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UFRRJ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

Dolo em Matéria Penal: Análise à Luz da Teoria


Significativa do Delito

Vinicius de Faria dos Santos

2018
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
CURSO DE DIREITO

DOLO EM MATÉRIA PENAL:


ANÁLISE À LUZ DA TEORIA SIGNIFICATIVA DO DELITO

VINICIUS DE FARIA DOS SANTOS

Sob a Orientação do Professor


Rodrigo Lima e Silva

Trabalho de conclusão de curso


apresentado ao Departamento de
Ciências Jurídicas da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro como
requisito parcial para obtenção do grau
de Bacharel em Direito.

Seropédica, RJ
Novembro de 2018.
ii
UNIVERSIDADE FEDERAL RURAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS

VINICIUS DE FARIA DOS SANTOS

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado ao Departamento de Ciências Jurídicas da


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro submetido como requisito parcial para obtenção
do grau de Bacharel em Direito.

MONOGRAFIA APROVADA EM _____/ _____/2018.

_______________________________________
Rodrigo Lima e Silva
Doutor em Ciência Política, IUPERJ/UCAM
Professor Assistente da UFRRJ
(Orientador)

________________________________________
Hailton Pinheiro de Souza Júnior
Doutor em Sociologia e Antropologia, IFCS/UFRJ
Professor Assistente UFRRJ

________________________________________
Eduardo Gomes de Siqueira
Doutor em Filosofia, UNICAMP
Professor Adjunto IV UFRRJ

iii
AGRADECIMENTOS

Redigir o presente trabalho de conclusão de curso se mostrou tarefa inóspita –


apresentar pressupostos filosóficos de modo cognoscível a juristas – porém um exercício
interdisciplinar prazeroso. Nessa modesta e desafiadora empreitada, muitas vozes se fizeram
ouvir, cuja gratidão não poderia deixar aqui de registrar.
À amada família – meus pais Enilton e Lúcia, irmão Lucas (minha eterna e franca
alteridade) e vó Lira – refúgio de encorajamento e orgulho a quem sou grato pela viabilização
do sonho de ingressar no ensino superior federal e, nele, prosseguir por novas rotas, graus e
áreas. O filho do construtor e da doméstica hoje é professor e (quase) advogado, devo a vocês.
Prof. Dr. Eduardo Gomes de Siqueira – a voz que mais ouvi – perspicaz amigo e
interlocutor, a quem devo experiências genuinamente filosóficas nas inúmeras horas seguidas
de diálogo, leitura, objeções e respostas. Suas muitas observações, cirúrgicas sempre, me
ensinaram a ‘ver como’ e atentar sempre às regras para o uso dos termos nos jogos de
linguagem. A ele dedico o que há de filosoficamente relevante aqui.
Prof. Dr. Rodrigo Lima e Silva, meu orientador, quem confiou no meu trabalho e
concedeu a autonomia necessária ao amadurecimento das ideias e aprimoramento do texto.
Prof. Dr. Hailton Pinheiro, voz da interdisciplinaridade, exímio professor e honrado
avaliador. Gratidão pela prontidão no aceite ao convite, ainda que em se tratando de área
avessa ao seu interesse direto. Obrigado, sempre.
Vozes de leais amigos e amigas foram ouvidas, companheiros de jornada que levarei da
Rural para a vida. À grande amiga Beatriz Brasil, a irmã que a vida me deu, que me amou
desde quando não me lembro e cujas palavras de incentivo permanentes ainda se fazem ouvir,
mesmo nos dias maus. Aos prestativos companheiros Dionata, Rafael e Joana, leais sempre,
nossas peculiaridades me ensinam a beleza da diferença. Mesmo longe estaremos juntos,
vocês são mais que amigos, Friends.
Meus amigos da casa nova – Clarice, Rhud e Priscila – os melhores médicos
veterinários da vida, seres humanos incríveis, vozes da diversão e da diversidade. Vocês
tornaram meu último ano leve e sereno.
Rodrigo Fontenele, sem você não teria porquê nem fazer. Paciência e fidelidade,
obrigado por compartilhar isso comigo.
Aos amigos Marta, Jorge e Ana Carolina, obrigado pelo apoio e preocupação
constantes, pelas muitas transcrições e materiais, cada qual a seu modo me mostrou que o
deserto ruralino pode ser vencido e superado. Obrigado.
iv
Aos amigos Nicolas e André, os muitos cafés, risos e alegrias fizeram de vocês dois
irmãos pra mim, parceiros de ajuda e de trabalho, devo muito à lealdade de vocês.
Registro minha gratidão ao Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, na pessoa
dos promotores Dra. Danielle Velloso Bonaparte Salomão e Bruno Lavorato Moreira Lopes,
profissionais brilhantes e inspiração para mim. Obrigado pelo ensino constante e por
confiarem na minha vocação, confirmando a carreira que almejo para a vida. Queridas
‘chefas’ Fernanda e Lecilda, vocês me deixaram saudades, o carinho é recíproco. Ressalto
ainda minha sincera admiração ao terno amigo Gustavo, voz do apoio e da competência,
personalidade invejável e conhecimento nítido, estou certo de que a vida há de recompensar
nosso esforço, amigo.
Consigno aqui, ainda, a importância da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
em cuja estadia pude galgar os graus acadêmicos que hoje viabilizam a possibilidade de
ascensão social e profissional. Sou grato a todos os mestres que na filosofia tive e, no Direito,
aos professores Alexandre, José Danilo, Taíssa, Gisele, Rodrigo Lima, Hailton, Mônica e
Tatiana Cotta, profissionais competentes e dedicados no ensino e na pesquisa. Levo todo o
conhecimento adquirido. Muito obrigado.
Ao final, à Voz das vozes, aquele cuja existência não se prova, mas se mostra.
Experiência indizível, mas real. Ao que primeiro soprou o fôlego de vida. A Ele, por Ele e
dEle.

v
“Por isso, ‘seguir a regra’ é uma prática. E acreditar seguir a regra não é seguir a regra. E
por isso não pode seguir a regra privadamente, porque, do contrário, acreditar seguir a
regra seria o mesmo que seguir a regra”.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, §202

vi
SANTOS, Vinicius de Faria dos. Dolo em Matéria Penal: Análise à Luz da Teoria
Significativa do Delito. 2018. 87p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
Direito). Departamento de Ciências Jurídicas. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Seropédica, RJ, 2018.

RESUMO

O presente trabalho analisa a valoração do dolo em matéria penal à luz da teoria significativa
do delito elaborada por Tomás Salvador Vives Antón na obra Fundamentos del Sistema Penal
(1996/2011) e introduzida em nosso ordenamento pelo prof. Paulo César Busato, cuja
principal contribuição é a reformulação da teoria do delito a partir da filosofia da linguagem
de Wittgenstein e Habermas. Para tanto, no primeiro capítulo sistematizaremos os principais
pressupostos filosóficos adotados pelo autor em sua teoria a partir da descrição da ‘imagem
agostiniana da linguagem’ denunciada por Wittgenstein em suas Investigações Filosóficas. No
segundo capítulo, passaremos em revista o desenvolvimento dogmático do instituto, sua
classificação e, então, analisaremos criticamente as teorias volitivas e normativas. No terceiro
e último capítulo passaremos a expor a concepção significativa do dolo e sustentaremos sua
adoção para um Direito Penal que se pretenda democrático.

Palavras-chave: Dolo; Direito Penal; Teoria Significativa.

vii
SANTOS, Vinicius de Faria dos. Dolo em Matéria Penal: Análise à Luz da Teoria
Significativa do Delito. 2018. 87p. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em
Direito). Departamento de Ciências Jurídicas. Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro,
Seropédica, RJ, 2018.

ABSTRACT

The present work analyzes the valuation of criminal intent (dolus or dolo) in the light of the
significant theory of the crime elaborated by Tomás Salvador Vives Antón in Fundamentos
del Sistema Penal (1996/2011) and introduced in our legal order by prof. Paulo César Busato,
whose main contribution is the reformulation of the theory of the crime from the philosophy
of language of Wittgenstein and Habermas. For this, in the first chapter we shall systematize
the main philosophical presuppositions adopted by the author in his theory from the
description of the 'Augustinian image of language' denounced by Wittgenstein in his
Philosophical Investigations. In the second chapter, we will review the dogmatic development
of the institute, its classification, and then critically analyze the volitive and normative
theories. In the third and last chapter we will expose the significant conception of intent
(dolus or dolo) and support its adoption for a Criminal Law that is intended to be democratic.

Key words: Intent (Dolus or Dolo); Criminal Law; Significant Theory.

viii
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 1
CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES E APROXIMAÇÃO
DOGMÁTICA: PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DAS TEORIAS DO DOLO ............. 4
1.1. Contexto, Gramática e Jogos-de-Linguagem ...................................................................... 4
1.2. Querer, Intenção e Ação: a ‘Imagem Agostiniana da Vontade’ ........................................ 10
1.3. Wittgenstein e a Gramática das Sensações ........................................................................ 15
1.4. A Teoria do Agir Comunicativo de Habermas .................................................................. 21

CAPÍTULO 2. ENTRE A VONTADE E A NORMA: TEORIAS DO DOLO


SUBJETIVISTAS E NORMATIVISTAS ............................................................................. 26
2.1. Dolus Bonus e Dolus Malus .............................................................................................. 27
2.2. Dolo Psicológico e Dolo Normativo: do Causalismo ao Neokantismo............................. 30
2.3. Dolo Ontológico e Dolo Valorativo: do Finalismo aos Funcionalismos .......................... 33
2.3.1. O funcionalismo teleológico de Claus Roxin ................................................................ 37
2.3.2. O funcionalismo sistêmico de Günter Jakobs................................................................ 39
2.4. Espécies de Dolo ............................................................................................................... 41
2.4.1. Teorias da Vontade, da Representação e do Assentimento ............................................ 41
2.4.2. Dolo Direto de Primeiro Grau ........................................................................................ 44
2.4.3. Dolo Direto de Segundo Grau ........................................................................................ 44
2.4.3. Dolo Eventual ................................................................................................................. 45
2.5. Elementos do dolo: Teorias da Vontade (ou Ontológicas) ................................................ 46
2.6. Elementos do dolo: Teorias Normativas ........................................................................... 48

CAPÍTULO 3. DOLO E LINGUAGEM: UMA PERSPECTIVA SIGNIFICATIVA DO


ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL ................................................................... 52
3.1. O Dolo como Conhecimento: Breve Descrição Gramatical .............................................. 55
3.2. O Dolo como Vontade: Breve Descrição Gramatical ....................................................... 59
3.3. O Dolo Significativo .......................................................................................................... 63
3.3.1. Uma nova proposta para o Dolo Direto (de Primeiro Grau) .......................................... 63
3.3.2. Do descabimento do Dolo Direto de Segundo Grau ..................................................... 64
3.3.3. Uma nova proposta para o Dolo Eventual ..................................................................... 66
3.3.3.1. O Dolo Eventual como consciência das circunstâncias da ação (saber que).............. 67
3.3.3.2. O Dolo Eventual como domínio de uma técnica (saber como) .................................. 69

CONCLUSÃO......................................................................................................................... 72
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................................. 76

ix
INTRODUÇÃO

Indubitavelmente, dentre os temas mais controvertidos na doutrina penalista consta a


teoria do delito. Desde a definição do conceito de ação até à própria estruturação de seus
extratos de análise, podemos afirmar que o Direito Penal é uma disciplina em permanente
revisão.
Paradoxalmente, encontramos um profundo dogmatismo a respeito do instituto do dolo,
sua definição, elementos constitutivos e, porque não, relevância para análise. Por certo,
cristalizou-se na doutrina brasileira a crença1 de que o referido elemento subjetivo é uma
consciência e vontade de lesionar um dado bem jurídico, sem maiores elucidações. Juristas e
aplicadores do Direito cotidianamente imputam-no aos agentes como se restasse clara sua
ocorrência no caso concreto.
O presente trabalho visa recolocar a questão a respeito do dolo em matéria penal sobre
novas e promissoras bases. Trata-se de analisa-lo à luz da teoria significativa do delito,
sistematizada em fins do século passado na obra Fundamentos del Sistema Penal (1996/2011)
de autoria de Tomás Salvador Vives Antón a partir da filosofia da linguagem do ‘segundo
Wittgenstein’ e, em seu modo de apresentação, da teoria comunicativa do discurso de Jürgen
Habermas.
O autor propugna a identificação do dolo com o compromisso da produção do resultado
jurídico desvalioso, (re)significando os elementos volitivo e cognitivo do mesmo, agora
ancorados na filosofia da linguagem e nos processos de comunicação de sentido.
Para tanto, passamos a apresentar o percurso investigativo a ser desenvolvido.
No primeiro capítulo, intitulado “Considerações preliminares e aproximação dogmática:
pressupostos filosóficos das teorias do dolo”, ocupar-nos-emos com a elucidação do duplo
referencial filosófico de que parte Vives Antón na construção da teoria significativa. De um
lado, passaremos à apresentação dos principais conceitos da filosofia da linguagem do
‘segundo Wittgenstein’, sobretudo sua célebre crítica à imagem agostiniana da linguagem
que, no plano das sensações, se desdobra na imagem agostiniana da vontade. Esperamos,
assim, elucidar a equivocada concepção do querer com a qual se comprometeram boa parcela
das teorias da ação do século XX.
Por ouro lado, ao final, faremos uma sucinta análise da teoria do Agir Comunicativo de
1
Busato (2014, p. vii) expressamente denuncia os, litteris, “assuntos cuja pretensão de demonstração pelos
métodos próprios do positivismo resulta na afirmação de verdades imutáveis” atrelando o alarmante fenômeno
ao “comodismo científico e a crise de intercâmbio acadêmico produzida deliberadamente no campo do direito,
especialmente no campo do Direito Penal, durante o período do Estado ditatorial no Brasil” (ibid.).

1
Habermas, sobretudo nos detendo na noção de pretensão de validade a fim de que o leitor
possa, no terceiro capítulo, compreender as categorias com que Vives opera.
Ato contínuo, no segundo capítulo – “Entre a vontade e a norma: teorias do dolo
subjetivistas e normativistas” – em um primeiro momento com seu desenvolvimento
histórico-dogmático, desde o dolus malus até os dolos funcionalizados teleológico e
sistêmico, ainda que sem pretensão de minudenciar o tema. Importa-nos, sobretudo, interligar
a discussão do do dolo com o próprio cabimento do conceito de ação. Isso feito, trataremos da
classificação tripartida do instituto – direto de primeiro grau, direto de segundo grau e
eventual, tal qual a doutrina tradicional.
Na parte final, centraremo-nos no exame das teorias volitivas e normativas do dolo,
buscando evidenciar, de um lado, as principais linhas de crítica e, de outro, em que medida
tais pressupõem – e em que proporção – elementos da imagem agostiniana da vontade, já
exposta no capítulo inicial.
O terceiro e último capítulo – “Dolo e Linguagem: uma perspectiva significativa do
elemento subjetivo do tipo penal” – finalmente versará sobre o ponto de vista significativo do
dolo. Em um primeiro momento, apresentaremos as linhas gerais da teoria significativa, é
dizer, as quatro pretensões de validade da norma penal de maneira a ambientar o leitor com o
modus operandi.
Feito isso, a primeira e segunda seções serão dedicadas à descrição gramatical dos
conceitos de conhecimento e vontade, respectivamente. A terceira adentrará a tratativa do dolo
significativo compreendido como um compromisso intencional do agente para com o
resultado de sua conduta. Subdividiremos a mesma em tópicos para que possamos
compreender a natureza do dolo direto – e do descabimento da permanência do dolo direto de
segundo grau – e do dolo eventual, recorrendo, sempre que conveniente, ao uso de exemplos.
Na conclusão, retomaremos o percurso ora descrito e então sistematizaremos os
principais aspectos analisados com vistas a uma reflexão sobre a urgência da revisão
dogmática e filosófica do instituto.
Dada a natureza eminentemente teórica de nossa área, a metodologia empregada neste
trabalho consiste na revisão bibliográfica do tema, propondo-nos o diálogo amplo e franco
com boa parcela da doutrina penalista estrangeira e pátria. Para a consecução do objetivo
acima anunciado promoveremos a interface entre as áreas da Filosofia da Linguagem e do
Direito Penal posto que sustentamos a necessidade da incorporação da dimensão do
significado e dos processos de comunicação de sentido na estruturação de toda a teoria do

2
delito que se pretenda democrática e garantista. Reivindicamos um Direito Penal moderno e
consentâneo com as teorias mais recentemente formuladas nos demais ordenamentos
jurídicos.
Sem mais delongas, passemos à abordagem de nosso objeto propriamente dito, a saber,
a apresentação dos pressupostos filosóficos assumidos pela teoria significativa do delito.

3
CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES E APROXIMAÇÃO
DOGMÁTICA: PRESSUPOSTOS FILOSÓFICOS DAS TEORIAS DO DOLO

“Representa-se aqui o sujeito como algo sem massa (inércia); como um


motor que não tem em si mesmo nenhuma resistência de inércia a superar. E,
portanto, é algo que só impulsiona e não é impulsionado. Isto é, pode-se dizer: ‘Eu
quero, mas meu corpo não me acompanha’ – mas não: ‘Minha vontade não me
segue’ (Santo Agostinho).
Mas, no sentido em que não posso não conseguir querer, também não posso
tenta-lo’”.

Ludwig Wittgenstein, Investigações Filosóficas, § 618

1.1. Contexto, Gramática e Jogos-de-Linguagem

É cediço que a temática da imputação delitiva reclama tratamento inovador por parte da
doutrina haja vista a crise de paradigma2 na qual redundaram os estudos dogmáticos em
matéria penal.
Por certo, conforme bem observa o eminente professor Paulo César Busato 3, tal se
sucedeu em decorrência do exaurimento dos modelos ontológico e normativo de estruturação
do sistema penal, fazendo perdurar uma perene oposição mútua entre as referidas propostas
metodológicas.
Nesse diapasão, propõe-se uma re-personalização do Direito Penal sob bases
democráticas em franca reconstrução do conceito de ação4, de maneira a ajustar ambas as
perspectivas teóricas e dar-lhes eficácia social. Propõe-se, aqui, uma retomada significativa
da teoria do delito a qual parte de “bases democráticas comuns e aceitáveis por toda a
sociedade, como os conceitos básicos de linguagem ordinária por ela utilizada”5.
Desde um marco assumidamente neoconstitucionalista – traduzido na ideia de
“limitação do poder e supremacia da lei”6 – urge que o Direito Penal corresponda aos
reclamos do modelo de Estado Democrático de Direito em que as normas incriminadoras
sejam aplicadas em franca observância da Constituição da República. A linguagem com a qual
o Estado se comunica com os cidadãos sob sua guarda é vazada pelos direitos e garantias
fundamentais, que demandam resguardo. Nessa senda, as condutas reputadas típicas e ilícitas

2
Valho-me do termo na acepção dada pelo filósofo da ciência Thomas Kuhn (1988), qual seja, o exaurimento do
poder explicativo de dada teoria científica em decorrência do surgimento de novos fenômenos por ela não
devidamente explicados e/ou previstos ou mesmo pelo falseamento das teses fundamentais da mesma.
3
BUSATO, 2012, p. 242.
4
Consigne-se a relevância do panorama da evolução do conceito de ação elaborada pelo prof. José Danilo
Tavares Lobato (2012, pp.51-68).
5
RUDÁ, 2017, p. 29.
6
In: BARROSO, 2009, p. 112.

4
bem como os ritos processuais instrumentalizados para a aplicação da norma penal por certo
tutelam o jurisdicionado.
Urge, pois, conceber o Direito das Penas enquanto uma resposta jurídica às condutas
reputadas criminosas dada no contexto da sociedade que o aplica. Trata-se, sumamente, de
uma ferramenta comunicativa7. Propõe-se a inclusão do sentido na construção da imputação
cujo alcance apenas é viável tomando-se por base a filosofia da linguagem. Tomando-se em
linha de conta a controvertida tripartição da semiótica8, Hassemer assinala que a aproximação
progressiva entre o Direito e a linguagem deriva justamente da urgência daquele de produzir
respostas efetivas a problemas práticos:

Esta classificação da Semiótica – a teoria da linguagem e do emprego da


linguagem – é útil quando se quer conhecer os limites até os quais a lei pode
vincular a si o juiz. Na ‘sintaxe’ ou sintática (Syntatik), trata-se das relações
dos signos linguísticos uns com os outros, da gramática, da lógica, da forma,
da estrutura. Na ‘semântica’, trata-se das relações dos signos linguísticos
com as coisas, do significado, da experiência, da realidade. Na ‘pragmática’,
trata-se das relações dos signos linguísticos com a sua aplicação nas
situações concretas, trata-se da ação, da comunicação, da retórica, da
narração9.

Outrossim, outro referencial ao desenvolvimento da presente pretensão oferece a


filosofia da linguagem na proporção em que as modernas teorias da argumentação jurídica
bem como da comunicação operaram verdadeira alteração paradigmática desde as aspirações
do próprio Direito no sentido de, por um lado, “trocar a pretensão de verdade por uma
pretensão de justiça e, de outro, permitir a confluência de aspectos normativos e ontológicos
sob a medida da comunicação de um sentido”10.
Conquanto não a tenha expressamente denominado assim, alinhando-se à filosofia da
linguagem de matriz wittgensteineana, Tomás Salvador Vives Antón (2011) formulou uma
proposta de estruturação da teoria do delito a qual foi doutrinariamente intitulada teoria
significativa do delito.
Com efeito, o mote para assim denomina-la deve-se ao fato de sua estruturação
metodológica partir de uma concepção de ação que referido doutrinador denomina
significativa, à vista de que a mesma traduz uma expressão de sentido, com bases assentadas

7
Alinho-me, nesse tocante, à teoria do direito como tecnologia do poder proposta por Tércio Sampaio Ferraz
Júnior (2003).
8
Lycan (2008), Miller (2007/2010) e Penco (2006) são referências iniludíveis nessa seara.
9
HASSEMER, 2005, p. 245.
10
BUSATO, 2012, p. 245.

5
nas Investigações Filosóficas de Wittgenstein (1953/1999), as quais operaram o ‘giro
pragmático’ na filosofia da linguagem com base na ação e na racionalidade prática assim
como, no que tange ao modo de apresentação do sistema, na teoria da ação comunicativa do
discurso proposta por Habermas (1983/1989).
Em suma, a ação significativa ostenta contornos que decorrem de fenômenos jurídicos
complexos e hodiernos, cuja solução reclama um enfoque contextualista e permanentemente
informado pelos direitos e garantias fundamentais insculpidos na Carta Política.
Nessa entoada, este capítulo se ocupará da exposição das duas linhas de frente com que
opera a teoria significativa do delito de Vives Antón. Num primeiro momento, passaremos à
apresentação dos principais conceitos da filosofia da linguagem do ‘segundo Wittgenstein’,
centrando-nos, após, na tratativa das sensações e dos estados e eventos mentais. Ao final,
faremos uma sucinta análise da teoria do Agir Comunicativo de Habermas, sobretudo nos
detendo na noção de pretensão de validade a fim de que o leitor possa, no terceiro capítulo,
compreender as categorias com que Vives opera.
Dito isto, cumpre elucidar a crítica wittgensteineana à percepção comum do
funcionamento da linguagem por ele nomeada ‘imagem agostiniana da linguagem’
(Augustinian Urbild), cuja pressuposição é patente em toda a dogmática jurídica penalista
desde Von Lizst e Belling.
Por certo Wittgenstein inicia o texto das Investigações Filosóficas11 citando parte do
capítulo 8 do livro I das Confissões de Agostinho (IF §1), afirmando que em tais palavras está
contida uma particular imagem da “essência da linguagem humana”, nomeadamente que (1)
palavras nomeiam objetos donde (2) sentenças são combinações de palavras. Eis o modo
corriqueiro de conceber a linguagem, frequentemente ensinado aos aprendizes de quaisquer
idiomas, fonte da qual emerge uma extensa cadeia de equívocos concernentes ao
funcionamento da linguagem e do significado.
Em se tratando de um modo natural de conceber a linguagem e seu aprendizado, a
imagem agostiniana produz uma primitiva concepção filosófica da linguagem, que se
caracteriza por assumir que a essência da linguagem é referencialista: o significado
corresponde à entidade pela qual a palavra está.
Conhecer uma palavra é saber qual objeto (quer uma coisa ou entidade) está
correlacionado a ela como sendo seu significado. Como consequência, o conhecimento do

11
Doravante referidas como Investigações ou tão-somente IF.

6
significado de um termo é obtido repentinamente. Ele consiste numa ‘captação’ da relação
entre tal termo e a entidade que constitui seu significado. É justamente pela conexão da
palavra com o objeto que ela significa que o uso da palavra deve ser estabelecido.
A fim de que possamos adquirir uma dada linguagem, supõe-se que devemos já estar de
posse de uma em algum sentido. Nesse sentido, o pensamento – a despeito de seu grau de
complexidade e sofisticação – deve preceder e se distinguir do domínio de um idioma
publicamente empregado.
A linguagem pública, destacam proficientemente Baker & Hacker12, “não parece, então,
ser necessária ao pensamento, mas, ao invés, à comunicação dos pensamentos. Os
constituintes do pensamento (...) têm seus significados independentemente das palavras de
uma linguagem pública”. Há, pois, um paralelismo na linguagem, consistente em dois
processos concorrentes, a saber, o pensamento (privado) e a fala (pública). Compõe a imagem
agostiniana da essência da linguagem a tese segundo a qual as sentenças são meras
combinações de nomes.
A outro giro, Wittgenstein observa em suas Investigações que o significado de uma
expressão é, mediante certas qualificações, o uso na prática de um jogo de linguagem
(Sprachspiele)13 de maneira que as palavras funcionam como ferramentas com uma variedade
de diferentes usos. Palavras possuem uma diversidade de usos, cumprindo diversos papéis na
comunicação. Uma certa linguagem é uma prática pública governada por regras, constitutiva
da forma de vida de seus falantes.
Explicar um significado não consiste em descrever a entidade designada pela palavra,
mas descrever a regra para o uso correto do termo de maneira que um falante
linguisticamente competente está apto a usá-la de acordo com um certo padrão de correção
geralmente aceito pela comunidade linguística. Então, temos que o significado é normativo,
porém variável em função do contexto de uso. Compreender o uso de um termo num contexto
de comunicação é idêntico a compreender seu significado. Nesse sentido, a pragmática
constitui e determina a semântica.
Wittgenstein introduz a noção de ‘paradigma’, central à sua proposta pragmática, no
parágrafo 50c de suas Investigações ao versar que
Aquilo que, aparentemente, deve haver pertence à linguagem. É um
paradigma no nosso jogo: algo com o qual é comparado. E constatar isso

12
BAKER; HACKER, 1985, p. 11.
13
IF § 43: “Pode-se, para uma grande classe de casos de utilização da palavra ‘significação’ — se não para todos
os casos de sua utilização —, explica-la assim: a significação de uma palavra é seu uso na linguagem”.

7
pode significar fazer uma constatação importante; mas é com efeito uma
constatação concernente ao nosso jogo de linguagem — nosso modo de
apresentação.

Nesses termos, a prática de usar uma linguagem não repousa sobre conexões
significativas entre a linguagem e a realidade. Por substituição, falar é agir e isto pressupõe a
ação dos seres vivos nas múltiplas formas de vida. “O aceito, o dado — poder-se-ia dizer —
são formas de vida”14. O sentido da linguagem é investigado no contexto onde ela se
desenvolve e não com base em vinculações prévias.
Desta feita, para o filósofo austríaco compreender um nome e seu significado é atentar
ao modo como é usado num certo contexto, descrevendo as regras para seu emprego correto.
Elucidativamente, o parágrafo 130 das Investigações sustenta que nossos claros e
simples jogos de linguagem
não são estudos preparatórios para uma futura regulamentação da linguagem,
— como que primeiras aproximações, sem considerar o atrito e a resistência
do ar. Os jogos de linguagem figuram muito mais como objetos de
comparação, que através de semelhanças e dissemelhanças, devem lançar
luz sobre as relações de nossa linguagem.

Nessa entoada, em se tratando de objetos de comparação, Wittgenstein pode compará-


los com outros jogos e não com qualquer linguagem formal idealizada, elucidando as
semelhanças e dessemelhanças entre os conjuntos de regras que disciplinam os respectivos
usos linguísticos. Daí dizer que se trata, antes, de uma filosofia da linguagem ordinária. Nada
há fora do uso efetivo das palavras. Precisamente nesse ponto em específico, diríamos, a partir
da tripartição proposta no início da seção por Hassemer, que no bojo da pragmática é o que
são descritas a sintaxe e a semântica.
Os jogos de linguagem, contrariamente ao que se pensa, não exprimem a efetiva
essência da linguagem, antes prestam-se tão somente como uma comparação que nos faculta a
possibilidade de ver aspectos de nosso uso da linguagem – sua estreita conexão com as ações,
sua multiplicidade de propósitos e o papel desempenhado pelas regras – em franca oposição
ao idealizado sistema de regras próprio de uma linguagem logicamente ordenada: “A fim de
ver mais claro, devemos aqui, como em inúmeros casos semelhantes, considerar as
particularidades dos processos; observar de perto o que se passa” (IF §51b).
No contextualismo de Wittgenstein o jogo de linguagem cumpre dupla função,
conforme destaca Carlo Penco15:

14
WITTGENSTEIN, 1999, p. 218.
15
PENCO, 2006, p. 105.

8
(1) É um instrumento para o estudo da linguagem: analisando os contextos
particularizados é possível esclarecer alguns aspectos da linguagem;

(2) É um dado de onde se pode partir: fala-se da linguagem ao descrever


diferenças e semelhanças dos jogos de linguagem.

Especificar um jogo de linguagem como faz Wittgenstein no texto das IF é descrever-


lhe as regras que determinam como esse deve ser jogado e, por consequência, quais são os
lances corretos/válidos ou não. Infringir as regras para o uso de um termo num certo jogo não
implica numa falsidade, mas numa ausência de sentido (nonsense). Enfim, jogar um jogo
determinado é seguir um conjunto de regras a ele correlato a que se denomina ‘gramática’.
A gramática de uma língua é o
sistema global de regras gramaticais, das regras constitutivas que a definem,
pela determinação daquilo que faz sentido dizer ao usá-la (...). Ao contrário
de sua predecessora, a sintaxe lógica [no TLP]119, a gramática não é
universal — diferentes linguagens possuem diferentes gramáticas.
Entretanto, a gramática de uma palavra específica como ‘compreensão’ é
universal, na medida em que outras línguas possuem palavras equivalentes16.

Ao adscrevermos as regras que normatizam determinado jogo, acabamos por identifica-


lo e, ao fazê-lo, elucidamos o que se presta como lances válidos e inválidos no mesmo,
compreendemos o tipo de jogo em questão (i.e., os limites do sentido). Nada há de exterior ao
próprio jogo que lhe determine a correção e validade dos lances possíveis. O significado de
uma expressão, sua normatividade, é contexto-dependente.
São as regras em vigor nos jogos de linguagem que estipulam o que pode ser asseverado
por um nome – a coisa designada por uma expressão no contexto de um uso significativo e
completo e uma linguagem. Wittgenstein é enfático ao asserir que mais que a forma
gramatical é o uso que determina o significado de um termo.
Observações sobre expressões linguísticas não caracterizam asserções sobre os
presumidos objetos pelos quais elas estão, mas sobre a gramática para seu uso. Infringir uma
regra para o uso de um termo num certo jogo de linguagem implica em uma ausência de
sentido (nonsense), não em uma falsidade.
Ato contínuo, a gramática determina os limites do sentido, regras para o uso dos
conceitos, não uma teoria sobre o algo. Ela precede e é pressuposta por quaisquer delas.
Contudo, nada há de especial ou superior na acepção wittgensteineana de ‘gramática’.
Distintamente da suposição de que há dois tipos de gramática – a filosófica e a linguística –,
Wittgenstein assevera que há dois tipos diferenciados de interesse em suas regras. O

16
GLOCK, 1998, p. 193, grifo nosso.

9
contextualista nutre interesse filosófico nas regras gramaticais, afastando mal-entendidos
sobre os conceitos e comparando as semelhanças de família (IF §67) entre os múltiplos jogos
de linguagem.
Nesse sentido, por exemplo, enquanto o gramático se ocupa com a taxionomia das
palavras (substantivos, adjetivos, advérbios, verbos, dentre outras) bem como com a sintaxe
dos termos e sentenças, o filósofo pode dissolver mal-entendidos sobre a sensação ou a
aritmética por meio de descrição, contraste e comparação das regras para o uso de tais
conceitos centrando-se em seu significado, na semântica pragmaticamente orientada, portanto.
Na medida em que o gramático se ocupa com uma certa linguagem natural, sua forma e
estrutura, o filósofo centra-se nas formas compartilhadas por diversas linguagens, não
aspirando a uma ‘gramática universal’, mas aplicando seu método gramatical no trato das
questões filosóficas colocadas.
A gramática de nossa linguagem é autônoma, i.e., não representa (ou figura) a estrutura
lógica do mundo ou a natureza de suas entidades/objetos. Antes encerra o conjunto de regras
para o uso dos termos num certo jogo de linguagem, a necessidade emana da própria
normatividade. Não é originária da natureza, mente ou do ‘terceiro Reino’ abstrato, mas de
um determinada forma-de-vida, o fundamento de toda práxis comunicativa.

1.2. Querer, Intenção e Ação: a ‘Imagem Agostiniana da Vontade’

Correlacionada à imagem agostiniana da linguagem a parte final do texto das


Investigações é dedicada à tratativa de uma aplicação particular do modelo agostiniano, agora
centrada na descrição (gramatical) dos termos psicológicos, é dizer, ao centrarmo-nos na
descrição (gramatical) das ações e intenções, quer próprias quer alheias.
Referido modelo agostiniano da vontade está umbilicalmente atrelado a um paradigma
unilateral – na proporção em que supõe um sujeito pensante absoluto conhecedor de si e de
suas sensações – mentalista – posto que a linguagem, enquanto fenômeno público, cumpre
tão-somente a função de expressar o conteúdo de uma linguagem interna, mental – e
referencialista – palavras estão pelos objetos a que se referem, de tal modo que o significado
de um termo é dado pela relação entre a palavra e a coisa.
Prima facie, cabe contrastar, desde o referencial gramatical elaborado por
Wittgenstein17, o uso dos termos – psicológicos – ‘intenção’ e ‘vontade’.
Ações ditas voluntárias e intencionais se assemelham haja vista que envolvem um

17
Centro-me, mormente, no comentário analítico das Investigações de Hacker (1996).

10
“duplo poder”, no dizer de Hacker18, qual seja, “o de fazer ou evitar o que se quer”19 (ibid.)
assim como o fato de que, em relação a tais ações “sempre faz sentido perguntar pelas razões
do agente”20.
É significativo afirmar a possibilidade de uma certa ação intencional ser involuntária –
como no caso, de coação, moral ou física – ao passo que se afigura igualmente significativo
sustentar que uma ação voluntária possa ser não-intencional21.
Contudo, analisando com vagar a primeira assertiva, mesmo em casos de coação, a ação
parece ser voluntária: o uso da expressão sem-querer sugere, equivocadamente, a absoluta
ausência de volição quando, em realidade, na hipótese, o coagido apenas não tem interesse no
resultado, i.e., na coação, age-se segundo a vontade alheia. A despeito disso, tal vontade não
impõe soberanamente sobre a vontade própria do agente, “mas impondo-lhe uma alternativa:
‘faça isso ou sofra coisa pior’ ou ‘não faça isso e perca coisa melhor’”22. Na coação, o sujeito
coagido em algum momento cede: “ele faz (porque quer) o que antes não queria (faz sua a
vontade alheia), para não sofrer coisa pior ou não perder coisa melhor (seja segundo a ameaça
ou promessa direta do outro, seja segundo um cálculo próprio)”23. Assim, mesmo sob a mais
grave coação ainda há ação intencional voluntária.
Nesse trilhar, o caráter intencional da ação implica em seu caráter voluntário24 enquanto
seu caráter voluntário não necessariamente o reenvia ao caráter intencional. Justamente esse é
o ponto nodal entre as ações intencionais e voluntárias no texto das Investigações25.
Wittgenstein descreve os usos do termo ‘vontade’ entre os parágrafos 611 e 628 de suas
Investigações. No parágrafo 61226, contrapõe as acepções comuns de atividade e passividade

18
HACKER, 1996, p. 620.
19
Ibid.
20
Ibid.
21
“Uma ação pode ser voluntária sem ser intencional se é uma reação inibível a qual não se inibiu (…) como
quando se assobia ‘automaticamente’ durante o trabalho, a própria ação é voluntária sem ser intencional”
(HACKER, 1999, p. 621).
22
SIQUEIRA, 2016, p. 96.
23
Ibid.
24
“Afirmar de uma ação que ela é intencional (...) é caracterizá-la como o exercício de um poder voluntário,
como uma ação de cuja performance o agente está avisado, como uma ação que o agente faz por razões ou por
inclinação. Como tal é uma ação pela qual o agente pode tipicamente se sentir responsável” (id., p. 634).
25
Ao afirmar a frase ‘fiz algo porque quis, mas sem intenção’ é o caso de distinguir um ato culposo daquele
doloso visto que ao caráter voluntário da ação pode-se acrescer ou não um caráter intencional. Contudo, centrarei
meus esforços em rechaçar a pretensa, e doutrinariamente consensual, tripartição do dolo em primeiro grau,
segundo grau e eventual desde a teoria significativa formulada por Vives Antón a partir das presentes
observações de Wittgenstein.
26
IF §612: “Não diria, por exemplo, que o movimento de meu braço vem quando vem, etc. E este é o domínio
em que dizemos, significativamente, que algo não nos acontece simplesmente, mas sim que o fazemos. “Eu não
preciso esperar que meu braço se levante, — eu posso levantá-lo”. E aqui oponho o movimento de meu braço ao
fato de que as fortes palpitações de meu coração irão se acalmar”.

11
ao contrapor os exemplos de “erguer o braço” e de fazer “bater o coração”.
Se é possível levantar o braço, tal é algo que fazemos, não algo que simplesmente nos
ocorre. Nessa entoada, o movimento do braço teria de ser “o efeito, e sua causa seria uma
misteriosa interferência psíquica direta posta na origem do movimento”27. Erguer o braço, em
tese, exemplificaria uma inequívoca ação voluntária ou livre, por oposição à simples
causalidade involuntária do palpitar do coração.
Wittgenstein se reporta a Agostinho, no parágrafo 618 de suas Investigações, como
sendo o expoente da defesa da existência de uma vida interior e, a fortiori, do ideal de
subjetividade psicológica ocidental28.
Desta feita, ao refletirmos sobre nosso (presumido) livre-arbítrio dentro de um modelo
agostiniano, comprometemo-nos com um ideal a existência de um sujeito volitivo
representado “como algo sem massa (sem inércia), como um motor que não tem em si mesmo
nenhuma resistência de inércia a vencer. E que, portanto, é apenas impulsor, sem ser
impulsionado” (IF §618a).
A imagem da vontade, nesse diapasão, supõe um nexo causal entre “duas partes de uma
máquina” (IF §613), a saber, “o querer-causa-antecedente e o agir-efeito-consequente” (ibid.).
A vontade, expressa pelo ato de querer, “vem quando vem, não posso provocá-la” (IF §611),
i.e., ela se faz e daí resulta, de modo imediato e não causal a ação. O agente, responsável pela
ação “parece um ponto sem extensão, como a ponta de uma agulha” (IF §620) posto que age
como que de inopino, como que por puro Fiat29. Caberia indagar a prima causa do querer de
maneira a redundarmos na celeuma determinismo/liberdade, arremetendo-nos contra os
limites da linguagem, à semelhança das teorias causalistas do Direito Penal30.
No parágrafo 613 das Investigações o filósofo austríaco elucida a possibilidade de
provocar o querer – “provoco o querer-nadar na medida em que pula na água” – por oposição

27
SIQUEIRA, 2016, p. 105.
28
“Agostinho é um figura proeminente na história da transição da oralidade para a literatura. (...) Ele se auto
atribuiu a descoberta da leitura silenciosa de maneira que suas Confissões marcam uma forma de introspecção e
uma maior internalização da consciência que está relacionada em muito com o ato de escrever para si mesmo.
(...) A mudança para a leitura silenciosa e para a introspecção, tal como apresentada pelas Confissões de
Agostinho é característica de toda uma tradição filosófica que se segue, tradição essa que enfatiza a escrita e a
linguagem do pensamento isolado antes do falar e o usar a linguagem” (SAVICKEY, 1999, p. 120, tradução
nossa).
29
Lanço mão da expressão cunhada pelo professor Eduardo Siqueira (2016, p. 116) ao interpretar o truncado
parágrafo 618 das Investigações aduzindo que “[N]essa falsa-imagem do querer como um motor-fiat, ele aparece
como um poder mágico de gerar ações tendo seu próprio movimento tendo sido gerado do nada […] A vontade
seria, então, livre como um motor-de-partida que aciona o grande motor corporal, mas sem precisar de manivela
nem bateria, sem ser impulsionado por nada (senão pela mera vontade)”.
30
As quais serão devidamente caracterizadas no capítulo subsequente.

12
ao nonsense do querer-querer: o querer não é nome de uma ação específica (presumida
voluntária), contudo tampouco consiste num ato involuntário, e a ação involuntária, a fortiori,
apareceria como que determinada por um querer ele próprio involuntário. Ora, se assim o
sucedesse, haveria sentido em dizer que um indivíduo praticou uma certa ação a porque quis,
posto que poderia tê-la praticado sem querer. Porém, de igual sorte deveria ser significativo
dizer que referido indivíduo quis porque quis, na medida em que fizesse sentido querer sem
querer, o que não é o caso: “Diria, certamente: eu não poderia querer o querer; isto é, não tem
nenhum sentido falar de querer querer” (IF §613).
Impõe-se notar a possibilidade de um indivíduo não fazer o que queria (intencionava,
planejava ou desejava), pois no momento de fazê-lo decida de outro modo, queira outro algo,
deseje outro objeto ou tenha outra intenção. Mas é impossível fazer-se a si próprio querer o
que não quer, e, dessarte, tentar fazer-se querer o que não se quer, não conseguir-se fazer
querer o que não quer dado que ninguém pode falhar em querer (IF §618 in fine) –
simplesmente porque isso não tem sentido pois não se pode querer querer (IF §613).
Sintetizando a pervasividade do argumento wittgensteineano sobre o equivocado uso da
expressão ‘querer’ Eduardo Siqueira31 assevera que
Entre nadar e querer nadar não há um gap, um intervalo, um hiato a ser
mediado por outra ação (a ação de querer) que seria, por sua vez, ela mesma,
voluntária ou involuntária. Posso muito bem querer que o outro queira tal e
tal – mas não posso eu mesmo querer-querer tal e tal (o que posso fazer é
impor, como regra necessária para mim mesmo ou ao outro, alternativas
indesejáveis, segundo um cálculo). Posso criar as situações onde se erga o
braço (ou coisa pior), onde se nade (ou coisa pior) e onde as batidas
cardíacas se desacelerem (ou coisa pior). Mas não posso impedir ninguém de
querer o pior (ou seja, posso provocar o querer-nadar, mas não posso obrigar
ninguém a querer-não-se-afogar – o que deve ser entendido como um limite
gramatical, e não empírico, nem metafísico).

A proposição ‘não posso querer querer’ é, pois, uma regra gramatical na proporção em
que exibe os limites do sentido da pergunta pelo voluntário, onde tal não mais se aplica.
Dessarte, não se trata definitivamente de advogar quer a tese determinista quer a do livre-
arbítrio, antes de rejeitar de pronto o próprio cabimento da referida distinção32.
Consectária da perspicaz observação de Wittgenstein é a conclusão segundo a qual a
distinção voluntário/involuntário se aplica significativamente na descrição das ações, não na

31
SIQUEIRA, 2016, p. 105.
32
“Vivencio a escolha, as contendas da decisão, mas não a liberdade de escolha – ensinam as notas de
Wittgenstein Sobre a Liberdade da Vontade. O pressuposto sem sentido aqui é o de que se possa querer-querer
(que se possa decidir se o ato de querer é ele mesmo voluntário ou involuntário) – e, para se dar conta da falta de
sentido desta questão não há senão o dar-se conta dos limites, gramaticais, do voluntário” (id., p. 109).

13
descrição da vontade enquanto tal. Indagar concernente ao caráter voluntário das ações
implica fazer um lance no jogo de linguagem da vontade; de outra sorte, reiterar a questão,
questionando se um querer é voluntário ou involuntário ilustra tão-somente o
desentendimento das regras deste jogo.
A relação entre a intenção e a conduta é interna de maneira que querer é agir: “Se é o
agir, então é o agir no sentido habitual da palavra; portanto: falar, escrever, andar, erguer algo,
representar-se algo. Mas também: pretender, tentar, esforçar-se, por — falar, escrever, levantar
algo, representar-se algo, etc” (IF §615).
Tendo rechaçado a imagem agostiniana da vontade descrevendo a gramática dos termos
psicológicos ‘querer’, ‘vontade’ e ‘intenção’, Wittgenstein se ocupa com o questionamento
concernente à correta descrição da ação voluntária. Desta feita, introduz no parágrafo 62733
das Investigações a imagem do monge que segue uma regra: “tocar o sino às 17:00”. Ora, a
correta descrição deve tomar em conta o fato de que referido monge “tomou a decisão” de
seguir a regra, não no sentido de um impulsionar (mecânico) de um motor que engendra a
ação sem ser por nada engendrado, mas de que, conforme nota Hacker34, a ação voluntária
não necessariamente é precedida de decisões, porém uma manifestação de decisão pode ser o
início de uma ação voluntária.
A descrição gramatical levada a cabo por Wittgenstein nos permite elucidar que vontade
é um conceito, é dizer, seu uso denota atividade. Não se trata, pois, de sentimento,
representação ou vivência privadas, mas, antes, de um ato significativo. Podemos sintetizar as
coordenadas das conclusões a que chegamos nos termos da notável tese de doutoramento do
prof. Eduardo Gomes de Siqueira a respeito da temática35:
1 – O ponto de vista do voluntário introduz o ponto de vista da oposição
entre atividade e passividade, ou “entre o que fazemos” e “o que vemos
acontecer”; o querer tem uma conexão interna com a ação em geral, uma
pendência com a intenção, e normalmente exclui o desejo e o espanto.
2 – O mais espetacular problema da vontade jamais cunhado pela filosofia
tradicional (liberdade x determinismo) é um típico pseudo-problema
filosófico, o qual só existe porque se pressupõe que o ato de querer ele
mesmo (a volição) poderia ser uma ação particular voluntária ou
involuntária. Ou seja, que seria possível querer querer, i.e., que a vontade

33
IF §627: “Observe a seguinte descrição de uma ação voluntária: ‘tomo a decisão de dar cordas no relógio às 5
horas; e quando der 5 horas, o meu braço fará então este movimento.’ – É esta a descrição correta, e não essa: ‘...
e quando der 5 horas, levanto meu braço’? – Poderíamos completar a primeira descrição deste modo: ‘E veja!
meu braço se levanta quando dá 5 horas.’ E este ‘veja’ é exatamente o que fica suprimido aqui. Não digo: ‘Veja,
meu braço se levanta!’ quando eu o levanto. Poder-se-ia dizer: o movimento voluntário é caracterizado pela
ausência de admiração. E não quero que me perguntem: ‘Mas por que é que aqui não se tem admiração?’
34
HACKER, 1996, p. 585.
35
SIQUEIRA, 2016, 131.

14
poderia ser livre como um motor-fiat transcendental que impulsiona as
ações humanas sem ser impulsionado por nada anterior no tempo;
3 – As descrições da ação voluntária opõem fazer e acontecer e envolvem
esclarecer as confusões de vários pares analógicos do querer: poder querer,
saber querer, querer fazer, provocar o querer, sentir o querer e dirigir o
querer. A vontade não é parte de um dispositivo psicológico capaz de
provocar, direta ou indiretamente, as ações; nem é o nome de uma conexão
cognitiva especial imediata e não-causal.
4 – Querer não é uma meta-ação de modo que não há: não conseguir
querer, nem tentar querer, pois não há querer querer – e isto é uma
proposição gramatical, um limite para o uso da palavra e para o jogo do
voluntário;
5 – Há uma falsa-imagem do querer e do fazer (como dependente do
sujeito volitivo e seu fiat meta-empírico), ligados à imagem agostiniana da
vontade, distorcendo nossas descrições da ação humana voluntária.

Em suma-síntese, impõe-se conceber a ação de modo diverso, “não como ‘o que as


pessoas fazem’, mas como o significado do que fazem, isto é, com um sentido. Todas as ações
não são meros acontecimentos, mas têm um sentido (significado), e, por isso, não basta
descrevê-las, é necessário entende-las, interpretá-las”36.
Por fim, cumpre analisar o tratamento dispensado pelo filósofo austríaco à temática das
sensações, supostas privadas, cujo acesso é dado privilegiadamente ao seu possuidor,
centrando-nos no caráter externalizado e público da linguagem.

1.3. Wittgenstein e a Gramática das Sensações

A despeito das múltiplas teorias filosóficas, a imagem agostiniana da linguagem


pressupõe a concepção dualista, de acordo com a qual o ser humano é composto de alma e
corpo. Por certo, desde a filosofia grega – sobretudo, platônica – a realidade pode ser cindida
em dois planos, quais sejam, o mundo sensível e o mundo inteligível.
Agostinho, no medievo, aprofunda sua presumida incursão e, no solilóquio de suas
Confissões, funda o solipsismo o qual é formatado por Descartes. O ideal de sujeito é,
portanto, construção moderna, conquanto presente desde a filosofia helênica.
Em Descartes, o homem é um todo composto por duas substâncias distintas, a alma e o
corpo (res extensa). Seu “eu profundo”, que constitui sua identidade essencial e ao qual se
refere quando emprega o pronome “eu”, é sua mente, sua alma, sua res cogitans. A essência
da alma é o pensamento, ao passo que a do corpo, a extensão. A interação entre ambos é de
natureza causal. Na percepção, observa Hacker37, “as estimulações das terminações nervosas

36
BITENCOURT, 2010, p. 269.
37
HACKER, 200, p. 19.

15
do corpo afetam a mente, impingindo-lhe ideias. No ato de volição, a vontade produz
movimentos nos membros do corpo”.
Importa registrar que o que se passa na mente do sujeito é acessível ao mesmo por meio
da consciência, afinal sempre se está consciente e, assim, tem-se conhecimento certo e
indubitável daquilo que se pensa, sente ou quer. O conhecimento da mente alheia é indireto, é
dizer, por via do que outrem faz e diz.
Conquanto tenha rejeitado o dualismo mente/corpo, é consenso que a estrutura
conceitual cartesiana básica perdura em boa parte das teorias filosóficas e do delito
contemporâneas, e, a fortiori, do dolo. Se de um lado rejeitam o ideal de uma substância
imaterial – a res cogitans, comprometem-se com a identificação da mente com o cérebro de
maneira a sustentar que estados mentais são estados do cérebro. Esse, por seu turno, é
conceituado como sendo um aparato que processa informações: “Os nervos aferentes dos
órgãos sensíveis transmitem informações para o cérebro, que as processa para produzir
percepções. Considera-se que perceber algo seja idêntico a um estado cerebral produzido pelo
input informacional”38.
A consciência é análoga a um mecanismo de auto inspeção do cérebro, de tal sorte que o
conhecimento que supomos possuir de nossa experiência presente é explicado por meio da
consciência assim concebida. Em suma, o dualismo mente/corpo for a substituído pela díade
cérebro/corpo, a res cogitans, pelo conglomerado de neurônios que compõe a massa cerebral,
o cartesianismo em sua versão naturalizada.
Filósofos assumem, em maior ou menor grau, o comprometimento com a coexistência
dos mundos exterior – público, composto de fatos, eventos, estados e processos espaciais –
bem como interior – mental, subjetivo, e, pois, individual. À semelhança do mundo físico, o
interior é constituído por objetos (tais como sensações, desejos, imagens e dores), conquanto
tais objetos, estados, eventos e processos sejam mentais e intangíveis porque incorpóreos. O
mundo espacial é público e intersubjetivo ao passo que o interior, privado e individual: “A
percepção está para o mundo exterior, assim como a introspecção e a consciência estão para o
mundo interior”39.
Consectária de tal background é a presumida certeza relativa ao conhecimento de
nossas sensações: não é possível ter uma dor e duvidar ou indagar se a temos; não é viável
pensar que temos dor e nos equivocar quanto a essa sensação. Os objetos que o sujeito

38
HACKER, 2000, p. 21.
39
Id., p. 23.

16
observa introspectivamente, ele os relata aos outros por meio de sentenças tais como “eu sinto
dor”, “eu quero tal e tal” ou “desejo fazer isto ou aquilo” – sentenças as quais tão-somente
descrevem os eventos mentais que se lhe acometem a mente. Referidas descrições da
experiência privada e subjetiva são dadas independentemente do comportamento.
Se assim o for, suporíamos que, pela introspecção, temos acesso privilegiado à nossa
mente. Introspectivamente, encontraríamos no interior da mente os estados de consciência,
objetos de conhecimento certo e indubitável: penso, logo existo (cogito ergo sum), conclui
Descartes em suas Meditações Metafísicas. Ora, se o domínio mental é acessível pela via da
introspecção, razoável supor a existência de uma linguagem privada, dita “do pensamento”
por meio da qual o sujeito traduz para si as próprias sensações.
Contrapondo-se a esta tradição moderna, Wittgenstein observa que, a bem da verdade, a
introspecção é forma de reflexão sobre nós próprios, de maneira que uma tal investigação da
alma requer imaginação e discernimento40, “mas não um ‘olho interno’, pois não há nada para
se perceber, mas apenas para se refletir41. Inexiste algo como condições internas de
observação, aptas a aferir os presumidos objetos mentais.
Não é o caso de falarmos em observação perceptiva, mas apenas de refletir sobre o que
sentimos, dado que não há distinção entre ter uma dor e estar consciente dela: dizer que temos
dores não implica em que tenhamos uma misteriosa capacidade de enxergar (por
introspecção) e, destarte, dizer o que se passa em nosso “eu interior”.
Desde um ponto de vista gramatical, afirmar que “sabemos que temos dores” se revela
um contrassenso, posto que se tal sentença fosse significativa deveria fazer sentido negá-la, o
que certamente não é o caso: “Com respeito a mim mesmo, não se pode dizer (a não ser em
tom de brincadeira) que eu sei que tenho dores. O que se poderia querer dizer com isto –
exceto, talvez, que eu tenho dores?” (IF §246). Não faz sentido igualmente questionar:
“Como você sabe que tem dores?”42.
Importa ressaltar que a impossibilidade da presumida certeza concernente às nossas
sensações não decorre de uma inexistência empírica, mas de um limite para o uso com

40
IF §587: “Tem sentido perguntar: ‘Donde você sabe que acredita nisso? – e a resposta: ‘Reconheço-o por
introspecção’? Em certos casos será possível dizer tal coisa, na maioria dos casos, não. Tem sentido perguntar:
‘Amo-a, realmente, não estou apenas simulando?’, e o processo de introspecção é o despertar de recordações; de
representações de possíveis situações e de sentimentos que teríamos se...”.
41
HACKER, 2000, p. 31
42
Sintetizando as observações de Wittgenstein, conclui, uma vez mais, Hacker (2000, p. 34) que “nossa
concepção da privacidade epistêmica da experiência confunde a exclusão gramatical da ignorância (a falta de
sentido de ‘Talvez eu esteja com dor, mas não sei se estou”, o fato de que não associamos nenhum uso a esta
forma verbal) com a presença de conhecimento.

17
significado da expressão ‘sei que p’. Não há sentido na dúvida quando um indivíduo sente
uma dada dor posto que quando a sente, ele não observa perceptivamente, mas apenas registra
linguisticamente a sensação. A dúvida, na presente hipótese, é excluída não pela certeza de
conhecimento, mas pela gramática: não há significado afirmar “Pode ser que esteja com dor,
mas me enganei”. Cuida-se não de legislar sobre o uso, mas de descrever as regras para o
jogo-de-linguagem das sensações:
Diz-se ‘Eu sei’ onde se pode dizer também ‘Eu creio’, ou ‘Eu suponho’;
onde se pode convencer-se. (Mas alguém que me faz ver que muitas vezes se
diz ‘Eu tenho de saber se sinto dor!’, ‘Só você pode saber o que sente’ e
coisas semelhantes, este deve examinar os motivos e a finalidade desses
modos de falar. ‘Guerra é guerra!’ também não é um exemplo da lei da
identidade (IF, Parte II, p. 286).

Ainda no tocante ao domínio da linguagem sobre as sensações, Wittgenstein nos fornece


premissas relevantes ao tratamento da questão sobre as sentenças psicológicas em primeira
pessoa: dado que tais sentenças não consistem em descrições de estados mentais, qual a sua
natureza? A presente indagação é central, pois conforme observa o filósofo em IF §304
O paradoxo só desaparece então, quando nós rompemos radicalmente com a
ideia de que a linguagem funciona sempre de uma forma, presta-se sempre
ao mesmo objetivo: transmitir pensamentos – sejam esses pensamentos sobre
casas, dores, bem e mal, ou o que quer que seja.

Wittgenstein certamente rejeita a ideia de uma linguagem privada, interior, do


pensamento, considerando que as sentenças sobre nossos estados mentais não podem ser
pensadas num modelo nome-objeto, mas como exteriorizações da experiência43, i.e., por meio
delas manifestamos nossos desejos e intenções, exteriorizamos o que sentimos:
Como é que as palavras se relacionam com as sensações? – Não parece
haver nisso nenhum problema; pois não falamos diariamente de sensações e
lhes damos nomes? Mas, como é que se faz a ligação do nome com o
denominado? É o mesmo que perguntar: como é que um homem aprende o
significado dos nomes das sensações? – p. ex., da palavra ‘dor’. Uma
possibilidade seria: as palavras estão vinculadas à expressão original e
natural, e são colocadas no seu lugar [das sensações]. Quando uma criança
se machuca, ela grita; os adultos consolam-na e ensinam-lhe exclamações e,
mais tarde, frases. Ensinam à criança um novo comportamento de dor. (IF
§244 1ª parte).

Assim as sentenças psicológicas em primeira pessoa – tais como ‘Estou com dor de
garganta’ ou ‘Sinto amargar minha garganta’ – “são declarações em que o falante manifesta a
sua dor, e não descreve essa dor; por isso estão mais próximas dos gritos e dos lamentos do

43
Essa é a tese defendida por Mirian Donat (2008, p. 139)

18
que das descrições”44. O critério de identificação de uma dor é o comportamento de dor,
posto que essa é expressa num comportamento característico de sentir dor. Sensações,
conforme notamos supra, são conceitos e seu uso (linguístico) sempre vem acompanhado de
um certo comportamento.
Contudo, Wittgenstein não trata de identificar os enunciados que expressam dor com
expressões naturais de dor, como um interlocutor desavisado poderia concluir: “‘Então você
está dizendo que a palavra ‘dor’ significa propriamente grito?’ – Pelo contrário; a expressão
verbal da dor substitui o grito e não o descreve” (IF §244 2ª parte). A gramática do conceito
‘dor’ inclui o comportamento de dor, dito de outro modo, há uma relação interna entre a dor e
o comportamento de alguém que sente dor, de maneira que a sentença ‘Eu tenho um dor’ não
descreve um estado mental, mas exterioriza uma experiência45. A dor é “uma parte
constitutiva daquele jogo-de-linguagem, ela é parte das regras que determinam a gramática
desse jogo e serve como um critério para dizer de alguém que sente dor”46.
Dissolvendo a pretendida linguagem privada, do pensamento, pode-se concluir, a partir
do exposto, pela perfeita possibilidade de falarmos sobre o interno, no sentido de que
podemos identificar o que se passa no interior do indivíduo e falar a respeito com sentido. As
regras para os usos corretos dos termos psicológicos são públicas porque compartilhadas por
uma dada comunidade linguística e devem ser seguidas por todo aquele que pretende falar
com sentido de suas experiências internas, é dizer, falar dos conceitos relativos às suas
próprias sensações.
Note-se que mesmo nas hipóteses de simulação ou mentira sobre o sentimento de uma
certa dor, tomamos por parâmetro o comportamento característico de dor, pois caso
admitíssemos que todo comportamento de dor pudesse ser simulado ou fingido nós os
tornaríamos – os conceitos eles próprios – desprovidos de qualquer uso significativo em nossa
linguagem. Conforme bem anota Mirian Donat47, se podemos nos enganar quando pensamos
que o outro sente dor “é porque ele se comporta como se estivesse com dor, e nosso
julgamento poderá ser corrigido por outras ações que venha a realizar, nas quais se mostrará
que, na verdade, aquele comportamento não passava de uma simulação”.
A simulação e a mentira não são, conforme supõe o agostiniano, comportamentos para

44
DONAT, 2008, p. 140.
45
IF §281: “‘Mas, o que você está dizendo é o mesmo que dizer, por ex., que não existe dor sem comportamento
de dor?’ – Dá no mesmo: só de uma pessoa viva e do que lhe é semelhante (se comporta de modo semelhante) é
que se pode dizer que tem sensações; que vê; é cega; ouve; é muda; está consciente ou inconsciente”.
46
DONAT, 2008, p. 141.
47
Ibid., p. 145.

19
os quais falta o objeto interno correspondente, antes são formas de comportamento que
exigem aprendizado e uso correto: “mentir é um jogo de linguagem que deve ser aprendido
como qualquer outro” (IF §249 2ª parte).
A significação dos conceitos psicológicos depende de critérios públicos de aplicação:
um processo interno exige critérios públicos para atribuição de sentido. Nesse sentido,
desfazem-se as dicotomias entre interno e externo, público e privado, primeira e terceira
pessoas. Não há um acesso direto e irrestrito às nossas próprias sensações e apenas indireto à
alheias, posto que as sentenças sobre nossos estados mentais não são declarações epistêmicas
do tipo ‘Sei que p’, mas exteriorizações da experiência:
O que há de verdadeiro na noção de privacidade epistêmica é a autoridade da
primeira pessoa: estou em posição de dizer o que sinto, experimento, penso,
não porque tenha um acesso infalível a uma espécie de cineminha privado,
mas porque o que digo, ao contrário do que aquilo que os outros dizem de
mim, é (tipicamente) uma exteriorização, uma expressão ou manifestação
não fundamentada de algo interno48.

A despeito disso, se nos centrarmos nas emoções – não apenas nas dores – com mais
vagar permanece a suposição de que as mesmas estão de alguma maneira divorciadas de
causas e eventos empíricos de maneira a permanecer a suposição de que sua atribuição é
privada pois habitam o íntimo da mente humana. Uma análise gramatical permite
compreender que as emoções dependem de contextos normativos para sua identificação e
atribuição, sua própria constituição é dada pelas formas de vida, compostas, por sua vez, por
ações e práticas sociais intersubjetivamente compartilhadas. Johan Hans-Glock é elucidativo
ao ponderar que
Que as emoções são dependentes de contextos sociais é verificável quando
se considera, por exemplo, que uma emoção tal como o medo pode ter uma
origem natural, mas quando começam a se tornar mais e mais complexas
elas vão perdendo esse caráter natural e se tornando cada vez mais culturais.
Se o medo pode ser um sentimento natural, ter medo de algo específico já é
uma contribuição da forma de vida na qual se vive. Assim, o medo vai
tomando características específicas de acordo com o papel e as funções que
adquire naquela forma de vida. Aprender a falar sobre o medo e expressá-lo
é decorrência de se estar integrado nessa forma de vida, conhecendo as
regras que normatizam esse falar, e também saber identificar e atribuir a si
mesmo e aos outros essa emoção vai depender desse contexto49.

A conclusão a que forçosamente se chega é que, desde um ponto de vista


wittgensteiniano, não se dissociam vida e linguagem. As formas de vida, compreendidas

48
GLOCK, 1998, p. 287.
49
Ibid., p. 289.

20
como sendo “aquele pano de fundo formado pela linguagem, ações e instituições”50, fornecem
a visão de mundo de acordo com a qual formaremos nossas crenças, e também nossos
conceitos relativos a sensações e emoções de tal modo que tais experiências têm significação
distinta relativamente às formas de vida que estão em sua base e sustentação. Contrariamente
à imagem agostiniana da vontade, emoções e sensações são experiências exteriorizadas no
comportamento e identificadas intersubjetivamente.
Tais dependem de um contexto normativo, portanto dependem de regras que lhes sirvam
de parâmetros de identificação e uso com sentido num jogo-de-linguagem. Nesse sentido não
se dissociam da forma de vida que lhes dá origem, como se objetos privados fossem,
considerados independentemente do contexto de sua experiência. Precisamente nesse tocante
observa Mirian Donat51 que
É isso também o que deve ser considerado quando se diz que é apenas de
uma pessoa ou de um ser humano que se pode falar que tem dores. É numa
forma de vida (humana) que se pode atribuir a um ser ter ou não uma
sensação ou uma emoção; isso é dependente dos critérios que temos de ser
humano e pessoa, e com isso eliminamos os falsos dualismos acerca do ser
humano como um composto de corpo e mente. No nosso conceito ordinário
de ser humano esses dualismos não têm lugar, por isso temos que nos voltar
para as formas de vida.

Do exposto, podemos inferir que o uso meramente descritivo não exaure a linguagem,
razão porque não há justificativa na redução da linguagem normativa ao modelo descritivo e,
ademais, a gramática dos jogos-de-linguagem – mormente, no discurso do direito penal –
somente pode ser compreendida a partir de outros fatores para além dos de sua expressão
verbal, incluídas as circunstâncias, agentes e práticas em que tem lugar. O estabelecimento do
argumento jurídico, ensina Paulo Busato52 “não são desprezíveis as circunstâncias do caso
concreto, nem tampouco sua situação histórica, social, cultural e política”.

1.4. A Teoria do Agir Comunicativo de Habermas

O segundo pilar da teoria do delito proposta por Vives Antón é o conceito de ação
comunicativa, elaborado por Jürgen Habermas. Esclarece, de saída, o filósofo que sua teoria
“não é uma metateoria, mas o princípio de uma teoria da sociedade que se esforça por dar
razão dos cânones críticos de que faz uso”53. Parte-se, assim, da análise do modo de atuação

50
DONAT, 2008, p. 150.
51
Ibid., p. 151.
52
BUSATO, 2012, p. 248.
53
HABERMAS, 1987, p. 9, tradução nossa.

21
dos processos sociais desde uma teoria da ação humana considerada sob o prisma da
comunicação de sentido54.
Nesse sentido, Habermas pretende desenvolver sua teoria da sociedade se valendo de
um conceito de racionalidade (comunicativa) que traga à baila “o conteúdo normativo de
qualquer comunicação orientada pela compreensão”55.
Tal conceito aponta, conforme registra o prof. Alessandro Pinzani, para três níveis nos
quais os processos de comunicação acontecem a partir da perspectiva dos sujeitos neles
envolvidos, quais sejam “a relação do sujeito do conhecimento com um mundo de eventos ou
fatos; a relação do sujeito prático, que age e está envolvido em interações com os outros; e,
finalmente, a relação do sujeito com sua própria natureza, com sua subjetividade e com a
subjetividade dos outros”56. As três dimensões apontam para um mundo da vida no qual os
participantes da comunicação “têm atrás de si e a partir do qual eles resolvem seus problemas
de compreensão”57.
Com efeito, trata-se de descrever e analisar o modo como atuam os processos sociais.
Em sendo assim, o filósofo considera que “o mundo social não é algo dado previamente, mas
algo dotado de sentido, que depende, sempre, de interpretação e de validade”58. O núcleo da
teoria do agir comunicativo de Habermas consiste em asserir que usar a linguagem significa
avançar pretensões de validade as quais devem ser justificadas discursivamente.
A teoria da sociedade moderna tem por objeto não o comportamento humano, mas o
agir, i.e., um “comportamento dirigido por normas ou orientado por regras”59, que deve ser
compreendido em seu sentido bem como o sentido das normas e regras que o determinam.
Socorrendo-nos, novamente, da análise de Alessandro Pinzani60 é forçoso concluir que
A tese central de Habermas é de que a tarefa da teoria é reconstruir a
formação do sistema de regras que sujeitos capazes de agir e dotados de
competência linguística aplicam irrefletidamente no seu agir cotidiano. Isso
é possível somente se pensarmos a sociedade como um contexto vital
estruturado acerca de certos sentidos, que pode ser interpretado
hermeneuticamente, e se dispusermos de uma teoria da competência

54
Convém ressalvar, nos termos de Alessandro Pinzani (2009, p. 97), que “em geral, essa obra-prima de
Habermas [A Teoria da Ação Comunicativa, publicada em 1981] pode ser considerada como a tentativa de
entender a sociedade contemporânea por meio de uma reconstrução dos momentos mais importantes que
contribuíram à autocompreensão da modernidade. A teoria do agir comunicativo não representa, destarte, uma
teoria da sociedade em geral, mas da sociedade moderna”.
55
PINZANI, 2009, p. 98.
56
Ibid.
57
Ibid.
58
BUSATO, 2012, p. 249.
59
HABERMAS, 1987, p. 136.
60
PINZANI, 2009, p. 83.

22
linguística.

A realidade social pressupõe o reconhecimento concreto de pretensões de validade


contidas em formações simbólicas (ações, gestos, instituições, cosmovisões, dentre outras),
sendo possível identificar suas quatro classes que exigem reconhecimento e podem recebê-lo,
a saber, compreensibilidade, verdade, justeza e veracidade.
No ensaio O que significa uma pragmática universal? (1976), Habermas61 estabelece o
objeto de seu projeto de pragmática universal esclarecendo que
A pragmática universal tem a tarefa de identificar e reconstruir as condições
universais de um possível entendimento. Em outros contextos se fala
também de ‘condições gerais de comunicação’; eu prefiro falar de condições
gerais do agir comunicativo, já que considero fundamental o tipo de agir que
visa o entendimento.

O entendimento linguístico, por seu turno, é “apenas o mecanismo de coordenação da


ação, que ajusta os planos de ação e as atividades teleológicas dos participantes para que
possam constituir uma interação”62. Tal caráter público e compartilhado do entendimento
acaba por caracterizar a ação não apenas desde uma perspectiva meramente causal, como
também como “interação de ao menos dois sujeitos capazes de linguagem e ação que (seja
com meios verbais ou com meios extraverbais) entabulam uma relação interpessoal”63.
O conceito central, portanto, é interpretação, a qual “se refere sobretudo à negociação
de definições da situação suscetível de consenso. Neste modelo de ação a linguagem ocupa
(…) um posto proeminente” (ibid.), contudo com ela não se confunde, posto que essa é meio
de comunicação que se presta ao entendimento ao passo que aquela designa um tipo de
interação que vem coordenada mediante atos de fala64.
Precisamente nesse tocante, o prof. Paulo César Busato65 aduz que “a ação
comunicativa baseia-se em um processo cooperativo de interpretação no qual os participantes
se referem simultaneamente a algo no mundo objetivo, no mundo social e no mundo subjetivo
ainda quando em sua manifestação somente destaquem tematicamente um destes três
componentes”.

61
HABERMAS, 1976, p. 353 apud PINZANI, 2009, p.85.
62
HABERMAS, 1987, p. 138.
63
Id., p. 124.
64
Cf. HABERMAS, 1987, p. 138.
65
BUSATO, 2010, p. 151.

23
Tomando por base os apontamentos de Wittgenstein sobre a impossibilidade de seguir
regras privadamente, Habermas66 assevera que
o conceito de ação regulada por normas se refere, não ao comportamento de
um ator em princípio solitário que se topa em seu entorno com outros atores,
mas aos membros de um grupo social que orienta sua ação por valores
comuns (…) As normas expressam um acordo existente num grupo social.

Destarte, o modelo comunicativo de ação “se amolda a um modelo de sociedade onde


seus membros se submetem, individual e coletivamente, a uma expectativa de comportamento
e onde suas ações são integralmente, nesse sentido, regidas por normas de condutas sociais”67.
Tal expectativa de comportamento é dotada do sentido normativo de que os os integrantes do
grupo “têm direito a esperar um determinado comportamento”68.
Habermas correlaciona o conceito de seguir uma regra com o conceito de ação strictu
sensu69. Nesse tocante a expressão física da ação bem como a intenção integram o conceito de
ação, porém não são, elas próprias, ação: “Um movimento corporal é elemento de uma ação,
mas não uma ação”70. Isso porque é o sentido, não a mera ocorrência, que a define71. O
conceito de ação traduz, assim, uma expressão que se produz da inter-relação do sujeito com o
meio, para além de fatores psicológicos ou meramente normativos.
Paulo Busato contrasta o conceito de ação comunicativa com uma concepção de
movimento final anotando que “[A] diferença se situa no campo metodológico, pois a análise
da ação nas perspectivas reducionistas, ao confundi-la com o mero comportamento, reduzem
seu campo a uma ideia meramente empírico-descritiva do objeto, enquanto que uma
perspectiva da ação como a aqui proposta converte a tarefa em uma descrição das
objetivações dotadas de sentido, exigindo a análise desse mesmo sentido, conforme as regras
segundo as quais se produziu”72.
Pelo fio do exposto, temos que o conceito de ação carece de reincorporação no Direito
na medida em que, como pertencente do âmbito da ação, integra a dimensão do sentido e da

66
HABERMAS, 1987, p. 123.
67
RUDÁ, 2017, p. 129.
68
Id. nota 65.
69
“para a análise do conceito de ação é fundamental o conceito de seguir uma regra, enquanto que o aspecto de
atividade teleológica ou consecução de fins somente se torna relevante para abordagens causais. Do conceito de
seguir uma regra se segue um conceito de capacidade de ação, o qual um sujeito: a) sabe que segue uma regra; b)
(se) nas circunstâncias apropriadas está em condições de dizer que regra está seguindo, é dizer, de indicar o
conteúdo proporcional de ‘consciência de regra’” (HABERMAS, 1989 apud RUDÁ, 2017, p. 131).
70
HABERMAS, 1987, p. 151.
71
Ibid.
72
BUSATO, 2012, p. 251.

24
interpretação e, pois, “ao da luta entre interpretações”73. Sobretudo, conclui Jiménez
Rendondo 74
tal construção [o Direito] tem sempre também o sentido de uma atribuição
de significado; é dizer, não se trata de uma descrição de algo acabado, de um
objeto, ao que, com efeito, simplesmente caiba passar a descrever ou a
definir, mas sim um trabalho teórico que tem um sentido prático,
interpretativo e aplicativo.

Desde uma perspectiva significativa, “a ação só pode ter sentido jurídico desde que
interpretada em conjunto com seu entorno. Logo, as valorações jurídicas só podem ser
consideradas como ações dentro do marco de seu significado”75.
Pelo fio do exposto, eis o duplo referencial filosófico de que parte Vives Antón a fim de
estruturar sua teoria significativa do delito – de um lado, a filosofia da linguagem de
Wittgenstein e, de outro, a Teoria do Agir Comunicativo de Habermas.
Ademais, importa expor, no próximo capítulo, o desenvolvimento dogmático das teorias
do dolo de maneira a melhor caracterizar os modos pelos quais cada qual a seu modo
pressupõe elementos da imagem agostiniana da vontade para, já no terceiro e último capítulo,
aplicarmos os conceitos ora apresentados e enfim minudenciar a perspectiva do dolo
significativo que defenderemos neste trabalho.

73
JIMÉNEZ REDONDO, 2011, p. 74, tradução nossa.
74
Ibid.
75
BUSATO, 2012, p. 252.

25
CAPÍTULO 2. ENTRE A VONTADE E A NORMA: TEORIAS DO DOLO
SUBJETIVISTAS E NORMATIVISTAS

“A verdade é que temos muitos dolos para poucos tipos criminais e todos eles
têm uma verdade em comum: SÃO DOLOS. Portanto, suas distintas classificações
não atendem às ciências penais e seu dogmatismo e tampouco à racionalidade
jurídica, senão às vaidades de seus idealizadores”.

Antonio Sólon Rudá, Teoria Significativa da Imputação, p. 93.

Certamente o dolo é dos institutos centrais às teorias do delito modernas, funcionando
como “espinha dorsal do princípio da culpabilidade76, vetor imprescindível à justificação de
qualquer forma de responsabilidade penal em sistemas de matriz democráticas”77.
Conforme entendimento sedimentado doutrinária e jurisprudencialmente, difere a
responsabilidade penal daquela civil precisamente pela imprescindibilidade do vínculo
subjetivo entre o agente e o dano causado. É dizer, para além dos elementos de ordem objetiva
–conduta, nexo de causalidade e resultado – “o crime depende de um elemento subjetivo, de
ordem psicológica, que traduza a consciência e a vontade do agente ou sua falta de cuidado ao
agir com risco ao bem jurídico tutelado”78.
Via de regra, referido conceito foi tomado como uma instância psicológica intangível,
apto a ensejar a imposição de penalidade mais grave ao agente criminoso que aquela cabível
na hipótese de cometimento de um delito culposo.
Nesse sentido, define-se genericamente o dolo como consciência e vontade de praticar
os elementos do tipo objetivo, sendo o referido instituto composto por dois elementos: o
cognitivo (consciência) e o volitivo (vontade).
Parcela majoritária da doutrina brasileira assumiu uma concepção tripartida do dolo, é
dizer, dolo direto de primeiro grau, dolo direto de segundo grau e dolo eventual, associados,
respectivamente, à teoria da vontade (dolo direto de primeiro e segundo graus) e a do
consentimento (dolo eventual). Com efeito, tal se sucedeu por força da opção legislativa
contida no Código Penal brasileiro ao versar sobre a tipicidade subjetiva, verbis:
Art. 18: Diz-se o crime:
I – doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-

76
Sem pretensão de minudenciar o tema, valho-me da definição que lhe prestam João Martinelli e Leonardo
Schmitt (2018, p. 458): “Um dos corolários do direito penal é o princípio da culpabilidade segundo o qual
ninguém poderá responder penalmente por um resultado lesivo se não houver dolo ou culpa. A mera existência
de nexo de causalidade entre a conduta do agente e o resultado lesivo não é o suficiente para a responsabilidade
penal. Pode-se afirmar que no direito penal não é permitida a responsabilidade objetiva, qual seja, a
responsabilidade individual que independe de dolo ou culpa”.
77
CABRAL, 2016, p. 119, tradução nossa.
78
MARTINELLI; SCHMITT, 2018, p. 459.

26
lo.

Cumpre-nos adentrar à tratativa do tipo doloso, de maneira a melhor compreender o


instituto e seus principais contornos. Para tanto, o presente capítulo se ocupará, num primeiro
momento com seu desenvolvimento histórico-dogmático, desde o dolus malus até os dolos
funcionalizados teleológico e sistêmico. Ato contínuo, tratará da classificação tripartida do
instituto – direto de primeiro grau, direto de segundo grau e eventual. Por derradeiro, centrar-
se-á no exame das teorias volitivas e normativas do dolo, buscando evidenciar, de um lado, as
principais linhas de crítica e, de outro, em que medida tais pressupõem – e em que proporção
– elementos da imagem agostiniana da vontade.

2.1. Dolus Bonus e Dolus Malus

Conforme bem nota Luiz Régis Prado79, as origens do dolo remontam ao Direito Penal
romano, “que o entendia como ofensa intencional à lei moral e à lei do Estado, apresentada,
de modo concreto, como o propósito, a intenção de (matar, roubar)”. A bem da verdade,
concebia-se o dolo como materialização de uma vontade de fazer o mal, má intenção, astúcia
(‘dolus malus’, em latim), por oposição à não-consciência (‘negligentia’), consubstanciada na
firma do descuido ou mesmo da negligência escusáveis.
Em sua origem, o dolo penal é caracterizado por uma tripla perspectiva, na concepção
de Rodrigo Leite Ferreira Cabral80: (a) a má intenção do agente, (b) a vontade dirigida ao fim
de lesionar (dolus malus) e (c) a má vontade. Tais requisitos consagraram o instituto penal do
“criminelle dolus”. A prova do dolo, por seu turno, se dava pela via ex re81, i.e., ocorria pelo
análise das circunstâncias do fato.
Nessa toada, um delito era cometido por dolo ou culpa, é dizer, consequência da
intencionalidade ou da causalidade, respectivamente. O Direito Penal romano passa a
distinguir o dolo na figura do dolus bonus e donus malus de maneira a mitigar a rigidez do
elemento intencional cindindo-o numa presumida boa ou má intenção do agente por oposição
à Lei do Talião – i.e., “olho por olho, dente por dente”. Nessa senda, observa Antonio Sólon
Rudá82 que
O que aconteceu é que o Estado, para exercer melhor seu jus puniendi,
passou a mitigar a figura do elemento intencional, i.e., passou a mitigar a

79
PRADO, 2010, p. 331.
80
CABRAL, 2016, p. 17, tradução nossa.
81
Ibid, p. 19.
82
RUDÁ, 2017, p. 79-80.

27
figura do dolo em determinados crimes, atendendo a interesses distintos da
correta e justa aplicação das leis penais. Nesse sentido, escolhido para ser
objeto de mitigação foi o assassinado, pois a depender de quem fosse a
vítima não se tinha o elemento intenção de forma tão incisiva e substancial
como deveria ser, de acordo com as lei e mereceria uma diminuição de sua
importância para o Estado (…) O fato é que o elemento intencional,
revestido de importâncias diversas, ganhou ares punitivos muito distintos, a
depender dos delitos praticados como é o caso das conjurações (concilia) e a
cumplicidade com os criminosos (latronum conscientia).

O sistema de imputação romano reconhecia ainda a culpa, “[conceito] substanciado por


uma ação com descuido ou negligência culpáveis”83. Em suma, a apreciação ética da vontade
antijurídica do agente é que diferenciava um ato culposo e doloso.
O direito canônico – assim entendido como o direito europeu pós queda de Roma, no
século XII, a partir das glosas ao Corpus Iuris Civilis – passou a classificar o elemento
intencional em intenção (dolus), impulsividade (impetu) e causalidade (imprudência)84,
conquanto parcela da doutrina se mostre crítica em relação às diversas mitigações que o dolo
sofrera no direito romano clássico85.
Socorrendo-nos da perspicaz exposição do tema proposta por Rodrigo Leite Ferreira
Cabral86 o dolo no direito canônico se distinguia em dolo como querer jurídico-causal e como
querer fático-causal.
A primeira espécie implicava “um querer o resultado, com consciência da ilicitude de
ação” (ibid.) ao passo que a última poderia se manifestar por meio de três facetas distintas,
quais sejam, “(i) querer causar o resultado jurídico (ii) o querer causar o resultado antijurídico
com consciência da simples possibilidade de que se produza o resultado (…) (iii) o querer
indireto e imediato do resultado proveniente da conduta do agente” (ibid.).
Parcela dos glosadores romanos, então, passou a distinguir os institutos do dolus
generalis e da voluntas indirecta.

83
CABRAL, 2016, p. 18, tradução nossa.
84
“A intenção e, portanto, a vontade criminosa, pode surgir de ímpeto ou, pelo contrário, por ordinária
deliberação ou, finalmente, por ponderada reflexão e com calculada preparação dos meios de execução, o que é
prova não só de diversos estados de ânimo, mas também – e, sobretudo – de diversas personalidades criminais,
mais ou menos perigosas” (FERRI, 1996, p. 401).
85
“O que aconteceu é que o Estado, apara exercer melhor seu jus puniendi, passou a mitigar a figura do
elemento intencional, isto é, passou a mitigar a figura do dolo em determinados crimes, atendendo s interesses
distintos da correta e justa aplicação das leis penais. Neste sentido, o delito escolhido para ser objeto de
mitigação foi o assassinato, pois a depender de quem fosse a vítima não se tinha o elemento intenção de forma
tão incisiva e substancial como deveria ser, de acordo com as leis e mereceria uma diminuição de sua
importância para o Estado” (RUDÁ, 2017, p. 80).
86
CABRAL, 2016, p. 20.

28
A teoria do dolus generalis, consoante expõe Cabral87, “propugnava que o dolo se
caracterizava pela simples consciência do autor de que atua ilicitamente, uma vez que, ao
proceder dessa maneira, o delinquente, apesar de inferir o fato delitivo, não se preocupava em
rechaça-lo”.
Nesse diapasão, bastava ao agente atuar de modo ilícito (in re illicita) para que se lhe
identificasse o dolo, a despeito de sua vontade dirigir-se ou não à realização de determinado
evento.
Na Idade Média, destaca-se o aprimoramento doutrinário da voluntas indirecta (vontade
indireta), é dizer, “essa teoria do dolus indirectus significava considerar queridos – ainda que
indiretamente – os resultados decorrentes da culpa, ainda que não constituíssem objetivo do
agente”88.
Nessa toada, “quem quer a conduta causadora, quer também todos os resultados que
normalmente resultam imediatamente desse fato. Assim, por exemplo, quem lesiona
severamente uma pessoa quer também sua morte, quando a vítima morre em virtude dessa
ferida”89. Não integravam a sua vontade os resultados imprevisíveis ou causados por mero
acidente.
Nesses termos, subsistiam a vontade direta (dolus directus), consistente na intenção de
atingir o mal fim perseguido, e a vontade indireta (dolus indirectus), vontade da causa e não
do efeito, ainda que previsível para o homem médio. Eis a origem histórica do instituto do
dolo eventual.
A modernidade, sobretudo desde o século XVIII, logrou elaborar de maneira
propriamente doutrinária os fundamentos do dolo, de modo a caracterizar certas balizas de
análise e aplicação do Direito Penal, vindo a culminar nas elaborações causalista, finalista e
funcionalista(s) – sendo o finalismo encampado no vigente Código Penal Pátrio.
Assim sendo, cumpre elucidar seus contornos genéricos, enfocando o enfoque
dispensado à categoria do dolo para, subsequentemente, passarmos às suas principais
classificações.

87
CABRAL, 2016, p. 21, tradução nossa.
88
RÉGIS PRADO, 2010, p. 332.
89
CABRAL, 2016, p. 23, tradução nossa.

29
2.2. Dolo Psicológico e Dolo Normativo: do Causalismo ao Neokantismo

A doutrina penal90 é concorde que o sistema causalista foi a primeira sistematização da


teoria do delito, nomeadamente a partir das obras de von Liszt e Belling91, filiada ao
positivismo naturalista, cuja tese central propugnava que
somente eram dignas do título de ciência as propostas fundadas em rigorosos
métodos empírico da ciência da natureza. Por isso, a realidade ontológica –
que era o objeto do Direito Penal – deveria ser observada e avaliada pelos
penalistas92.

Nesse diapasão, o conceito clássico de delito se divorciava de quaisquer considerações


de ordem filosófica, sociológica ou psicológica – o Direito Penal é ciência pura, é dizer, um
comportamento delituoso é analisado desde um ponto de vista formal, subsumido à norma
positivada.
Isso posto, o delito é considerado, no magistério de Vives Antón93 “como algo que há
no mundo (…), isto é, como uma ação ou, indo além, como um fato, insistindo em sua
vertente de realidade, em seus aspectos psicofísicos; isto é, sobrepujando o puramente ôntico
sobre o normativo”.
Filiando-se à concepção mecanicista cartesiana94, o causalismo conceitua ação como
sendo “a produção ou a não-evitação voluntária de uma alteração no mundo externo”95.
Concebida nesses termos, seu núcleo é conformado pela relação entre um querer esvaziado de
conteúdo – esse último analisado no âmbito da culpabilidade – e um resultado externo.
Segundo o causalismo, a ação era entendida como um fato composto por um elemento
físico (o movimento corporal) e por um elemento mental (a vontade), de sorte que justamente
em razão desse último, em tese, distinguiam-se os fatos humanos dos fatos naturais ou
animais.
Em suma, o sistema de imputação causalista analisa a ação naturalisticamente, é dizer,
estruturada como um tipo objetivo-descritivo, esvaziado de qualquer juízo valorativo ou

90
Veja-se, por todos, a extensa incursão no tema por Bitencourt (2010), Gomes; Bianchini (2016) e Roxin
(1997).
91
“Von Liszt encarregou-se, digamos assim, da segunda versão do positivismo jurídico, dividindo a utilização de
um método descritivo/classificatório que excluía o filosófico e os juízos de valor, mas se diferenciava ao
apresentar ligações à consideração da realidade empírica não jurídica: o positivismo de Von Liszt foi um
positivismo jurídico com matizes naturalistas”. (BITENCOURT, 2010, p. 230).
92
CABRAL, 2016, p. 30, tradução nossa.
93
VIVES ANTÓN, 2011, p. 122, tradução nossa.
94
Lobato (2012) passa em revista o tema detendo-se na pressuposição cartesiana pelo causalismo de Von Liszt.
Remetemos o leitor, ainda, à seção 1.2 do capítulo anterior.
95
VIVES ANTÓN, 2011, p. 125.

30
psicológico; a antijuridicidade (ou ilicitude) é dotada de caráter objetivo-normativo; e a
culpabilidade, por seu turno, analisava-se de modo subjetivo-descritivo. Daí Claus Roxin96
apontar as partes objetiva e subjetiva da teoria da imputação de Von Liszt97.
A parte objetiva era composta pelos elementos da ação, tipicidade e antijuridicidade,
“consubstanciados por aspectos rigorosamente objetivos e externos à conduta”98. A subjetiva,
por seu turno, era exclusivamente integrada pela culpabilidade, podendo-se defini-la como a
vínculo subjetivo que une o autor ao resultado produzido por sua ação.
Para von Lizt a alteração no mundo poderia ser causada voluntariamente (comissão) ou
não impedida voluntariamente (omissão), duas formas fundamentais do crime.
A comissão consistia num movimento mecânico corpóreo determinado pela
representação mental do agente de cuja causa depende a produção de alguma alteração no
mundo. A outro giro, a omissão era caracterizada como “imobilidade voluntária”, quer dizer,
“o não exercício de ‘uma ação determinada e esperada’” o que já prenuncia uma referência ao
fator normativo (existência de um dever jurídico). Beling a concebeu como o ato de não fazer
algo determinado. A determinação do algo a ser feito é definida pelo contexto fático no qual o
sujeito se encontra.
A culpabilidade99 era manifestada pelo dolo ou pela culpa sendo a imputabilidade
admitida como sendo seu pressuposto.
O dolo, nesse contexto, era constituído por três elementos100: (i) o conhecimento das
circunstâncias do fato, (ii) a vontade de realizar o resultado representado na mente, e (iii) a
consciência da ilicitude da conduta.
Assim, no sistema causalista, o dolo era psicológico, “dotado de valoração, uma vez que
se plasmava em estados mentais do sujeito e exigia, também, um elemento axiológico
(consciência da ilicitude), o que acabava por manter a concepção de dolus malus do Direito
romano”101.

96
ROXIN, 1997, p. 237, tradução nossa.
97
“Essa concepção simples, clara e também didática, fundamentava-se num conceito de ação eminentemente
naturalístico, que vinculava a conduta ao resultado mediante o nexo de causalidade. Essa estrutura clássica do
delito mantinha em partes absolutamente distintas o aspecto objetivo, representado pela tipicidade e
antijuridicidade, e o aspecto subjetivo, representado pela culpabilidade” (BITENCOURT, 2010, p. 231).
98
CABRAL, 2016, p. 31, tradução nossa.
99
Não adentraremos o debate sobre o desenvolvimento histórico-dogmático da culpabilidade sob pena de
fugirmos ao escopo do presente trabalho. Lobato (2008) e Zaffaroni e Pierangeli (2011) são referências
relevantes nesse tocante.
100
Cf. Bitencourt (2010), Santos 2014 e Cabral (2016).
101
CABRAL, 2016, p. 31, tradução nossa.

31
De outra banda, o positivismo jurídico Gustav Radbruch e Edmund Mezger102 acabou
por se afirmar sobre o positivismo naturalista de Von Liszt, tendo em vista que reformulou o
conteúdo das categorias do delito, incorporando-as ao domínio dos valores, e a fortiori,
trazendo à baila uma nova perspectiva de consideração do Direito Penal. Com efeito,
Bittencourt (2010) ressalta que o neokantismo surgiu no fim do século XIX como superação
do positivismo, “sem representar, necessariamente, sua negação” (id., p. 232), procurando
reconciliar, metodologicamente, “os conceitos de direito positivo e direito ideal, com direito e
justiça” (id., p. 234).
Paulo Busato103, debruçando-se sobre a temática da origem do neokantismo, identifica
como sendo seu marco inicial a distinção entre os domínios da ciência natural e social,
asseverando que, verbis
Ao lado das ciências naturais foram identificadas as ciências sociais. As
primeiras associadas ao ser e as segundas ao dever ser. Dentro das ciências
do dever ser estava o direito, que é uma ciência elaborada a partir de uma
perspectiva valorativa, de um querer. O direito como ciência da cultura
apresentava um método próprio relacionado a valores que levava o
positivismo jurídico um passo adiante. Enquanto para aquele a interpretação
literal da regra jurídica bastava, esse se ocupava do valor nela contido.

No sistema neokantista de imputação, as ciências sociais recobraram sua relevância e


prestígio, o que acabou por deslocar o eixo ontológico da ação (ligado ao domínio dos fatos)
para o eixo axiológico (relacionado ao domínio dos valores). Assim, a própria estruturação da
teoria do delito – que, no sistema causalista, ostentava um contraste rígido entre os aspectos
objetivos e subjetivos – passou a mesclar em seus extratos de análise elementos de ordem
ontológica e axiológica104.
A tipicidade passou a incorporar elementos normativos e subjetivos, para além da mera
descrição físico-objetiva preconizada pelo causalismo. A antijuridicidade, por sua vez,
abarcou considerações axiológicas e teleológicas, em superação à mera contradição formal a
uma determinada norma jurídica, passando a ser concebida em seu aspecto material.
No que toca à culpabilidade, no sistema neokantista, a imputabilidade deixou de figurar
como pressuposto da culpabilidade, “passando a constituir, juntamente com o dolo e a

102
Cf. VIVES ANTÓN, 2011, pp. 431-435.
103
BUSATO, 2015, p. 223.
104
Cabral (2016, p. 33) observa, ainda, que “a ação passou a ser vista como expressão do comportamento,
abandonando a teoria puramente ontológica do sistema clássico [diga-se, causalista]; a tipicidade absorveu
elementos valorativos; a antijuridicidade passou a contar com um conteúdo material, e assim sucessivamente”.

32
imprudência, um de seus elementos essenciais”105, ainda que permanecesse concebida como a
relação psicológica entre o autor e o fato106.
Digno de nota, especificamente sobre o instituto do dolo, este permaneceu integrante da
culpabilidade e composto pelos elementos volitivo, cognitivo – “o conhecimento das distintas
circunstâncias do fato e o conhecimento da antijuridicidade do fato”107 – e o conhecimento da
antijuridicidade do fato. Nesses termos, referido instituto permaneceu compreendido como o
dolus malus romano, posto que a consciência da ilicitude permanecia a integra-lo.
Em suma-síntese, cumpre registrar o contributo do neokantismo para a teoria do delito,
nas palavras de Bitencourt108:
Finalmente, a superação do método científico-positivista é inegavelmente
um mérito que ninguém pode retirar do neokantismo, especialmente quando
demonstrou que toda realidade traz em seu bojo um valor preestabelecido
(cultura), permitindo a constatação de que o Direito positivo não contém em
si mesmo um sentido objetivo que deve ser, simplesmente, “descoberto” pelo
intérprete. Ao contrário, as normas jurídicas, como um produto cultural, têm
como pressupostos valores prévios, e o próprio intérprete que, por mais que
procure adotar certa neutralidade, não estará imune a maior ou menor
influência desses valores.

2.3. Dolo Ontológico e Dolo Valorativo: do Finalismo aos Funcionalismos

A bem da verdade, conforme bem destaca Busato109, o sistema de imputação


neokantista, conquanto tenha o mérito de incorporar elementos valorativos na análise do
delito, “não assumiu a possibilidade de que os valores pudessem interferir na própria validade
do sistema jurídico” (id.). Em não fazendo, acabou por ser concebido como mera teoria
complementar do positivismo jurídico preconizado pelo causalismo. Com efeito, em que
pesem desenvolvimentos anteriores110, Hans Welzel foi o grande precursor do sistema
finalista, o qual propugnava um retorno do Direito Penal ao ontologicismo111.

105
CABRAL, 2016, p. 34, tradução nossa.
106
“A culpabilidade, finalmente, também passou por transformações nesta fase teleológica, recebendo de Frank
a ‘reprovabilidade’, pela formação da vontade contrária ao dever, facilitando a solução das questões que a
teoria psicológica da culpabilidade [pressuposta no sistema causalista] não pode resolver” (BITENCOURT,
2010, p. 236).
107
Cf. MEZGER apud CABRAL, 2016, p. 34, tradução nossa.
108
BITENCOURT, 2010, p. 236.
109
BUSATO, 2015, p. 226.
110
Destaca o doutrinador que, “Antes mesmo da formulação mais completa de Welzel, alguns autores
qualificados como neokantistas, von Weber e Graf Zu Dohna, identificaram em alguns delitos ações casais e
finais, no mesmo sentido proposto por Welzel” (BUSATO, 2015, p. 229).
111
Emprego o termo ‘ontologicismo’ no sentido de que, no finalismo, a realidade “não é mero receptor passivo
das valorações científicas [presumidamente ‘puras’ porque empíricas], senão que são conceitos científicos
jurídicos que não fazem mais do que espelhar fragmentos parciais daquela [a realidade]” (id., p. 227).

33
Isso posto, asseverava Welzel, que o Direito Penal não poderia alterar, via valorações, a
realidade sobre a qual deveria se debruçar o penalista, negando o dualismo metodológico
proposto pelo neokantismo entre os domínios ontológico (do ser) e axiológico (dos valores).
Em suma, o doutrinador alemão rechaçava a rígida segregação dos elementos subjetivos e
objetivos do delito, sustentando que o sistema penal teria necessariamente que respeitar “as
estruturas lógico-objetivas do mundo”112.
O ponto de partida do finalismo é que a ação consiste “[n]o exercício da atividade
final”113. Ao creditar centralidade à finalidade, Welzel impõe novo paradigma à teoria da ação.
O sistema finalista se distancia do elemento normativo (querer) do neokantismo e retorna à
ontologia da ação concebendo-a não mais ao modo causalista-neokantiano mas dirigida pela
vontade a uma finalidade específica: eis o “dado ôntico da ação”114, inescusável pela
Dogmática Jurídico-penal. Ação aqui é comportamento humano, voluntário e consciente,
dirigido a um fim.
Nesses termos, não há vontade sem finalidade e sem sujeito. Uma ação humana seria
então consequência de (1) o estabelecimento de um dado fim seguido da mentalização de seus
adequados meios de obtenção e (2) a produção causal do resultado externo, consoante ao fim
e meios estabelecidos. É inegável o prestígio que tal teoria gozou na dogmática penal europeia
e latino-americana, sendo, inclusive, aquela positivada no Código Penal Brasileiro.
O ponto crucial do finalismo, ensina Busato115, reside na pretensão de explicar que “a
finalidade é o diferencial da ação humana, e, portanto, o conceito de ação não se restringe a
um mero movimento voluntário, mas sim a uma conduta já dotada previamente de uma
vontade dolosa ou imprudente”.
No sistema finalista, o dolo e culpa passaram a integrar a tipicidade, especificadamente
o tipo subjetivo, “nascendo, assim uma concepção puramente normativa da culpabilidade”,
no entender de Bitencourt116. Dessarte, o finalismo oferecia uma resposta mais adequada à
questão da tentativa, um dos maiores problemas enfrentados pelo causalismo e neokantismo,
posto que por meio da análise da finalidade pretendida pelo agente poder-se-ia averiguar se a
consumação de um delito não se deu por vontade própria ou por circunstâncias alheias a essa.

112
Cf. WELZEL, 2004, p.31, tradução nossa.
113
WELZEL, 1956, p. 39, tradução nossa.
114
Cf. LOBATO, 2012, p. 59.
115
BUSATO, 2015, p. 228.
116
BITENCOURT, 2010, p. 239.

34
Em sendo assim, a tipicidade passou a se subdividir em objetiva e subjetiva117.
Outrossim, outro mérito do finalismo foi substituir a concepção de dolo como má-
intenção (dolus malus) por uma como finalidade sem valoração, nos termos de Welzel118,
“como concreção finalista do injusto”. Passou-se a adotar, em substituição, uma perspectiva
ontológico-descritiva: o dolus naturalis119. Nesse sentido, escreve Cabral120
Justamente por isso, a maldade saía de cena para deixar lugar a outros
estados mentais diversos, caracterizadores do dolo, já não valorativos, mas
ontológico-descritivos, que variavam com os mais distintos matizes teóricos
acerca do tema.

De outro lado, Welzel propugnou que o conhecimento da antijuridicidade pertence ao


extrato analítico da culpabilidade, não mais ao dolo, conforme propunha o sistema causalista.
Nesse sentido, observa o doutrinador alemão121:
(...) o erro decisivo da teoria do dolo consiste no desconhecimento do fato de
que o dolo não é uma parte constitutiva, mas o objeto da culpa e pertence,
por isso, à ação e ao tipo do injusto, ao passo que o conhecimento da
antijuridicidade é apenas uma parte constitutiva da reprovabilidade. O
conhecimento da antijuridicidade não é o que se reprova ao autor, se não o
porquê se reprova ao autor o dolo antijurídico.
Porque o autor pode conhecer a antijuridicidade e, por conseguinte, pode
omitir sua decisão antijurídica de ação, é o que se lhe faz o juízo de
reprovação. Disso resulta que o conhecimento do injusto não é nenhum
elemento constitutivo do dolo do fato, mas somente da reprovabilidade.
O dolo antijurídico é reprovável ao autor na medida em que possa
materializar o conhecimento da antijuridicidade e convertê-lo no contra
motivo que determina o sentido. Esta é a solução da teoria da culpabilidade.

Doravante, o conhecimento da ilicitude da conduta deixou de integrar a categoria do


dolo – conforme propunham os causalistas – e passou a constituir elemento da culpabilidade,
ainda que em sua forma potencial.
Por fim, como bem reconhece Bitencourt122, o finalismo possibilitou uma adequada
análise de diversas espécies de crimes, a exemplo dos homicídios culposo e doloso –
diferenciáveis em função do dolo do agente, que integra a própria conduta –, delitos tentados
assim como a segregação do autor e partícipe.

117
WELZEL, 1956, p. 42-43, tradução nossa.
118
Ibid., p. 67, tradução nossa.
119
Observa Vives Antón (2011, p. 129-130): “identificado o dolo com a finalidade pré-jurídica da ação, há de se
concebê-lo como dolo natural e nem sequer o legislador pode configurá-lo como ‘dolus malus’, incluindo nele a
consciência da antijuridicidade; e, desde logo, sendo o dolo natural momento essencial da ação, há de se integrar
no tipo do injusto, pois a análise normat
iva não pode ‘desconjuntar’ a ação sem restar, por isso mesmo, privada de objeto”.
120
CABRAL, 2016, p. 37, tradução nossa.
121
WELZEL, 1956, p. 174-175, tradução nossa.
122
BITENCOURT, 2010, p. 240.

35
A superação da perspectiva finalista está vinculada à reaproximação do Direito Penal
com a Criminologia, sobretudo em meados dos anos 70 do século XX, ocasião em que restou
esgotada “a pretensão de que a aplicação do sistema dogmático mais elaborado seria capaz,
por si só, da produção do resultado justo. Passou a não ser mais possível o isolamento das
considerações político-criminais adredemente pretendido por Mezger”123.
Desse modo, o ontologicismo propugnado pelo sistema finalista foi objetado pelos
partidários do funcionalismo, os quais tinham como eixo central “a ideia de se construir uma
teoria do delito orientada pelos vetores da política criminal, mais especificamente sobre as
bases das modernas teorias dos fins da pena”124. Com isso, buscou-se recuperar as
perspectivas valorativas do neokantismo em franca oposição à insustentável defesa de uma
concepção positivista do Direito, calcada nos ideais de completude e neutralidade125.
A respeito da relevância assumida pelo conceito de ação, Lobato 126 observa que a
revisão proposta pelo funcionalismo retirou a importância do desvelar o conteúdo da ação e
passou a centrar esforços na busca por critérios de imputação da conduta ao tipo objetivo
previsto na lei penal: “A ação deixou de ser o elemento ordenador das análises jurídico-penais
para ser mero pressuposto discursivo referencial de incidência das regras de imputação –
fundadas no risco, - ao tipo objetivo, da conduta praticada”. Assim, a categoria central deixa
de ser a ação passando ao risco. Basta que haja ação humana, independentemente de seu
conteúdo, “a fim de garantir o referencial retórico da humanidade do crime”127.
Os elementos do conceito de crime deixaram de ser fins em si mesmos e passaram a ser
funcionalizados, i.e., meios de realização de uma “proposição geral externa”128, passando a
servir à realização de um escopo geral. Substitui-se a ideia (ontologicista) de uma verdade
absoluta (calcada, por sua vez, numa imagem agostiniana da linguagem129) pelo
reconhecimento da pluralidade da realidade, na qual coexistem distintos contextos, o que
conduz, naturalmente, “ao envio dos problemas jurídico-penais para uma solução no campo

123
BUSATO, 2015, p. 233.
124
ROXIN, 1997, p. 203, tradução nossa.
125
Adentrando ao tema, ensina Busato (2015, p. 233) que “Evidentemente, a filosofia do direito não tardou em
descobrir a prevalência de uma indeterminação jurídica conceitual no âmbito do direito, assim também a
imprestabilidade de um direito que produz resultados precisos, certos e intrinsecamente verdadeiros, porém
injustos. Foi trazida à tona a impossibilidade de alcançar a pretensão de neutralidade do direito, já que ele
próprio é prenhe de conceitos que demandam valorações. Ademais, foi demonstrada a insuficiência do mero
socorro do conjunto de conceitos jurídicos para a resolução dos problemas concretos que incumbem ao jurista”.
126
LOBATO, 2012, p.61.
127
Id., p. 62.
128
BUSATO, 2015, p. 236.
129
Cf. a seção 1.1. do capítulo anterior.

36
axiológico dos valões que subjazem ao próprio sistema penal”130.
A despeito de seus matizes, pode-se identificar, como tese comum dos sistemas
funcionalistas, aquela de acordo com a qual a imputação penal deve se alinhar às missões que
se lhe atribuem – ou se almeja alcançar mediante a aplicação do direito penal aos casos
concretos – ao invés da mera análise de dados ontológicos, tais como a ação ou o nexo de
causalidade.
Importa ressaltar, conforme bem nota Busato131, que o funcionalismo não implica uma
reestruturação da teoria do delito, antes uma nova visão do todo e das partes, é dizer, uma
nova forma de apreciação do conteúdo das categorias do delito, sempre em vista do escopo
para o qual o sistema é orientado: um “mecanismo político-criminal de controle social”132.
Assim, não se trata propriamente de uma reestruturação da teoria do delito em termos de
novas categorias, mas de uma nova perspectiva de tratamento dessas.
Se uniformes quanto à funcionalização do Direito Penal, os doutrinadores funcionalistas
são disformes quanto aos fins a serem por ele perseguidos, daí falarmos em funcionalismos no
título desta seção. Dada a limitação do presente trabalho, limitar-nos-emos à análise das duas
perspectivas mais proeminentes e debatidas pela doutrina e jurisprudência pátrias, quais
sejam, o funcionalismo teleológico e o funcionalismo sistêmico ou estratégico133, sendo seus
maiores defensores Claus Roxin e Günter Jackobs, respectivamente.

2.3.1. O funcionalismo teleológico de Claus Roxin

Roxin propõe um novo modelo de imputação advogando a tese de acordo com a qual ao
Direito Penal cabe a proteção dos bens jurídicos134. Seu funcionalismo é denominado
teleológico devido ao fato de estar imbricado com a finalidade do Direito Penal,
resguardando-se os direitos e garantias fundamentais expressos na forma de princípios e
valores.
Isso posto, todos os elementos do conceito analítico do delito “devem estar
funcionalmente orientados ao cumprimento ao cumprimento dessa missão”135. O tipo penal,
destaca Busato136, “cumpre uma função delimitadora negativa de intervenção jurídico-penal,

130
BUSATO, 2015, p. 236.
131
Ibid., p. 238.
132
Ibid.
133
Adoto, para fins de exposição, a terminologia cunhada por Vives Antón (2011, 442ss).
134
ROXIN, 1997, p. 51, tradução nossa.
135
Ibid., p. 58, tradução nossa.
136
BUSATO, 2015, p. 240.

37
em sua associação com o princípio de legalidade, chamada por Roxin de ‘função político-
criminal’”.
Roxin adota um conceito normativo de ação de vez que contém em si valorações ainda
que se esforce por não torná-lo excessivamente formalista e destituído de referencial
empírico. Seus elementos integrantes são a voluntariedade e expressão do pensamento, os
quais são condições necessárias e suficientes para que ocorra ação.
O conceito de ação, nesse sentido, se reveste de caráter pessoal, i.e., “a ação manifesta a
personalidade do autor”137, em substituição à mera atualização da finalidade idealizada pelo
agente.
A categoria do dolo mantém a posição sistemática adotada pelo sistema finalista, porém
engloba em sua definição “a busca dos objetivos político-criminais, referentes à função de
proteção dos bens jurídicos, fato que o leva [a Roxin] a considerar que o dolo se caracteriza
pela existência de uma decisão a favor da possível lesão de bens jurídicos protegidos”138.
À semelhança do finalismo, compõem a ação (e, portanto, o dolo) os elementos volitivo
e cognitivo139140, indissociáveis, porém Roxin sustenta um “normativismo volitivo”141, na
medida em que são valorados sempre tendo em tela as finalidades de tutela do bem jurídico e
prevenção da reiteração delitiva142.
De outro lado, a antijuridicidade, ao invés de consistir na contrariedade da conduta
típica ao ordenamento jurídico, é concebida como um âmbito no qual colidem os interesses
sociais e individuais143, a ela cumprindo papel de resolução do referido conflito.
Por derradeiro, a categoria da culpabilidade acaba reestruturada, na medida em que em
substituição à sua concepção como juízo de reprovação Roxin incorpora a dimensão da
“responsabilização penal segundo critérios funcionais da pena, ou seja, trata-se

137
ROXIN, 1997, pp.252-253, tradução nossa.
138
CABRAL, 2016, p. 42, tradução nossa.
139
Adentraremos à análise das teorias da vontade e do conhecimento na seção 2.5 do presente capítulo.
140
Lobato (2012, p. 62) exemplifica o conceito nos seguintes termos: “Por exemplo, o indivíduo que tem
vontade de assassinar o prefeito de sua cidade e não a externaliza, não pratica qualquer ação, do mesmo modo
que a pessoa que, em um surto convulsivo, quebra os copos de vidro de uma loja. Enquanto que na primeira
situação houve um pensamento sem que houvesse sua externalização como manifestação da personalidade, na
segunda hipótese não houve sequer a formação do pensamento. Os atos praticados estavam despidos de qualquer
vontade dirigida pela pessoa”.
141
BUSATO, 2015, p. 240.
142
Por certo Roxin advoga a teoria preventiva geral e especial da pena, porém não nos deteremos nesse tocante
por fugir ao escopo deste trabalho. Gomes e Bianchinni (2015) fazem uma exposição elucidativa a respeito.
143
“Há uma pretensão da coletividade em ver punido o sujeito autor do fato típico e uma pretensão do próprio
autor do fato típico em resistir a tal castigo, com base na afirmação da prevalência do seu direito à liberdade
dadas as peculiaridades do caso” (BUSATO, 2015, pp. 240-241).

38
essencialmente de uma avaliação do merecimento de pena”144.
Não se trata, contudo, de um rechaço à categoria da culpabilidade enquanto elemento do
crime, mas de sua consideração sempre paralela à necessidade de aplicação da pena, de
maneira a viabilizar a própria responsabilidade penal do agente.
Dito em outros termos, no que tange à teoria do delito proposta por seu funcionalismo
teleológico, Roxin não empreende uma reestruturação, mas um novo horizonte para sua
consideração: o sistema penal deve se nortear pelos princípios reitores normativos político-
criminais, os quais, aplicados aos casos concretos, “chegarão a conclusões claras e adequadas
à realidade”145. Trata-se, em apertada síntese, de um Direito Penal dos fins da pena.

2.3.2. O funcionalismo sistêmico de Günter Jakobs

Jakobs se mantém filiado ao ideal de funcionalização do sistema penal qual Roxin,


contudo passa a sustentar ser a função do Direito Penal a “reafirmação da confiança social na
vigência da norma”146.
Assim se sucedendo, o Direito Penal se presta a estabilizar a norma jurídico-penal, dito
em outros termos, “a aplicação da pena e da medida de segurança teria por objetivo gerar a
confiança da população no sentido da vigência da norma que foi desafiada pelo autor do
delito, de modo a fazer com que o próprio acusado e todos os demais cidadãos tomem ciência
de que a norma, embora desafiada, segue vigente”147. Precisamente devido ao presente
aspecto, a doutrina penalista é concorde no sentido de reconhecer no autor o proeminente
defensor da teoria preventiva geral positiva da pena148.
A teoria do delito funcionalizada proposta por Jakobs se estrutura como um sistema de
imputação no qual a ação humana é a “causação de um resultado individualmente evitável”149.
Contudo, o doutrinador alemão opera uma verdadeira revolução copernicana no Direito Penal:
a norma – e não mais a ação humana – passa a ser “o sujeito em torno do qual se organiza o

144
BUSATO, 2015, p. 241.
145
BITENCOURT, 2010, p. 43.
146
JAKOBS, 1997, p. 09 apud CABRAL, 2016, p. 42, tradução nossa.
147
BUSTO, 2015, p. 243.
148
Nesse sentido, Jakobs expressamente refere: “não se pode considerar como missão da pena evitar lesões de
bens jurídicos. Sua missão é, isto sim, reafirmar a vigência da norma, devendo equiparar-se, a tal efeito, vigência
e reconhecimento. (...) [A] Missão da pena é a manutenção da norma como modelo de orientação para os
contatos sociais. Conteúdo da pena é uma réplica, que tem lugar à custa do infrator, frente ao questionamento da
norma” (JAKOBS, 1997, p. 13-14 apud BUSATO, 2015, p. 243)
149
JAKOBS, 1997, p. 168 apud CABRAL, 2016, p. 43, tradução nossa.

39
sistema jurídico-penal”150. Nesse tocante, parcela da doutrina penalista entende que o
funcionalismo sistêmico acabou em última instância expurgando a categoria da ação da teoria
do delito151.
Todo o sistema de imputação de Jakobs é constituído por elementos normativos, de tal
sorte que o próprio Direito Penal se ocupa tão-somente com a “análise normativo-funcional
do Direito Positivo, com a exclusão de considerações empíricas não normativas de valorações
externas ao sistema jurídico-positivo”152.
Jakobs define o crime como “uma ação intolerada socialmente”153, a qual pode
apresentar “todos os elementos da ação antijurídica ou apresentar todos os elementos da ação
antijurídica e da justificação”154. A uma ação que ostenta os elementos que a tornam
intolerável (porque violadora de uma norma penal proibitiva ou mandamental), conjugada
com a ausência de causas justificantes o autor denomina “tipo de injusto”.
No que importa especificamente ao dolo, o autor permanece sustentando, como Roxin,
que este integra o tipo subjetivo, sendo conceituado como uma decisão contrária à vigência da
norma penal positivada e, que, portanto, deve ser mais severamente punida, na medida em
que, cometido um delito, “pulsa o relógio para colocar o Estado na necessidade de julgar, cria-
se uma tendência lesiva e, dessa maneira, poderá se falar em um ataque à vigência da
norma”155. Caberá ao Estado, por sua vez, responder ao criminoso através da pena, repita-se,
sempre em manutenção da vigência do ordenamento jurídico. Daí dizermos que se trata de
uma Direito Penal da manutenção do sistema.
Outrossim, em paralelo com o funcionalismo teleológico, ao passo em que Roxin
aponta o dolo como sendo uma decisão contrária a determinado bem jurídico tutelado, Jakobs
o caracteriza como contrário à vigência da norma penal, é dizer, “uma decisão indiferente
contra a validez da norma, que expressa um maior grau de infidelidade jurídica”156.
A justificativa fornecida para a imposição de pena mais grave na hipótese de crime
doloso se justifica pela proporcionalidade: “é uma espécie de contrarréplica proporcional à

150
BUSATO, 2015, p. 244.
151
Nesse sentido, Lobato (2012), Bitencourt (2010) e Santos (2014). Busato (2015, p. 244) não destoa ao afirmar
que “Desse modo, Jakobs refere a uma ação já culpável, no sentido de Hegel, desprezando-a como elemento do
delito, na medida em que somente concebe ação no sentido ontológico do termo, e configura seu sistema dentro
de padrões absolutamente normativos”.
152
BITENCOURT, 2010, p. 242.
153
Cf. JAKOBS, 19997, 190 apud BUSATO, 2015, p. 244, tradução nossa.
154
BUSATO, 2015, p. 244.
155
JAKOBS, 1997, p. 138 apud CABRAL, 2016, p. 61, tradução nossa.
156
CABRAL, 2016, p. 69, tradução nossa.

40
afirmação mais intensa contra a validez da norma expressa pelas condutas dolosas”157.
A função exercida pela culpabilidade, ao final, se presta a “caracterizar a motivação do
autor como uma daquelas que estão em desconformidade com a norma, gerando o conflito.
Assim, entende Jakobs que quando há um déficit de motivação jurídica, deve-se castigar o
autor”158.
Do exposto até o presente momento, pode-se, com razão, concluir pela dubiedade com a
que a doutrina penal sempre tratou a categoria do dolo, conquanto a pressuponhamos
cotidianamente na práxis forense e acadêmica. Desde o dolus malus, passando pelo dolo
natural – conceituado como o vínculo subjetivo composto pela consciência da ilicitudade da
conduta e a vontade expressa de desenvolver a ação criminalizada – e pelo dolo finalista, o
século precedente não logrou êxito em nos legar um consenso acerca da natureza jurídica do
instituto.
Tendo nos ocupado de sua evolução histórico-dogmática, cumpre-nos adentrar na
concepção tripartite do dolo, positivada em nosso ordenamento jurídico no art. 18, inciso I do
Código Penal, para enfim, determo-nos no núcleo do capítulo, a saber, o acirrado debate entre
as teorias volitivas e normativas do dolo e seu comprometimento com a imagem agostiniana
da vontade.

2.4. Espécies de Dolo

2.4.1. Teorias da Vontade, da Representação e do Assentimento

A doutrina tradicional brasileira – ancorada, por sua vez, na alemã – tem adotado uma
concepção tripartite do dolo, elencando a existência do dolo direto de primeiro grau, direto de
segundo grau e do dolo eventual.

Assumindo-se a composição do dolo entre vontade e conhecimento159, é consenso a


existência de ao menos três teorias a respeito do instituto, conquanto sobrevenha discordância
quanto àquelas que foram consubstanciadas no Código Penal. Vejamos.
A teoria da vontade preconiza que dolo é a vontade livre e consciente de produzir o
resultado desvalioso ao bem jurídico. Conforme bem destaca Bitencourt160, “A essência do

157
CABRAL, 2016, p. 62, tradução nossa.
158
BUSATO, 2015, p. 245.
159
Relativamente ao debate entre as teorias da vontade e do conhecimento no dolo nos deteremos, em algumas
de suas nuances, na seção subsequente.
160
BITENCOURT, 2010, 314.

41
dolo deve estar na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a ação e obter o resultado”.
Rogério Greco161 não destoa ao asseverar que “dolo é apenas a vontade livre e
consciente de querer praticar a infração penal, de querer levar a efeito a conduta prevista no
tipo incriminador”.
O elemento volitivo para a aludida teoria assume proeminência em relação ao elemento
cognitivo, de sorte que, em verdade, a essência do dolo reside na vontade:
Na verdade, vontade e consciência (representação) são, numa linguagem
figurada, uma espécie de irmãs siamesas, uma não vive sem a outra, pois a
previsão sem vontade é algo completamente inexpressivo, indiferente ao
Direito Penal, e a vontade sem representação, isto é, sem previsão, é
absolutamente impossível, eis que vazia de conteúdo”162.

O conceito meramente volitivo de dolo foi severamente objetado pela doutrina, desde o
causalismo naturalista. Uma das principais críticas se consubstancia na ideia de que a vontade,
apesar de integrar a ação, não é essencial para a realização do tipo. Assim, “mesmo nas ações
involuntárias, se o agente mantiver a capacidade de evitar o resultado lesivo e não o fizer,
estará agindo com dolo”163. Por conseguinte, somente ficará excluída a responsabilização
penal do causador do evento lesivo nos casos em que este tenha empreendido todos os
esforços possíveis e disponíveis na evitação do resultado. Em suma, a teoria da vontade, a
despeito de melhor evidenciar o limite entre crimes dolosos e culposos, é insuficiente
justamente por restar demasiadamente restritiva, sobretudo na hipótese em que o agente
demonstra desprezo para com o ordenamento jurídico.
A segunda teoria é denominada teoria da representação, para a qual “dolo é a previsão
do resultado como certo, provável ou possível (representação subjetiva)”164. Nesse diapasão,
a responsabilidade à título de dolo independeria do querer do agente, de sua vontade ou
intenção respondendo o autor por ter representado a probabilidade da ocorrência do resultado
lesivo.
Ocorre que por simplificada que pareça, referida teoria acabou absolutamente
desprestigiada, pois como bem salienta Bitencourt165, “até mesmo seus grandes defensores,
Von Lizst e Frank, acabaram, enfim, reconhecendo que somente a representação do resultado
era insuficiente para exaurir a noção de dolo, sendo necessário um momento de mais intensa
ou íntima relação psíquica entre o agente e o resultado, que, inegavelmente, identifica-se na

161
GRECO, 2008, p. 50.
162
BITENCOURT, 2010, p. 314-315.
163
OLIVEIRA, 2011, p. 18.
164
PRADO, 2010, p. 337.
165
BITENCOURT, 2010, p. 315.

42
vontade”.
Doutrina majoritária reputa a teoria ora analisada insustentável por classificar como
doloso o crime em que o agente poderia ter previsto o resultado, tê-lo imaginado como
provável ou até mesmo possível seria o mesmo que suprimir os delitos praticados com culpa
consciente, é dizer, o dolo estaria adentrando ao campo de abrangência desta modalidade
culposa, o que tornaria a própria distinção entre dolo e culpa inócua.
Ademais, não se justifica classificar como dolosa a conduta de alguém que ao
desempenhar uma atividade perigosa tenha simplesmente representado a possibilidade do
resultado, tendo em vista que em nossa sociedade são inúmeras as atividades permitidas,
essenciais ao próprio desenvolvimento social, que envolvem certo grau de risco para os bens
jurídicos penalmente tutelados166.
Ao fim e ao cabo, a teoria do consentimento apregoa que o dolo é resultante dos
elementos volitivo e cognitivo. Nessa toada,
também é dolo a vontade que, embora não dirigida diretamente ao resultado
previsto como provável ou possível, consente na sua ocorrência ou, o que dá
no mesmo, assume o risco de produzi-lo. A representação é necessária mas
não é suficiente à existência do dolo, e consentir na ocorrência do resultado,
repetindo, é uma forma de querê-lo.

Para os defensores da aludida teoria, quer o sujeito externe sua vontade ao praticar
determinada conduta quer consinta na ocorrência de um resultado danoso reputado por
provável ou possível, estará agindo com dolo.
A teoria do consentimento difere da teoria da representação posto que, em que pese não
haver uma vontade direcionada à realização do resultado lesivo o agente consente em sua
ocorrência, ou seja, “não basta a mera representação, sendo necessária a aceitação em causar o
resultado”167.
Em que pese a celeuma concernente às teorias do dolo acima expostas168, temos que o
Direito Penal brasileiro adotou a teoria da vontade em relação ao dolo direto (de primeiro e
segundo graus) bem como a teoria do consentimento em se tratando do dolo eventual.

166
Exemplificativamente, escaladas, trilhas grupais ou experimentos laboratoriais, dentre outros.
167
PRADO, 2010, p. 337.
168
Parcela minoritária da doutrina, partindo de uma análise meramente positivista – capitaneada, com críticas,
por Juarez Cirino dos Santos (2014) – sustenta que o Direito Penal pátrio apenas adotou o dolo direto e o
eventual. A doutrina majoritária, contudo, ressalta que a moderna teoria penal distingue três espécies de dolo: o
dolo direto de primeiro grau, o dolo direto de segundo grau e o dolo eventual. Nesse tocante, oportuna é a
observação de Busato (2015, p. 417) ao versar que “Entretanto, o certo é que nem o dolo direto corresponde
unicamente à ideia de querer, nem o dolo eventual pode ser representado simplesmente pela ideia de assunção de
risco, pelo que, ao contrário do que se pode pensar, a previsão legislativa nada resolveu. Ademais, obstou o
desenvolvimento doutrinário do tema por comodismos vários”.

43
2.4.2. Dolo Direto de Primeiro Grau

O dolo direto se configura “quando o agente tem a consciência do risco de sua conduta
deseja o resultado lesivo, tanto como o fim diretamente proposto quanto como um dos meios
para obter esse fim”169. Nesse sentido, temos que a teoria adotada para a presente espécie é a
teoria da vontade.
Age com dolo direto aquele que quer obter o resultado lesivo de sua conduta, “sem
considerar os resultados necessários”170, i.e., referida espécie de dolo revela uma “pretensão
de realização do resultado típico que resulta explicitada nas circunstâncias em que se
desenvolve a conduta e que é capaz de identificar um intenso compromisso para com a
produção do resultado”171.
Assim, o dolo direto de primeiro grau “tem por conteúdo o fim proposto pelo autor”172,
podendo tal finalidade “indiferentemente, constituir o motivo da ação, o fim último desta ou
apenas um fim intermediário, como meio para outros fins”173.
À título de exemplo, cite-se a hipótese em que determinado agente querendo matar seu
desafeto, resolve explodir sua residência e, para tal arma explosivos no local. O dolo direto de
primeiro grau é a morte da vítima ao passo que os danos causados no imóvel e eventuais
lesões corporais nos vizinhos não integram o referido dolo, mas são consequências
necessárias ou prováveis para a realização de sua finalidade última, vindo a constituir, então, a
segunda espécie de dolo direto: o de segundo grau.

2.4.3. Dolo Direto de Segundo Grau

A segunda espécie do dolo se projeta sobre os resultados necessários à obtenção do fim


principal do agente. Dito em outros termos, “quando se trata de um fim diretamente desejado
pelo agente, denomina-se dolo direito de primeiro grau, e, quando o resultado é desejado
como consequência necessária do meio escolhido ou da natureza do fim proposto, denomina-
se dolo direto de segundo grau ou dolo de consequências necessárias”174.
Exemplificativamente, supondo-se que certo agente, pretendendo matar um diplomata,
aciona uma bomba no veículo oficial que o transporta, conduzido por um chofer. Certamente,

169
ZAFFARONI; PIERANGELLI, 2011, p. 448.
170
MARTINELLI; DE BEM, 2018, p. 464.
171
BUSATO, 2015, p. 419.
172
SANTOS, 2014, p. 132.
173
Ibid., p. 133.
174
BITENCOURT, 2010, p. 319.

44
a explosão ceifará a vida de ambos, conquanto a pretensão inicial seja meramente a morte do
representante do Estado estrangeiro. Assim, pode-se imputar o delito de homicídio na
modalidade de dolo direto de primeiro grau em relação à vítima desejada (in casu, o
diplomata) acrescido do delito de homicídio à título de dolo direto de segundo grau em
relação à vítima não querida, mas cuja morte era necessária à consecução do fim
primariamente almejado. O Código Penal vigente adotou a teoria da vontade em relação à
espécie em comento.

2.4.3. Dolo Eventual

A terceira e última espécie de dolo expressa não a vontade livre e consciente de lesar
determinado bem jurídico, mas o desprezo ante à possibilidade – e, no mais das vezes,
probabilidade – de fazê-lo. A projeção relativa à produção do resultado jurídico desvalioso
não intimida o agente em realizar sua ação. O dolo eventual, portanto, baseia-se na
eventualidade da produção do resultado jurídico aliada ao respectivo desprezo do agente em
relação à referida ocorrência
Visando contrastar o dolo eventual com a culpa consciente – temática da qual não
trataremos no presente trabalho – o magistério de Juarez Cirino175 é proficiente ao apontar
que, verbis, “o dolo eventual caracteriza-se, no nível intelectual, por levar a sério a possível
produção do resultado típico e, no nível da atitude emocional, por conformar-se com a
eventual produção do resultado”176.
Cite-se, como exemplo, a remota hipótese em que um agente A está desferindo tiros
contra um muro, no quintal de sua residência (resultado pretendido: dar disparos contra o
muro), vislumbrando, no entanto, a possibilidade de os tiros vararem o obstáculo, vindo a
atingir terceiros que passam por detrás do mesmo. Ainda assim, desprezando o segundo
resultado (eventual ferimento ou mesmo óbito de alguém), persiste em sua conduta. Caso
atinja fatalmente um passante, certamente responderá por homicídio doloso, na modalidade do
dolo eventual, posto que sabendo provável e possível o resultado morte ainda assim A
desferiu tiros com arma de fogo.
175
SANTOS, 2014, p. 135.
176
A prova do dolo eventual é produzida à luz das circunstâncias fáticas. Nestes termos, o STF: "O dolo eventual
compreende a hipótese em que o sujeito não quer diretamente a realização do tipo penal, mas a aceita como
possível ou provável (assume o risco da produção do resultado, na redação do art. 18, I, in fine, do CP). 3. Faz-se
imprescindível que o dolo eventual se extraia das circunstâncias do evento, e não da mente do auto eis que não
se exige uma declaração expressa do agente" (Segunda Turma - HC 97252 - Rel. Min. Ellen Gracie - DJe
04/09/2009).

45
Por fim, registre-se que a Lei Penal não faz distinção entre os dolos direto e eventual
para fins de tipificação e aplicação da pena. Por isso, poderá o julgador fixar a mesma pena
para quem agiu com dolo direto e para quem atuou com dolo eventual. Via de regra, já que os
tipos penais que nada falam a respeito do elemento subjetivo do delito são dolosos (e.g.
"matar alguém" - art. 121, CP, no qual nada se diz acerca do dolo), pode-se aplicar tanto o
direto quanto o indireto/eventual.
Excepcionalmente, quando a lei expressamente exige o dolo direto, tal circunstância
vem claramente de inserta no tipo penal, como se pode observar, ilustrando, nos tipos da
denunciação caluniosa ("crime de que o sabe inocente") e da receptação (“coisa que sabe ser
produto de crime), respectivamente previstos nos artigos. 339 e 180 do Código Penal. A teoria
encampada pela Lei Penal nesse caso é a teoria do assentimento.

2.5. Elementos do dolo: Teorias da Vontade (ou Ontológicas)

Controvérsia acirrada na doutrina penalista é aquela relativa aos elementos constitutivos


do dolo. A despeito do multifacetado debate177, podemos subdividi-lo em dois grandes grupos,
a saber, o das teorias volitivas ou ontológicas e o das teorias normativas do dolo. Interessa-
nos evidenciar em que medida ambos assumem pressupostos da imagem agostiniana da
vontade – exposta no capítulo anterior do presente trabalho – e, em decorrência disso, não
obtêm êxito em solucionar os hard cases práticos impostos aos sistemas de imputação penal.
Conforme exposto na primeira seção deste capítulo, no curso de sua elaboração
filosófica e dogmática, o instituto do dolo adotou, em maior ou menor grau, caracteres
volitivos e normativos.
Em sua origem no Direito Penal romano, o referido elemento estava atrelado à acepção
de dolus malus, i.e., um querer intangível e individual, ocorrido na mente do agente que o
impelia ao cometimento do crime.
Nesse sentido, prevaleciam as teorias denominadas psicológico-volitivas, as quais
sustentavam que o dolo era um “determinado estado mental do agente, normalmente
vinculado à ideia de vontade”178. Tradicionalmente, ensina Busato179, “as primeiras
concepções a respeito do dolo o entenderam como uma instância relacionada à consciência
empírica do agente”, um fenômeno privado, ocorrido na mente de seu possuidor, razão porque

177
As minuciosas exposições sistematizadas por Humberto Souza Santos (2008, 2012) me foram particularmente
proveitosas nesta seção.
178
CABRAL, 2016, p. 105, tradução nossa.
179
BUSATO, 2015, p. 400.

46
são também denominadas teorias ontológicas180.
No bojo das teorias volitivas se destacam181 a teoria pura da vontade, a teoria do
consentimento ou aprovação, a teoria da indiferença e a teoria da vontade de evitação.
A teoria pura da vontade propugnava que “o querer era o principal critério identificador
do dolo partindo, assim, da oposição contraditória entre o querido e o não querido, como
forma de avaliar se a conduta era dolosa ou imprudente”182. Concebendo o querer como um
fiat183 – que impulsiona a vontade, sendo ele próprio não impulsionado – von Hippel, seu
proeminente defensor, advogava a necessidade da presença de um estado mental específico
para a caracterização do dolo, caracterizado como “a vontade de realizar os elementos
objetivos do tipo penal”184.
Outrossim, mesmo na hipótese de dolo eventual, o defensor da teoria pura da vontade
sustentava a presença do querer, ainda que relativizado, “manifestado por um resultado co-
querido pelo agente”185. Enfim, o critério distintivo das espécies de dolo – direto de primeiro e
segundo graus e eventual – era a intensidade da vontade, pura e simplesmente considerada.
Nos sistemas causalista e neokantista, o dolo era de tal modo psicológico que integrava
o plano da culpabilidade, essa a significar o vínculo subjetivo entre o autor e o fato delitivo,
ensejando a imputação penal.
Conquanto tenha passado a considerar o dolo e a culpa como elementos da tipicidade, o
finalismo permaneceu adotando a teoria pura da vontade, na medida em que o fim perquirido
pelo agente “poderia ser justamente a intenção de realização de um delito, ou seja,
consciência e vontade orientadas à realização de um propósito delitivo”186.
De outro lado, a teoria do consentimento ou aprovação teve o mérito de tentar propor
um critério mais delimitado para o dolo eventual, tendo em vista a dificuldade das teorias
puras em explicar plausivelmente os presumidos graus da vontade.
Para seus defensores, há dolo eventual sempre “quando o agente aprova internamente,
num sentido psicológico, o resultado previsto”187, agindo mesmo quando claramente previsto

180
Pela expressão “dolo ontológico” queremos designar o fato de que o referido instituto era um fenômeno real,
algo que existe no mundo e a que apenas cabe descrever. Cf. Busato (2015) e Brandão (2008).
181
Saliente-se ser o objetivo desta seção tão-somente a caracterização genérica das teorias que centram sua
análise na vontade enquanto elemento configurador do dolo, não sendo seu escopo minudenciar o tema. Puppe
(2004) e Roxin (1997) são referências obrigatórias a esse respeito.
182
PUPPE, 2004, p. 33.
183
Cf. a seção 1.2 do capítulo 1.
184
ROXIN, 1997, p. 430, tradução nossa.
185
CABRAL, 2016, p. 107, tradução nossa.
186
BUSATO, 2015, p. 400.
187
ROXIN, 1997, p. 430, tradução nossa.

47
o resultado jurídico de sua conduta.
Todavia, a teoria ora em comento incorreu na mesma ambiguidade conceitual da teoria
pura da vontade, pois a presumida aprovação, em realidade, acabou padecendo do mesmo
problema de abarcar sob um denominador comum todas as espécies de dolo. Nesse sentido,
escreve Cabral188:
A proposta acabou por propugnar, ao mesmo tempo, um conceito
psicológico de vontade para o dolo direto e um conceito normativo para o
dolo eventual, é dizer, um conceito usual e outro fictício do elemento
volitivo. Em consequência, a dificuldade de distinguir essas duas versões do
conceito de querer [a saber, vontade e aprovação do resultado], leva ao
mesmo problema já identificado na teoria pura da vontade, não
representando, pois, uma contribuição efetiva para a solução do problema
colocado [a distinção clara entre o dolo direto e o dolo eventual].

Do exposto, pode-se apontar como linhas mestras de críticas às teorias


volitivas/ontológicas, de um lado, o fato de utilizarem um conceito ambíguo de vontade189
que, não explica satisfatoriamente o dolo eventual e, de outro, a eleição de um estado mental
(privado e inacessível) como critério para a configuração do dolo, decisão que torna
impossível sua prova efetiva no processo penal.

2.6. Elementos do dolo: Teorias Normativas

Por certo, os severos problemas apresentados pelas teorias volitivas ocasionaram a


elaboração de diversas alternativas doutrinárias, fundadas, agora não mais em uma análise
psicológico-subjetiva, mas “[N]o resultado de uma avaliação a respeito dos fatos que faz com
que se impute a responsabilidade penal nesses termos”190.
Assim, a concepção normativa do dolo está ancorada em uma valoração, de sorte que o
referido elemento do tipo penal não mais é visualizável, descritível e constatável, mas se
valora, atribui e se imputa. Em síntese, o dolo é um caractere que se atribui a um sujeito, não
uma realidade mental inacessível a terceiros.
Em que pese a diversidade das teorias normativas, a doutrina191 as subdivide em dois
grandes grupos, a saber, as teorias normativas-volitivas e as teorias normativas-cognitivas,
conquanto haja nuances e pontos de convergência entre as espécies de ambas.
O primeiro grupo de teorias normativas sustenta a necessidade de um elemento

188
CABRAL, 2016, p. 111, tradução nossa.
189
É dizer, sustentam, para o dolo direto, um conceito psicológico, enquanto que, para o dolo eventual, um
conceito normativo. Cf. CABRAL, 2016, p. 126.
190
BUSATO, 2015, p. 403.
191
Cf. Busato (2010; 2015), Cabral (2016), Santos (2014), Santos (2012) e Vives Antón (2011).

48
cognitivo e outro volitivo para o dolo, porém, ressalva Cabral192, “não se empreende uma
busca por um determinado dado psíquico, mas uma valoração normativa da conduta, com o
objetivo de imputar a vontade ao autor”.
Nesse diapasão, Hassemer propôs uma teoria dos indicadores externos do dolo, para a
qual mais importa discutir a razão da penalização mais severa para os crimes dolosos em
contraste com os crimes culposos que definir o que seja a essência do dolo. Dessarte, não
avança um novo conceito de dolo, mantendo-se alinhado à teoria do consentimento
propugnada por Kaufmann para a caracterização dos dolos direto e eventual.
O que, em verdade, o diferencia é a propositura de um rol (não-exaustivo) de
indicadores objetivos que permitam ao julgador atribuir o caráter doloso a uma certa
conduta193, sempre tendo em conta a aplicabilidade de sua teoria na práxis judicial. São eles:
(a) seu caráter observável (ou observabilidade); (b) sua exaustividade (ou plenitude); e (c) sua
relevância para o elemento subjetivo em questão (ou relevância dispositiva).
Dessarte, no entender de Hassemer, o dolo “não é um fato, mas uma atribuição, ou seja,
a exata atribuição de uma decisão contrária ao bem jurídico, na qual se expressam
simultaneamente conhecimento e vontade”194. Note-se, contudo, que o autor permanece
caracterizando o instituto como sendo uma disposição ou estado mental internos, porém
extraível, “indiretamente dos indicadores externos da conduta que se apresentam, (...) em três
níveis, a situação perigosa, a representação do perigo e a decisão a favor da ação perigosa”195.
Pelo exposto, a teoria dos indicadores externos não problematiza o conceito de dolo ao
adotar a teoria do consentimento de Kaufmann de forma a redundar nas mesmas críticas
endereçadas a essa, expostas na seção anterior do presente capítulo196.
A segunda teoria normativa-volitiva do dolo foi proposta por Roxin, para cujo
doutrinador a essência do dolo é caracterizada como sendo uma “realização do plano”197 de
maneira que um certo resultado apenas pode ser identificado como dolosamente produzido

192
CABRAL, 2016, p 127, tradução nossa.
193
“Evidentemente, os indicadores externos são tantos e tão amplos que não será possível esgotá-los. Trata-se, na
realidade, da análise de todas as circunstâncias que estão ao redor do atuar”. (BUSATO, 2015, p. 406).
194
BUSATO, 2015, p. 407.
195
CABRAL, 2016, p. 132-133, tradução nossa.
196
Busato ressalta, a despeito das críticas, que “Dessa construção de Hassemer parece derivar algo muito
importante que, porém, o autor não trata de explorar: a ideia de transmissão de um significado. (...) Hassemer
assume a ideia de que somente diante da expressão externa, compatível com a norma incriminadora subjetiva
dolosa, é possível afirmar a existência do dolo. Vale dizer, o dolo ‘é’ em sua própria demonstração, sua expressão
significativa” (BUSATO, 2015, p. 406).
197
ROXIN, 1997, p. 416, tradução nossa.

49
“quando e porque é correspondente ao plano do sujeito em uma valoração objetiva”198. Em
suma, “há dolo quando o agente inclui o resultado em seu cálculo, fazendo o evento lesivo
parte de seu plano e, em tal medida, o quer”199.
Nesse sentido, o dolo “sempre encerra uma decisão em que agente deve levar a sério a
realização do resultado, mas essa decisão não deve ser considerada em termos psicológicos,
mas normativamente considerada”200, i.e., “a concretização do critério da decisão,
especialmente no dolo eventual, se realiza por meio de fórmulas, indicadores e contra-
indicadores” (ibid.).
Justamente por preconizar que a análise do plano do agente deve tomar em conta
circunstâncias objetivas e subjetivas como um todo, a teoria do plano de Roxin se alinha com
os indicadores externos de Hassemer. Em apertada síntese, a teoria do plano advoga a tese
segundo a qual o dolo é identificado com um plano cuja análise leva em conta a existência de
fatores objetivos, normativamente considerados.
A crítica que a doutrina mais reiteradamente endereça à referida teoria consiste em
apontar o caráter demasiadamente restritivo com que caracteriza o dolo: o emprego do termo
“plano”, no entender de Cabral201, “remete justamente a uma ideia de planejamento,
estratégia, projeto, significados esses que encerram necessariamente uma ação previamente
bem pensada, o que resulta incompatível com incontáveis casos de delitos claramente
intencionais” e, portanto, cometidos à revelia de uma prévia reflexão por parte do agente.
Ademais, Roxin não define o que entende por “plano”, tampouco elucida em que
circunstâncias estamos autorizados a concluir pela ocorrência de um plano e, pois, de um
delito doloso.
Por derradeiro, no que se refere aos indicadores objetivos de caracterização do dolo, a
teoria do plano se mostra igualmente vaga ao apontá-los deixando a cargo do magistrado a
atribuição de decidir o que é o dolo, ensejando grave subjetivismo e insegurança jurídica ao
Direito Penal.
De outra banda, dentre as várias teorias normativas-cognitivas destaca-se a teoria do
dolo como conhecimento das consequências propugnada por Jakobs para quem “a
consequência da ação é observada, em uma parte, pelo curso causal querido e, de outra,

198
ROXIN, 1997, p. 416, tradução nossa.
199
Ibid., p. 426, tradução nossa.
200
CABRAL, 2016, p. 135, tradução nossa.
201
Ibid., p. 136, tradução nossa.

50
mediante a percepção, não querida, do fato dependente da ação”202.
Assim, a proposta funcionalista do aludido doutrinador prescinde de qualquer análise do
elemento volitivo, firmando suas bases no puro conhecimento das consequências da ação por
parte do agente, ainda que Jakobs não se ocupe em formular critérios para a efetiva conclusão
de que houve ou não tal conhecimento por ocasião da aplicação da lei penal no caso concreto.
Por todo o exposto, temos que conquanto as teorias normativas não tenham logrado
êxito em equacionar o problema da análise do dolo, consigne-se o mérito da busca por bases
normativas que se mostrem efetivas na imputação de um delito a certo agente, denunciando os
reveses e deficiências das teorias psicológicas.
À guisa de conclusão, permanece desde a era do dolus malus até o funcionalismo
sistêmico a perene incompreensão acerca do que seja o elemento intencional por meio do qual
podemos identificar uma conduta típica como sendo dolosa.
Desde uma perspectiva wittgensteiniana, ambos os grupos de teorias– quer volitivas
quer cognitivas – permanecem assumindo os pressupostos da imagem agostiniana da vontade,
concebendo-a como um motor fiat inacessível porque mental que a tudo causa, mas por nada
é causado. Ora, se o querer for um ato subjetivo acessível tão-somente via introspecção, temos
que o Direito Penal carece de relevância e objetividade, vez que a ninguém mais é dado
conhecer a vontade que não o sujeito que a sente de sorte que o julgamento criminal nada
mais seria que mero encenamento arbitrário e encarcerador, violando, assim, os direitos e
garantias fundamentais assegurados pela Constituição Federal.
Nesse diapasão, a doutrina penalista vem desde fins do século XX sistematizando
soluções alternativas e mais adequadas ao referido problema, cumprindo-nos, no presente
trabalho, passarmos à tratativa da teoria significativa do dolo de Tomás Salvador Vives Antón
(2011) a qual ancorada no duplo referencial filosófico já exposto (é dizer, a investigação
gramatical de Wittgenstein e a Teoria do Agir Comunicativo de Habermas) propõe a inclusão
do sentido na construção da imputação, reformulando todos os fundamentos do sistema penal,
mormente seus elementos subjetivos.
Doravante, o terceiro e último capítulo discutirá as linhas mestras com que o sistema
significativo opera, passando, enfim, à construção de um dolo (re)significado, sempre
contrastando-o com as concepções tradicionalmente fornecidas pela doutrina penalista.

202
JAKOBS, 1997, p. 316, tradução nossa.

51
CAPÍTULO 3. DOLO E LINGUAGEM: UMA PERSPECTIVA SIGNIFICATIVA DO
ELEMENTO SUBJETIVO DO TIPO PENAL

“Naturalmente as ideias de Wittgenstein não constituem nenhuma classe de


dogma; mas não me parece possível tratar de temas como o dolo, que aqui se
aborda, desconhecendo-as. Pois ao fazê-lo se adota consciente ou inconscientemente
um paradigma filosófico (o da filosofia do sujeito) que é, quando menos, discutível;
e que pode e deve ser discutido, pois são muitas as possibilidades de que se afigure
errôneo em todo ou em parte: ao menos, isso parece inferir-se das mil e uma
confusões entre as quais se deslizam, atualmente, tanto a doutrina como a
jurisprudência.”.

Tomás Salvador Vives Antón, Fundamentos del Sistema Penal, p. 625.

O trabalho ora testilhado tem como escopo apresentar a visão significativa do instituto
do dolo incorporando, a seu turno, a dimensão do sentido da ação. Tal se sucedeu após o giro
pragmático-linguístico na filosofia contemporânea pós-Wittgenstein e suas póstumas
Investigações Filosóficas.
No plano do Direito Penal, outro não ocorreu, sobretudo após o exaurimento dos
modelos ontológicos e funcionalistas. O modelo aqui proposto não pretende ser um mero
substituto dos demais, mas um sistema de imputação firmado em novas bases filosóficas e
jurídicas.
Conforme exposto no capítulo primeiro, Tomás Salvador Vives Antón (2011) organiza
sua teoria significativa a partir da filosofia do segundo Wittgenstein e de Jürgen Habermas.
Nesse sentido, bem observa Busato203 que
o que faz Vives é organizar a racionalidade penal a partir dos jogos de
linguagem expressos na ação e as formas de vida que dão racionalidade
prática às regras. Por outro lado, na metodologia de apresentação dos temas
de parte geral afirma as realidades a partir da compreensão da linguagem
como acordo comunicativo que legitima as normas segundo pretensões de
validade.

Nesse sentido, a teoria significativa do delito propõe uma nova consideração das
categorias tradicionais com as quais opera o Direito Penal a partir da compreensão do
significado dos respectivos conceitos. Dentre esses, o ponto nevrálgico da proposta aqui
apresentada e defendida repousa nos conceitos de ação e norma.
Vives Antón204 sustenta que a ação não consiste num substrato da imputação penal, mas
“um processo simbólico regido por normas” a designar “o significado social da conduta”205.
Em apertada síntese, o conceito de ação pode ser entabulado como “interpretações que podem

203
BUSATO, 2015, p. 251.
204
VIVES ANTÓN, 2011, p. 210, tradução nossa.
205
Ibid.

52
dar-se, do comportamento humano, segundo os distintos grupos de regras sociais” (ibid.).
Assim, “elas deverão representar, em termos de estrutura do delito, já não o substrato de um
sentido, mas o sentido de um substrato”206.
Se, conforme observa Wittgenstein, o significado de uma expressão é, mediante certas
qualificações, o uso na prática de um jogo de linguagem (IF §43), de maneira que as palavras
funcionam como ferramentas com uma variedade de diferentes usos, no domínio da ação seu
sentido é dado, não pela intenção do agente, mas pelo “significado que socialmente se atribua
ao que fazem”207. A ação, desde um ponto de vista linguístico, não é um fato a se descrever se
não uma atribuição de significado. Eis o ‘giro copernicano’ operado no sistema de imputação
penal ao qual nos referimos no capítulo primeiro do presente trabalho.
Em paralelo à centralidade do conceito de ação, Vives Antón elege a liberdade de ação
como seu pressuposto sendo “o ponto de união entre a doutrina da ação e a doutrina da
norma”208, não concebida em bases empíricas, mas como o “pressuposto da imagem de
mundo que dá sentido à própria ação” (BUSATO, 2015, p. 255). Por certo, pressupor a
liberdade pode sugerir um comprometimento com o livre-arbítrio agostiniano, o que não é o
caso conforme bem nota Manuel Cobo del Rosal209:
Certamente, pode produzir rechace a ideia de que se castiga sobre a base de
uma indemonstrável pressuposição de liberdade de vontade. Mas, castigar
não é uma opção teórica, mas uma opção prática. Ou se pressupõe que o
homem é livre, e se lhe castiga pelas infrações das normas que livremente
comete, ou se pressupõe que não o é, então é necessário recorrer a
esquemas causais (não normativos) para dirigir sua conduta. Por
insatisfatório que pareça castigar sobre a base de uma pressuposição, mais
insatisfatório resultaria governar a sociedade humana como se se tratasse de
um puro mecanismo. O homem poderia então ser tratado como um puro
fenômeno natural. Os poderes do Estado sobre o indivíduo não tropeçariam
com o limite representado pela dignidade humana, que se baseia na ideia de
que o indivíduo é um ser capaz de escolha, ‘legislador no reino dos fins’ para
empregar a expressão kantiana. As garantias próprias do estado de Direito
pareceriam desprovidas de sentido, e inclusive a própria ideia de Estado de
Direito seria absurda, pois em uma sociedade governada segundo a hipótese
determinista não teria sequer porque existir Direito.

Ora, se a ação é um sentido – e, portanto, não é subdeterminada pela causalidade –


Vives Antón a entende livre, retirando-a da dimensão da culpabilidade e elegendo-a como

206
BUSATO, 2015, p. 252.
207
VIVES ANTÓN, 2011, p. 221, tradução nossa. Destarte, “a determinação da ação que se realiza não depende
da concreta intenção que o sujeito queira levar a cabo, mas do código social conforme o qual se interpreta o que
ele faz” (ibid., p. 232).
208
Ibid., p. 334, tradução nossa.
209
COBO DEL ROSAL; VIVES ANTÓN, 1999, p. 542-543 apud BUSATO, 2015, p. 256.

53
pressuposto da própria teoria do delito.
De outra banda, a norma penal possui uma dimensão de validade: “O que pretende uma
norma jurídica é ser essencialmente válida, cuja pretensão obviamente não fica satisfeita com
a presunção de legitimidade formal”210 mas também não se converte em norma moral “pois
ainda que pretenda afirmar-se por si mesma e não em relação a um fim, (…) não aspira ao
aperfeiçoamento humano, mas simplesmente a gerir a ordem de coexistência humana”211.
Assim sendo, conclui Vives Antón a impossibilidade de um conceito (ontológico)
universal de ação, pois, conforme observa Bitencourt212, “as ações não existem antes das
normas (regras) que as definem. Fala-se da ação de furtar porque existe antes uma norma que
define essa ação. (…) A ação, cada ação, possui um significado determinado, certas práticas
sociais que identificam um comportamento humano perante outros.
Isso posto, não há mais que se falar em categorias do delito – tipicidade,
antijuridicidade e culpabilidade – mas um distintas pretensões de validade, à semelhança das
pretensões de validade do Agir Comunicativo de Habermas, cujo conteúdo passaremos a
expor.
A categoria central do sistema de imputação passa a ser não mais a ação típica, mas
“um tipo de ação definido na Lei”213. Nesses termos, a primeira pretensão de validade é a
pretensão de relevância.
Note-se que o tipo de ação tem sua configuração normativamente determinada posto
que resulta do reconhecimento de um significado. A aferição dos elementos subjetivos do tipo
de ação corresponde à observação das manifestações externas do agente, não ao
questionamento a respeito dos processos psicológicos por que passa o sujeito, querer é agir.
O perene problema da ação ou omissão, por sua vez, “torna-se meramente aparente, na
medida em que se trata de identificar, circunstancialmente, a existência de ação ou omissão
tipicamente relevante”214. A relação de causalidade só tem seu sentido identificado a partir de
“práticas, interpretações e novas práticas”215.
A segunda pretensão de validade da norma penal é a pretensão de ilicitude a qual se
identifica, de um lado, com um compromisso do agente com a violação de um bem jurídico –
aqui compreendidos os institutos do dolo e da imprudência – e, de outro, os casos em que a

210
BUSATO, 2015, p. 256.
211
Ibid.
212
BITENCOURT, 2010, p. 268.
213
VIVES ANTÓN, 2011, p. 491, tradução nossa.
214
BUSATO, 2015, p. 258.
215
VIVES ANTÓN, 2011, p. 321, tradução nossa.

54
ilicitude será excluída “pela ocorrência dos casos contemplados nas leis permissivas, ora
outorguem estas um direito permissivo forte (causas de justificação) ora se limitem a tolerar a
ação, outorgando um permissivo fraco (escusas) ou causas de exclusão da responsabilidade
pelo fato”216.
A terceira pretensão, de reprovação (ou de reproche) recai não sobre a ação (tal qual as
duas primeiras), mas sobre o autor, consubstanciando-se em um juízo de culpabilidade. Anota
Vives Antón que a reprovação jurídica pressupõe a imputabilidade e o conhecimento (ainda
que potencial) da ilicitude de sua ação de maneira que “[é] o reproche – não a pena – [que]
restitui ao delinquente sua dignidade de ser racional, porque se dirige a ele como pessoa e o
trata como sujeito, não como objeto”217.
A quarta e derradeira pretensão de validade da norma penal é a da necessidade de pena,
categoria de análise delitiva absolutamente inovadora na doutrina penal, em franca
observância ao princípio constitucional da proporcionalidade.
Nela estarão albergadas não apenas as condições objetivas de punibilidade ou mesmo as
causas pessoais de exclusão da pena, como também “as causas pessoais de anulação ou
suspensão da pena, graça, anistia e todos os demais institutos que afastam a possibilidade de
aplicação da pena ao caso concreto, quer derivadas ou não da lei”218.
Conforme exposto no início do presente trabalho, a teoria da ação significativa traduz
um sistema de imputação moderno e filosoficamente orientado ao sentido da ação penalmente
relevante. Assim, substitui-se a aspiração de verdade no processo por uma aspiração à justiça.
Eis a razão da pertinência da consideração detida nas respostas fornecidas pela teoria que ora
se expõe.
Tendo apresentado os aspectos gerais do sistema significativo de imputação,
adentraremos na análise dos elementos volitivo e cognitivo a partir da perspectiva aqui
proposta, sempre atento aos pontos de toque em relação àquelas já delineadas no capítulo
anterior.

3.1. O Dolo como Conhecimento: Breve Descrição Gramatical

Por certo, uma ação dolosa impõe ao julgador uma análise da possibilidade concreta de
previsão de resultados e inferência conforme nossas habilidades e as técnicas que dominamos

216
VIVES ANTÓN, 2011, p. 492-493, tradução nossa.
217
Ibid., p. 494, tradução nossa.
218
BUSATO, 2015, p. 260.

55
de maneira que vives Antón não nega a presença do elemento cognitivo do dolo, ainda que
com novos contornos proporcionados pela terapia gramatical do segundo Wittgenstein.
Com o giro pragmático-linguístico na filosofia, supera-se o paradigma da
autoconsciência e da privacidade epistêmica – consectários da imagem agostiniana da vontade
– o qual propugna que o interno seria captado por meio da introspecção219.
A filosofia da linguagem elucida que os fatos comunicados não podem ser divorciados
do processo de comunicação estabelecido através de um processo de entendimento entre os
membros de uma dada comunidade. Conforme destaca Cabral (2016, p. 243, tradução nossa),
“é o uso comunicativo da linguagem o que estabelece as formas do conhecimento, de modo
que não há nenhum acesso imediato ao mundo que seja independentemente de nossas práticas
linguísticas e do contexto linguisticamente construído de nossos modos de vida”.
Precisamente nesse tocante:
(…) o ponto arquimediano da filosofia (…) não pode ser o sujeito isolado.
Ele também não se encontra fora do mundo. O mundo, como objeto do nosso
conhecimento, se origina dos usos da linguagem. Estamos seguros de nossos
usos do mesmo modo que estamos seguros de nossos jogos. Nós mesmos o
fazemos, mas não arbitrariamente, se não que em harmonia com o que já está
aí. Com as práticas, regras, normas e ação em comum com outras pessoas.
Os jogos têm seus próprios desenvolvimentos do que já existe, mas eles não
inventam um mundo totalmente novo sem nenhum ponto em comum com a
práxis em que vivemos220.

Assim sendo, para que um indivíduo possa atuar no referido sistema e tomar parte nos
respectivos jogos-de-linguagem, é imprescindível que desenvolva sua capacidade de ação no
sistema, a qual se dá, por sua vez, por meio do conhecimento. Eis a razão da necessidade da
descrição dos usos221 da expressão conhecimento para que possamos lançar luz sobre a
compreensão do dolo.
O primeiro uso se refere ao conhecimento como saber que ou como consciência da
ação. Dessarte, o dolo expressa “um compromisso do autor com o resultado significativo de
sua ação”222 e, como consectário lógico, é imprescindível que o autor tenha consciência da
ação significativa que realiza, uma vez que, por evidente, “apenas se pode assumir um

219
Vide a seção 1.3 do capítulo 1.
220
GEBAUER, 2013, p.28.
221
Nesse sentido assevera Vives Antón (2011, p. 264) que, verbis “A ‘consciência’, o ‘saber’, em que o elemento
intelectual [do dolo] consiste, tem uma pluralidade de sentidos: representação, atenção, explicação, cálculo,
predição, experiência, previsão, etc.”.
222
CABRAL, 2016, p. 258, tradução nossa.

56
compromisso com algo se se sabe o que faz”223.
Nesse contexto, para a caracterização dessa face do elemento cognitivo do dolo, o
agente deve ter consciência de todos os elementos de sua ação – quer sejam de ordem
descritiva quer de ordem normativa – que estejam previstos no tipo penal. Tais elementos são
tradicionalmente denominados objeto do dolo224.
Ressalte-se, desde a perspectiva pragmático-linguística aqui defendida e outrora
exposta, que o conhecimento não é algo psicológico, cujo acesso se dá por introspecção e,
pois, apenas por quem o possui, antes consiste em uma habilidade de maneira que a memória
nada mais é que a retomada de uma certa habilidade225.
Exemplificativamente, um agente que comete o crime de concussão (art. 316 CP) sabe
de sua condição funcional desde quando iniciou efetivamente o exercício de seu cargo
público, razão porque desde tal momento tem a consciência necessária sobre o elemento
normativo “funcionário público” para a caracterização do tipo objetivo do referido delito
contra a administração pública. Nessa perspectiva, não se exige um conhecimento
imediatamente atual para a realização física de uma dada ação226.
Em suma, para avaliar a atualidade dolosamente relevante não se deve tomar como
referencial a ação tomada como um mero movimento mecânico capaz de produzir um
resultado naturalístico no mundo, mas de acordo com “um conjunto de circunstâncias que
transmitem um sentido de ação” (BUSATO, 2015, p. 412).
Isso posto, não basta para a efetiva verificação da existência ou não de um compromisso

223
CABRAL, 2016, p. 258, tradução nossa.
224
Veja-se, dentre outros, Bitencourt (2010), Gomes (2015) e Régis Prado (2010).
225
Outro não é o posicionamento de Hacker (2007, p. 110-111, tradução nossa): “Nós falamos de ter, ou possuir,
habilidades- essa é a imagem que nós usamos. Porém possuir uma habilidade não é possuir algo – é ser capaz de
fazer algo. É importante não se confundir com a forma na qual nós fazemos referência às habilidades Posses que
não são usadas podem ser armazenadas. Porém quando alguém não está utilizando uma habilidade, essa não está
num armazém. Tampouco está situada em algum lugar, ainda que em seu veículo, se é possível dizer que ela
tenha um (...) (p.ex., os órgãos sensoriais são os veículos das habilidades sensoriais). O conhecimento é uma
habilidade, e a memória é o conhecimento retido. É um erro comum entre psicólogos e neurocientistas supor que
as memórias estão, precisam estar, ou podem estar, armazenadas no cérebro. Mas o conhecimento que é uma
habilidade – nomeadamente, saber que algo seja assim – ou o conhecimento que equivale a uma habilidade ou
domínio de uma técnica (como o conhecimento de inglês) não é algo armazenável. O que é conhecido (também
denominado conhecimento), no caso de saber que algo é assim, é, evidentemente, armazenável por exemplo, em
livros, arquivos e ordenadores – se está escrito, codificado ou fotografado, etc. Porém não há algo como
armazenar o conhecimento no cérebro. A memória é apenas metaforicamente o armazém das ideias. (Certamente,
isso não significa que não haja condições neurais para relembrar algo)”.
226
Cabral (2016, p. 264, tradução nossa) elucida este ponto nos seguintes termos: “Se, por exemplo, um
assassino, que faça a guarda em frente à casa da vítima, tenha-a visto entrar em sua habitação há duas horas e
não tenha saído, venha a colocar uma bomba na porta da casa matando a ofendida, para que se possa afirmar que
tenha conhecimento do elemento típico ‘pessoa viva’ não é necessário que ele, antes de implantar a bomba, tenha
que olhar novamente para dentro da casa a fim de ter certeza de que a vítima está ali”.

57
do agente com a produção do resultado significativo, cabe analisar, ainda, uma outra face do
elemento cognitivo do dolo: o conhecimento usado como saber como ou como domínio de
uma técnica.
Desde a perspectiva aqui adotada, dominar uma técnica consiste precisamente “em
saber como jogar os jogos-de-linguagem em nossos sistema linguístico de verificação”227.
Saber jogar pressupõe capacidade de aprendizagem e adestramento228.
Precisamente por isso, pode-se concluir que o conhecimento linguístico não é um ato,
não é algo que fazemos, tampouco um evento ou processo, mas uma condição permanente,
uma capacidade, o domínio de uma técnica de atuar nos mais variados jogos-de-linguagem229.
Daí se segue que compreender uma expressão significa ter a habilidade (prática) de utilizar a
expressão ou realizar lances do jogo de acordo com seu emprego ordinário.
Por conseguinte:
quando a pessoa domina certa técnica, passa a ter condições de inferir os
resultados significativos derivados de suas ações. Uma pessoa que sabe
dirigir um carro, tem capacidade de inferir que ao arrancar com o veículo,
liberar o freio de mão, engatar a marcha e pisar no acelerador, o carro vai
andar230 .

Referido exemplo demonstra que o domínio de uma técnica permite ao agente “inferir
resultados significativos de suas ações e, portanto, assumir compromissos com eles”231.
Dominar uma técnica, nesse sentido, pode ser analisado nos múltiplos jogos-de-linguagem,
desde convenções sociais e profissionais (e.g., o domínio da técnica de elaboração de uma
sentença judicial ou da técnica de etiqueta) até aqueles que estabeleçam relação com a
natureza (e.g., escalar uma montanha).
A adoção do critério do domínio de uma técnica permite ao agente conhecer as
condições de êxito de um jogo-de-linguagem e, por seu turno, atuar com compromisso com o
resultado, fundamento do dolo significativo. Justamente por isso, na proporção em que um

227
CABRAL, 2016, p. 268, tradução nossa.
228
Gebauer é elucidativo ao explicar o que Wittgenstein e Vives Antón entendem por aprendizagem como
adestramento, verbis: “Desde o nascimento os seres humanos ainda não têm nenhum pano-de-fundo, não importa
de que tipo seja, para um jogo. Na primeira aprendizagem da ação regulada, especialmente da linguagem, os
pequenos meninos são levados primeiramente a formar um pano-de-fundo. O que dificulta essa aprendizagem é
o fato de que seja esse pano-de-fundo não é rígido nem imutável. Ao contrário, ele é constituído de tal modo que
o agente deve responder ao jogo-de-linguagem em questão e às situações específicas do jogo-de-linguagem, é
dizer, deve se adaptar às circunstâncias em constante mutação e frequentemente novas. (GEBAUER, 2013, p.
123).
229
IF §150: “A gramática da palavra ‘saber’, está claro, é estreitamente aparentada com a de ‘poder, ‘ser capaz
de’. Mas também estreitamente aparentada com a da palavra ‘compreender’. (‘Dominar’ uma técnica).
230
CABRAL, 2016, p. 273, tradução nossa.
231
Ibid.

58
indivíduo domina a técnica, mais pode tomar parte em situações extremas protegidas pela
referida técnica232.
Mediante o acima exposto, podemos inferir que a adoção do critério do conhecimento
como domínio de uma técnica permite a terceiros (neles inclusos aqueles que nada sabem a
respeito da técnica) emitirem juízos de valor sobre determinada conduta, tomando por base as
regras públicas que nos permitem aferir se o autor possuía a capacidade de inferir as
consequências de sua ação (saber que) e efetivamente assumiu o compromisso com o
resultado significativo (saber como).
A título de revisão da presente seção, temos o que se segue.
O dolo significativo compreende os elementos cognitivo e volitivo. Detendo-nos no
primeiro elemento, somos que o conhecimento se desdobra e duas faces, a saber, (a)
conhecimento como saber que – i.e., a consciência (publicamente compreendida) do agente
sobre as consequências de sua ação, competência que abarca os elementos descritos no tipo
penal; e (b) conhecimento como saber como – a aferição do domínio de uma certa técnica que
possibilita ao agente prever os resultados significativos de sua ação. Nesses termos, o dolo se
configurará na assunção do compromisso do autor com o resultado significativo de sua ação.
Por certo, a ação dolosa, com efeito, envolve “algo mais que o simples conhecimento
(ou a simples consciência da ação e o domínio de uma técnica), ela envolve também levar a
cabo intencionalmente uma ação, i.e., para a caracterização do dolo é necessário, também, um
elemento volitivo”233. Cumpre-nos, doravante, analisar significativamente a vontade, sempre
tendo em mente as observações de Wittgenstein, tratadas no primeiro capítulo.

3.2. O Dolo como Vontade: Breve Descrição Gramatical

Conforme observamos no primeiro capítulo, querer é agir, não o havendo um gap entre
a intenção e sua materialização na ação. Portanto, resulta lógica a presença do elemento
volitivo na formação do dolo, podendo-se dizer que o referido instituto “envolve também
levar a cabo intencionalmente determinada ação”234.

232
Socorrendo-nos, uma vez mais, das lições de Cabral, citamos os seguintes exemplos: “Um piloto de avião
habilitado pode conduzir uma aeronave sem temer ser responsabilizado por homicídio doloso em caso de um
acidente com mortes em meio as quais ele sobreviva. Do mesmo modo, um experimentado cirugião pode abrir o
peito de um paciente e operar sua artéria ou retirar um tumor de seu cérebro, sem medo de ser responsabilizado a
título de dolo. Evidentemente que caso violem a lex artis da aviação ou da medicina podem ser
responsabilizados a título de imprudência, mas não se constata, justamente por conta do domínio da técnica, um
compromisso do agente com o resultado significativo” (CABRAL, 2016, p. 275-276, tradução nossa).
233
CABRAL, 2016, p. 282, tradução nossa.
234
Ibid.

59
Nesses termos, é válido compreender que o elemento volitivo manifesta um vínculo
normativo do agente com o significado de sua ação. Em apertada síntese, a intenção
“materializa a responsabilidade normativa derivada da ação, materializa o compromisso
linguístico do autor”235.
Vives Antón236 é cabal ao reconhecer a presença do elemento ora analisado:
(…) a ideia de domínio de uma técnica não basta para captar esse
compromisso com o resultado lesivo em que consiste o dolo. Do médico
que, tratando de acudir com urgência ao lugar onde um paciente precisa um
tratamento sem cuja rápida administração morreria, conduz uma guinada à
esquerda para evitar um largo rodeio, não se pode dizer, se ocasiona um
acidente mortal, que tivera a intenção de fazê-lo; isto é, que haja se
comprometido com sua causação. Aqui, a ação que engendra o perigo não
co-leva uma intenção de matar, que exista o domínio da técnica de que se
trata (conduzir) e, por conseguinte, o ‘conhecimento’ do resultado.

Desde a perspectiva significativa aqui propugnada, definimos a intenção como a


“expressão de uma pretensão significada de realizar determinada ação”237 cujo sentido é
identificado pelo contexto em que a ação se desenvolve bem como pelas circunstâncias que o
agente sabe e as respectivas técnicas que domina – “o elemento volitivo do dolo tem seu
sentido vinculado ao elemento cognitivo”238.
Repise-se que a gramática do termo ‘querer’ mostra que a intenção não é um substrato
ontológico, algo interno, um objeto mental, mas um conceito linguístico239 e sempre
caracterizada por uma ação: há, em verdade, uma relação interna240 (ou gramatical) entre
querer e agir.
Intenção e compromisso são termos indissociáveis, contudo operam em planos distintos,

235
CABRAL, 2016, p. 284, tradução nossa.
236
VIVES ANTÓN, 2011, p. 255, tradução nossa.
237
Vives Antón, por seu turno, a define como “compromisso de atuar de determinado modo” ou mesmo como
um “compromisso de levar a cabo a ação correspondente” (VIVES ANTÓN, 2011, p. 242 e 247,
respectivamente).
238
CABRAL, 2016, p. 291, tradução nossa.
239
“(…) o que faça ou deixe de fazer não depende do que eu queira, mas dessas regras ou práticas que
preexistem e impõem ao meu desejo. Eu tinha a intenção de dar xeque-mate; mas não o dei. Eu não queria
ofender, mas as expressões que proferi são injuriosas (ou vice-versa), etc. Não é o conteúdo do querer; são, ao
contrário, as regras que regem a prática de que se trate o que determinam o sentido do que faço, sua descrição ou
interpretação como ação” (VIVES ANTÓN, 2011, p. 757, tradução nossa).
240
Glock (1998, p. 318) define a expressão ‘relações internas’ como aquelas “que não poderiam deixar de
ocorrer, por serem dadas juntamente com os termos (objetos ou elementos relacionados), ou por serem (em
parte) constitutivas desses termos, como é o caso de o branco ser mais claro que o preto. Uma propriedade
interna é, da mesma forma, uma propriedade que uma coisa não poderia deixar de possuir, pelo fato de ser
essencial para que seja a coisa que é (…) Wittgenstein veio a privilegiar os termos ‘relações gramaticais’ ou
‘conexões gramaticais’ em detrimento de ‘relações internas’. As relações gramaticais não são relações que
determinamos pelo exame dos elementos relacionados, considerando-se que não poderíamos identificar esses
elementos independentemente das relações”.

60
separáveis por razões didáticas. A primeira se vincula ao plano do significado , quer dizer, “ao
âmbito em que se estabelecem os significados de nossas ações (critérios de sentido)”241242 ao
passo em que o último se atrela ao plano da responsabilidade, dito em outros termos, “ao
âmbito de como nós assumimos a responsabilidade por nossas ações”243.
Dito em outros termos, para que se tenha o compromisso caracterizador do dolo, o
elemento cognitivo (saber que e saber como) habilita o autor prever os resultados
significativos advindos de sua ação e, prevendo, o autor intencionalmente realiza a ação,
comprometendo-se com o referido resultado significativo.
A título de exemplo, um atirador de facas, ainda que possua domínio pleno da técnica,
saiba o que faz, pode expressar a pretensão de matar ou lesionar a assistente que lhe auxilia,
direcionando o instrumento cortante para alcançá-la, o contexto expressa o sentido do
compromisso do autor, permitindo diferenciar uma ação dolosa aquela imprudente, “muito
embora possamos analisar situações com substratos iguais”244.
A gramática da intenção impõe que haja critérios públicos245, intersubjetivos, a partir
dos quais estejamos habilitados a reconhecer o significado do dolo 246 num certo contexto.
Socorrendo-nos dos critérios identificados por Glock247 e aplicando-os à prova da intenção
dolosa, elencamos (a) o contexto; (b) as explicações e (c) as confissões.
O primeiro critério – o contexto248 – indubitavelmente interessa à prova processual
penal, tendo em vista que “não depende da boa vontade do acusado em facilitar importantes

241
CABRAL, 2016, p. 295, tradução nossa.
242
Vives Antón a define como “as regras que a identificam e a fazem possível e cognoscível” (VIVES ANTÓN,
2011, p. 295, tradução nossa.
243
CABRAL, 2016, p. 295, tradução nossa.
244
Ibid., p. 296, tradução nossa.
245
IF §337: “A intenção está inserida na situação, nos hábitos humanos e nas instituições”.
246
Contrapondo-se à imagem agostiniana da vontade e, portanto, à equivocada cisão entre os mundos interno
(mente) e externo (mundo), Vives Antón observa que “(…) certamente, como sublinhou Ramos, fazem falta
critérios externos para determinar quando podemos dizer que uma ação determinada é ou não dolosa; mas não se
trata de critérios externos a partir dos quais se possa induzir a existência ou inexistência de determinados
processos internos, se não que ‘tal dicotomia não existe’: determinam o uso da palavra e, portanto, os critérios
são constitutivos, o dolo é sempre, portanto, dolus in re ipsa. Apesar disso, tais critérios não podem ser
absolutamente seguros, nem constituem nenhuma ‘ciência’; porém podem proporcionar uma segurança
suficiente, que nos permita entendermo-nos ao falar e, em consequência valorar corretamente nossas ações. Em
resumo, cabe terminar esta reflexão sobre o interno e o externo apelando a uma lapidária frase de Wittgenstein:
‘O interno é uma ilusão’. Isto é, o complexo total de ideias ao que se alude com esta palavra é uma tela pintada
que se levanta diante do cenário do uso efetivo da palavra” (VIVES ANTÓN, 2011, p. 656, tradução nossa).
247
Cf. verbete “Interno” em Glock (1998, p. 279).
248
“A voluntariedade – e as atribuições de intenção – resultam de um contexto e dependem da relação da
conduta com as pautas que governam nossas vidas: não são elementos da ação, se não formas ou modos de
entender a conduta como ação” (VIVES ANTÓN, 2011, p. 237).

61
informações sobre suas intenções”249. A compreensão sobre a intenção do agente pode ser
formada por elementos tais como “os objetos empregados (como armas, ferramentas e
outros), o local dos golpes ou disparos, o modus operandi, situações temporais, compleição
física e muitos outros elementos”250.
Os fatos antecedentes (tais como desavenças, amizades, inimizades, raiva, ou quaisquer
outros) assim como os consequentes (ocultação dos objetos do crime, socorro à vítima, fuga
ou ameaças, dentre outros) igualmente importam na consideração do critério do contexto da
ação:
O que A quer dizer se evidencia a partir do modo como, caso seja
necessário, ele explica, justifica ou elabora seus proferimentos, pelas
consequências que ele extrai destes, pelas respostas e reações que ele aceita
como pertinentes.251

O segundo e terceiro critérios elencados por Glock e aplicáveis ao


estudo do dolo significativo são as explicações e confissões do autor a respeito de sua ação, é
dizer, “o modo de manifestação do autor sobre os fatos, como o autor admite, explica,
raciocina sobre o significado da ação e de suas intenções”252. Wittgenstein253 é oportuno ao
observar que
Para a verdade da confissão de que teria pensado nisto e naquilo, os critérios
não são os de uma descrição adequada à verdade de um processo. E a
importância da verdadeira confissão não reside no fato de que ela, com
segurança, reproduz corretamente um processo. Reside muito mais nas
consequências especiais que são tiradas de uma confissão, cuja verdade está
garantida pelos critérios especiais da veracidade.

O sentido da confissão, nesses termos, está imbricado com o “contexto da ação e na


forma-de-vida que constitui seu referência254 de maneira que a não caber questionamentos
sobre sua correção ou equívoco, mas apenas acerca de sua honestidade255.
Em suma, os critérios elencados supra devem ser analisados e interpretados em
conjunto, atentando-nos aos sentidos extraídos da ação que se reputa criminosa.
Afincados os contornos gramaticais do dolo e vontade, cumpre-nos, enfim, passar à

249
CABRAL, 2016, p. 303.
250
Ibid., p. 304.
251
GLOCK, 1998, p. 279.
252
CABRAL, 2016,p. 306, tradução nossa.
253
WITTGENSTEIN, 1999, Segunda Parte, X, p. 215.
254
Id. nota 251.
255
“A intenção de A não precisa se fazer evidente a partir de algo que lhe passe pela cabeça; é, antes, manifestada
pela expressão de sua intenção, o mesmo aplicando-se às ocasiões em que A quer dizer algo. Podemos atribuir-
lhe, afirmar que a intenção de realizar o ato de x, ou que quis dizer Napoleão I, se é isso que ele exterioriza, na
ocasião ou mais tarde, desde que não tenhamos motivos para questionar sua sinceridade (…)” (GLOCK, 1998, p.
279).

62
tratativa do instituto do dolo orientado pela filosofia da linguagem e aplicado no Direito Penal
como alternativa ao finalismo e funcionalismos já demonstrados insuficientes.

3.3. O Dolo Significativo

O dolo significativo, a partir dos aspectos outrora apontados, é composto pelos


elementos cognitivo e volitivo.
O elemento cognitivo consiste na possibilidade de inferir resultados, prognosticar o
futuro ao passo que o elemento volitivo consubstancia “a pretensão de atuar de acordo com
essa inferência, sendo que esses dois elementos manifestam o compromisso com o resultado
significativo”256. Ambos os elementos devem ser devidamente analisados no bojo dos
múltiplos jogos-de-linguagem, “que nascem e morrem, que têm suas regras específicas e que,
do mesmo modo, oferecem possibilidades distintas de se inferir resultados ou de se predizer
significados”257.
Ocorre que, a depender do caso concreto, o grau de previsibilidade do resultado
significativo de uma dada ação pode se mostrar maior ou menor, i.e., mais ou menos próximo
à certeza, estabelecendo-se, em matéria penal, as distintas classes do dolo: direto e indireto.
Nesta parte final do trabalho, enfim, cuidaremos de ambas as espécies, ainda cabendo
explicitar, a partir da teoria sistematizada por Vives Antón, o descabimento da manutenção do
instituto do dolo direto de segundo grau (ou de consequências necessárias).

3.3.1. Uma nova proposta para o Dolo Direto (de Primeiro Grau)

O sentido do dolo direto é extraído nos casos em que “o prognóstico que agente realiza
é seguro, é dizer, o agente prevê com grau de certeza que, ao realizar determinada ação, se
chega a determinado resultado significativo”258. O autor, destarte, “com base nas técnicas que
domina, infere que o resultado se dará, no caso em que intencionalmente realize a ação”259260.
No dolo direto, o agente prevê com segurança que os meios que lhe estão disponíveis o
levarão ao resultado previsto no tipo penal, com o qual se compromete, ao realizar a ação que
engendra a respectiva consequência. A parte Especial do Código Penal a nada mais se presta

256
CABRAL, 2016, p. 309, tradução nossa.
257
Ibid.
258
Ibid., p. 312, tradução nossa.
259
Ibid.
260
Nesse sentido, explica Gebauer (2013, p. 102) que “Se o sujeito aprendeu um jogo-de-linguagem, ele elege
entre os meios disponíveis e indica por sua eleição que pode diferenciar entre fim e meio em um jogo-de-
linguagem e, com isso, aplicar distintas possibilidades para realizar sua intenção”.

63
se não a elencar as condutas e resultados jurídicos desvaliosos com os quais um sujeito pode
se comprometer.
Desde a perspectiva significativa aqui sustentada, podemos afirmar que o dolo direto é
aquele em que o agente, em determinado contexto, conforme o elemento cognitivo, realiza
intencionalmente a ação que engendra o resultado significativo previsto no tipo penal
devidamente previsto, comprometendo-se com esse.
Vê-se com isso que a presente acepção do dolo difere daquelas tradicionalmente
propostas justamente por elencar como critério para sua identificação, não o perigo, risco ou
probabilidade do resultado, mas “a intenção de realizar uma ação, cujo resultado significativo
é prognosticado como seguro, de acordo com as circunstâncias que o agente conhecia e com o
domínio da técnica que tinha”261. A intenção, por seu turno, não consiste num estado mental,
mas como a expressão de uma pretensão de realizar determinada ação, a qual é sempre
contextual e significativa262.
Em apertada síntese, temos que o dolo direto é caracterizado pelos seguintes
elementos263, quais sejam: (i) prognóstico intersubjetivo seguro (é dizer, o contexto é claro em
ostentar circunstâncias que nos permitam estabelecer uma relação de inferência direta entre a
conduta do agente e o resultado significativo); (ii) intenção referida à ação, que se projeta ao
resultado; (iii) compromisso do autor com o resultado significativo.

3.3.2. Do descabimento do Dolo Direto de Segundo Grau

A doutrina tradicional subdivide o dolo direto em primeiro e segundo grau, sendo


aquele diretamente dirigido a cometer dado delito ao passo em que esse é vislumbrado
“quando o autor, para realizar seu objetivo principal, que é o objeto do dolo direto de primeiro
grau, tem que necessariamente também cometer delitos contra outras vítimas, cujas violações
aos bens jurídicos é consequência necessária para a realização da conduta principal”264.
Ocorre que, na medida em que a teoria significativa propugna que o elemento volitivo
do dolo é composto apenas pela intenção, a presente distinção acaba por perder o próprio
sentido. Em verdade, ambos os dolos configuram uma situação de dolo direto de primeiro

261
CABRAL, 2016, p. 315, tradução nossa.
262
Dessa feita, “se pode dizer que haverá, por exemplo, dolo direto de matar se uma pessoa efetua disparos
contra a cabeça ou contra o peito de outra, mas não se dispara contra os pés ou as mãos. Do mesmo modo, há
dolo de matar ao afogar uma pessoa, enforcar, atear fogo em um corpo embebido de gasolina, apunhalar o peito
de outro, decapitar, impedir que respire, enterrar, etc.” (CABRAL, 2016, p. 313-314).
263
Id. nota 260.
264
CABRAL, 2016, p. 316, tradução nossa.

64
grau, ou seja, uma ação intencional na qual há uma relação direta entre a conduta e o resultado
significativo.
Por certo, não se trata de negar a evidente diferença na direção do objeto do crime – por
exemplo, ao introduzir uma faca no abdômen de um presidenciável com intenção de mata-lo
(dolo direto de primeiro grau) e explodir uma bomba num comício a fim de ceifar sua vida,
ainda que a de outros eleitores o seja também (caso em que estaríamos ante a um caso de dolo
direto de segundo grau) – mas de questionar sua relevância prática: são dolos diretos.
Do acima exposto, podemos concluir que tal qual há uma relação inferencial direta entre
uma facada e a tentativa de homicídio, há uma relação inferencial direta entre a explosão de
uma bomba e a morte dos eleitores no comício, ainda que não sejam tais mortes o objetivo
primordial do autor, se não o óbito do presidenciável. Em ambos os casos, contudo, há uma
relação inferencial direta, ainda que no segundo caso não haja um desejo referente à morte das
demais pessoas no comício.
Vives Antón é contundente ao por em manifesto o descabimento da suposição de uma
subdivisão do dolo direto, e, a fortiori, da conceituação do dolo direto de segundo grau:
No Direito Penal, a existência ou inexistência de desejo fundamentaria uma
diferença – que, por certo, não é geralmente admitida – entre dolo direto de
primeiro grau e dolo direto de segundo grau; mas, ainda se se admite, essa é
uma diferença conceitual que, no Direito Penal continental, carece de
qualquer repercussão substantiva sobre a responsabilidade. É, pois, a
intenção – não o desejo – o que determina a atribuição de responsabilidade
“prima facie”265.

Em realidade, se o agente cometeu o delito desejando ou não resultado, se o mesmo lhe


foi agradável ou não, se se arrependeu ou lamentou o ocorrido, isto é absolutamente
irrelevante para fins de imputação de dolo: “(…) o querer que dá lugar à responsabilidade não
é, - não pode, ao menos em Direito Penal, ser – nenhuma classe de sentimento. Uma
responsabilidade que descansara basicamente nos sentimentos, (…) implicaria um -
inadmissível – Direito Penal do ânimo”266.
Consectariamente, se, Wittgenstein observa, “[o] querer, se não deve ser uma espécie de
desejo, deve ser o próprio agir”267 e o desejo ou propósito não têm nenhuma relevância para a
concepção do dolo significativo ora defendida, não há razão substancial para mantermos a
distinção entre dolo direto de primeiro e segundo graus. Portanto, Vives Antón propugna uma

265
VIVES ANTÓN, 2011, p. 243, tradução nossa.
266
Ibid., p. 252-253, tradução nossa.
267
IF §615.

65
concepção única de dolo direto.

3.3.3. Uma nova proposta para o Dolo Eventual

Conforme sobejamente demonstrado no capítulo precedente, por certo a tratativa do


dolo eventual tende a por em causa o poder explicativo de boa parcela das teorias do dolo,
mormente dentre aquelas volitivas, as quais não logram compatibilizar a suposição de uma
vontade individual dirigida à violação de um determinado bem jurídico, ainda que não
desejada.
De outra banda, o dolo significativo prescinde do elemento querer: basta um
compromisso com o resultado, que pode, por seu turno, “estar caracterizado em situações de
segurança (dolo direto) e situações de dúvida (dolo eventual) com relação ao resultado
significativo da ação”268. Dito diretamente: o traço constitutivo do dolo eventual repousa na
dúvida, não aquela ordinária, mas um dúvida razoável269270.
Isso posto, a diferença fulcral entre os dolos direto e eventual, conforme
demonstraremos, repousa, respectivamente, na certeza e na dúvida razoável a respeito da
superveniência do resultado.
Poder-se-ia objetar desde já, contudo, que se em ambos os casos – de dolo direto e
eventual – o agente intencionalmente assume um compromisso com o resultado, razão porque
sua intenção é referida à ação e ao resultado, ainda que duvidoso, a hipótese da roleta russa271
mostraria o contrário: caso houvesse intenção de matar pelo agente, esse completaria a arma
com munição e certamente mataria a vítima.
Tal objeção, conquanto soe adequada, acaba por confundir os conceitos de intenção e
propósito. A primeira é “a expressão da pretensão de realizar determinada ação”272, portanto
engloba a projeção do resultado delitivo posto que o autor tem claros indicativos de que,
atuando, o resultado irá ocorrer. Já o segundo é um estado mental do agente, isto é, é seu
objetivo, meta, plano idealizado e não necessariamente consubstanciado.
Não é, em realidade, necessário o propósito para que se possa dizer que houve intenção

268
CABRAL, 2016, p. 319, tradução nossa.
269
Como bem questiona Wittgenstein, no §122 da obra Da Certeza (1949/1998): “Não precisaremos de razões
fundamentadas para duvidar?”.
270
Sérgio Miranda (2000) assinala que “(…) a existência de uma dúvida razoável deve pressupor um contexto
suficientemente rico para que a dúvida seja efetiva. Deve existir todo um contexto do qual emerja uma situação
de dúvida, em que o autor e terceiros possamconstatar a referida situação com base em razões. A dúvida é, pois,
intersubjetiva” (MIRANDA apud CABRAL, 2016, p. 320).
271
Tomo o exemplo de Cabral (2016, p. 342).
272
Ibid.

66
tendo em vista que, ao colocar intencionalmente em marcha a ação, fica claro que o resultado
– caso ocorra - foi intencional: não foi acidente, mera causalidade ou caso fortuito. Vives
Antón273 não titubeia ao argumentar que
O jogador que aposta na roleta russa pode estar seguro como quiser de que
ganhará; pode entrar no jogo sem cogitar, nem mesmo por um momento, que
poderia perder; pode “confiar em seu taco”274 até o ponto de não ter feito
nenhum cálculo. Sem dúvidas, se sabe o que é um jogo, se domina a técnica
da roleta, tem de saber, também, que pode perder e que, exceto se deixar de
jogar, não tem nenhum meio para evitar que o fato de perder se suceda; de
modo que, se joga, se comprometeu com a possibilidade de perder: essa
possiblidade (perder) forma parte de sua intenção.

Ora, se a dúvida razoável a respeito do resultado é o traço característico, cumpre-nos,


por razões didáticas, proceder ao estudo do instituto do dolo eventual tomando por base as
acepções do termo conhecimento já apresentadas, quais sejam, (a) o saber que (consciência
das circunstâncias da ação) e (b) o saber como (domínio de uma técnica).

3.3.3.1. O Dolo Eventual como consciência das circunstâncias da ação (saber que)

Se, de um lado, há ausência de dolo nos casos de erro e ignorância275 e, de outro, há
clara consciência sobre os elementos do tipo objetivo, é possível identificar casos em que se
constata uma situação intermediária, é dizer, casos nos quais o agente não ignora, porém não
conhece plenamente os elementos do tipo objetivo.
Em situações tais, as próprias circunstâncias da ação – tendo por base nossa forma-de-
vida – geram uma evidente situação de dúvida intersubjetivamente partilhada, i.e., de dúvida
razoável sobre a consciência do agente a respeito das consequências de sua ação. Cabral
(2016, p. 327) aclara o tema recorrendo ao seguinte exemplo:
Imagine-se, por exemplo, uma pessoa que é contratada por US$30.000,00
(trinta mil dólares) para recolher um carro em Tijuana (México) e guiá-lo até
São Diego (EUA), ou de Ciudad del Este (Paraguai) até São Paulo (Brasil).
A referida pessoa aceita o contrato informal e, ao recolher o automóvel, no
local assinalado, limita-se a se sentar e conduzi-lo, sem checar sequer o que
havia no porta-malas ou em qualquer outra parte do carro.
As circunstâncias da ação, com nossa forma-de-vida como pano-de-fundo,
geram uma inegável situação de desconfiança intersubjetiva, de dúvida
razoável no sentido de que havia uma grande quantidade de drogas no
automóvel, uma vez que ninguém paga um valor tão elevado para um
simples transporte de veículo e, ademais, todos sabem que essa fronteira

273
VIVES ANTÓN, 2011, p. 255, tradução nossa.
274
Vives Antón emprega a expressão “confiar em su estrella”, porém optamos por traduzi-la no sentido da
expressão em nosso idioma brasileiro.
275
Os quais dão azo, em Direito Penal, ao erros de tipo (incidindo sobre o dolo strictu sensu) e de proibição
(incidindo sobre o dolo normativo – a potencial consciência da ilicitude).

67
entre EUA e México, ou Paraguai e Brasil, são mundialmente famosas por
ser utilizadas como rotas de tráfico de drogas.
Desde um ponto de vista estrito, não se pode dizer que o agente sabia o que
havia no carro. É evidente, contudo, que existia no caso um contexto de
prognóstico positivo intersubjetivamente duvidoso, que gerava uma
desconfiança que indicava a existência de drogas no veículo.

Constata-se, no presente caso, a existência de uma dúvida razoável referente à


existência de algum dos elementos do tipo objetivo que o autor conhecia. Contudo, atuar ao
intencionalmente nesses casos de dúvida razoável, “o autor acaba por vincular-se
normativamente com o significado de sua ação, cumprindo, pois, o requisito necessário para
fundamentar a existência de uma ação dolosa, uma vez que expresso um compromisso com
esse resultado”276.
Nesses casos, há “um compromisso porque o agente chama para si a responsabilidade
pelo potencial resultado, que é inferido da situação de dúvida razoável”277. Mesmo estando
em uma situação tal, o autor não se intimida em agir, justamente por estar comprometido com
o potencial resultado significativo inferido. Há, portanto, a ocorrência de dolo eventual.
A outro giro, não havendo razões para duvidar razoavelmente não se cogita de dolo
eventual, e.g., não há razão para desconfiar de que, ao sair de casa todos os dias e ir ao
trabalho, haja drogas escondidas em meu carro, de maneira a não ser possível afirmar a
existência de dolo eventual, na hipótese de alguém, ao escutar a sirene policial, as tenha tenha
escondido no para-choque de meu veículo estacionado na rua.
Em apertada síntese, de acordo com a teoria significativa do delito, haverá dolo eventual
na hipótese em que haja um contexto de dúvida razoável intersubjetivamente partilhada, a
qual gere uma desconfiança de que algum elemento o autor desconhece está presente e,
mesmo assim, age intencionalmente, assumindo, pois, a responsabilidade pelo resultado
significativo gerado.
Nesses termos, a caracterização do dolo eventual como assunção de um compromisso
linguístico com o resultado significativo deve estar, assinala Vives Antón278, “além de toda a
dúvida razoável (isto é, que respeitem as exigências da presunção de inocência)”, de modo
que o contexto e suas circunstâncias devem indicar claramente uma situação de evidente
desconfiança com relação a algum dos elementos do tipo penal. É justamente tal situação que
permitirá afirmamos que o autor, ao realizar intencionalmente a ação, manifesta um

276
VIVES ANTÓN, 2011, p. 884, tradução nossa.
277
CABRAL, 2016, p. 328, tradução nossa.
278
VIVES ANTÓN, 2011, p. 262, tradução nossa.

68
compromisso com o resultado delitivo.
Sistematizando, temos como elementos para caracterização do dolo eventual enquanto
consciência das consequências da ação: (i) o contexto da ação deve indicar a presença de
algum elemento do tipo objetivo que o agente desconhece279; (ii) o agente prevê a existência
do elemento do tipo, mas de modo razoavelmente duvidoso, é dizer, “[ele] não tem certeza ou
conhecimento da existência do elemento do tipo objetivo mas tem fundadas suspeitas de que
existe”280; (iii) i e ii devem estar ancorados no contexto e na forma-de-vida nas qual a ação foi
realizada; (iv) o agente deve expressar a pretensão de realizar a ação que serviu de base para a
caracterização da dúvida razoável intersubjetivamente partilhada; e (v) o compromisso com o
resultado significativo.

3.3.3.2. O Dolo Eventual como domínio de uma técnica (saber como)

A outra espécie de dolo eventual estudada desde uma perspectiva significativa é aquela
estudada como domínio de uma técnica, a qual consiste numa mera variação da acepção do
saber que. Socorrendo-nos do célebre exemplo formulado por Luís Greco281:
Dois fazendeiros que brincam de tiro ao alvo numa feira popular decidem
fazer uma aposta. O desafio: que o primeiro deles atire no chapéu da menina
que se encontra vinte metros adiante, sem a ferir. O prêmio: todo o
patrimônio do perdedor. O primeiro fazendeiro atira e ocorre o duplamente
indesejado, a menina é atingida e morre.

No caso acima, conforme as técnicas que o fazendeiro dominava, havia uma dúvida
razoável intersubjetivamente partilhada, que gerava uma desconfiança de que o agente iria
causar a morte da menina com o disparo de arma de fogo, tendo em vista não ser um atirador
profissional. Portanto, ainda que não possamos afirmar categoricamente que o fazendeiro não
tinha o propósito, não queria ou desejava a morte da vítima, não há dúvidas de que, ao atuar
intencionalmente, assumiu um compromisso com o resultado.
É irrelevante para a caracterização do dolo se o agente subjetivamente confiava em sua
suposta habilidade amadora ou se não desejava o resultado. O que importa é que, apesar da
dúvida razoável intersubjetivamente partilhada no sentido de que a morte poderia ocorrer, o
agente intencionalmente atuou, chamando para si a responsabilidade de seu ato, assumindo,
pois, um compromisso com o resultado significativo.
Distinta seria a hipótese em que o fazendeiro fosse um atirador profissional e que, por
279
Cabral denomina elemento como prognóstico positivo. Cf. CABRAL, 2016, p. 337.
280
CABRAL, 2016, p. 337, tradução nossa.
281
GRECO, 2009, p. 887.

69
sua perícia, seguramente acertaria o chapéu da menina. Nesse caso não haveria desconfiança
intersubjetiva de que poderia vir a matá-la haja vista o domínio da técnica de tiro e com base
no reconhecimento da sociedade.
Caso venha a lesionar a menina, não estaremos diante de um caso de dolo eventual, mas
de imprudência282 consciente, posto que houve uma má aplicação da técnica, o que não
consubstancia um compromisso com o resultado, se não uma ocorrência de imprudência.
De outra banda, seria igualmente distinta a situação em que o fazendeiro, um atirador
profissional, tenha como objetivo matar a menina – ainda que materialmente idêntica a
anterior. Nesse caso, expressaria a pretensão de matar a vítima, assumindo um compromisso
com sua morte, caracterizando, destarte, o dolo direto: é evidente que o agente tinha absoluta
certeza do resultado. Certamente, ele tanto expressou a pretensão de efetuar o disparo contra a
cabeça da vítima como também o compromisso de matá-la.
Cabe-nos, por fim, contrastar o dolo eventual com a imprudência consciente283.
No caso de imprudência consciente “o agente simplesmente tem consciência da
possibilidade do resultado do resultado delitivo. Mas o prognóstico que o autor realiza não é
positivo ao ponto de gerar uma desconfiança de que o resultado vai acontecer”284. É dizer, na
imprudência consciente não se extrai do contexto em que a ação é realizada uma indicação de
que o resultado se produzirá. Não há um indicativo positivo a superveniência do resultado,
inexiste compromisso com o resultado significativo. Destaca Vives Antón285, nesse tocante
que

282
A teoria significativa do delito adota a expressão imprudência como substituta da expressão culpa. Juarez
Cirino dos Santos é perspícuo em denunciar a inadequação do emprego desse último termo: “O substantivo
culpa e o adjetivo culposo são inadequados por várias razões: primeiro, confundem culpa, modalidade subjetiva
do tipo, com culpabilidade, elemento do conceito de crime, exigindo a distinção complementar de culpa em
sentido estrito e culpa em sentido amplo, o que é anticientífico; segundo, induzem perplexidade no cidadão
comum, para o qual crime culposo parece mais grave que crime doloso, ampliando a incompreensão de
conceitos jurídicos; terceiro, o substantivo imprudência e o adjetivo imprudente exprimem a ideia de lesão do
dever de cuidado ou do risco permitido com maior precisão do que os correspondentes culpa e culposo; quarto, a
dogmática alemã usa o termo Fahrlässigkeit, que significa negligência ou imprudência, mas a natureza da
maioria absoluta dos fatos lesivos do dever de cuidado ou do risco permitido, na circulação de veículos ou na
indústria moderna, parece melhor definível como imprudência” (SANTOS: 2014, p. 159), Veja-se também
Busato (2015, p. 395-399).
283
Busato é categórico em rejeitar a subdivisão entre as espécies consciente e inconsciente da imprudência,
litteris: “(...) se dolo e imprudência são instâncias normativas derivadas da expressão de sentido de
circunstâncias em face da conduta realizada, é esse desvalor – e não a consciência ou inconsciência, que
ademais, é uma instância inacessível – que determina a maior ou menos desvaloração do caso. (...). Claro está
que a distinção da doutrina em geral entre a imprudência consciente e inconsciente – que sempre careceu de
relevância prática, já que não implica qualquer alteração de responsabilidade – esteve permanentemente
associada a uma concepção ontológica do fenômeno subjetivo do delito, ou seja, de propostas com pretensões
psicológicas de definição do dolo e imprudência” (BUSATO, 2015, p. 439).
284
CABRAL, 2016, p. 349, tradução nossa.
285
VIVES ANTÓN, 2011, p. 258-259, tradução nossa.

70
(...) a imprudência fica delimitada por uma dupla ausência de compromisso:
pela ausência desse “compromisso com o resultado típico”, em que o dolo
consiste, e pela ausência de um compromisso normativamente exigido com a
evitação da lesão (a infração do dever de cuidado).

Em suma, na imprudência consciente “o autor não manifesta a intenção de jogar com a


sorte dos bens jurídicos alheios”286.
No caso de dolo eventual, contrariamente, o domínio de uma técnica tem uma especial
relevância haja vista – ante a constatação de uma situação de perigo – o que diferenciará,
muitas vezes, uma imputação a título de dolo eventual ou imprudência consciente, serão
precisamente as habilidades contextualizadas do autor (ainda que tais habilidades
contextualizadas dependam da intenção – não do querer ou do desejo – e, portanto, do
elemento volitivo).
Analogamente ao que fizemos em relação à primeira acepção do elemento cognitivo,
sistematizando o instituto, temos como elementos para caracterização do dolo eventual
enquanto domínio de uma técnica287: (i) o contexto da ação deve gerar uma desconfiança de
que resultado significativo vai ocorrer; (ii) inexiste certeza da superveniência do resultado,
porém há fundada desconfiança nesse tocante; (iii) a dúvida é intersubjetivamente partilhada e
fundada na racionalidade prática; (iv) o agente deve expressar a pretensão de realizar a ação
que serviu de base para a dúvida intersubjetivamente partilhada, intenção essa que é referida
ao resultado delitivo, ainda que, conforme sustentamos, não seja possível afirmar cabalmente
ter sido o propósito ou desejo subjetivo do agente; (v) o agente intencionalmente realiza a
ação, assumindo “a responsabilidade normativa pelos resultados de sua ação”288.
Tendo nos ocupado, no curso deste trabalho, da tratativa do instituto do dolo e, neste
capítulo, do contributo da teoria significativa do delito para o mesmo, finalizaremos o
presente estudo concatenando as principais ideias e propostas ora defendidas de maneira a
elucidar a relevância da adoção da referida teoria no Direito Penal que se pretenda
democrático e garantista eis que informado com as garantias e direitos fundamentais insertos
na Carta Magna.

286
CABRAL, 2016. p. 350, tradução nossa.
287
Valemo-nos da síntese de Cabral (2016, p. 351-352).
288
CABRAL, 2016, p. 351, tradução nossa.

71
CONCLUSÃO

O trabalho de conclusão de curso ora em conclusão versou sobre a temática do dolo,


tomando por base a teoria significativa do delito sistematizada por Tomás Salvador Vives
Antón a partir, de um lado, da filosofia da linguagem do ‘segundo’ Wittgenstein e, de outro,
do modo de apresentação da teoria do agir comunicativo de Habermas.
Acerca da pertinência da rediscussão do instituto do dolo, conforme dito por ocasião da
introdução, temos que a ratio para o tratamento penal mais severo dispensado aos delitos
dolosos é precisamente o imperativo de promover os anseios preventivos que devem orientar
um Direito Penal democrático porque vazado pelos direitos e garantias fundamentais
encerrados no Texto Constitucional.
Ora, a melhor via preventiva de delitos é um Direito das Penas racionalmente fundado
nas concepções de justiça da sociedade que se pretende regular e pacificar. Desde a
perspectiva normativa da Constituição aqui pressuposta, somos que a única base aceitável
para tal desiderato é a supremacia da lei e a limitação do poder.
Assentadas as premissas supra, colocamo-nos a questão sobre como é possível conceber
um Direito Penal que observe os conceitos socialmente partilhados de justiça de maneira a
orientar adequadamente a intensidade e cabimento da repressão às condutas formalmente
tipificadas.
Tomando por base a filosofia da linguagem, compreendemos que considerando a ação
dotada de um caráter linguístico-normativo (‘querer é agir’) e passamos a minudenciar o
conjunto de pressupostos equivocados a que Wittgenstein denomina ‘imagem agostiniana da
linguagem’, que se desdobram, no plano das sensações, numa equivocada ‘imagem
agostiniana da vontade’, para qual o querer – instância mental e inacessível a terceiros – é um
motor fiat, que causa o agir, mas ele próprio por nada é causado.
A descrição gramatical levada a cabo por Wittgenstein nos permitiu elucidar que
vontade é um conceito, é dizer, seu uso denota atividade. Não se trata, pois, de sentimento,
representação ou vivência privadas, mas, antes, de um ato significativo: todas as ações não
são meros acontecimentos, mas têm um sentido (significado), e, por isso, não basta descrevê-
las, é necessário entendê-las, interpretá-las.
Destarte, sistematizamos as linhas gerais da gramática das sensações e encerramos o
primeiro capítulo deste trabalho centrando-nos no conceito habermasiano de ação
significativa, no qual a ação só pode ter sentido jurídico desde que interpretada em conjunto
com seu entorno. Logo, as valorações jurídicas só podem ser consideradas como ações dentro

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do marco de seu significado.
O segundo capítulo desta monografia versou sobre as principais teorias desenvolvidas
sobre o dolo desde o dolus malus até os funcionalismos teleológico e sistêmico, dividindo-as
entre as teorias volitivas e normativas. O cerne da crítica dirigida a ambos os grupos está no
fato de pressuporem aspectos da já denunciada imagem agostiniana da vontade, o que acaba
engendrando a compreensão da intenção como algo incorpóreo, cujo acesso é privilegiado ao
seu portador e, portanto, impossível de ser objetivamente avaliado.
No que toca as teorias volitivas sustentamos como crítica fundamental a tese segundo a
qual não é possível valorar o dolo como um estado mental e, como consequência, é inócuo
pretender caracterizá-lo de acordo com algo que é subjetivo sob pena de violação aos
princípios da legalidade e fundamentação das decisões judiciais.
O que buscamos rechaçar é a crença na introspecção como um método de observação do
mental, baseada na autoridade da primeira pessoa assim como o modelo da ação como
derivada de uma relação causal (querer como motor fiat) iniciada por algo interno.
De igual sorte, denunciamos a insuficiência explicativa das teorias puramente
normativas, sobretudo o problema da inferência do interno a partir de indicadores externos.
Elucidamos a insuficiência dos critérios elencados pelos doutrinadores que propugnam tal
grupo de teorias.
Assim, desde a era do dolus malus até o funcionalismo sistêmico permanece a perene
incompreensão acerca do que seja o elemento intencional por meio do qual podemos
identificar uma conduta típica como sendo dolosa.
No terceiro e último capítulo, enfim, buscamos por em manifesto a necessidade de se
operar um giro linguístico na teoria do dolo. Defendemos, com base em Wittgenstein, que o
conhecimento que possuímos do mundo se dá desde um sistema de referências linguístico (a
forma-de-vida), o pano-de-fundo de nossos jogos de linguagem, que, por sua vez, está
ancorado nos hábitos e práticas de nossas sociedades.
Dito diretamente, o dolo significativo implica um compromisso do agente com o
resultado de sua conduta, sendo composto pelos elementos volitivo e cognitivo,
(re)significados.
Num primeiro plano, a vontade consubstancia a ideia de compromisso com o resultado,
um vínculo de responsabilidade normativa existente entre o autor e os resultados
significativos de sua ação. Nessa acepção, sustentamos que o elemento volitivo não se
confunde com estados mentais, sentimentos ou paixões, inacessíveis à análise objetiva: dolo é

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intenção, i.e., a expressão de uma pretensão significada de realizar determinada ação, e,
portanto, é sempre linguística, um conceito em nosso jogo-de-linguagem.
Os critérios elencados pela doutrina aptos a comprovar o elemento volitivo são: (i) o
contexto da ação; (ii) as explicações e confissões do autor a respeito de sua ação, todos
devendo ser interpretados conjuntamente, à luz de nossas formas-de-vida.
Isso posto, para que pudéssemos melhor compreendê-lo em sua relevância prática
cumpriu-nos, ainda, tomar por base os usos da palavra ‘conhecimento’ que importam para a
teoria, a saber, (i) conhecimento como consciência da ação (saber que) e (ii) conhecimento
como domínio de uma técnica (saber como).
Enquanto consciência da ação, o dolo se caracteriza pelo conhecimento que o agente
efetivamente demonstra enquanto comete um delito, o qual compreende as circunstâncias
integrantes do tipo objetivo. O autor age com intenção, comprometido com o resultado, ainda
que não se possa afirmar de pronto se ele o faz com desejo, plano ou querer, fatores de ordem
subjetiva.
Por outro lado, o conhecimento como domínio de uma técnica refere à ideia de
capacidade de aprendizagem – seguir regras, no contexto de um jogo-de-linguagem – da
cultura, seus hábitos e práticas, como domina-los. Nesse sentido, o dolo exprime uma
capacidade de avaliação das capacidades e competências que o agente domina, habilitando-o a
realizar predições.
Ao final deste trabalho ocupamo-nos dos dolos direto e eventual.
É direto o dolo significativo sempre que o agente, em dado contexto, realiza
intencionalmente a ação que engendra o resultado significativo previsto no tipo objetivo,
prognosticando-o de acordo com as técnicas que domina e o conhecimento das circunstâncias
que possui, assumindo, assim, um compromisso para com o mesmo.
Ato contínuo, discutimos as razões pelas quais Vives Antón rechaça a subdivisão do
dolo direto em graus, haja vista que, adotada a intenção como elemento preponderante, resulta
descabida a suposição de um dolo direto de segundo grau.
Por fim, a respeito do dolo eventual argumentamos que seu fundamento repousa na
existência de uma dúvida razoável intersubjetivamente partilhada, a qual gera uma
desconfiança que pode incidir tanto no conhecimento como consciência da ação quanto como
domínio de uma técnica.
Dessarte, se o agente, a despeito da existência da dúvida razoável, intencionalmente põe
em marcha a ação que sabidamente pode vir a lesionar bens jurídicos alheios, podemos

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concluir por sua responsabilidade pelo resultado prognosticado.
Esperamos, pelo fio do exposto, que a teoria do dolo aqui encampada cumpra seu
objetivo de despertar a reflexão sobre o instituto sobre novos horizontes de discussão e
acalentar a reivindicação de um Direito Penal democrático e garantista, que bem cumpra seu
papel de repressão e prevenção do crime, sem excessos e/ou arbitrariedades.

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