ficções vão proliferando em discursos que normalmente não deveriam
comportá-las, a literatura que faz uso tão rico da ficção parece às vezes abdicar
dela. Existe um apego maior dos escritores pela realidade, uma tentativa de
captura da realidade num grau diferente de outro tempo. O romance, claro,
sempre teve essa disposição de tentar capturar a realidade, mas há, neste
momento, um esforço maior de vincular a obra narrativa a uma verdade. E sinto
que esse sintoma não se dá só na prática dos escritores, mas também no
interesse dos leitores: muitos estão mais interessados do que nunca em buscar
obras que não tentem tergiversar [sobre] o real e compor uma segunda
realidade mais fantasiosa. Há em muitos contextos uma recusa da fantasia e um
desejo por maior veracidade.
De fato, não tenho uma crítica aos escritores que abdicam da fabulação. Acho
que têm saído obras muito interessantes a partir dessa busca dos enredos
verdadeiros, a partir dessa recusa da fantasia, da invenção. Não me parece
também que seja um fenômeno a se elogiar, necessariamente. A carência de
fabulação é uma espécie de sintoma, algo do qual tantos de nós não têm
conseguido escapar. Já faz décadas que se fala sobre isso. De uma arbitrariedade
na invenção do sentimento; de que atribuir um nome, inventar uma vida, uma
trama, um enredo seria um gesto problemático, artificioso. A autoficção em si
mesma pode ter seus problemas, mas traz isso de contundente: a aproximação
entre a voz do narrador e a voz do autor proporciona o efeito de maior
veracidade, de maior realidade no exercício da ficção. E esse efeito é muito
proveitoso na construção de um novo pacto com o leitor. Acho que a literatura
tem sido bastante reinventada nesse aspecto. O próprio romance, cuja crise
pareceu encerrada, e que poderia ter se tornado infértil depois disso, soube se
tornar provocativo em tempos recentes a partir desse questionamento, dessa
problematização da própria ficção. A ficção talvez tivesse permanecido um pouco
intocada naquela crise canônica do gênero. A ficção foi aquilo que os autores não
chegaram a abater por completo, e hoje a gente vê o exercício desse abatimento
em tantos livros, e de uma maneira que, sim, eu julgo interessante.
Outra palavra-chave da sua obra parece ser “memória”. Até que ponto
seus textos são memorialísticos, além de romances ou livros de contos?
E memória já é ficção?
Eu não adoto a ideia de que estaria escrevendo memórias por várias razões.
Uma delas é que a própria memória, como escrita, também caiu em descrédito.
A autoficção acontece no instante em que a autobiografia e o romance entram
em crise. Nessa composição múltipla de crises é que se constrói um novo
discurso, esse discurso híbrido. Então eu sinto que cair num texto memorialístico
seria um exercício quase antigo, algo que já se mostrou falho, problemático. É
claro que a ideia de que a memória é uma ficção, uma composição sobre o
passado que renova aquela disposição, que reinventa o passado em algum grau,
isso tudo é muito importante. Escrevo a partir da memória, sem dúvida, mas com
a clareza quase absoluta de que, na tentativa de acessar o passado, ele já se
distorce, e que no momento em que se atribuem palavras a ele a construção já é
completamente distinta, e isso seria, já por si mesmo, ficção.
Foi para mim muito comovente e surpreendente, porque eu temia que ali o livro
chegasse como uma narrativa a mais sobre aqueles tempos, sobre a ditadura,
algo de que o país talvez já estivesse saturado, e pelo contrário, foi sentido como
um olhar novo, uma parte da história que não tinha sido contemplada ainda,
porque escrita justamente por um argentino que não chegou a sê-lo. Alguém que
viveu a história da Argentina a uma distância. E ao mesmo tempo por ter sido
um relato de uma vítima nada imediata daquele regime. Meus pais não foram
torturados, não desapareceram, nada disso, e então a narrativa sobre aquele
tempo se torna um pouco mais delicada, mais sutil. A imensa maioria das
pessoas não foi tão diretamente afetada pela ditadura — mas foi afetada nessas
outras camadas concêntricas em que o despautério acaba reverberando. E
houve uma empatia com o livro, uma identificação, pelo fato de ter narrado uma
história menos forçosamente dramática do que outras que já existiram na
literatura.
Sim, eu mesmo fiz a tradução d’A Resistência para o espanhol, num processo um
pouco dolorido porque você sente na tradução o sentido que se corrompe um
pouco, o ritmo que se quebra, a necessidade de construir outros sentidos no
lugar daqueles que escapam. Enfim, minha concepção da tradução é de que é
sempre um ofício falho, fadado a certo grau de fracasso, mas ao mesmo tempo
tenho uma crença absoluta na necessidade da tradução. O que há de
problemático numa tradução é já a riqueza do contato entre línguas e culturas.
Nos dois livros isso foi uma questão complexa, porque há uma exposição da
intimidade ali, e há reconhecimento e não reconhecimento por parte dos meus
pais, dos meus irmãos, naquelas páginas. Acho que houve também um
aprendizado e uma aceitação. No caso d’A Ocupação, já foi mais tranquilo,
porque eles estavam mais acostumados. Entenderam um pouco melhor o jogo e
a razão de ser do jogo. Que não se trata de um exercício de exposição ou de
qualquer tipo de exibicionismo, e sim de uma tentativa de reflexão, quase de
uma autoanálise feita na forma de literatura, e que podia transformar também as
nossas relações de maneira positiva. Que tudo isso podia entrar em questão pela
literatura e podia ser discutido dentro e fora dela.